A ilustração no centro da capa mostra duas pessoas se encarando — um homem de pele morena de sol e roupa de pirata, com um chapéu preto com uma pena branca e um sabre curvado em uma das mãos. Ele está encarando uma pessoa de costas, que tem cabelos morenos na altura dos ombros e está usando uma camisa branca e uma calça verde. Essa pessoa está segurando um cordame de um navio, e ao fundo é possível ver o mar além da amurada. O título “As sete vidas do capitão Hernandez” vem, em azul claro, no rodapé da capa. Abaixo, há as informações "Escrito por Isa Prospero” e “editado por Daniel Lameira” em preto. O logo da Mafagafo no topo da página é amarelo. Do lado esquerdo, em cima, há o logo da Mafagafo com a informação “Temporada 003 - Novembro de 2020”. Acima do título da Mafagafo, há as informações “Ilustração: Mari Rolin” e “Direção de Arte: Giovanna Cianelli”.

O capitão Hernandez lidera uma das mais famosas tripulações piratas remanescentes no Caribe do século XIX. Forçado a escolher entre amor e reputação, ele pede ajuda a uma velha amiga – que, por meio de seus feitiços, pode ajudá-lo a ter tudo que quer. Mas quando o passado volta à tona, Hernandez descobre que nem todo problema pode ser resolvido com magia.

21.000 palavras | Aproximadamente 1h30min de leitura 

Vós, cujos olhos se enchem de tormento e tédio,
Regozijai-os com a imensidão do mar.
John Keats

I

Parado atrás do leme, o homem era um eco de épocas passadas: alto, imponente e quase elegante em um longo casaco de couro desgastado por sol e sal. O rosto padecia do mesmo desgaste, mas, entre as rugas e cicatrizes, entreviam-se aventuras que o imbuíam de certa beleza.

Ninguém imaginaria o que se passava em sua mente naquele momento. Pois, enquanto guiava o navio com maestria sob um céu límpido, uma ilha de quietude entre os gritos da tripulação, o homem conjurava imagens degradantes – imagens que, se fossem sequer intuídas pela tripulação, fariam os marujos suspeitarem que seu capitão fora substituído por um impostor. Pois Hernandez cogitava implorar de joelhos. Não a seus inimigos. Não a seus competidores. Certamente não aos oficiais da lei.

A uma mulher.

Em seus devaneios, a mulher em questão o recebia de braços abertos e olhos úmidos, abandonando o marido respeitável para partir com ele ou aceitando esperar suas visitas em algum porto distante. Ela entenderia, por exemplo, que Hernandez construíra sua reputação em grande parte por ela; que nenhum general espanhol enfadonho lhe propiciaria as mesmas emoções que ele; e que era uma grande honra ser a companheira do capitão do Wordsworth, o navio pirata mais temível e bem-sucedido do Caribe. Hernandez podia não ter encontrado o tesouro do Lima, mas — com mil demônios! — ninguém mais o encontrara também. O maldito tesouro era uma lenda. E, afinal das contas, não precisavam dele. Hernandez já pilhara e saqueara o suficiente para sustentar cem esposas.

Angelita entenderia. Tinha de entender. Mas e se nunca entendesse?

— Navio à vista! — alguém gritou, arrancando Hernandez de seus pensamentos.

Era inglês. Abordaram-no. O capitão permaneceu em seu navio enquanto os piratas vasculhavam a embarcação. Os cofres não renderam muito, e os homens arrastaram os poucos passageiros para o convés. Havia um perigoso clima de insatisfação entre os corsários, e alguém sugeriu lançar os prisioneiros ao mar para se divertirem um pouco. Estavam debatendo se deveriam trazer a mulher para seu próprio navio quando o imediato, Morales, pensou que seria melhor avisar o capitão.

Hernandez estava encostado na amurada do Wordsworth, observando o massacre dos últimos oficiais ingleses com um olhar distante. Suspirou com a notícia.

— Traga-os a bordo — ordenou a Morales.

Então os prisioneiros foram levados à sua frente e tudo mudou pela segunda vez.

A primeira vez que tudo mudou foi em Puerto Rico. Hernandez era muito jovem na época. Fazia poucos meses que deixara a Marinha britânica em busca de aventuras mais lucrativas, galgando a hierarquia de rapaz da pólvora até tornar-se o imediato de um tal capitão Rivero. O homem carecia de imaginação e pulso para o gosto do dinâmico Hernandez, e começou a confiar cada vez mais em seu imediato quando viu que o rapaz demonstrava uma facilidade para letras e números. Hernandez aceitou as responsabilidades, primeiro sem reclamar, depois exigindo-as para si. Gostava de manter-se ocupado. Gostava de ver o navio funcionando bem. E descobriu que gostava, acima de tudo, de dar ordens e ser obedecido.

Um dia, o capitão o chamou à sua cabine. Contrariando os conselhos de Hernandez sobre o próximo ataque, tinha decidido fazer uma parada em San Juan. Nada o dissuadiria. Precisava de um gole de rum.

— O que não falta neste navio é rum, capitão — observou Hernandez com toda a calma que conseguiu, erguendo os olhos em direção ao convés. — Hoje mesmo mandei açoitar dois garotos que apareceram trançando as pernas, e o homem que segurava o açoite estava tão bambo que não conseguia acertá-los e tirou o olho de um terceiro. É impressionante não estarmos de casco pro ar dada a quantidade de bebida que eles conseguiram estocar nesses porões.

Rivero só abanou a mão.

— Não é tanto o rum, mas a companhia, rapaz — admitiu, recostando-se em sua mesa. — Ah, não sabes… é verdade. Não a conheces.

— Não conheço quem?

Rivero soltou uma risadinha, os olhos brilhando com um segredo.

— Não importa, não importa — disse o capitão. — Os homens merecem uma folga. Tu também. Dois dias em terra e partimos de novo.

E foi assim que atracaram em San Juan, onde o capitão pulou para fora do navio como um condenado escapando da forca. Frustrado e desconfiado, Hernandez o seguiu a uma distância segura. Os passos de Rivero levaram ambos até uma taverna no porto, que não parecia diferente de qualquer outra.

O jovem Hernandez parou no batente e observou Rivero abrir caminho pelo salão lotado — até que, subitamente, viu-se atravessado pela pontada mais aguda que já recebera de sentimento ou espada na vida. No meio do salão, uma mulher dava ordens aos atendentes. Talvez nem todos dissessem que era uma beleza, mas ela não precisava de traços delicados ou proporções clássicas para merecer o epíteto: era o modo como se portava com confiança naquele antro de criminosos e assassinos, a obediência que comandava a cada gesto, a inteligência que faiscava por trás dos olhos. Tudo isso Hernandez viu em um segundo, e um segundo bastou.

Angelita era dez anos mais velha que ele e dona da taverna, como ele descobriria mais tarde. Naquele momento, apenas se recostou no batente para recuperar o fôlego.

Então um segundo golpe seguiu-se ao primeiro. Alguém acotovelou suas costelas e riu em seu ouvido:

— Guarda a língua na boca antes que Rivero a corte. É a mulher dele que estás encarando.

A mulher do capitão? Sim — como se o tempo corresse mais lento, Hernandez viu Rivero aproximar-se dela, envolver um braço em sua cintura e sussurrar algo em seu ouvido com familiaridade.

O sangue fugiu do rosto. Aquela mulher, com aquele imprestável? Imprestável ou não, pensou, é seu capitão. Ele estava perdido. Então algo curioso aconteceu. Um segundo pensamento perseguiu e ultrapassou o primeiro, como duas fragatas em alto-mar, e o pensamento foi que a situação era resolvível. Na verdade, quando começou a dar nós em ideias para formar uma rede, pareceu-lhe que a questão era muito simples, e o sucesso, inevitável.

Não era a primeira nem seria a última vez que ele tinha um desses momentos.

Assim, foi com confiança que visitou a taverna no dia seguinte e sentou-se no balcão diante da única mulher que jamais amaria.

— Hernandez — apresentou-se. — Imediato d’El Matador.

— Angelita — respondeu ela, medindo-o como um adversário. — O que queres?

— Por enquanto? Uma bebida.

A mulher ergueu uma sobrancelha.

— E depois?

— Isso já não depende de mim. — Olhou para as garrafas de cores e tamanhos diferentes, algumas parecendo estar ali desde o início dos tempos. — Dê-me tua preferida.

Angelita não hesitou: sumiu debaixo do balcão e emergiu com um pequeno copo de vidro cheio de um líquido acobreado. Hernandez o virou de um só gole.

— Esse não é teu nome de verdade — comentou ela enquanto o imediato tentava não se engasgar.

— É o que escolhi — respondeu ele quando a queimação na goela permitiu. — Tinha outro, mas não me serve mais.

— Um nome inglês — adivinhou ela.

— Do meu pai — confirmou. — Da minha mãe, não herdei nome. Só a língua.

Ela não pediu detalhes, e ele não os ofereceu. Falaram de outros assuntos, terrestres, marítimos e transcendentais, e nenhum dos dois mencionou Rivero. Hernandez partiu com um beijo casto na mão da mulher.

Passou a visitar sempre que possível. Quando seu capitão estava presente, observava-a como um náufrago vendo seu barco diminuir no horizonte. Quando Rivero cuidava de negócios alhures, sentava-se no balcão e fazia perguntas que ela evadia ou respondia dependendo de seu humor.

— Desse jeito vais gastar toda tua parte do butim em bebida — comentou Angelita certo dia.

— Um minuto de tua companhia valeria todo o ouro do mundo — retrucou ele com a maior seriedade.

Ela ergueu uma sobrancelha, mas um leve sorriso se insinuou em seus lábios.

Logo os comentários ousados passaram a evocar sorrisos visíveis, que por fim se tornaram gargalhadas. Foi aí que Hernandez soube que tinha vencido: ela nunca gargalhava com Rivero.

Dizer que o capitão ficou possesso quando Angelita lhe informou que não o queria mais em sua cama — nem, por sinal, em sua taverna — não faz jus à raiva do pirata. Mas o homem não teve tempo de buscar vingança, pois na mesma noite foi preso por oficiais espanhóis. Estes raramente se preocupavam com piratas que atacavam navios ingleses e estadunidenses, mas uma denúncia anônima informara as autoridades de que o capitão Rivero estava revendendo os saques pelas costas dos espanhóis e dera informações exatas sobre onde encontrá-lo, de modo que o homem encontrou um fim rápido e impiedoso sob a espingarda de um soldado. Seu navio foi milagrosamente salvo pelo imediato, que recolheu os membros da tripulação sóbrios o suficiente para navegar e tirou a chalupa do porto antes que os oficiais pudessem tomá-la. Sua coragem e presença de espírito o tornaram objeto da admiração geral e, de imediato, Hernandez passou a capitão.

Pelo menos era assim que a história seria contada mais tarde. A cena real teve um grau maior de incerteza.

— É o seguinte, rapazes — disse Hernandez, reunindo os homens no convés quando estavam longe da costa. — Rivero está morto e o navio agora é meu.

Houve resmungos e o arrastar de pés sobre madeira.

— Votação! — gritou alguém.

Hernandez não deixou o grito ser ecoado.

— Escutem aqui, bando de salafrários! — esbravejou, silenciando-os. — O capitão era um inútil e vós, a piada do Caribe. É isso que quereis fazer pelo resto da vida? Atacar barquinhos à deriva e mal ganhar o suficiente pra pagar uma bebida ou uma mulher nos dias de folga? — O argumento teve um pouco de sucesso, refletido em rostos pensativos e nucas coçadas. — Que haja votação, mas não há nenhum outro homem neste convés capaz de encher vossos bolsos! E digo mais. — Ele fez uma pausa, deixando a antecipação crescer. Sua voz ressoou firme e terrível: — Acabou a bebedeira a bordo!

— Ei!

— Mas…

— Votação! — protestou outra voz.

— Somos piratas — sentenciou Hernandez. — Nosso ofício requer concentração e pulso firme! Como esperam lutar contra os ingleses e espanhóis sem ser capazes de se manter em pé? Na última abordagem, o Pedro aqui… — Apontou para o acusado em questão. — …teve o olho perfurado pelo alfinete de uma dama!

Pedro ajeitou o tapa-olho enquanto risadas ondulavam pelo convés.

— E o resto não é melhor que ele — cortou Hernandez, impondo silêncio outra vez. — Mas pode ser. — Com as mãos atrás das costas e o queixo erguido, encarou os homens. Brutos e simplórios, sim, mas qualquer navio sem leme era só uma coleção de tábuas. Preparou-se para a última parte do discurso, aquela que vinha acalentando desde que planejara dar cabo de Rivero, aquela que determinaria seu sucesso ou fracasso. — Se ficardes comigo, vos darei mais do que riquezas: vos darei renome. Se ficardes comigo… eu vos darei o tesouro do Lima.

O silêncio se estendeu por um momento, e então os piratas irromperam em gargalhadas.

Todos conheciam a história: alguns anos antes, um magnífico butim saíra da cidade de Lima em direção ao México, mas nunca chegara lá. O capitão Thompson, um escocês contratado para fazer a entrega, ficou tão tentado pelas riquezas que matou os oficiais espanhóis a bordo e escondeu o tesouro na Ilha do Coco, perto da Costa Rica. A tripulação do escocês pretendia se dispersar e esperar a fúria espanhola diminuir, mas foram todos capturados e enforcados — exceto por Thompson e seu imediato, que conseguiram escapar. Rezava a lenda que o tesouro ainda estava enterrado onde eles o deixaram, do outro lado das Américas.

Uma hora alguém devia encontrá-lo. Por que não ele? Por que não agora?

Tinha o amor de Angelita. A vida parecia cheia de impossibilidades a seu alcance.

— Sim — insistiu ele, mais alto que as vozes. Os risos morreram aos poucos enquanto Hernandez observava do alto, impassível. Um brilho estranho reluzia em seu olhar, algo que os homens tinham dificuldade para encarar de frente, algo que os assustava e os atraía na mesma medida. — Se for eleito capitão, vou encontrar o tesouro do Lima e transformar esse espetáculo patético  na maior tripulação pirata dos sete mares. E vou tornar cada homem aqui rico. Então, como vai ser?

Não houve votação.

Lima. A palavra era repetida nas cabines e nos conveses, sussurrada de marujo a marujo, remoída em sonhos e gritada em brindes. Havia apenas um obstáculo à recuperação do tesouro: para atingir a Ilha do Coco, seria preciso contornar o continente americano. A viagem era não só longa e arriscada, mas também cara. Precisavam financiá-la.

Nisso, o útil se uniu ao agradável. Antes da morte de Rivero, Hernandez havia descoberto que Angelita não era apenas amante do pirata, mas também sua mediadora. Naqueles tempos, o Caribe já não era o que fora — a época de Barba Negra passara havia muito, e os antros piratas do século anterior tinham entrado em declínio —, mas um pirata decente podia conseguir madeira, tecidos, rum e outras mercadorias que revendiam bem caso tivesse os contatos certos. E Angelita os tinha.

Graças a ela, os anos que se seguiram alçaram Hernandez a alturas que ele sequer ousara imaginar. Logo ficou conhecido por ataques afoitos, atribuídos a uma louca sede de sangue e a uma ambição desmedida que, em boa parte, eram uma vontade febril de retornar para junto de Angelita. Não que desgostasse de navegar — tinha talento para o trabalho sanguinário, olho para o financeiro e gosto pelos confortos da cabine do falecido Rivero. Adorava a adrenalina de uma batalha e um plano bem-sucedido, e gostava de ouvir os homens se gabando de seu capitão em cada porto. Mas, tão logo realizava um roubo, virava o navio para San Juan.

Seus marujos afirmavam para quem estivesse disposto a ouvir: jamais haviam conhecido um homem tão sedento por uma briga ou um pirata mais destemido. E, se algum deles suspeitava que grande parte da ânsia de Hernandez por ataques rápidos relacionava-se com seu desejo de substituir o gosto de rum pelo do corpo de Angelita, nenhum era atrevido a ponto de dizê-lo.

A mulher era um milagre. Inteligente, corajosa, sagaz nos negócios e habilidosa no amor. Conheceram-se bem. De dia, trocavam lucros; de noite, memórias e confidências. Hernandez estava mais que apaixonado — estava enfeitiçado.

E não porque ela era uma bruxa. A bem da verdade, este lado de Angelita o intimidava um pouco, embora ao mesmo tempo aumentasse seu fascínio. Como pária, atraía-se por tudo aquilo que desafiava a ordem normal das coisas.

— Inglês ignorante — desdenhou ela uma noite, deitada a seu lado. — O que sabes de magia? As bruxas do teu povo se esconderam para fugir da fogueira. A magia secou na terra deles, então agora vêm pra cá se aproveitar da nossa.

— Não é por teus poderes que te amo — prometeu Hernandez. — Nunca pedirei que os uses por mim.

— Nem para encontrar teu amado tesouro? — provocou ela.

— Podes ser uma bruxa, meu amor, mas eu sou um pirata. — Inclinou-se para beijá-la. — Não podes me ajudar em meu ofício.

Ela só riu.

— É o que todos dizem. Um dia, mi amor, virás atrás de minhas habilidades.

E eram habilidades únicas. Pés de todos os portos e magias de todos os povos cruzavam-se em sua taverna, e ela não recusava nenhum. Hernandez ouvia os cochichos que rondavam o Caribe: se tens qualquer problema, diziam as pessoas, com temor e respeito, fale com a bruja de San Juan. Por mais que não tivesse mentido à amante e que de fato não tivesse intenção de requisitar seus serviços, o capitão não ignorava que a conexão com Angelita fazia bem à própria reputação.

Mas devia saber que uma bruja teria segredos. Seis anos depois de deixar Rivero por ele, Angelita anunciou sem mais nem menos que iria se casar.

Ele a encarou embasbacado. Primeiro não conseguiu entender, e então recusou-se a aceitar. Ela disse que estava cansada. Que vê-lo duas noites a cada três meses não lhe bastava. Queria um marido. Estabilidade.

— Caso-me com ti — disse Hernandez.

Ela sorriu.

— E vais abandonar teu navio?

Ele abriu e fechou a boca.

— Quero sair dessa vida — ela continuou, indicando o quarto estreito. — Viver sem uma corda no pescoço.

— Mas és uma bruxa! Podes fazer qualquer coisa!

— Inglês ignorante — suspirou. — Não entendestes ainda que o novo mundo funciona como o antigo?

Ele não ouvia. Não conseguia ouvir.

— Trarei o tesouro para ti — prometeu com fervor. — O tesouro do Lima. Então viveremos como reis, em qualquer lugar que desejares. Nunca mais estaremos sujeitos a ninguém.

Nos olhos dela, brilhou uma emoção que Hernandez não quis identificar. Nós não temos tais ressalvas e a chamaremos pelo nome: pena.

— Não há tesouro — disse Angelita. — É um sonho.

— Não sabes disso!

— Ramírez me contou — retrucou ela, referindo-se ao noivo. — Os espanhóis jamais o recuperaram porque afundou junto com o navio. Esquece isso, pelo teu próprio bem. — Ela o beijou com delicadeza e finalidade. — Adeus, mi amor.

Hernandez saiu da taverna cambaleante. Pensou em matar o concorrente. Já matara o antigo amante de Angelita, agora mataria o futuro marido! Mas o general Ramírez era riquíssimo e influente, e tais homens se cercavam de soldados. E como garantir que, se matasse este, ela não encontraria outro?

Caminhou sem ver aonde os pés o levavam. Vozes se erguiam no porto, estivadores e marujos e bêbados e prostitutas e oficiais, todos às voltas com suas preocupações mesquinhas enquanto o mundo ruía ao seu redor. Parou de repente. El Matador estava atracado com as outras embarcações, o navio que ele conquistara na base de sangue e astúcia. E promessas.

Ramírez me contou. E ele devia aceitar a palavra do homem? Um general espanhol não iria querer que ninguém pensasse que o tesouro ainda existia. Talvez fosse justamente o contrário — o império queria desencorajar as buscas até que eles mesmos não o encontrassem. Hernandez apertou as mãos, transformando a mágoa em determinação.

Tinha o dinheiro. Tinha a tripulação. E não tinha mais para quem voltar.

Subiu no convés do seu navio e chamou seu imediato.

— Morales, zarpamos pela manhã — anunciou, com um último olhar para San Juan. — Vamos buscar nosso tesouro.

— Não há tesouro — disse o marujo pela terceira vez.

Hernandez ergueu a luneta para a praia pontilhada por buracos. Daquele ponto elevado, via a tripulação diminuta espalhada pelo litoral. Pás tinham sido abandonadas na areia. Homens estavam jogados no chão ou compravam brigas sem muito ânimo. Aquela fora a última aposta após esquadrinharem o interior da ilha, desenraizando árvores, perturbando a fauna local e até mergulhando em riachos. Mas a costa não rendeu melhor resultado. Ele abaixou o instrumento.

O pirata à sua frente enxugou a testa com o antebraço e lançou um olhar ansioso para Morales. Hernandez não dissera uma palavra enquanto o imediato conduzia a conversa. Na verdade, não falava havia dias. Tinham passado quase duas semanas na ilha, e o humor do capitão deteriorara junto com as esperanças gerais.

Morales enfim dispensou o marujo, que se afastou depressa.

— Capitão — disse ele com tato —, parece que não há tesouro.

Hernandez não respondeu.

— Nossas provisões estão minguando — continuou Morales, embelezando um pouco a situação. Estavam sobrevivendo à base de frutas e da caça fácil que encontravam no interior da ilha. As rações de emergência os sustentariam até a próxima parada, mas não tinham com o que comprar mais. — Também temos de pensar na viagem de volta.

Hernandez permaneceu encarando a praia.

— E veja bem, tem outro probleminha — prosseguiu Morales, encarando o silêncio como um convite para continuar a litania de desgraças. — Os homens estão, como posso dizer? Um pouco pra baixo. Não foi fácil chegar aqui, com o estreito todo tempestuoso, e todos aqueles meses no mar… Os coitados estavam bastante animados, já haviam gastado fortunas na cabeça. Foi um baque. Talvez seja difícil tirar o mesmo empenho deles na volta. — O que era um jeito sutil de sugerir que ele temia um motim. Alguns vinham perdendo a fé no capitão Hernandez. — Mas eu estou do teu lado como sempre, capitão.

Hernandez virou-se para El Matador, que boiava gentilmente a pouca distância da costa. Morales se remexeu no lugar. O capitão era o homem mais eloquente que conhecia. Bastava uma fagulha para fazer explodir dele belos discursos e convincentes argumentos. Era verdade que estava mais sucinto desde a partida de San Juan — Morales intuía que ele brigara com a bruja —, mas aquele silêncio atípico não podia ser bom sinal.

— Capitão?

Com um único aceno de cabeça — para o navio, não o imediato —, Hernandez começou a descer até a praia. Cada passo na areia parecia um prego em seu caixão. Morales tinha razão: não restara nada. Hernandez estava mais ciente disso do que qualquer um.

Sua aproximação chamou a atenção dos homens, que se levantaram e começaram a segui-lo — a princípio sem vontade, depois com ombros aprumados e resmungando palavras cada vez mais hostis. Hernandez parou diante dos botes na areia e virou-se para o agrupamento. O ar estalava de tensão como o prenúncio de uma tempestade.

Os marujos abriram caminho para alguém passar. O mensageiro eleito era um homem das proporções de um armário.

— Vamos morrer aqui por culpa tua — acusou o sujeito, apontando um dedo grosso para o peito de Hernandez. — Não és mais o capitão. Decidimos que ficas aqui na ilha enquanto…

Não terminou de revelar o resto dos planos, pois Hernandez sacou a espada e bateu o cabo no nariz do homem, jogando-o de costas com uma rasteira e cortando sua garganta com um golpe impiedoso da lâmina.

Hernandez observou-o tingir a areia de vermelho até parar de se mover. Então ergueu os olhos.

— Temos duas opções! — berrou com a voz rouca. O silêncio desceu sobre a praia, rompido apenas pelos guinchos das gaivotas. — Podemos matar uns aos outros ou matar alguém que tenha ouro. — Ergueu a lâmina ensanguentada numa mão e sacou a pistola com a outra. — O que vai ser?

Estavam de volta ao navio em tempo recorde.

Morales cuidou de organizar os homens o melhor possível enquanto Hernandez perscrutava o horizonte com a luneta. A situação não era das melhores; a bem da verdade, era a mais desesperadora em que já se encontrara. Precisavam de suprimentos, mas os homens enfraquecidos morreriam às pencas em qualquer abordagem. Seguiam suas ordens por medo e o abandonariam assim que alguém oferecesse algo melhor. Ele tinha que lhes dar uma vitória rápida e certeira.

E o horizonte estava tão vazio quanto a ilha estivera de tesouros.

— Choveu ontem — comentou Morales ao seu lado, olhando para o céu límpido e farejando o ar. — Um temporal daqueles. Sorte nossa não estar aqui…

Hernandez virou-se para ele.

— Morales, és um gênio.

O imediato abanou uma mão.

— Que é isso, capitão…

Mas Hernandez já lhe tinha dado as costas para descer à sua cabine, onde abriu os mapas que trouxera para a viagem. Gastara boa parte de seus butins para adquiri-los e os vinha coletando desde sua época de imediato. Eram mapas piratas, que apontavam cada faixa de terra onde um navio poderia atracar — ou ser soprado durante uma tempestade.

Agora, ele só precisava de um pouco de sorte.

— Abaixai a bandeira — ordenou quando voltou ao convés. Afastou um homem do leme e virou o navio. — Desfraldai a espanhola. O primeiro homem a avistar um naufrágio ganha duas partes do butim!

O grito se espalhou; mais de um homem brigou com um companheiro para tomar o turno de vigia no mastro de proa. Metade de um dia se passou em expectativa tensa, pontuada pelo ranger das enxárcias e o ronco dos estômagos.

Então a sorte, que parecia ter abandonado o capitão Hernandez, abriu-lhe um sorriso encabulado pela primeira vez em meses.

O navio estava encalhado numa prainha rochosa, inclinado de tal modo que seria improvável se endireitar outra vez. Através da lente, Hernandez avistou mercadorias e baús na praia, assim como cerca de trinta homens, que agitaram os braços em desespero ao ver a aproximação deles.

— Soltai a âncora! — gritou Hernandez a uma distância segura da praia. A bandeira do navio naufragado pendia triste de um mastro partido, exibindo as listras mercantes espanholas, mas agora os gritos dos homens os alcançavam, e ele ouviu espanhol, inglês e algo que poderia ser holandês. Não era um navio de soldados, portanto, mas um contrato particular. Ótimo.

— Qual é o plano, capitão?

— Desembarcamos, matamos todos e pegamos tudo.

Morales transmitiu as ordens sucintas. Hernandez gesticulou aos homens na praia que o resgate estava chegando, então ordenou aos piratas que lançassem todos os botes na água. Precisariam de espaço para as mercadorias.

Seguiram rumo à praia. O humor se aliviara tanto nos botes quanto na orla, embora os dois grupos comemorassem por motivos distintos. Os náufragos só perceberam que tinham sido enganados quando se viram envoltos numa nuvem de pólvora.

Toda a frustração dos homens a quem tinha sido negado um tesouro — o capitão Hernandez acima de todos — foi descontada nos pobres coitados. Sangue explodiu de ferimentos, membros decepados caíram na areia e os gritos de piratas e defensores se misturaram.

Então algo passou voando entre os corsários como uma bala de canhão.

Era, constatou Hernandez rapidamente, uma bala de canhão.

— Recuar! — berrou o capitão enquanto tentava enxergar através da fumaça. Logo avistou os atacantes: onde a praia terminava e uma vegetação rasteira levava ao interior verdejante da ilhota, cerca de uma dúzia de homens estavam escondidos atrás de uma leve elevação no terreno. Poderiam enfrentá-los tranquilamente não fosse a presença do canhão. Hernandez viu a arma ser carregada.

— Pegai as caixas — gritou para os piratas. — Já!

Não precisou falar duas vezes. As mercadorias foram levadas às pressas para os botes, que foram empurrados para o oceano instantes antes de uma segunda bala de canhão rasgar o ar.

Hernandez juntou alguns homens para continuar atirando nos atacantes enquanto o resto levava as mercadorias. Quando os botes estavam quase no navio, berrou para os defensores:

— Acabou! É melhor parar antes que esgotem as balas e eu resolva terminar o serviço!

Surpreendeu-se ao ouvir uma resposta em inglês.

— Eu sou o capitão William Pratt da Inglaterra — berrou uma voz de trás do canhão. — Posso saber quem é o velhaco que nos atacou covardemente?

Hernandez hesitou com um pé já dentro do último bote. Olhou ao redor — para o navio destroçado, o horizonte vazio, o punhado de homens resistindo na ilha sem qualquer esperança de fuga — e, como Odisseu gritando seu nome ao Ciclope, não conseguiu resistir a uma despedida impactante.

— Eu sou o capitão Hernandez do Caribe — informou ao homem, as palavras carregadas pelo vento enquanto se afastavam da praia. — Conforte-se em saber que foi roubado pelo maior pirata desta era!

Os meses seguintes passaram em um delírio. O golpe de sorte permitira a Hernandez voltar para o Caribe e manter sua capitania, mas era tudo que lhe restava. Tornou-se mais sanguinário do que nunca, recuperando a fé dos corsários e solidificando sua reputação, ao ponto que se dizia restarem apenas dois piratas reais no Caribe: Cofresí e Hernandez, e que o segundo ameaçava superar a infâmia do primeiro.

Mas o ímpeto não durou. Quem visse Hernandez teria dificuldade em acreditar que pouco tempo antes ele era o homem mais feliz da terra. Estivera contente enquanto tinha as paradas em solo firme para encontrar Angelita e pensar na possibilidade do tesouro, mas, sem Angelita e sem tesouro, o agora infame capitão Hernandez precisava reconhecer uma verdade dura: desprezava a vida no mar.

Detestava os homens. Detestava sua sujeira, sua grosseria, sua falta de educação. Com o passar dos meses e anos, começou a se lembrar com nostalgia — como ocorre quando se sofre um revés e o presente parece insuportável — da infância e juventude, esquecendo todas as irritações e enfados e até pensando no pai que o expulsara aos tabefes com uma pontada de afeto. Iniciou o exercício — que frequentemente acomete os insatisfeitos — de imaginar como teria se desenrolado sua vida caso certos eventos não tivessem acontecido. Se não tivesse sido, por exemplo, forçado a abandonar o seio familiar. Que lugar poderia ter ocupado na sociedade! (Um lugar como o do novo marido de Angelita, pensava consigo mesmo, primeiro com um ranger de dentes, mais tarde com um suspiro.) Ouvia as vozes altas dos marinheiros e sonhava com o silêncio retido de uma casa respeitável; olhava para sua cabine e imaginava dormir em uma bela cama em um quarto arejado, deitado sobre um travesseiro de penas; matava homens e ansiava pela calmaria e previsibilidade de uma profissão dentro da lei.

Um dia, quando os sentimentos ardorosos tinham esfriado e o sangue do capitão parecia congelado em suas veias, foi avistado um navio mercante.

Era inglês. Abordaram-no.

II

Os passageiros foram trazidos à sua frente. Eram cinco: um velho oficial inglês e seu criado; um comerciante bem-vestido e sua esposa (a que teria sido submetida às atenções dos marinheiros); e um jovem que viajava sozinho.

Hernandez cumprimentou-os em inglês. Isso inspirou uma torrente de reclamações do oficial e do comerciante, que exigiram sua libertação imediata após superar o choque de ouvir um pirata das colônias falando sua língua (nem imaginavam que, apesar de nascido nas Américas, o inglês era a língua materna do capitão: depois de tanto tempo, saía com um sotaque tropical da sua boca). Hernandez mal os ouviu; sua atenção estava em outra parte.

O rapaz permanecia calado, assistindo à cena com olhos lânguidos. Sentia-se que aqueles olhos — azuis como um céu de verão — queriam mais que tudo se arregalar, mas que eram contidos com grande força de vontade. Estava vestido de modo incongruente com o hemisfério no qual se encontrava: camisa branca com babados fechada até o pescoço, um grosso casaco escuro e calças pretas descendo até as botas que cobriam as panturrilhas. O cabelo negro comprido e o rosto liso faziam-no parecer mais novo do que devia ser. O nariz era empinado e aristocrático, uma linha reta no rosto extremamente pálido que sugeria longas horas passadas dentro de casa.

Por um instante fugaz, um instinto de autopreservação fez Hernandez considerar lançar todos — oficial, criado, comerciante, mulher e principalmente o jovem — sobre a amurada do navio e esquecer que jamais os vira. No instante seguinte, soube que nunca faria isso.

— Senhores — anunciou com voz retumbante —, acalmem-se. Nenhum mal lhes acometerá neste navio. — Houve muxoxos da parte dos marinheiros, que se afastaram arrastando os pés a um gesto do capitão. — Peço que se acomodem na minha humilde embarcação, uma vez que aquela, infelizmente, não mais poderá portá-los. — A destruição do outro navio transcorria alegremente. — Prometo que os deixarei no porto mais próximo. — Ele hesitou. — Ou assim que possível. Agora, façam o obséquio de jantar comigo.

O capitão suportou com nobreza estoica a conversa dos homens mais velhos. Sem saber como reagir a bons modos da parte de um pirata, ambos preferiram ignorar o fato e considerá-lo simplesmente o novo capitão que os levaria até seu destino. Um pouco de vinho e rum tornou todos dispostos para contar suas histórias de vida, e Hernandez garantiu que os deixaria o mais perto possível de onde pretendiam atracar.

Só o jovem não foi liberal com as palavras. Hernandez precisou abordá-lo diretamente para descobrir seu nome, posição e onde gostaria de ser deixado. As respostas foram: Samuel Herbert; de fato nascera no seio da aristocracia (algo no modo como disse aquilo fez Hernandez suspeitar que as origens nobres eram distantes); e se dirigia — forçosamente — para Dominica, onde deveria permanecer por tempo indeterminado em uma propriedade da família por motivos pessoais de natureza vaga. E encarou o capitão como se o desafiasse a perguntar esses motivos. De fato, agora confiante de que Hernandez não pretendia matá-los, permitia-se olhar ao redor com clara reprovação. Era um olhar que Hernandez estava acostumado a ver naqueles que se sentiam superiores em virtude de um berço privilegiado e de jamais terem sido obrigados a decidir entre matar ou morrer. Ele geralmente desprezava tais olhares e tais pessoas.

Tomou um longo gole de vinho e refletiu que certas coisas eram inexplicáveis.

Os ingleses tinham pouca noção da geografia do Caribe, e não questionaram a longa volta feita pelo Matador para deixar o oficial e seu criado em Port-au-Prince, apesar de Dominica estar muito mais próxima. Já Morales pareceu confuso com o itinerário, mas Hernandez explicou que era bom se livrar do velho o quanto antes, e o imediato bateu um dedo na testa, compreendendo a sagacidade do capitão. Em seguida, largaram o comerciante e a esposa em St. Croix, e então começaram um roteiro ziguezagueante pelos mares do Caribe — que tinha, supostamente, o intuito de despistar seus muitos perseguidores.

Já dissemos que a época de fato não era boa para os poucos piratas remanescentes. Tivesse Hernandez nascido um século antes, seu nome sem dúvida teria ficado marcado nos livros de história junto aos excelentíssimos Barba Negra, Bartholomew Roberts, John Phillips etc. etc. Mas o mundo não era mais o mesmo, e as Marinhas europeias adorariam pôr as mãos em Hernandez, especialmente desde que deixara um rastro de morte e destruição em seu retorno da busca fracassada pelo tesouro do Lima. Que a ameaça real de captura não tivesse nenhuma relação com o longo trajeto empreendido agora pelo capitão pouco importava. Os homens acreditavam na motivação, que era o importante.

Na noite após deixar o comerciante em terra, Hernandez convidou Samuel Herbert para jantar.

Pela primeira vez se viam a sós através da mesa de madeira nobre na cabine de Hernandez. Samuel insistia teimosamente em se cobrir dos pés à cabeça como uma noiva, apesar do calor sufocante dentro do navio e do sol escaldante fora dele durante todo o dia. Nas raras vezes que o capitão o vira no convés, suor escorria por seu rosto, sendo enxugado com um lencinho de renda. O rapaz sempre se portava, porém, como se estivesse inteiramente confortável, e da mesma forma entrou na cabine do capitão e sentou-se à mesa com seus belos olhos e suas belas maneiras.

— Vinho? — Hernandez já o servia ao fazer a pergunta educada, então deu a volta na mesa para se sentar. — Por favor. Admito que espero por esta noite há dias.

Samuel lhe lançou um olhar desconfiado, a mão parando com a taça erguida.

— E por que deveria?

— Porque me intriga.

O jovem recostou-se na cadeira e estreitou os olhos como se suspeitasse de um truque. Hernandez não lhe deu tempo para pensar.

— Por que veio para o Caribe? — perguntou à queima-roupa.

— Porque matei um homem — Samuel respondeu sem vacilar.

— Matou um homem! — o capitão repetiu, chocado. Um lampejo de orgulho reluziu nos olhos de Samuel, e os lábios de Hernandez se curvaram num leve sorriso quando o rapaz se empertigou na cadeira.

— E não me arrependo de nada! — exclamou. — Foi um duelo justo, e o patife mereceu.

— Não tenho dúvidas — Hernandez concordou educadamente. — Porém, não vejo a conexão entre o fato e sua vinda para a América.

Samuel torceu os lábios.

— Ele era mais… influente do que eu imaginava. Seus amigos me perseguiram após o incidente, fazendo todo tipo de ameaça vil. Eu os teria enfrentado, mas meus pobres pais estavam quase mortos de preocupação. Por isso me fizeram embarcar para Dominica, para cuidar de negócios negligenciados. — Seu desgosto com a tarefa era evidente, mas a expressão amargurada abandonou seu rosto quando ele se focou em Hernandez. — Vejo que está surpreso, capitão.

— Estava pensando — disse Hernandez de modo afável — que não somos tão diferentes, afinal.

— Certamente que somos! — Samuel protestou. — Eu não o matei por… por… ganância! Meus motivos foram os mais nobres. — Esperou alguns segundos, como se considerando se valia a pena explicar um pouco mais, e por fim condescendeu em falar: — Foi uma questão de amor.

Hernandez deu um aceno lento e pesaroso com a cabeça, soltando um suspiro que era só em parte fingido. Por um segundo, sua memória evocou um sorriso caloroso de mulher. Sacudiu a cabeça para retornar a si.

— Não há nada pior que uma questão de amor — decretou.

— E o que o senhor saberia disso? — disparou o jovem.

— Pois saiba que o amor não é prerrogativa de homens honestos. E não fui sempre um pirata. Na verdade, foi por uma questão amorosa que fui expulso do seio de uma família abastada — revelou. — Meu pai era um mercador inglês bem-respeitado em Kingston, e tive uma educação tão nobre quanto se pode receber nas Américas.

Samuel franziu o cenho.

— Então o que houve?

O que desviou o jovem Brandon Bishop de um destino previsível e o pôs a caminho de uma carreira bem-sucedida de pilhagem e violência foi um único momento de imprudência na juventude. Seu pai não teve dúvidas: um filho caçula era mais facilmente deserdado e, enquanto seu irmão mais velho tomaria conta dos negócios da família, Brandon podia levar suas perversões para longe daquela nobre casa.

Foi o que fez: aos quinze anos, dirigiu-se para Port Royal e deixou-se ser recrutado por uma fragata da Marinha britânica. A disciplina era férrea, a comida intragável e o trabalho sob o sol do Caribe era de curvar as costas e calejar os dedos, embora a iniciação sexual nas entranhas escuras do navio tivesse sido extensa. Mesmo assim, não morria de amores pelo capitão irascível e o soldo parco. Dois anos depois, quando a fragata foi tomada pelo navio do capitão Rivero e os sobreviventes receberam a escolha de unir-se a eles ou morrer, Brandon não hesitou. Não tinha boas lembranças nem da Jamaica nem da família, e não fazia questão de ajudar os ingleses a policiar suas águas. Assim, juntou-se à tripulação porto-riquenha do Matador, adotando um novo nome e a língua de sua mãe e da maioria dos marujos.

É preciso dizer que Hernandez não se lembrava nem do nome, nem do rosto, nem de qualquer fato específico sobre o estopim de seu rompimento com a família, e o evento decorrera mais de seus impulsos juvenis do que de qualquer sentimento nobre. Mas não deixou de reparar que Samuel tinha se inclinado para a frente e que esperava suas próximas palavras, sem fôlego.

— Foi um descuido da minha parte — ele resumiu. — Um caso proibido. Uma infração aos bons costumes.

— Ah! — suspirou Samuel, compreendendo.

— Meus pais descobriram minhas predileções e me deserdaram.

— Oh! — O rapaz parecia extasiado. — Que trágico!

— Então jurei que jamais amaria de novo. — Não tendo amado na ocasião, Hernandez não fizera nenhuma jura do tipo, mas Samuel levou uma mão ao coração, e o capitão soltou um pesado suspiro. — Porém, ai de mim! Novamente fui perfurado pelas flechas de Cupido.

— Não diga?

— E fui mais bem-aventurado nessa nova paixão? Não! — E aqui uma dor real transpareceu na exclamação do capitão, que drenou meia taça de vinho e devolveu-a à mesa com um baque. — Fui traído! Abandonado! Substituído! Tudo por dinheiro, pelo vil metal!

O fato de haver construído uma carreira baseada na busca por esse metal não lhe ocorreu no momento. Samuel, por sua vez, nem tentava mais esconder seu envolvimento com a história.

— Conte-me tudo!

— Não, não. É doloroso demais.

Em voz baixa:

— Compreendo.

— Conte-me de ti — pediu Hernandez. — Distraia um velho marujo do seu sofrimento eterno e lhe agradecerei pelo resto dos meus dias.

— Oh! Quer dizer… pois bem… acho que não faria mal…

Samuel contou-lhe sobre os pais; a irmã recém-casada com um membro do Parlamento; os amigos; a universidade; as longas reuniões de declamação de poesia em clubes esfumaçados, regadas a taças de licores importados, e sobre como em uma delas ele havia conhecido o rival que acabaria por matar.

Continuou nas noites seguintes. Falou-lhe sobre a Inglaterra, sobre as artes e a literatura, em especial sobre os poetas ingleses. Para Hernandez, parecia haver uma infinidade deles, como se todo jovem ocioso tivesse decidido ser esta a única ocupação possível. (Não que o capitão deixasse escapar esse pensamento, intuindo — com razão — que Samuel fazia parte de suas fileiras.) O rapaz ficou chocado ao saber que Hernandez não conhecia Byron, Shelley, Keats e uma dezena de outros nomes que considerava absolutamente essenciais para qualquer alma pensante. Declamou poemas; mostrou-lhe livrinhos que guardava nos bolsos do casaco; derramou algumas lágrimas. Explicou ao capitão sobre o mal do século, o ennui, o amor e o sofrimento — que eram a mesma coisa, no fim — e revelou que aceitara o exílio com a única intenção de morrer o quanto antes de alguma doença tropical que o drenasse de toda energia, pois apenas a morte poderia aliviar-lhe a alma.

— Se abrisse esse colarinho, quiçá teria menos ânsia de morrer.

— Capitão, estou falando sério!

Hernandez riu, um som que não fazia havia tanto tempo que chegou a surpreender-se. Desde Angelita, não ria de verdade. Duas pessoas mais diferentes não se podia encontrar, e, no entanto — no entanto! Mas ele também era um homem diferente: mais velho, mais sábio. E mais cínico.

Na sétima noite, após o jantar, foi até o mapa preso na parede da cabine e bateu um dedo sobre Dominica.

— Deixo-o em casa amanhã — disse.

Samuel aproximou-se, espantado.

— Mas já?

— Não ficará contente ao ver-se longe daqui?

— Do navio… isto é, já lhe disse que viagens ao mar não me agradam… as ondas não me deixam dormir. E sua tripulação é um tanto…

— São um bando de patifes — completou Hernandez. — Velhacos indecentes. Bem sei. Alegra-me saber que estará longe deles.

— Mas… quero dizer… nem tudo foi desagradável.

— Não?

— Deve saber que não! — bufou Samuel, cruzando os braços. Fixou os olhos no chão.

— E como eu saberia? — Hernandez perguntou com inocência.

Os mesmos olhos se voltaram para ele, agora estreitados e sagazes.

— E você é o pior de todos! — murmurou. — Um pilantra enganador e descarado!

— Nunca aleguei ser nada melhor — disse o capitão, as palavras se formando ao redor de um sorriso. — Então mostre como sentirá falta de mim.

Sam aquiesceu. Na manhã seguinte, Hernandez o deixou em Portsmouth. Prometeu que iria visitá-lo.

— E virá mesmo?

— Decerto.

Mas não fazia ideia de como o faria. Não podia simplesmente parar em Dominica regularmente sem motivo. A tripulação suspeitaria de algo, e Hernandez já vira a reputação de homens caindo por menos. Voltou ao navio e ao mar. Pensou, agonizou, amaldiçoou. Talvez tenha chegado até — embora não houvesse ninguém presente que pudesse confirmar o fato — a acariciar um livrinho deixado para trás em sua cabine. Por fim, soube que havia uma saída.

Foi para Puerto Rico.

Houvera uma época em que, para encontrar Angelita, bastava abrir as portas da sua taverna, mas a sra. Ramírez não podia ser vista caminhando no porto entre marinheiros, bêbados e piratas. Pelo menos não de dia. Hernandez se permitiu um leve sorriso ao lembrar que a antiga amante não suportara sequer um ano de respeitabilidade recatada antes de voltar às suas antigas atividades, tanto mortais como sobrenaturais, agora na clandestinidade. Para encontrá-la, bastava falar com as pessoas certas. Hernandez jamais o fizera até então, não suportando a ideia de vê-la. A perspectiva ainda o enchia de uma aflição indescritível, mas lembranças recentes — de olhos azuis e boca teimosa — ocuparam o espaço do antigo medo.

Encontraram-se de madrugada, o horário dos amantes e dos que já o foram. Vê-la de novo trouxe-lhe uma tranquilidade súbita e surpreendente — uma calmaria que se segue a ventos fortes em vez de trazer a tempestade esperada. A dor trocara de lugar com uma saudade de tempos que jamais retornariam, transformando-se num sentimento que quase se assemelhava ao prazer. Olharam-se com a familiaridade da intimidade compartilhada, e Angelita sorriu aquele seu sorriso sutil e misterioso enquanto caminhava até ele.

Angel mio — cumprimentou-a Hernandez. — Sentiste minha falta?

— Se não fosses tão teimoso, poderias ter vindo antes — disse ela. — Que queres? Precisas enfim de um feitiço?

Hernandez negou com a cabeça.

— Apenas contatos — explicou. — Contatos comerciais em Dominica.

Armado de uma desculpa oficial, o capitão desviou seu navio até a ilha imediatamente. A família Herbert tinha uma bela mansão na cidade, comprada com o suor de outros, e, para chegar até ela, o capitão precisou de vários subterfúgios, tais como tomar um banho e vestir-se como um cavalheiro. Apesar de sua fama em todo o Caribe, a mudança o deixou anônimo nas partes mais respeitáveis da cidade.

Encontrou Samuel jogado num divã, com um leque nas mãos, encarando o teto. O jovem estremeceu ao vê-lo, e então ergueu-se de um pulo.

— Ah! Apareceu, enfim!

Ser cumprimentado daquela maneira depois dos esforços despendidos foi um choque.

— Vim assim que pude!

— Esqueceu-me!

— Jamais!

— Deixou-me pensar que tinha me abandonado — queixou-se Sam. — Onde estava, cometendo atrocidades, empurrando mocinhas inocentes da prancha? Eu esperei por você num tédio mortal. E o calor! E a umidade! Certamente estarei morto dentro de um mês!

O capitão — que suava dentro de sua camisa — aproximou-se trêmulo de saudades. Apalpou o casaco.

— Esquece o calor. Trouxe-lhe um livro.

O rapaz interrompeu suas queixas, entortou a cabeça e estendeu a mão para receber o volume encadernado. Seus olhos se suavizaram.

— Não passou um mês atrás de um livro — acusou, mas sem a raiva de antes.

Hernandez sorriu.

— Passei-o pensando em você. Onde estão seus criados?

Sam ergueu uma sobrancelha.

— Quer vê-los?

— Pelo contrário.

Um leve sorriso tocou lábios que o fariam atravessar o oceano.

— Não vão nos incomodar.

Hernandez só conseguiu retornar à ilha três longas semanas depois. Um mordomo apontou-lhe o jardim. Dessa vez, encontrou Samuel de pé sobre uma banqueta, estendendo os braços para a copa de uma laranjeira, vestindo calças de algodão marrom e uma fina camisa de linho aberta.

— Quê! — exclamou Hernandez. — Achei que encontraria você prostrado e definhando.

Sam virou-se e desceu da banqueta com um pulinho. Explicou que, embora ainda ansiasse por uma morte jovem, os ares frescos da América não pareciam favorecê-la. E ofereceu-lhe uma laranja.

Parecia ser verdade: cada vez que Hernandez o via, ele aparentava estar mais sadio, mais corado, mais enérgico — para a alegria secreta do capitão, a quem a ideia de vê-lo tornar-se um cadáver gelado como os dos poemas que tanto amava causava calafrios que os atos mais bárbaros dos biltres mais sanguinários nunca haviam inspirado.

Assim, foi com alegria que viu a combinação do sol tropical, de suas próprias visitas e das novas atividades (Samuel se entregara com afinco aos negócios familiares) dar novas forças ao seu poeta. Hernandez encontrava motivos para permanecer dois ou três dias na ilha, então retornava ao seu navio, que em certo ponto rebatizou como um agrado ao rapaz. Caçava livros para ele em toda parada, sempre em busca de alguma novidade ou de belas encadernações, e, ao fim das visitas, prometia voltar o quanto antes.

Deve-se perdoar o capitão. Quem nunca cometeu o mesmo erro duas, três, catorze vezes sem se dar conta antes que fosse tarde demais? Hernandez não percebeu que fazia com Samuel exatamente o que levara Angelita a abandoná-lo. O golpe chegou, sorrateiro, em uma noite de abril. Grilos chirriavam nos jardins, e as cortinas de cetim do quarto farfalhavam na brisa fresca do mar.

— Quero que venha morar comigo em Kingston — anunciou Sam de repente, a cabeça apoiada em um cotovelo, o corpo esguio estendido sobre a cama.

Hernandez foi percorrido por um choque.

— Que disse?

— Recebi uma carta do meu pai. — Sam pegou o papel aberto sobre a cômoda. — Ele diz que está muito satisfeito com nossos negócios na América, e quer expandir. Vai me transferir para a Jamaica. Quero que venha comigo.

— Mas… mas como eu poderia…!

— Ninguém o reconhecerá. Sabe que nem sonham com a sua identidade quando você se apresenta como um homem decente. Já pensei em tudo; será meu administrador.

— Mas o que eu sei de…?

— Administra seus negócios escusos, não? Os legais serão muito mais simples. — As sobrancelhas do jovem se uniram numa nuvem negra ao ver a expressão dele. — Achei que era o que queria? Viver comigo? Longe do mar e da tripulação e da Marinha espanhola e da Marinha inglesa?

— Certamente, mas…

— Pois então!

— Mas, Sammy, seja realista… veja bem, o navio… os homens contam comigo…

A tempestade chegou em uma explosão de sentimento:

— Pois volte ao seu navio, então! Mas saiba que, se não estiver de volta em duas semanas, não me verá nunca mais!

O capitão Hernandez retornou, cambaleante, ao recém-batizado Wordsworth. O seu navio! Era verdade; detestava-o. Mas era seu. Mais importante: todos sabiam que era seu. Agora que a idade pesava nos ombros, parecia que a única coisa sólida em toda a sua vida era o próprio nome. Uma reputação não era coisa que se jogasse fora em um único golpe! Imaginou-se dizendo: rapazes, vou abandonar a pirataria e viver em terra firme. Impossível! Para não mencionar o motivo — se tivesse abandonado a capitania para casar-se com Angelita, seria considerado um tolo, mas as circunstâncias atuais estavam fora de cogitação. Absolutamente impossível!

Mas acostumar-se com a ideia de jamais ver Sam de novo não era fácil. Os dias se passavam com rapidez excruciante, e o capitão não via solução para o dilema. Encontrou-se num estado de nervosismo, irritação e distração que teria causado uma desgraça não fosse a onipresença do fiel Morales vigiando todos os detalhes do funcionamento do navio. Estraçalhado entre desejo e reputação, pareceu ao capitão Hernandez que a única saída era a morte — como Samuel tanto gostava de dizer.

Então, no décimo segundo dia, o Shelley apareceu no horizonte.

O sangue escorria pelo convés inclinado do navio mercante. Os ganchos presos a estibordo o conectavam ao Wordsworth, onde parte da tripulação pirata gritava insultos aos ingleses capturados ou zombava dos homens jogados no mar. Um dos mastros do brigue inglês fora dobrado ao meio por uma bala de canhão, que seguira caminho até rasgar uma das velas triangulares na proa. Hernandez pisou entre os estilhaços de madeira, desviou do corpo de um marujo com o ventre rasgado e tentou ignorar o barulho dos homens ao seu redor.

— Capitão! — A voz de Morales se ergueu sobre a algazarra enquanto o próprio vinha correndo na direção de Hernandez, suado e coberto de sangue. — Capitão! O inglês não quer falar.

Hernandez conteve um resmungo e foi até o comandante do Shelley, que estava perto do mastro caído, rodeado por corpos de compatriotas e segurado por dois piratas ensanguentados. O homem aprumou-se à sua aproximação. Uma lista de mercadorias tirada do seu casaco informou que seu nome era Morris.

— Ele não quer dizer onde tá o ouro, capitão — repetiu Morales.

Hernandez estudou o rosto à sua frente. Podia ler nos olhos do homem a ânsia de suportar quaisquer torturas em nome da pátria do outro lado do oceano. Era um rosto que dizia “Afundarei com meu navio”, e, se a boca não pronunciava as palavras, era apenas por não querer ser o primeiro a falar. O velho Hernandez teria zombado ou ameaçado, mas as palavras que saíram de sua boca foram outras:

— Tem algum livro a bordo? — perguntou em inglês.

O capitão Morris o encarou com a boca semiaberta. Pareceu examinar a pergunta em busca de algum truque, e então, derrotado, balançou a cabeça e apenas rosnou:

— Afundarei com meu navio!

— Fique à vontade — respondeu Hernandez. — Mas não há necessidade de molhar os livros. Há algum a bordo?

O homem bufou, e Hernandez teve certeza de que ele só não cruzou os braços porque estes estavam firmemente agarrados pelos piratas, um de cada lado. Morales, acostumado aos modos excêntricos de seu capitão, apenas sorria pacientemente.

— Poemas? Algum novo talento da Inglaterra? — insistiu Hernandez, quase sem saber por quê. A força do hábito, talvez. — Vamos, não tenho o dia todo.

O homem só continuou encarando. Claramente não ia dar o braço a torcer.

O que, é claro, podia ser providenciado.

— Morales, torça o braço do capitão.

Morales se lançou à tarefa com tal entusiasmo que se poderia pensar que passara anos aguardando precisamente aquela ordem. O orgulhoso inglês cerrou os dentes até não poder mais, então amaldiçoou os piratas e berrou por algum tempo.

Na minha cabine! — gritou finalmente, quando algo estalou em seu braço com um barulho mais alto que o mastro do brigue ao cair. — No baú, os livros estão no baú! Vá pro inferno com eles!

Hernandez ergueu uma mão, e Morales soltou o homem com relutância.

— Veja como não foi difícil — apontou Hernandez. Estava já se virando quando Morales tossiu educadamente. — Ah. E o ouro?

O inglês rangeu os dentes.

— Seus homens já estão se refestelando nos meus porões.

Era verdade: ao redor deles, os piratas emergiam das entranhas do navio com caixotes, e alguns já haviam começado a recolher tudo que não estivesse pregado, desde os estoques de comida até o cordame. Vários revistavam os cadáveres dos ingleses e apanhavam botas de couro e espadas que reluziam ao sol da tarde. Mas haveria ouro estocado em lugares secretos, ouro de subornos ou outros acordos escusos, ouro pelo qual Hernandez tinha tanto interesse quanto pelo homem à sua frente — o que era dizer nenhum —, mas ouro que ele era obrigado a desenterrar, por uma questão de protocolo.

— Descubra — ordenou ao imediato.

Um olhar para o rosto ávido de Morales foi o suficiente para quebrar o capitão Morris.

— As escadas da popa — confessou sem fôlego, com um olhar de ódio para Hernandez. — São ocas.

— Grato — disse Hernandez, e para sua tripulação: — Tentem não fazer muito barulho. — O que era o mesmo que dizer a um marujo para moderar no rum em sua noite de folga. As machadadas já caíam como golpes de um carrasco quando ele desceu para baixo do convés.

Escancarou a porta da cabine de Morris, ignorou os armários e seguiu direto para o baú de madeira entre a cama e a parede. Tirou de dentro cartas de navegação e outros documentos, que jogou de lado até achar resquícios de vida no fundo do móvel: cartas, alguns pacotes e, como prometido, livros. Fez uma careta quando leu o nome de tratados morais, até enfim encontrar um fino volume encadernado em couro. Abriu a primeira página. Havia uma rápida dedicatória numa letra floreada, e o título, em letras douradas, anunciava As obras de lorde Byron. Evidentemente alguma mulher — esposa, amante ou filha — tentara tornar o defunto um homem mais sensível.

Hernandez abriu um leve sorriso, mas então sentiu uma dor tão pungente ao lado do corpo que pensou ter sido ferido. A pontada retrocedeu após alguns respiros, deixando em seu lugar apenas uma angústia que abafou até o barulho dos homens derrubando a escada do navio. Por que tinha insistido para ver os livros? Restavam poucos dias das duas semanas do ultimato. Sam era teimoso — se voltasse sem um comprometimento, estaria tudo acabado.

Hernandez jogou o fino volume de volta no baú como se afastasse de si alguma magia maligna, então girou feito o estalar de um chicote quando ouviu um som. Alguém abria a porta da cabine.

Era um homem, envelhecido de anos e de mar. Seu cabelo revolto caía para baixo do ombro, e uma camada de sujeira e piche cobria a pele bronzeada. Usava uma camisa e uma calça encardidas, que pendiam do corpo desnutrido, e vigiava o corredor por onde entrara com um olhar perseguido e meio selvagem. Encontrando-o vazio, fechou a porta com delicadeza — então deu um pulo ao virar-se e deparar com Hernandez.

O estranho tentou recuar às pressas, mas Hernandez cobriu a distância com poucos passos e pressionou-o contra a porta.

— E quem é você? — perguntou rispidamente.

O homem só arregalou os olhos, que deram uma volta pela cabine em busca de alguma saída. Não encontraram nenhuma, e ele engoliu em seco.

— Não me mates — pediu em espanhol.

Hernandez trocou de língua.

— Qual o teu nome, homem?

— Tomás.

— E como vieste parar aqui?

Ele podia ver as engrenagens girando por trás dos olhos do marujo — vagarosas e um tanto enferrujadas.

— O capitão… me prendeu… por desobediência.

— Estás dizendo que eras da tripulação de Morris, Tom? Sem falar uma palavra de inglês?

O marujo assentiu — devagar a princípio, depois com mais veemência. Então pareceu pensar melhor e acrescentou:

— Mas odeio os ingleses! Posso…

Hernandez ignorou o que Tom poderia ou não poderia e agarrou um dos seus punhos, erguendo uma manga da camisa. Tom se encolheu.

— Essas não são tatuagens de um marujo da Marinha inglesa — afirmou Hernandez com uma voz baixa e inescapável como o fechar de um grilhão. — Agora, por que um pirata mentiria para outro sobre sua identidade? Foste capturado por um brigue inglês, é isso? Um único pirata, sozinho? Ah… é porque foste abandonado, Tom. Porque és um amotinado.

Os lábios do homem tremeram como um condenado na prancha, então as palavras estouraram dele feito água irrompendo num buraco da quilha:

— Não me mate, senhor! Meu capitão era um desgraçado salafrário, era isso que era, e roubava nossas partes do butim! A tripulação me apoiava, senhor, todos eles, mas quando o capitão descobriu o plano, os patifes se acovardaram e me entregaram pra ele como se fosse tudo ideia minha. O máximo que fizeram foi garantir que ele me poupasse, e me abandonaram numa faixa de areia qualquer… Mas o maldito prometeu que ia me caçar pelos quatro cantos do mundo se eu conseguisse escapar! Disse que ia colar meu rosto em cada taberna das colônias e oferecer uma recompensa pela minha cabeça! — As lágrimas escorriam livremente pelo rosto imundo de Tom. — Os ingleses me acharam e iam me levar sabe lá pra onde, senhor, mas pode apostar que eu ia acabar balançando na forca! Quando o navio foi atacado, consegui escapar na confusão até que o senhor me encontrou. Não me entregue, pela misericórdia de Deus! Eu faço qualquer coisa!

— Controla-te, homem! — disse Hernandez, dando as costas para a cena deplorável. — Acredito no que dizes. — Ele abriu um armário e examinou seus conteúdos distraidamente. Não tinha visto nenhum cartaz na última parada, mas, era bem verdade, havia passado sua estadia em um lugar melhor que uma taberna do porto, e tinha coisas melhores para ocupá-lo que uma caça a amotinado. — De quanto é a recompensa?

— Mil pesos.

Mil pesos! Um marujo teria que perder as duas pernas para ver uma recompensa dessas. Por mil pesos, os homens de Hernandez matariam as próprias mãezinhas em suas camas. O capitão tirou a pistola da cintura e já ia se virar para resolver o problema de Tom de modo bastante definitivo quando o homem gemeu:

— Eu só preciso desaparecer!                      

E as engrenagens mentais do próprio Hernandez, mais bem engraxadas que as da maioria dos homens, se puseram a trabalhar.

O capitão discretamente enfiou a arma de volta na cintura e seguiu até a escotilha da cabine. O mar reluzia azul e infinito além do vidro, refletindo o sol oblíquo da tarde, que parecia atear fogo à superfície.

Uma fagulha parecida se acendeu no interior de Hernandez. Pela primeira vez em vários dias, a esperança baixou âncoras em seu coração.

Seria possível? Ele não sabia. Mas, se alguém era capaz, era ela.

Então ouviu um ranger de madeira e, virando-se, encontrou Tom tentando abrir a porta de fininho. Hernandez alcançou-o com seu passo largo, fechou a porta com um baque surdo e apertou os ombros do homem.

— Tom, seu velhaco duma figa. Pra que fugir do capitão Hernandez, que só tem teu bem-estar em mente? Agora, responda: és marinheiro há muito tempo?

— Toda a minha vida — disse Tom, tremendo dos pés à cabeça.

— No Caribe?

Um aceno curto.

— Excelente. Alguém espera teu retorno em terra?

O homem negou em silêncio.

— Ótimo — murmurou Hernandez, soltando os dedos que havia cravado na pele de Tom e dando uns tapinhas tranquilizadores em sua bochecha. — Agora, não grites — recomendou, um segundo antes de dar-lhe um soco diretamente no nariz. A cabeça de Tom quicou na parede, deixando-o atordoado com a dor e a guinada inesperada na conversa. — Quieto! — sussurrou Hernandez. — Explico-te tudo depois, prometo que ficarás rico! Só não abras a boca! — E esmurrou-o outra vez, e mais uma, até seu rosto virar uma polpa vermelha que, com sorte, nenhum dos piratas a bordo associaria com o infeliz mais procurado das Américas.

Amotinado ou não, deve-se reconhecer que Tom tinha experiência em receber ordens e que não deu um pio.

Arrastando o corpo semiconsciente do marujo para fora da cabine, Hernandez subiu ao convés e anunciou à sua tripulação:

— Este homem é um de nós! Capturado pelos ingleses e brutalmente atacado quando tentou… matar o capitão Morris com as próprias mãos! — Os homens soltaram grunhidos relutantes de aprovação. — Vamos devolver o pobre Tom à sua terra!

— Eu odeio a minha terra — murmurou Tom.

— Vamos devolver Tom à sua querida família!

— Eu não tenho…

— Cale a boca — rosnou Hernandez. — Morte aos ingleses!

— Morte aos ingleses! — ecoaram os piratas.

Hernandez puxou o marujo para perto e sussurrou em seu ouvido:

— Não digas nada a ninguém ou te arrependerás. — E para o imediato: — Morales, leva o Tom aqui a bordo do Wordsworth e dá algo pro pobre diabo comer.

— Capitão — Morales sugeriu com sua delicadeza usual —, não seria melhor deixar o sujeito aqui mesmo? Não parece estar em condição de trabalhar… — Tomás cuspia dois dentes no convés. — E já perdemos um homem de armas.

— E os pobres filhos do Tom, esperando o retorno do pai? — perguntou Hernandez.

— Não é problema nosso, capitão.

— És um patife desalmado que venderia teu melhor amigo por uma garrafa de rum, Morales.

— Sim, capitão — concordou o homem sem hesitar.

— Recrutaremos mais tarde — explicou Hernandez. — Agora, leve o homem e organize nossa partida. Quero estar o quanto antes em Puerto Rico.

Um leve sorriso despontou nos lábios do imediato, rapidamente disfarçado com uma tosse.

— Sim, capitão — repetiu, obediente, afastando-se com o marujo esfarrapado.

O Shelley destruído ficaria nas mãos dos poucos ingleses sobreviventes, que provavelmente acabariam encalhados em alguma praia — isso se a embarcação não afundasse primeiro.

O capitão Hernandez já estaria em seu navio quando isso acontecesse. Mas, antes de saltar a bordo, ele voltou para pegar As obras de lorde Byron.

O rosto de Tomás estava roxo como a aurora quando o Wordsworth atracou em Puerto Rico. O amotinado entendera que obedecer ao capitão era a sua melhor estratégia para continuar vivo, embora Hernandez ainda se recusasse a explicar qualquer coisa.

— Apenas não te mistures com a tripulação — recomendou o capitão. — Não queremos que ninguém te reconheça. Encara o horizonte, espreme umas lágrimas desses velhos olhos e pragueja bem alto sobre tua esposa traiçoeira ou teus filhinhos ingratos. Verás como os homens ficam longe de ti.

De fato, ao final da viagem, até o marinheiro mais desvairado estava contente por se ver livre de Tomás.

— Quando atracarmos — instruiu Hernandez —, deves desaparecer. Mas não de mim — acrescentou, ao ver o rosto de Tom se encher de alívio. — Não de mim, meu caro homem. Some da vista da tripulação o quanto antes e me aguarda no Descanso del Marinero. Conheces a taverna, não? Diz que estás me esperando, te encontrarei. E Tomás… — O capitão apertou seus ombros. — Lembra: riquezas inimagináveis. Conforto. Comida. E o mais importante de tudo: tua vida. Não queres terminar na corda, queres?

Tomás balançou a cabeça. Não queria.

— Eu te tornarei um grande homem — sussurrou o capitão Hernandez, com um brilho estranho no olhar e tanta convicção que, apesar do bom senso que lhe recomendava não arriscar a sorte com todo o Caribe em seu encalço, Tomás se viu no Marinero naquela noite.

Deixaram-no aguardar Hernandez na cozinha. Ele tentava afanar uma garrafa de rum sob os olhos atentos da cozinheira quando a porta dos fundos se abriu. Palavras foram trocadas entre um dos assistentes e alguém do lado de fora, e então Tomás se viu praticamente chutado para a noite úmida e quente.

— Vamos, vamos. — Era Hernandez, coberto por uma capa negra com capuz. — Ela já deve ter recebido a mensagem. E nos espera!

A essa altura, Tomás não mais questionava. Seguiu Hernandez por becos estreitos, os olhos voltando-se para as tabernas barulhentas pelas quais passavam. Hernandez afastou-os da costa, adentrando a cidade até chegarem a uma região em que Tomás jamais pisara. Mansões altas e silenciosas se erguiam em ruas largas; reinava o silêncio dos cidadãos de bem. Não se era um pirata por mais de década sem que a ideia de um cidadão de bem não arrepiasse os pelos da nuca de um homem, então foi com grande alívio que Tomás seguiu o capitão Hernandez para além das mansões, até uma área na qual negócios e depósitos se espremiam em ruas estreitas, todos fechados e vazios àquela hora da noite.

Ou nem todos, pois Hernandez caminhou com confiança até a única porta emoldurada por luz. O capitão bateu duas vezes. A porta se abriu.

E esqueçamos Tomás por um momento, pois o capitão certamente o esqueceu. Uma única lamparina a óleo no teto iluminava a figura diante dele. Seu rosto estava nas sombras, mas os olhos reluziam como pepitas de ouro. Hernandez entrou, puxando Tom atrás de si, e a mulher fechou a porta e aproximou-se devagar, entrando na poça de luz. Encarava-lhe com o misto de afeto e desconfiança que sempre reservava para ele.

Já tinha passado dos cinquenta e ainda era tão linda quanto no dia em que se conheceram — se não mais. O sangue do capitão estremeceu nas veias. Admirou o rosto, o colo, os braços fortes saindo do elegante vestido, e obrigou-se a recordar que vinha em missão. Uma missão que ninguém além dela poderia realizar.

— Angel, mi amor. Tinhas razão. — Ela inclinou a cabeça, confusa. Hernandez esclareceu: — Preciso da tua ajuda.

A bruja de San Juan desviou os olhos para o marujo esfarrapado, então voltou-os novamente para Hernandez. Brilhavam com uma inconfundível fagulha de interesse quando ela o puxou de lado.

— Nunca pediste minha ajuda com magia — Angelita disse em voz baixa. — Tinhas medo.

— Bobagem! — retrucou Hernandez com um aceno. Mas uma leve rachadura atravessou sua voz, e ela não deixou de notar. Ele deu de ombros, grato pela luz baixa que escondia seu constrangimento. — Só não queria que pensasses que me aproximei de ti com segundas intenções.

— E agora as tem?

— Preciso que transformes este homem em mim — explicou. — Estou disposto a pagar — ele anunciou com firmeza. — Diz-me o valor e é teu.

Angelita o encarou por um longo momento.

— Inglês ignorante — resmungou por fim, balançando a cabeça. — Pelo amor que já tivemos, ajudarei sem custo. Mas a magia cobra um preço em si. Não é como os navios europeus. Não se importa com tuas riquezas. Só recompensa o sacrifício.

— Do que precisas?

— De algo teu.

— Só isso? — perguntou o capitão.

A bruja esboçou um sorriso dúbio na luz bruxuleante.

— Algo importante. — Ela se aproximou até ele conseguir sentir seu aroma, até seu rosto roçar no dele, então sussurrou a resposta em seu ouvido. Hernandez estremeceu. Angelita recuou. — Estás disposto a isso?

Não mentiremos: por um segundo, o capitão vacilou. Mas então deu meia-volta e, com passos seguros, foi até Tomás explicar o plano. O marujo fez o sinal da cruz e encarou Angelita como se o próprio diabo tivesse se materializado à sua frente.

— Achei que querias viver — Hernandez disparou. — Quanto tempo achas que sobreviverás com teu antigo capitão à tua caça, homem? Te ofereço a chance de tomar o meu lugar, com todas as regalias do meu posto. Serás idêntico a mim, em rosto, corpo e voz.

— Mas… mas eu nunca fui capitão!

Hernandez afastou a objeção como uma mosca, suavizando seu tom.

— Meu caro, é a coisa mais simples do mundo. Deixe Morales no comando e apareça de vez em quando para erguer o moral da tripulação. Se alguém se opor, mate-o. Um capitão faz muito pouco quando a tripulação é bem treinada, e a minha é a melhor do Caribe. Um velho cão do mar como tu não terás problemas.

Tomás protestou, refutou, considerou, titubeou e por fim aceitou — como Hernandez sabia que aconteceria. Quando se prova um pouco da vida, por mais miserável que seja, é difícil deixá-la.

Fizeram os procedimentos necessários, um mais desagradável que o outro. Não iremos aqui detalhar o passo a passo, para poupar o leitor de sangue, bile e gritaria — assim como para evitar que quaisquer aventureiros na prática de feitiçaria tentem recriar um experimento tão complexo e perigoso. Que fique registrado que Hernandez não vacilou após sua decisão, embora tenha aceitado um gole generoso de rum antes que começassem, enquanto Tomás foi derrubado com o auxílio de algumas poções potentes.

Um pouco cambaleante, Hernandez voltou no dia seguinte — e então encontrou a si mesmo. O rosto, o cabelo, os músculos, cada cicatriz e ruga eram idênticas. Encarou seus próprios olhos. Será que os homens perceberiam algo de estranho? Será que veriam que a mente que se movia por trás deles não era a sua?

Não. Poucas pessoas poderiam fazê-lo.

Os dois homens idênticos se observaram por um longo momento.

— Mostre a ele — Angelita ordenou.

Tomás limpou a garganta.

— Ratos imundos, içar velas!

O capitão ficou de queixo caído ao ouvir sua voz saindo de outra boca. Engoliu em seco e sentiu um leve formigamento no canto do olho.

— Magnífico! — sussurrou. Observava o duplo como uma obra de arte. Virou-se para Angelita, que sorria satisfeita com sua reação. — És uma pérola — disse para a antiga amante. — Não, uma ostra. Dura por fora, uma joia brilhante por dentro.

— Não eras tão sentimental quando estávamos juntos.

— Fiquei velho, li uns poemas. E tu — recomendou para o antigo marujo, apontando um dedo enfático —, cuida bem do meu nome.

Dois dias depois, o homem que já se chamara Tomás encarou a tripulação do Wordsworth e, após um segundo de hesitação, começou a rosnar ordens.

III

Os primeiros dias em Kingston não passaram sem ansiedade, mas, embora pensasse com frequência em seu navio e se perguntasse a quantas andava a farsa, o capitão Hernandez — agora o respeitável administrador Brandon Bishop, tendo retomado o nome ao descobrir que tanto os pais como o irmão haviam falecido — ao menos tinha um bom consolo em Samuel. A bem da verdade, quando não estava distraído por pensamentos do navio distante, encontrava-se contentíssimo. Sua tripulação teria ficado perplexa ao vê-lo se adaptar tão facilmente a uma vida burguesa.

Mas ele não precisava ter se preocupado com Tomás. Logo chegaram os primeiros rumores: o capitão pirata Hernandez, do Wordsworth, estava fazendo movimentos ousados. Chegaram notícias de ataques inesperados e bem-sucedidos. Os vizinhos e parceiros comerciais de Samuel não paravam de comentar a desfaçatez do pirata. A cada dia chegava um novo relato de algum ataque, algum roubo, alguma nova canalhice — e bem agora, quando parecia que a pirataria estava prestes a ser extinta das Américas!

— Melhor do que a encomenda — o capitão dizia baixinho consigo mesmo, com um leve sorriso nos lábios. — Quem diria!

Saber que estava bem representado dava-lhe um ânimo novo para a vida. Aguardava com prazer e ansiedade todas as notícias do Wordsworth e de seu capitão audaz, relatadas pelos pares de Samuel, homens que geriam fazendas de açúcar e café. Uma vez, entreouviu Sam falando com um deles.

— Seu administrador — comentou o homem. — Um tanto peculiar, não? Muito bronzeado.

— Não se pode julgar um homem pelo tanto de sol em sua tez — replicou Sam com uma leve nota de censura. — Confio em Brandon, é tudo que importa. E, afinal — complementou, demonstrando saber bem o que realmente importava —, os negócios estão rendendo, não estão?

Estavam. Que bela época para a exploração de povos e terras era aquela! Era verdade que muitos lordes vinham se retirando das colônias e retornando à distante Londres, deixando administradores em seu lugar por medo dos tempos conturbados, e que o auge do açúcar tinha passado (assim como o auge da pirataria), mas os números ainda faziam a cabeça do ex-capitão Hernandez girar. Ao menos quando tinha acesso a eles, pois era Sam que geralmente se debruçava sobre os livros-razão com a perspicácia de um usurário.

— Sou apenas um poeta, como bem sabes — dizia o rapaz. — Essas questões financeiras me são muito desagradáveis, mas temos que manter as contas em dia para não sermos incomodados por meu pai. Certamente não tomo gosto pela coisa.

— Claro que não — concordava Hernandez, que tendia a aquiescer com tudo que saía da boca do jovem para evitar discussões.

Mas, embora não fizesse contas, não passava os dias à toa. Samuel, apesar de toda sua educação londrina, era muito inocente em outros aspectos. Hernandez transferiu seu controle sobre marinheiros rudes e endurecidos para governar o que descobriu ser um verdadeiro exército de capatazes, mordomos, intermediários, representantes comerciais, funcionários do governo e outros personagens necessários para gerir a propriedade de um nobre inglês. Todos estavam ávidos para enganar o lordezinho que vivia com a cabeça nas nuvens, mas descobriram que era mais difícil trapacear o administrador Bishop e seu olhar astuto.

Até os jantares com a elite inglesa na Jamaica, algo de que se lembrava com tédio da infância, eram uma fonte de divertimento. Hernandez adorava trocar olhares com Sam e detectar a mesma fagulha de humor neles, um mesmo gosto pela fraude — e então à noite, quando os criados se retiravam para seus quartinhos e os dois tinham privacidade, zombar de todos aqueles que não enxergavam o que estava bem diante deles.

O capitão Hernandez não poderia estar mais satisfeito com o modo como as coisas se arranjaram, acordando todo dia com um sorriso no rosto e, aos poucos, baixando a guarda contra o mundo ao seu redor.

Um deslize — pois a sorte, que já fizera tanto por ele, não gostava de demonstrar favoritismo.

— Brandon! — exclamou Sam assim que Hernandez cruzou a porta. — Tenho novidades.

O rapaz agitava uma carta, sentado à mesa do desjejum. Hernandez, que se levantava muito mais cedo, já tinha bebido seu excelente café, saído para amedrontar alguns funcionários preguiçosos e voltado enquanto Sam ainda passava manteiga em sua torrada. Sentou-se sem responder à pergunta retórica.

— Teremos uma visita! — informou Sam. — É um amigo de longa data de meu pai, um oficial da Marinha. Um homem do mar. Vocês terão muito o que conversar.

— Duvido — murmurou Hernandez.

— Faz anos que não o vejo! Lembro que visitou nossa casa quando eu mal tinha saído da infância. Me impressionou tanto.

— Hmm.

— Não vejo a hora! Será que continua tão bem-apessoado quanto me lembro? — perguntou Sam, meio para si mesmo.

Hernandez, que já detestava o sujeito, ignorou esta pergunta também.

— Quando vem?

— Esta noite — disse Sam. — Seja educado, por favor.

— E quando não sou? — perguntou Hernandez com um sorriso genuíno.

Foi com esse bom humor que se preparou para o jantar daquela noite com o conhecido da família Herbert, esperando que o homem se provasse tedioso e não tão bem-apessoado quanto se lembrava Sam.

Nisso, viu-se frustrado. O sujeito introduzido na sala de estar da mansão dos Herbert parecia saído de um romance em seu uniforme naval imaculado. Seus olhos escuros e perspicazes se iluminaram de afeto ao receber as boas-vindas de Sam, e então se voltaram com mais desconfiança para Hernandez, que estava em pé no meio da sala.

— Brandon, permita-me apresentar o capitão William Pratt — disse Sam com um sorriso. — Capitão, este é Brandon Bishop, meu braço direito.

— William, por favor — disse Pratt para Sam. — Somos velhos amigos. — Então virou-se para Hernandez e estendeu uma mão. Seu olhar brilhante esmoreceu como um dia de sol tapado por uma nuvem. Sua voz saiu hesitante: — Prazer em conhecê-lo.

Hernandez avançou devagar e apertou a mão do outro com firmeza, ignorando a pontada de alarme no peito.

— É todo meu.

Se não estivesse prestando atenção, teria perdido o modo como Pratt estreitou os olhos às palavras — mas a expressão se desfez em um segundo, pois Samuel já o estava convidando a se sentar e contar as novidades da Inglaterra.

— Sei pouco mais que você — respondeu Pratt, aceitando uma taça de brandy das mãos de Sam. — Transferi-me permanentemente para o Caribe. Ao menos até completar minha missão.

— Missão? — perguntou Sam.

— Acabar com a pirataria — explicou Pratt.

Samuel ergueu uma sobrancelha e lançou um olhar de alerta para Hernandez, o que, no entanto, não o impediu de falar:

— Uma empreitada corajosa — comentou ele. — Muitos tentaram e falharam.

O rosto de Pratt continuou impassível.

— Não eu — disse ele calmamente. — E não com todo o apoio da Coroa.

— Está sendo financiado pela rainha? — perguntou Sam, impressionado. — Achei que trabalhava com contratos privados.

— Nos últimos anos, sim. Mas me dei conta de que é preciso garantir a segurança de nossas mercadorias, e isso não ocorrerá até a ralé que ainda assola nossos mares ser destruída. — Pratt virou-se para Hernandez. — É uma questão de negócios e, acredite, o império leva seus negócios muito a sério.

— Não tenho dúvida — disse Hernandez. Ouvira muito sobre os “negócios ingleses” desde que se mudara para Kingston, conversando com os pares de Samuel. Entre as preocupações de tais homens, incluía-se a abolição da escravidão (a qual, na opinião dos respeitáveis senhores, atrapalhara o bom funcionamento da economia) e, é claro, a pirataria. Ele tomou um gole de sua bebida. — No entanto, parece-me que sua majestade está sempre atrás dos piratas, mas que nunca consegue acabar com eles.

— Desta vez é diferente — afirmou Pratt por trás do bigode. — A pirataria está sofrendo os últimos espasmos. Cofresí e sua tripulação tiveram o fim que mereceram, executados como ratos. A última ameaça real é aquele Hernandez, mas seu fim é certo.

Sam se remexeu na espreguiçadeira, relanceando entre os dois homens.

— Como tem tanta certeza? — perguntou Hernandez com toda a cortesia.

— Porque as tropas britânicas, sob meu comando, fizeram um acordo com os espanhóis para expulsar aquela chaga de nossos mares. Em breve nossos melhores capitães partirão em busca de Hernandez. Já temos homens vasculhando cada porto do Caribe em busca de informações sobre seu paradeiro. — Pratt reclinou-se em seu assento e o encarou agudamente. — Logo ele não será mais que uma simples nota de rodapé na história.

Hernandez controlou sua expressão com cuidado.

— O senhor parece ter um problema pessoal com o capitão Hernandez.

Algo reluziu nos olhos de Pratt antes que este também controlasse sua expressão.

— Nos encontramos uma vez — respondeu o homem com frieza. — Infelizmente ele partiu antes que pudéssemos nos conhecer melhor, mas tenho uma dívida a lhe pagar.

Basta dessa conversa de pirataria — interrompeu Samuel depressa, claramente confuso, mas reconhecendo que era melhor não deixar Hernandez abrir a boca. — William, conte-me como está acomodado. Em sua carta, disse que está alugando uma casa em Kingston?

— Sim, não longe daqui. — Pratt virou-se para ele, novamente afável. — A sociedade certamente não é a mesma que a londrina… — Deu um olhar de esguelha para Hernandez. — Mas ainda posso apresentar-lhe conhecidos. Deve sentir-se solitário aqui, entre esses homens práticos.

— Ah, eu… bem… — Sam se embaralhou, não querendo tomar lados. — É claro que gostaria de conhecer seus amigos.

Mais tarde, quando estavam sozinhos, Sam voltou-se para seu administrador com preocupação estampada no rosto.

— Que história é essa de que William o conhece?

— Não quero falar disso — rosnou Hernandez, abanando a mão. Sentou-se pesadamente na cama, embolando os lençóis nos punhos.

Sam franziu o cenho e sentou-se ao seu lado.

— Está bem?

— Bem? — rosnou Hernandez. — Como bem, homem? Estou sendo caçado!

— Teve uma boa vida de crime — consolou Sam. — Se não heroica, ao menos emocionante. Escrevo-lhe um poema sobre ela.

— “Aquela ralé.” Que audácia! — esbravejou Hernandez. — E afinal de contas, não é a pirataria uma questão de perspectiva? Os espanhóis chamavam Francis Drake de criminoso, mas para ingleses como o seu Pratt ele era um herói nacional.

— Ele não é meu — apontou Sam —, e você também é inglês.

— Não sou — retrucou Hernandez.

— É o quê, então?

Ele afastou a pergunta com outro gesto.

— Nunca cheguei perto da Inglaterra.

— O que importa — decretou Sam com finalidade — é que saiu desta enrascada em tempo. William é um homem competente; duvido que seu duplo vá durar muito. É bom que esteja longe de tudo isso.

— Hmm — murmurou Hernandez, deixando-se ser puxado para um beijo. — Sim. Muito bom.

O que não era nada bom era a intromissão de William Pratt em sua nova vida. Não bastasse a perseguição ao capitão Hernandez, Pratt parecia não querer deixar Brandon Bishop ter paz também.

Não se passavam mais de dois dias sem a presença do homem na mesa de jantar, à qual levava amigos como se estivesse na própria casa, envolvendo Samuel em conversas sobre a Inglaterra e tratando Hernandez como um subalterno. (O que, em teoria, ele era, mas o ex-capitão se irritava ao ser lembrado disso e não deixava passar uma oportunidade de apontar a Sam que, apesar de suas origens nobres, faltava a Pratt cortesia.) Todo o tempo que tinha a sós com Sam passou a ser tomado até altas horas pelo homem e seu séquito — e ele não deixava de ver o fascínio que o sujeito exercia sobre o rapaz, com suas histórias (altamente exageradas) acerca de seus feitos militares.

A paciência de Hernandez foi testada ao máximo certa noite em que Pratt apareceu sozinho. Sentaram-se os três à mesa de jantar.

— Recebi uma carta de seu pai — anunciou o homem. — Escrevi a ele sobre seu sucesso aqui algumas semanas atrás; está muito orgulhoso.

Sam corou.

— É gentil demais, William.

— O crédito é merecido. Mas todo o sucesso do mundo não se equipara a ter um filho próximo. Sabe que ele não vê a hora do seu retorno, não?

Sam sobressaltou-se. Hernandez estreitou os olhos, fazendo a pergunta antes do rapaz:

— Retorno?

— É claro — respondeu Pratt, sem desviar os olhos de Sam. — Não espera ficar aqui para sempre, não é? Certamente tem saudades da Inglaterra.

Sam hesitou, mexendo nervosamente no colarinho da camisa abafante que voltara a usar para os jantares.

— Não tinha pensado na questão. — Lançou um olhar breve e alarmado para Hernandez. — Quer dizer, não é sequer uma possibilidade. Ainda sou perseguido por certos indivíduos e…

Pratt dispensou a oposição com um gesto.

— Essas coisas se esquecem depressa. Vai ver que estará a salvo quando retornar. Especialmente com sua nova fortuna.

— Não diria que é uma fortuna…

— Mais do que o suficiente para solidificar a posição da família. E para se casar, eu diria.

O garfo de Sam tilintou ao bater contra o prato. Hernandez ergueu a cabeça bruscamente, apertando sua faca com tanta força que arriscava dobrar o metal. Pratt continuou, sem deixar o silêncio pesado se assentar:

— Um jovem promissor, com uma propriedade rentável, não deve ficar sozinho. Seu pai concorda comigo.

Sam abriu e fechou a boca.

— Não estava pensando em casar-me tão cedo — murmurou por fim.

— Dificilmente é cedo! — riu o outro. — Esta casa já poderia estar cheia de crianças.

O rosto do rapaz assumiu um tom esverdeado.

— Acho que Sam gosta de sua liberdade — interveio Hernandez, sem conseguir segurar a língua um segundo a mais. — Aqui, pôde descobrir quem é de verdade. Trilhar seu próprio caminho e não o que lhe foi designado.

— Os jovens sempre querem ser livres — retrucou Pratt —, mas uma hora descobrem que desperdiçaram tempo perseguindo ilusões.

Hernandez bebeu um gole de vinho para evitar esmurrar a mesa. O olhar de Sam sugeria que não seria um gesto apreciado.

Mais tarde, andava de um lado ao outro da sala de estar quando Sam entrou pela porta, finalmente sozinho.

— Por que a demora? — rosnou. — Foi deixá-lo em casa?

— William queria falar comigo a sós. — Sam se serviu uma taça de licor e a virou de um só gole. Hesitou, e então repetiu o processo mais uma vez. — Sobre casamento.

Se algum conhecido do intrépido capitão estivesse presente naquela sala, teria ficado chocado ao vê-lo perder toda a cor com uma única palavra.

— Não me diga que está considerando! — exclamou Hernandez por fim.

— Não seja ridículo — retrucou Sam. — Sabe que as moças não são de meu… interesse particular. Porém…

— Porém?!

— A questão não é apenas meu pai. William está tentando me proteger. Disse que há falatório sobre a nossa… relação. As pessoas estranham você morar aqui na mansão.

— É uma mansão — retrucou Hernandez. — Eu poderia acomodar minha tripulação inteira só no andar de cima!

— A questão não é a quantidade de pessoas, mas sua posição — disparou Sam, jogando as mãos para o alto. — Eu aqui, sozinho… não é à toa que rumores começaram a se espalhar.

Hernandez bufou.

— É seu caro amigo William que anda espalhando esses rumores, eu lhe garanto!

— Brandon! — repreendeu Sam. — Não fale absurdos. William jamais faria nada para me prejudicar.

— É claro que não — resmungou Hernandez. — Já a mim…

Sam jogou-se num divã, massageando as têmporas.

— Isso de novo não!

— Então acha que ele está certo em acabar com a vida de dezenas de homens?

— Dezenas de piratas. Ele está apenas fazendo o seu trabalho. E, afinal, não foi ele quem roubou um grupo de náufragos. — Sam ficara especialmente irritado quando descobrira como Pratt conhecia o seu nome, o que Hernandez achava bem injusto. Como ele poderia saber, anos antes de conhecê-lo, lutando por sua sobrevivência, que o homem que estava roubando era um amigo pessoal da família? — De toda forma, não é a você que ele está prejudicando. Você é Brandon Bishop, e seria bom lembrar-se disso. — O rapaz ergueu-se de repente, apoiando as mãos na cintura. — Essa discussão está ficando enfadonha. Façamos o seguinte. Encontro-lhe uma casa própria, perto daqui, assim evitamos boatos e a necessidade de qualquer casamento. Dessa forma nem terá mais que comparecer aos jantares que claramente odeia.

Logo não terei nem mais permissão de entrar na casa, pensou Hernandez, mas conteve as palavras, que teriam traído inseguranças nada atraentes. Em vez disso, levantou-se, foi até Sam e lembrou ao rapaz por que escolhera ficar com ele.

Perdera Angelita para um oficial arrogante, não perderia Sam para outro. Se conseguisse se livrar de Pratt e de suas ideias sobre retornar à Inglaterra ou sobre casamento, poderiam retomar a vida que tinham antes.

Mas não faria isso como Bishop. Para isso, teria que ser Hernandez.

William Pratt não deixaria o Caribe antes de acabar com a pirataria, mas esta não era a primeira caçada que Hernandez enfrentava. Como tudo nas colônias, o elemento mais importante era o financiamento. Tudo que precisava fazer era provar a incompetência de Pratt até que sua rainha e seu império retirassem seu apoio e ele voltasse — em desgraça — para a longínqua Inglaterra.

É claro, isso seria quebrar a promessa que fizera a Sam de não se envolver na questão, mas o que Sam não soubesse não poderia feri-lo. Quando pusera Tomás em seu lugar, Hernandez não tinha antecipado uma caçada. Ele próprio não teria problemas em evadir os perseguidores (a perspectiva até fez o sangue se agitar em suas veias), mas questionava a capacidade do duplo de fugir da força combinada dos impérios inglês e espanhol. Se o Wordsworth fosse capturado, todos os esforços de Hernandez teriam sido em vão.

A ideia era insuportável. Agora que não havia mais competição (Cofresí já fora executado àquela altura), começara a sonhar com uma segunda era de ouro da pirataria, liderada por Tomás enquanto ele aproveitava o sol da Jamaica e o corpo cada vez mais vigoroso de Sam.

Mas o que fazer?

A pergunta, a princípio retórica, tornou-se prática. Havia muito que um homem em sua posição podia fazer.

Começou devagar. Escutando mais que falando, aproveitou seu lugar ao lado de Sam para reunir informações, assim como Angelita costumava coletar feitiços em sua antiga taverna. Os jantares e recepções com Pratt e outros homens de negócios tornaram-se reuniões de guerra, embora só ele soubesse disso. Toda vez que conseguia informações sobre os planos coloniais, desvencilhava-se dos braços de Sam à noite e dirigia-se, sob o manto da noite e envolto em roupas velhas extraídas do fundo de um baú, para o porto.

Há um tipo de taverna em toda cidade portuária cuja fachada parece antecipar uma morte violenta poucos passos além do batente. Esses locais, apesar das grandes mudanças vistas nas colônias desde o século anterior, resistiam a qualquer alteração em sua clientela, uma reunião do que havia de pior em cada cidade. Neles, um homem podia enviar e receber mensagens a colegas de ofício, que seriam entregues com maior ou menor eficácia a depender do ouro que trocasse de mãos.

Para a sorte do administrador colonial Brandon Bishop, ele se via na posse de uma enorme quantia de ouro.

Foi assim que rapidamente estabeleceu uma linha de contato com o capitão Hernandez do Wordsworth, para quem começou a enviar mensagens que percorriam as ilhas do Caribe. Movimentos e intenções da coalizão anglo-espanhola, detalhes técnicos sobre os navios, número de armas e homens: tudo que conseguia descobrir era transmitido ao duplo. Entrou em contato com Angelita — a sra. Ramírez — e, por meio dela, adquiriu informações sobre o lado espanhol da expedição. A cada novo jantar, descobria como Tomás vinha se saindo com sua ajuda com base no falatório. Agia de modo discreto e inteligente. Era uma estratégia impecável.

Só uma vez vacilou. Em uma reunião usual, um dos convidados de Pratt comentou:

— Amanhã o Drake parte atrás de Hernandez. Descobriram que o homem teve que parar numa baía perto de Cuba devido a uma tempestade. Enquanto fazem reparos, nossos homens o pegarão.

Hernandez amaldiçoou todos em silêncio. Naquela noite, foi ao porto, onde espreitou das sombras o navio em questão. O Drake boiava tranquilamente, preparado para zarpar. A quantidade de homens diminuiu no convés com a passagem das horas. Hernandez esperou até que só bêbados e criminosos caminhassem pelo cais, todos mantendo uma boa distância uns dos outros. Quando reinava o silêncio das vozes, embalado pelo som das ondas, ele avançou.

Precisava apenas impedir a partida por tempo suficiente para enviar uma mensagem a Tomás com detalhes da expedição. Escalou a corda da âncora e examinou a movimentação agarrado à amurada. Com um baque surdo na nuca do único marinheiro de vigia, pousou no convés em silêncio e, agachado, seguiu até o mastro principal. Alguns cortes hábeis no cordame e eles seriam incapazes de içar as velas pela manhã. Simples. Fácil. Exceto que, assim que começou o serviço, uma voz autoritária gritou:

— Ei! O que está fazendo?

Hernandez congelou com a adaga em mãos, então se virou devagar. O oficial uniformizado se aproximou com passos largos e olhou-o da cabeça aos pés, notando imediatamente que ele não estava vestido como um homem da Marinha britânica. Seus olhos reluziram com desconfiança sob a lua cheia.

— Subi pra tomar um ar — disse Hernandez, com o máximo de inocência. — A cabine é apertada.

O homem fez uma careta.

— Amanhã partimos em missão e… — Ele parou de falar quando seu olhar captou algo além de Hernandez: o corpo do vigia caído contra a amurada. Virou-se para Hernandez, notou a lâmina na mão do pirata e, recuando um passo, foi pegar o cabo branco do que devia ser uma bela espada.

Não teve a chance de sacá-la.

Hernandez não pensou nas consequências — anos de combate lhe haviam imbuído um senso de sobrevivência acima de tudo e, antes que o homem tirasse a lâmina da bainha, sacou seu revólver de dentro do casaco e atirou.

O tiro ecoou na noite silenciosa com o som inconfundível de um tiro ecoando em uma noite silenciosa.

Maldição. O homem cambaleou para trás e caiu, com a mão no peito e um olhar estupefato. Hernandez o deixou sangrando sobre as tábuas enquanto vozes se erguiam das entranhas do navio. Pulou da amurada para a água fria, então nadou o mais submerso possível até um ponto distante do cais. Deixando um rastro de água, saiu em disparada pelas ruelas da cidade, acompanhado pelos latidos dos cachorros e pelas lamparinas se apagando nas janelas conforme a população de Kingston decidia ser melhor não testemunhar o que quer que estivesse ocorrendo. Passou um bom tempo despistando perseguidores reais e imaginários, não querendo arriscar outro encontro, até que voltou para sua nova casa quando um rasgão laranja no céu já expulsava a mancha roxa da noite.

Chegou atrasado para o desjejum na mansão. Sam aguardava-o em seu escritório, atrás de pilhas de documentos, e ergueu os olhos quando ele abriu a porta. Abanou um papel para Hernandez, com uma expressão como um temporal se formando no horizonte.

— Que foi?

— O que estava fazendo ontem à noite? — disparou o rapaz.

— Dormindo — respondeu ele sem hesitar. — O que mais?

— Ouviu que um oficial britânico foi assassinado? Por acaso, no exato navio que sairia em caça ao Wordsworth hoje mesmo.

Encararam-se.

— Há suspeitos? — perguntou Hernandez.

— Consideraram um ataque pirata.

— Então deve ter sido isso — disse ele suavemente, sentando-se na borda da mesa e tomando o rosto delicado entre as mãos calejadas. — Não pense mais a respeito.

Os olhos de Sam faiscavam.

— Não foi esse nosso acordo — disse em voz baixa. — Achei que queria esquecer sua vida passada.

— Minha vida passada me fez quem sou. E gosta de mim por quem eu sou, não é?

— E quem é? — desafiou Sam. — Brandon ou Hernandez? Como lhe chamo?

— Me chama de amor, é claro. — E abafou outra objeção com um beijo, fazendo o caso ser esquecido.

Mas, fora este percalço, tudo corria bem — tão bem que as escapadas milagrosas do capitão Hernandez só aumentaram sua reputação. O homem, diziam, era impossível de capturar. E se o falatório não fosse prova o bastante, a expressão de Pratt cada vez que jantava na mansão era muito mais eloquente.

Pois o homem podia se imiscuir na vida privada de Hernandez e até fazê-lo ser expulso de casa, mas não conseguia esconder o conhecimento popular de que sua missão triunfal ainda não resultara em nenhum triunfo. Com o passar dos dias e semanas, Pratt se tornou cada vez mais acirrado em suas tentativas de influenciar Sam e cada vez mais calado em relação à caça aos piratas — não só com Sam, mas de modo geral. Ninguém mais parecia saber quais seriam os próximos passos da missão. E, se nem ele nem seus colegas falavam, Hernandez não tinha como saber — e transmitir — seus planos. Passou a depender cada vez mais das informações que chegavam de Angelita.

Uma noite, foi falar com seu intermediário no porto, um antigo pirata que perdera a perna esquerda para uma bala de canhão. O homem sentava-se com sua muleta num canto da taverna, sempre tragando um cachimbo fedorento. Soprou uma nuvem na cara de Hernandez ao entregar-lhe um papel.

Vem a Puerto Rico, dizia Angelita concisamente. Hernandez encarou as palavras como se pudesse extrair alguma outra informação delas. Se a bruja não queria falar por intermediários, talvez tivesse descoberto algo muito importante.

O velho soltou outra baforada. Hernandez o olhou com irritação.

— Pois bem — resmungou ele —, diga a seus homens para passar uma mensagem a T… Hernandez. Ele deve ficar longe de todos os portos espanhóis. Melhor ainda, que se enfurne numa baía isolada e não se mova de lá até que eu mande.

O homem tragou o cachimbo e o examinou com atenção.

Aye — concordou. — Que mal lhe pergunte, por que te interessa tanto a sorte do capitão Hernandez? Te deve dinheiro?

— Deve-me mais que isso — respondeu Hernandez, virando-se e murmurando consigo mesmo. — Deve-me a vida.

Na manhã seguinte, interceptou Sam assim que este saiu do quarto.

— Tenho que me ausentar alguns dias — informou, aproveitando que o rapaz nunca despertava inteiramente antes de uma xícara de café. — Esperávamos algumas peças para as máquinas que ficaram retidas em Puerto Rico sob suspeita de contrabando.

Sam fez um muxoxo, esfregando os olhos sonolentos.

— Não pode enviar alguém em seu lugar?

— Vou e volto o quanto antes — prometeu ele. — Afinal, é o meu trabalho. As pessoas estranhariam se eu não o fizesse.

Tomou passagem em um navio inglês, desembarcando em San Juan no final da manhã e seguindo para uma residência cujo endereço conhecia havia anos, mas onde jamais pisara — a casa da sra. Ramírez.

A mansão de dois andares com paredes brancas se erguia firme e inamovível como um império, cada janela com cortinas de musselina um olho vigilante. Ele a encarou por um momento, então subiu os degraus de entrada e bateu na porta até que um criado de libré atendeu.

— Procuro a sra. Ramírez — disse em espanhol. — É um… antigo colega.

O homem o perscrutou da cabeça aos pés, notando as roupas elegantes no corpo caribenho, então sumiu dentro da casa. Alguns momentos depois, retornou e pediu que o seguisse. Hernandez percorreu os corredores cheios de quadros, brasões e vasos delicadamente pintados, terminando em uma saleta de recepções — onde se deparou com Angelita, num vestido azul-claro e com o cabelo preso num coque elegante, e um homem alto com bigode vestindo um uniforme do exército espanhol.

Seu marido.

Hernandez estancou. O que diabos o sujeito estava fazendo ali? Em uma carta recente, Angelita dissera que estava fora, um dos motivos para não vir passando tantas informações quanto antes. O general Ramírez o observou com o cenho franzido. A expressão de Angelita aparentava tranquilidade absoluta, mas Hernandez podia ver seus olhos faiscando. Ela devia ter imaginado que ele marcaria um encontro clandestino.

Ele controlou o choque e fez uma mesura para o general.

— Desculpem a intromissão, mas sou um velho conhecido da senhora e pensei em cumprimentá-la. — Virou-se para Angelita. — Ainda te lembras do velho Rivero, espero?

Ela ergueu uma sobrancelha com a escolha de pseudônimo.

— O sr. Rivero era um homem do mar — ela contou ao marido —, mas parece ter subido na vida desde que perdemos contato.

— Tive a sorte de abrir um pequeno negócio que vem prosperando — disse Hernandez. — Deixei aquela vida para trás.

O general olhou de um para outro e enfim deu de ombros.

— Pois senta-te — disse. — Conte-me sobre seus negócios.

Foi assim que Hernandez se sentou no divã dos Ramírez e inventou um longo passado para si mesmo em que havia pouco de verdade, mas muito de interessante. E quanto ao general, o que achava das Américas? Rivero ouvira falar de escaramuças políticas na província…

— Sem dúvidas — disse o homem, inflamando-se de imediato. — A ilha está cheia de liberais com suas ideias insurretas, liberdade de imprensa e todo tipo de absurdo. Mas a ordem será restaurada, como sempre é no final.

Hernandez ergueu sua xícara de chá.

— À restauração da ordem — brindou.

Angelita lhe deu um olhar afiado, mas o alarme sumira de sua expressão. Pelo contrário, parecia à vontade. Contente. Não feliz, mas satisfeita. Era estranho vê-la tão contida, falando uma palavra aqui e outra ali. Quando Ramírez começou a discutir suas propriedades na ilha, Hernandez logo viu que era Angel que atuava por trás dos panos, não tão diferente de como ele próprio permitia que os negócios de Sam prosperassem. E o general claramente sabia disso. O que surpreendeu Hernandez foi outra coisa: a cumplicidade entre os dois. Sorriam, trocavam gracejos, comunicavam-se com olhares.

Ele sentiu uma pontada de algo estranho. Alguns chamariam de ciúmes, outros arrependimento, outros nostalgia. Um homem mais analítico teria parado para considerar que aquele poderia ser ele se, tantos anos antes, tivesse decidido largar a pirataria e construir uma vida com Angelita. Mas Hernandez, que era prático demais para ficar catalogando sentimentos como um inventário, simplesmente deixou a sensação passar sobre ele como uma onda quebrando contra um rochedo.

Quando Ramírez se retirou para dar ordens a um criado, Hernandez se inclinou para a frente, encarando-a no divã oposto.

— Por que não avisaste que ele estava aqui? — sibilou.

— E eu lá ia saber que aparecerias sem convite!

Ele ignorou a resposta na ponta da língua e afastou a discussão com um gesto impaciente.

— Não importa. Diga-me o que tens para dizer. O que descobriste?

Ela hesitou. Depositou com cuidado a xícara na mesa ao seu lado e uniu as mãos, observando-o com uma cautela estranha.

— A caçada a Hernandez será interrompida — contou por fim.

— O quê? — ele perguntou, surpreso. — Por quê?

— Porque a lenda é verdade.

Hernandez franziu o cenho.

— Qual delas?

Angelita o olhou por um longo momento antes de responder:

— O tesouro do Lima ainda está enterrado.

Hernandez se reclinou com surpresa e perscrutou o rosto dela. Não havia qualquer indício de brincadeira em sua expressão.

— Os espanhóis encontraram o capitão Thompson e o convenceram a informar a localização do tesouro — prosseguiu Angelita. Hernandez imaginava que o convencimento não ocorrera por meio de palavras gentis. — Thompson confessou que estivera de fato na Ilha do Coco, mas que jamais enterrou o tesouro lá. Era só uma distração para que um pequeno grupo pudesse levá-lo por terra através da Costa Rica e depois escondê-lo em uma ilhota deste lado do oceano. Agora que extraíram as coordenadas dele, o comandante espanhol que estava te caçando vai partir atrás do butim.

O tesouro do Lima! Seria possível? Aquela viagem estéril voltou a ele de uma só vez — os meses no mar, a ilhota revirada, o descontentamento dos homens, o ataque a Pratt e os anos que se seguiram. O tempo todo, Hernandez sentira o peso da derrota, de uma promessa jamais cumprida. A perda de Angelita e a perda do tesouro sempre lhe pareceram conectadas, e reencontrá-lo agora, quando também tinha Sam, pareceu-lhe um sinal. Como todos os grandes homens, Hernandez não podia deixar de ver no acaso a mão invisível do destino, que o guiava ou desviava pessoalmente seguindo alguma ordem superior.

Além disso, se Tomás desenterrasse o tesouro do Lima, não importaria se fosse enforcado depois. A reputação de Hernandez estaria firmemente entrincheirada na História — e ele poderia, enfim, relaxar ao lado de Sam.

— Estás certa disso? — perguntou ele.

— Meu marido goza da companhia de homens mui respeitáveis — respondeu ela, ríspida. — Não te teria chamado aqui se a informação não tivesse sido dada por um oficial de alta patente.

— Onde está o tesouro, então?

Novamente, ela hesitou.

— Eles zarpam a qualquer momento — apontou. — Seu duplo terá pouco tempo para agir e corre o risco de topar com os espanhóis.

— Não terias me chamado se não achasses que há tempo — replicou ele. — Quanto antes terminarmos essa conversa, mais rápido Tomás estará a caminho.

— O que farás com um tesouro?

— Eu? Eu sou um simples administrador de propriedade. — Abriu um sorriso. — A descoberta e o aproveitamento de tesouros são assuntos de piratas.

Angelita revirou os olhos.

— É uma ilha no litoral da Costa Rica — disse, e passou o nome de um local sem grandes atrativos, conhecido como refúgio de náufragos, e pelo qual Hernandez já passara em diversas ocasiões. Só de pensar que o tesouro estivera na sua cara o tempo todo!

Ele se levantou em um pulo.

— Terei que agir depressa — disse ele, já compondo a mensagem a Tomás mentalmente. Contornou a mesa e foi até ela, lascando um beijo fervoroso em sua mão. — Novamente me destes minha liberdade.

— Então volta para casa e a aproveita — recomendou ela, soando mortalmente séria. — Falo pelo teu bem: não interfiras mais nessa história.

— Por que faria isso?

— Porque te conheço. Prometa-me.

— Prometo — ele jurou.

Hernandez fez menção de sair, mas então virou e perguntou em voz baixa:

— Gostas mesmo daquele homem?

— Tu não gostas do teu Sam? — rebateu ela.

— Sam não é nada como ele.

— Eles são todos iguais, no mundo deles — refletiu Angelita. — E suponho que nós também, no nosso. — Puxou-lhe para um último beijo na boca. — Agora saia da minha casa e vá viver a tua vida.

Hernandez passou o dia seguinte num estado de excitação febril. Na primeira oportunidade, foi atrás de notícias na taverna.

— A mensagem foi recebida — disse o velho com uma baforada do cachimbo. — Eles partiram.

— Só isso?

— Só isso.

O jantar daquela noite foi uma tortura. Era difícil se entrosar nas conversas como Brandon Bishop quando sua mente estava junto com a tripulação do capitão Hernandez. Só conseguia pensar que, naquela hora, os homens estariam cavoucando cada pedaço da ilhota. Hernandez esperava que Morales e Tomás não estivessem dando trégua a eles. Era certo que encontrariam o butim — ele já passara pelo local; era um lugarzinho de nada. Contanto que se adiantassem aos espanhóis…

Seu único consolo era que Pratt não comparecera naquela noite; se tivesse ouvido qualquer farpa do homem, teria atacado o sujeito com a faca de carne. Em vez disso, à sua direita na bela mesa de madeira de lei, sentava-se um oficial inglês cujo nome ele não se lembrava.

O homem discursava sobre algo que Hernandez mal ouvia.

— Perdão?

— Os nativos — repetiu o outro. — Não se pode confiar em nenhum deles. Eu gostaria de não precisar empregá-los, mas não há ingleses suficientes nas colônias.

— A desonestidade não é prerrogativa do Novo Mundo — replicou Hernandez, irritadiço. Então deu um sorrisinho, sua mente fixa num único pensamento. — Veja o caso de Thompson, por exemplo. Certamente não foi a melhor ideia contratar um escocês para transportar uma fortuna espanhola.

O rosto do homem se retorceu de desgosto.

— Lembro do caso. Uma lástima, de fato, embora eu não vá chorar por ouro espanhol perdido. De toda forma, Thompson deve ter se arrependido quando morreu na infâmia.

Hernandez parou com seu cálice de vinho no ar.

— O que disse?

— Foi uma morte ignóbil para um ex-capitão da Marinha — comentou o homem.

Hernandez olhou ao redor. Ninguém prestava atenção à conversa. Até onde ele sabia, a recente captura de Thompson era um segredo.

— Pois os espanhóis o pegaram? — perguntou num sussurro.

— Ah, não. — O oficial balançou a cabeça. — Isso foi anos atrás.

— Anos…?

— Os espanhóis ficaram furiosos; acharam que nós o tínhamos capturado para extrair a localização do tesouro. A verdade é que o homem tentou voltar para sua terra natal e acabou morto numa briga. Nem eles, nem nós conseguimos interrogá-lo no final.

A mente de Hernandez girou, alcançando a resposta enquanto o estômago afundava até os pés como uma âncora: era uma armadilha. Em vez de um punhado de espanhóis, aquela ilha estava prestes a ser assaltada por toda a frota da missão conjunta — incluindo Pratt, misteriosamente ausente naquela noite. Angelita dissera que a mensagem tinha vindo do alto escalão espanhol… através do marido. Seria possível que ele a tivesse enganado?

Então uma possibilidade ainda mais terrível lhe ocorreu: de que ela tivesse mentido propositadamente.

Mas o resultado era o mesmo. Hernandez tinha mandado Tomás e toda sua tripulação para uma emboscada. Estavam perdidos.

Não. Pelos demônios dos sete mares, ainda havia tempo para salvá-los!

Afastou a cadeira bruscamente, assustando toda a companhia, e saiu da sala sem justificar-se. Antes que pudesse abrir a porta no saguão, no entanto, uma mão agarrou seu braço. Ele se virou, atordoado como se tivesse sido chamado por um espírito do além.

Sam o olhava com raiva.

— Aonde pensa que está indo?

Hernandez balançou a cabeça.

— Não tenho tempo para explicar. Volte para dentro.

O rapaz firmou os pés e cruzou os braços.

— Brandon, conheço essa expressão. O que quer que for, esqueça disso. Não vale a pena. — Os olhos luziram com mágoa e determinação. Apontou um dedo para o resultado da magia de Angelita. — Já perdeu um olho com essa história, quer perder o pescoço também? Teve uma vida intrépida e agora pode aproveitá-la sem riscos. Não era com isso que sonhava?

Hernandez tirou apenas um momento para admirá-lo: o rosto belo, a boca fina, o corpo tão bem formado. Pensou que, com os grandes amores, um homem nunca se acostumava. Cada olhar era uma nova revelação.

— Só preciso fazer mais uma coisa — sussurrou com urgência, tomando o rosto de Sam entre as mãos. — Juro. Só mais uma. Então voltarei de vez.

Beijou-o rapidamente, escancarou a porta da mansão e foi correndo até a própria casa.

Em uma cidade longe dali, um homem servia-se de brandy. Tomou um gole e encarou sua esposa com o cenho franzido.

— Vamos, minha cara — disse ele. — Arrependimento não é do seu feitio. Sei que era um velho amigo, mas a pirataria já não tem lugar neste mundo. Tu mesma reconheceste a necessidade do ardil.

Angelita balançou a cabeça. Ele não entendia. Não era para ser assim. Hernandez devia ter avisado a tripulação e ficado em casa enquanto o duplo morria em seu lugar. Os negócios dela e de Ramírez prosseguiriam sem percalços, Pratt partiria do Caribe após realizar sua missão e Hernandez poderia finalmente aproveitar a vida que ela lhe havia garantido, parando de criar problemas para todos os lados.

Mas de alguma forma — se por intuição mágica ou conexão emocional, nem ela sabia — ela sentiu o instante em que ele descobriu a armadilha e partiu atrás do tesouro. Saberia que ela o havia traído — e jamais entenderia que fora para o seu próprio bem.

No entanto, o marido tinha razão: não era de seu feitio arrepender-se. E a única pessoa capaz de salvar Hernandez sempre fora ele mesmo.

No porto de Kingston, um navio inteiramente tripulado aguardava uma mensagem. Seu capitão andava de um lado a outro pelo convés, fazendo cálculos mentais. Tinham de ter certeza que os piratas haviam partido antes de zarpar. Mesmo com números maiores, não havia motivo para arriscar sua tripulação numa batalha em alto-mar. Era melhor permitir que os corsários chegassem à ilha e se dispersassem em busca do tesouro inexistente, então chegar com suas forças superiores e caçá-los como os ratos que eram.

Sua fonte dissera que Hernandez era obcecado com o tesouro do Lima. O homem não deixaria a ilha antes de revirá-la por completo. Haveria tempo.

E então o capitão William Pratt finalmente conseguiria sua vingança.

O rapaz voltou cambaleante para a sala de jantar. Estancou atrás da porta, ouvindo a conversa cochichada de seus convidados, o frisson da fofoca espalhando-se de boca em boca. Se Brandon não voltasse, aqueles homens — ou outros como eles — seriam a companhia que teria pelo resto de seus dias. Eles e talvez uma esposa. Eles e uma esposa em uma Inglaterra cinzenta. Mas Brandon voltaria. Tinha de voltar.

Nem que volte como Hernandez, pensou Sam. Contanto que volte.

Hernandez enfiou um chapéu de aba larga na cabeça, vestiu seu velho casaco de mar e pegou uma bolsinha tilintante debaixo de uma tábua solta no piso. Seguiu para a taverna usual. O velho estava sentado no canto com seu cachimbo, mas ele parou na porta e encarou o salão cheio de homens do mar.

Não era o momento para subterfúgios e sutilezas.

— Preciso de um barco que me leve para a Costa Rica agora — anunciou numa voz retumbante — e não me importa o preço.

As ofertas chegaram aos gritos, e ele tomou uma decisão rápida. Em tempo e valor recordes, encontrava-se no mar. As ondas quebravam contra a quilha do navio, os ventos rugiam ao redor da tripulação reunida às pressas e o capitão que aceitara o desafio o olhava com olhos estreitados como se tentasse desvendá-lo.

— Não, não sou ele — disse Hernandez acima dos estalos dos mastros e das enxárcias. — Sempre dizem que a semelhança é impressionante!

Tomara o controle do navio, sem objeção do capitão — o qual, se sobrevivesse à arriscada jornada noturna, poderia dar uma bela folga a seus marinheiros graças à bolsa que Hernandez lhe entregara. Não era ouro de Sam, mas sua parte dos butins após anos de trabalho duro e sangrento. Prometeu ao homem a mesma quantia se eles retornassem vivos.

Atrás do leme, a caminho de uma luta e um tesouro, o capitão Hernandez sentiu-se como si mesmo pela primeira vez em um bom tempo.

A ilha surgiu como a silhueta de um cadáver no horizonte escuro, uma mancha sólida entre céu e mar infinitos. À medida que se aproximavam, os morros cobertos de verde ganharam definição, subindo de praias desertas. Era menor do que ele se lembrava. O ponto mais sensato para atracar seria uma baía a leste, então Hernandez ordenou que fossem para oeste. Não queria ser avistado nem atacado por navios inimigos. Rosnou ordens aos homens para largar âncora a algumas milhas da costa e virou-se para o capitão.

— Espere por mim o quanto for necessário. Não deixe ninguém desembarcar. — Para acentuar a ordem, tirou mais uma joia do casaco e a lançou para o homem, que a pegou avidamente e assentiu.

Hernandez mandou descerem um bote e se pôs a remá-lo sozinho até a praia. Os braços já ardiam quando a ponta do barquinho de madeira encostou na areia pedregosa, mas ele saltou com as botas na água sem atentar para a dor. O silêncio reinava. Sua própria respiração se perdia entre o ir e vir da água e a agitação dos galhos na fileira de árvores que começava adiante. Hernandez avançou por entre a vegetação.

A tripulação teria montado acampamento na praia. Precisava achar Tomás e explicar a situação rapidamente. Alguém estaria de vigia, mas ele poderia se passar como o capitão; contanto que Tomás não estivesse logo ao lado, eles não teriam por que suspeitar de nada. Hernandez se movia depressa, pisando na vegetação suave. Tudo dependeria da cena que encontraria. Ele pensaria em algo quando chegasse a hora…

Parou de repente.

Ouviu uma voz.

Uma voz familiar.

Sua própria voz.

— Onde está, maldito? — gritava Tomás a alguém. — Mostra ou estouro teus miolos!

— Juro que não sei, capitão! — respondeu uma voz chorosa, que Hernandez reconheceu como a do contramestre. — Estávamos com os outros! Não achamos nada!

Hernandez avançou com cuidado entre as árvores. Sob o luar filtrado pelas copas verdejantes, seguiu até uma pequena clareira. Duas tochas cravadas no chão iluminavam a cena: o chão pontilhado de buracos, uma pá fincada ao lado de duas figuras. Tomás estava em pé, segurando sua espada diante de um homem ajoelhado, com as mãos unidas.

— Traidor! — rosnou Tomás. — Querias me enganar?

— Não, capitão, juro que…

Mas não teve tempo para completar, pois Tomás ergueu o braço da espada e bateu o cabo na cabeça do outro com tanta força que o fez cair inconsciente.

— Que diabos estás fazendo? — rugiu Hernandez, entrando na clareira.

Tomás virou-se bruscamente, arregalando os olhos como se o próprio demônio o tivesse vindo levar para o inferno.

Hernandez encarou o sósia. Parecia ensandecido. O cabelo estava desgrenhado, as roupas manchadas de sangue, os olhos injetados bruxuleando à chama das tochas.

— Tu! — sussurrou para Hernandez, congelado. — O que queres?

— O que estás fazendo? — Apontou para o rapaz desmaiado. — Por que não estais no acampamento?

— Eles encontraram o tesouro e estão escondendo — contou Tomás em voz baixa. — Todos eles, amotinados, traidores!

— Não há tesouro, homem! — exclamou Hernandez, aproximando-se com passos largos. — Escute, era uma armadilha! Pratt e sua frota estão a caminho, precisa zarpar agora mesmo!

Tomás o encarou por alguns segundos, como se tentasse absorver o sentido das palavras. Então seu olhar de espanto se transformou em algo mais astuto e afiado. Seus lábios se torceram em ironia.

— Uma armadilha — disse ele. — Ah, sim, eu vejo agora. Tu estavas com eles o tempo todo, não é? Era esse o plano?

— Não há droga de tesouro nenhum, ouças o que estou dizendo! Tomás…

Capitão Hernandez! — esbravejou o homem.

Hernandez ergueu uma sobrancelha.

— Esqueces de com quem estás falando.

— E tu esqueces que não és mais nada — replicou Tomás. Os dedos que seguravam a espada ao lado do corpo apertaram o cabo com mais força. Estavam a poucos passos um do outro. — Ninguém vai roubar meu tesouro.

Hernandez estava preparado quando o duplo ergueu o braço; saltou para o lado para desviar do golpe e sacou a própria espada, erguendo-a um segundo depois para defender o segundo golpe.

— Enlouqueceste! — rosnou Hernandez. — Quem achas que és?

— Sou o maior pirata do Caribe — afirmou Tomás — e não aceito ordens de um cão inglês!

A paciência de Hernandez se estilhaçou.

— Covarde amotinado, maldito seja o dia em que te escolhi para tomar meu lugar!

Mesmo com um só olho — e pensar que gastara um olho naquele ingrato! — era indiscutivelmente o melhor espadachim dos dois. Mesmo depois de meses de inatividade, os movimentos vinham com a facilidade da experiência. E tinha a vantagem de se mover no próprio corpo; Tomás ainda não tivera tempo para acostumar-se com a figura mais alta e robusta, tropeçando vez por outra, errando no cálculo dos movimentos. Investida, golpe, contragolpe — metal tinia contra metal na clareira escura, reluzindo em faixas de luar conforme os dois homens dançavam ao redor dos buracos na terra. Com uma finta, um giro e uma estocada, Hernandez subjugou o falso capitão, derrubando-o de modo que a espada do outro saiu voando. Ele assomou sobre a figura prostrada do homem.

— Agora escuta bem — começou —, pois tua liberdade chegou ao fim. Tua vida é minha, e vais obedecer ao que eu di…

Mas Tomás não era mais o tímido amotinado que se encolhera na cabine de um navio. Derrotado no duelo, enfiou a mão no interior do casaco e sacou uma pistola com uma ligeireza surpreendente. Hernandez viu o movimento sabendo como aquilo terminaria, e o instinto respondeu para garantir sua sobrevivência: sem pensar, pisou no braço do rival e defendeu-se.

O tiro de Tomás ressoou na floresta, perfurando uma árvore e assustando os pássaros, enquanto a lâmina de Hernandez transpassava o coração do duplo.

O homem encarou o próprio peito, piscando devagar. Então se curvou para frente, olhando-o com olhos arregalados enquanto um filete de sangue escorria pela boca. Quando Hernandez arrancou a espada do seu peito, tombou para o lado e não se moveu mais.

Silêncio.

Hernandez encarou o corpo diante de si — seu próprio corpo, recriado à perfeição. Eu me matei, pensou, perplexo como não lembrava já ter se sentido na vida.

Morto. Seria possível? O capitão Hernandez! Tomás, como pôde fazer isso conosco?, pensou ele, desamparado. Estávamos indo tão bem. De que adiantara todo o seu esforço, o feitiço, as informações clandestinas? Apenas uma solução momentânea, e agora ele voltara à estaca zero. Um desespero pouco característico o tomou conforme uma revelação importante, uma compreensão terrível, uma lição que todos devem aprender cedo ou tarde nesta vida impiedosa surgiu em sua mente: nenhuma magia é capaz de evitar uma decisão difícil.

Morto e vivo, Hernandez ruminou esse fato enquanto se observava sangrar sobre o musgo.

Então uma voz interrompeu seus devaneios filosóficos.

— Isso explica muita coisa.

Hernandez se virou. Parado na margem da clareira, com a pistola apontada diretamente para seu coração, estava William Pratt. O homem inclinou a cabeça em direção ao corpo de Tomás.

— Quem era? Seu irmão? Um primo?

— Nem um nem outro — respondeu Hernandez —, e você jamais saberá a verdade.

— Sei o suficiente — retrucou Pratt. — Sei que estava transmitindo informações para o Wordsworth há meses.

Hernandez ergueu uma sobrancelha.

— Como?

— A morte a bordo do Drake — revelou Pratt, aproximando-se com o braço da pistola firme. — Eu já suspeitava de um espião; deixei vazar a informação de propósito. Estava esperando no porto para ver se alguém apareceria para retardar a partida, e qual não foi minha surpresa ao ver o administrador de meu caro amigo subir a bordo e assassinar um homem.

— Mas não fez nada a esse respeito — percebeu Hernandez — porque não era seu interesse me capturar. Queria Hernandez. — Ele deu um olhar de esguelha para Tomás e soltou uma gargalhada. — Toda essa armação e mal sabia que podia ter me prendido ali mesmo!

Pratt franziu o cenho.

— Como assim?

— Não entendeu ainda, homem? Eu sou o capitão Hernandez.

A confusão estava estampada no rosto do outro, e Hernandez soltou mais uma gargalhada.

— Não se esforce em demasia. Há mais coisas entre o céu e a terra, como se diz.

— Não importa — retrucou Pratt. — Se é Hernandez, será meu prazer matá-lo pessoalmente.

Hernandez fez uma mesura.

— Será meu prazer impedi-lo. Só uma pergunta antes do confronto final. O tesouro. Era verdade?

Pratt abriu um sorriso malicioso.

— Apenas uma ilusão.

E não o são todos os sonhos humanos?, pensou Hernandez. O destino e a sorte, que guiam a vida dos homens de fortuna, tinham conspirado para levá-lo até aquele lugar. Ele via agora que tinha de ser assim.

A reflexão cruzou sua mente em um segundo enquanto o corpo já mergulhava para o lado. Pratt disparou, e a bala passou zunindo no espaço ocupado por Hernandez um momento antes, enterrando-se no tronco grosso de uma árvore.

Hernandez sacou e atirou com a própria pistola, pegando Pratt de raspão. O homem arquejou e vacilou por um segundo, suficiente para Hernandez alcançar o corpo de Tomás. Ergueu o morto como um escudo diante de si, sentindo os impactos conforme Pratt recuperava o equilíbrio e o cravejava de balas.

Hernandez recuou com o cadáver para trás de um arbusto enquanto Pratt se escondia atrás de uma árvore. Caiu o silêncio entre os dois, e, na quietude, Hernandez finalmente atentou para o que se passava no resto da ilha. À distância, soavam gritos de surpresa e os sons inconfundíveis de tiros de canhão. Sua tripulação estava sendo caçada.

Sentiu o antigo ódio se reacender no coração conforme nuvens de fumaça se erguiam no céu arroxeado. Como ousavam massacrá-los? Todos homens excelentes, íntegros, as mais límpidas joias do Caribe!

Aquilo também significava que logo alguém mais chegaria ali — e que provavelmente não seriam os homens de Hernandez.

— Renda-se e terá direito a um julgamento — gritou Pratt. — Tem minha palavra. Sou um homem honrado, não um pirata!

— Render-se é prática de náufragos — zombou Hernandez. — E mentir, de covardes! No segundo que eu me mostrar, você me matará. Não chegou tão longe para prender o capitão Hernandez. Não é disso que são feitas as reputações.

Enquanto falava, movia-se o mais silenciosamente possível pelo perímetro da clareira, arrastando o corpo de Tomás e perscrutando a escuridão iluminada pelos lampejos das tochas. Parou perto de uma e ergueu a mão ensanguentada do morto acima de um arbusto. Uma bala passou zunindo por ela, e Hernandez se agachou de novo.

Agora sabia onde estava Pratt.

Encostou o corpo de Tomás numa árvore e trocou sua arma, sem munição, pela do morto. Então calculou a distância até a tocha.

Os gritos na floresta soavam mais próximos.

— Basta — murmurou Hernandez, deixando Tomás e saltando em direção à tocha ao mesmo tempo que atirava, mirando a localização de Pratt.

Pratt ergueu a arma para retribuir, mas, antes que conseguisse acertar, Hernandez tirou a tocha de seu suporte e a lançou aos arbustos onde o rival se escondia. A tocha voou como uma estrela cadente em direção a Pratt, então Hernandez ouviu um grito, e depois o homem se revelou ao erguer-se para fugir das chamas.

Hernandez mirou. Dessa vez, não errou.

Pratt desabou com uma bala no peito. Hernandez foi até ele, vendo-o gorgolejar e apertar o lugar onde levara o tiro, logo acima do coração.

— Já fui melhor — comentou Hernandez. Pratt voltou olhos cheios de fúria em sua direção, tentando erguer a pistola com a outra mão. Hernandez a chutou para longe. — Adoraria continuar a conversa, mas estou com pressa. — Então terminou o serviço.

Não teve tempo de se vangloriar. As vozes estavam cada vez mais próximas, e gritos de alerta tinham se erguido com o último tiro dele. Hernandez correu até o cadáver de Tomás, posicionando-o na clareira de modo a sugerir que os dois homens se mataram mutuamente. Então se escondeu e esperou.

Meia dúzia de soldados irromperam entre as árvores momentos depois, absorvendo a cena sangrenta com exclamações de surpresa e ódio. Um deles deu ordens de que os corpos fossem levados, então os dois mortos foram erguidos e sumiram entre a vegetação.

Ele ficou sozinho.

Esqueça disso. A voz de Sam preencheu sua mente. O barco que o trouxera ainda devia estar aguardando; poderia alcançá-lo e escapar, voltando para Kingston antes que o encontrassem ali. Pratt estava morto e não poderia mais atrapalhar sua vida como Brandon Bishop. Sua tripulação, a essas horas, estaria sendo morta homem a homem, e o Wordsworth já devia ter sido tomado pelos ingleses, mesmo sem Pratt para comandá-los. O tesouro era só uma lenda. Angelita o tinha traído. Não restava nada para o capitão Hernandez.

Ele gostava da vida na cidade, das ruas que o lembravam da juventude, dos dias previsíveis e do conforto. Gostava até de seu trabalho quase honesto. E gostava, especialmente, da companhia. Fizera uma promessa a Sam.

Se voltasse, receberia com ele a notícia de que o capitão Hernandez havia sido finalmente derrotado — e então o resto de sua vida começaria.

Morales ficou se perguntando o que o capitão tinha ido fazer na floresta no meio da noite. Do outro lado da barricada de botes improvisada pelos piratas, sob a aurora incipiente, soldados arrastavam dois corpos para a praia, o de seu próprio capitão e o do capitão Hernandez. A visão causou fúria entre os ingleses e desânimo entre os piratas restantes. Mesmo que nos últimos tempos o capitão viesse agindo um pouco estranho, tão diferente do corsário frio e controlado que Morales conhecera, ainda era um grande homem. Uma lenda. O último pirata do Caribe.

Os inimigos — uma mistura de ingleses e espanhóis, pelo que Morales conseguiu ouvir — reuniram os corpos dos piratas mortos na batalha e jogaram o capitão Hernandez junto com eles, forçando-os a observar seus colegas queimarem. As chamas subiram como a própria manhã que expulsava a escuridão do céu. Um dos oficiais ingleses, na falta de seu capitão, adiantou-se na praia e gritou para os piratas:

— Rendam-se e terão uma morte misericordiosa!

— Jamais! — gritou Morales, erguendo-se, disposto a levar algum cão inglês consigo para o inferno. Levou um tiro no braço, mas viu um soldado cair. Com gritos de fúria de ambos os lados, desencadeou-se a batalha final.

Pouco depois, os últimos corsários vivos foram enfileirados, com as mãos amarradas, para execução. Morales, com sangue e sujeira escorrendo pelo rosto, cuspiu na direção dos soldados.

— Coragem, rapazes — encorajou. — Pelo capitão.

— Pelo capitão! — as vozes ecoaram.

— Quietos! — gritou um dos soldados.

Não houve rufar de tambores. A praia estava quase vazia, com grande parte da tripulação morta e os soldados retornando a seu navio com a missão cumprida. Alguns condenados fecharam os olhos, outros encararam os algozes destemidamente. Morales piscou contra o suor e decidiu assistir até o fim. Foi assim que o avistou além dos soldados, aproximando-se pelas costas dos inimigos: uma forma familiar delineada contra o sol nascente. Estaria delirando?

Mas a dúvida durou poucos segundos, pois então os últimos remanescentes da tripulação do Wordsworth observaram assombrados enquanto seu capitão, retornado dos mortos, executava os carrascos.

— Ânimo, rapazes — disse Hernandez, único e inconfundível. — O trabalho está apenas começando.

A foto quadrada mostra uma mulher branca, de cabelos castanhos claros, lisos e compridos. Ela está sorrindo, usando um óculos de armação fina e uma blusa preta de manga comprida. Ao fundo, é possível ver uma janela que dá para uma área arborizada.

Isa Prospero nasceu em Piracicaba e mora em São Paulo, onde traduz, revisa e acumula livros. Publicou histórias de ficção especulativa nas revistas Trasgo, Mafagafo, Superinteressante e Strange Horizons, assim como nas coletâneas Duendes (Draco), Crônicas da Unifenda (Plutão) e nos três volumes da antologia Mitografias. Para conhecer seus trabalhos, visite o site: www.isaprospero.com.

Daniel Lameira é editor, com passagens em algumas das maiores casas editoriais do país.

A foto quadrada mostra um homem branco, de cabelos castanhos claros e meio bagunçados, além de um bigode da mesma cor. Ele está sorrindo de leve, usa um óculos de armação redonda e marrom e uma camiseta preta. Está sentado em uma cadeira, fazendo um sinal do rock (a mão fechada só com o indicador e o mindinho esticados) com a mão direita. Ao fundo, é possível ver uma armário com várias gavetinhas.
A foto quadrada mostra uma ilustração em preto e branco de uma mulher de pele clara e cabelos escuros cortados curtos. Ela está sorrindo de leve e está com a mão na lateral do rosto, como se apoiando o rosto na mão. Dá para ver vários brincos em uma das orelhas.

Linguista e ilustradora, encontrou na arte a forma preferida de transpor para o papel as coisas doidas que lhe passam pela cabeça, mas isso não quer dizer que não se arrisque com as palavras de vez em quando. Tem alguns quadrinhos disponíveis em coletâneas e online, e atualmente desenha a webcomic Caóticas Neutras. Carioca, passa a maior parte do tempo em Cork, na Irlanda.