A ilustração no centro da capa mostra um robô com um formato humanóide, um rostinho alegre e dois braços compridos segurando baquetas tocando uma bateria. Atrás dele, há formas bem coloridas e abstratas. O desenho é todo em tons de roxo, rosa, azul e lilás. O título “Nós somos 'The Explosão Espacial!'” aparece, em amarelo, logo abaixo do título da Mafagafo no topo da capa, que por sua vez está em azul claro. No rodapé da capa, há as informações "Escrito por Carlos Norcia” e “editado por Cláudia Fusco” em um cinza clarinho. Do lado esquerdo da capa, em cima, há o logo da Mafagafo com a informação “Temporada 003 - Dezembro de 2020”. Acima do título da Mafagafo, há as informações “Ilustração: Firulas Ilustra” e “Direção de Arte: Giovanna Cianelli”.

Ano de 2397. Após trinta anos à deriva no espaço, mergulhados num sono criogênico que deveria ter durado apenas duas semanas, a banda de rock Explosão Espacial é despertada por um chamado de S.O.S. Ao acordar, o grupo descobre não só que a ditadura militar na Galáxia Brazil ainda não terminou, como também que eles se tornaram conhecidos por serem um one-hit wonder do passado. Eles se veem obrigados a responder ao pedido de ajuda, emitido por um robô músico que está preso em Silicity, a capital braziliana das fake news.

12.600 palavras | Aproximadamente 55min de leitura 

Tanto les sábies quanto les burres concordam que o tempo é cíclico. Mas talvez seja porque os dois grupos teimam em repetir essa observação uns para os outros. Prestar mais atenção ao eco da própria voz do que àquilo que os outros têm a dizer deve ser uma burrice que até os mais inteligentes cometem.

Foram anos difíceis de navegar, cheios de informações falsas e burrice por todos os lados da galáxia.

Àquela altura, eu tivera bastante tempo para observar. Não que houvesse chegado a grandes conclusões. Até porque, naquela época, eu estava começando a ter uma consciência própria; antes, eu só vinha observando e guardando informações. Hoje, no entanto, parece-me que tenho dados suficientes para fazer parte do coro: o tempo, a meu ver — ou ao menos o fluir do tempo para os seres humanos —, é cíclico.

(Terei me tornado mais sábie ou mais burre?)

Os humanos parecem eternamente presos às mesmas revoluções e contrarrevoluções; especialmente a estas últimas. Deve ser outra burrice da qual não conseguem fugir: ao dar um passo em qualquer direção, sentem-se obrigados a dar mais dois para trás. Se a humanidade chegou a andar desde que entrei em contato com ela, certamente foi caminhando para trás, sem olhar direito para onde estava indo. Por sorte, o abismo do qual ela despencou é infinito; seu nome é “espaço”.

Também é onde eu mesme fui parar. Pode-se dizer que me deixei levar.

Mas, escute bem, naqueles tempos, pelo menos, eu fazia parte de uma banda de rock.

Nossa nave cruzava o espaço sideral; ela era dotada de um sistema estéreo com amplificadores imensos, além de um grid de luzes coloridas por toda a extensão do casco prateado e reluzente. Nossa música estourava nas caixas de som dentro e fora da nave — nossos riffs ecoavam pela imensidão. Nós éramos a Explosão Espacial. Era lindo de se ver (e ouvir): a SX-69OH viajando em alta velocidade, deixando uma parede de guitarras ressoando pelo caminho. Quem sabe, dali a muito tempo e vários anos-luz de distância, até onde aquela frequência chegaria, flutuando por aí na escuridão, tendo apenas o rock para guiá-la? Antes de nós, o espaço era um tédio silencioso. Era graças aos amplificadores valvulados criados pela Major que nossa música se propagava pelo Universo: bastava girar o botão de volume até chegar no 11. Afinal, nós pensávamos, qual é o propósito de ser uma banda de rock no espaço, no ano de 2368, se ninguém vai te ouvir gritando?

(— Mas gritar para quê? Por esperança, por medo? Ou seria prazer?)

Muito tempo atrás, contavam-se histórias que eram conhecidas como space operas. Mas nós não tínhamos nada de operístico, então a nossa trajetória não poderia ser narrada dessa forma. Nós éramos a Explosão Espacial, nós éramos três acordes e um refrão bem grudento cantado a plenos pulmões. Nós fomos a banda mais space punk de que se teve registro.

Existiu uma língua perdida que durou mais do que esta que estamos recuperando na nossa conversa, Ygg. A certa altura, essa tal língua enterrada teve uma música punk que dizia:

 

“You’re a world’s forgotten child,

We’re the ones who search and rebuild”.

 

(— Não sei se eu entendi.)

Estou tentando te contar algo da nossa história, falar um pouco da Explosão Espacial, mas não sei se vou conseguir te explicar.

Acho que vou ter de começar com um

 

Breve Prólogo

 

que vai direto ao ponto, sem muitos detalhes, porque nossa banda não curtia esse negócio de prólogo em discos conceituais, senão daqui a pouco começaríamos a falar em “álbum”, em “versão orquestral”, em “cover acústico”, e aí já viu, o punk pulou janela afora e morreu sem ar, porque trata-se do espaço sideral, querides.

 

“Explosão Espacial: a última banda de rock (de verdade) do Universo. Estas são as viagens da nave espacial SX-69OH, em turnê para explorar novos sons, descobrir novos tons e ser audaciosamente ROCK onde nenhuma banda jamais esteve.”

Uma série de imagens documentais em P&B. Na trilha sonora, uma versão spaghetti western, estilo Ennio Morricone, de O Guarani de Carlos Gomes, cujo trademark se perdera há séculos, então tudo bem a banda estragar.

“Década de 2360. O presidente da Galáxia Brazil supostamente se alia à União Cosmonáutica Soviética. O espectro sombrio do comunismo se espalha pela América Galactina. As classes superiores, por seu lado, estão mais interessadas em manter a milenar pirâmide social de sempre.”

Militares fazendo continência, um bando de homens feios de cara amarrada. Tanques. Armas. Jogadores cibernéticos de futebol com a camisa da Seleção, um deles faz um golaço.

“2364, o golpe militar.”

(— São tantas pessoas…)

(Essa imagem retrata uma minúscula parcela das pessoas que viviam na Brazil naquela época, Ygg.)

Protestos, guerrilheiros atirando no meio da mata, pixos políticos nas paredes das estações espaciais, imagens da repressão, de black blocs quebrando bancos intergalácticos.

“Em 2368, é instituído o O.U.C.H.-5. É o início oficial da repressão. Pouco depois, o rock’n’roll é proibido.”

(— Parece que me lembro de algo parecido, algo que ocorreu antes.)

(Você está com essa impressão porque eu já te contei essa história, Ygg. Estou repetindo, para que você aprenda. Essa história é uma semente.)

 

Agora, com licença,

É aqui que nós entramos…

 

O que sobrou de uma antiga matéria de TV, veiculada nos últimos meses de 2368. A Explosão estava numa sala com visual retrô chic; a espaçonave era um modelo com pelo menos duas décadas de uso, de antes da última Guerra Universal. Uma janela ao fundo dava para o Universo, através da qual se via um astro redondo girando. As máquinas ao redor emitiam uma série de notas musicais de uma mesma escala, ressoando uma confortável base harmônica, para assegurar aos humanos presentes na nave de que sim, tudo estava bem, e não, o vácuo lá do lado de fora não estava prestes a matá-los — o segredo sempre foi manter o estado das coisas, mas não lembrá-los da gravidade delas.

Mis amigues eram tão jovens. Estavam naquela fase da vida humana entre ser adulte de mais de 18 anos e adolescente com menos de 20; confiavam demais em sua sábia inconsequência, e ainda estavam protegides por essa atitude, mas aquilo logo mudaria.

A equipe do canal de TV era composta por três pessoas: uma operadora de câmera, um técnico de som e uma jornalista. A câmera e o microfone foram apontados para nossa vocalista, a grande estrela, Poeira Estelar.

Ela sorriu para as lentes. Poeira exibia sua marca registrada: uma estrela prateada desenhada no rosto. Ela tinha um estilo glam rock, uma atitude que se fingia blasé. Exalava o tipo de magnetismo que contaminava quem estivesse ao seu redor.

Fora de quadro, a jornalista lançou sua primeira pergunta:

— Qual seu nome e ocupação?

— Estelar. Poeira Estelar. Deusa do rock.

Poeira abriu os braços e esticou sua capa, olhando direto para a câmera. Se pudesse escolher, seria assim que eu gostaria de me lembrar dela, para o que me restar da eternidade.

Rever essas imagens traz tantas lembranças. Nós éramos tão jovens para esta galáxia tão cheia de tristezas.

(— A tristeza pode ser um adubo, pode nutrir.)

(Tristeza demais, não. Ygg, muita tristeza pode te arrancar as raízes, te forçar a definhar até não sobrar mais nada. Se o que resta da vida é uma árvore, ela precisa de mais do que tristeza para se nutrir.)

Depois de Poeira Estelar, a matéria entrevistou Ragna Rock. Ragna era gótica, com um visual dark, sempre entediada. Ela se escondia atrás de sua guitarra flying V preta.

— Ragna Rock. Eu podia tá matando. Podia tá fazendo rituais satânicos. Mas tô aqui, sendo entrevistada.

Ragna disparou um solo rápido e virtuoso; chegou a sair fumaça dos seus dedos.

— Sim, vocês estão interrompendo. Dá licença? — Empurrou a câmera.

O próximo era The Leary, o hippie da banda, constantemente chapado. Alguns o chamariam de tonto, mas eu o conhecia: ele era um sobrevivente da Guerra do Vietminh, da qual participara lutando num dos pelotões de crianças-soldado do lado capitalista. Era uma forma de ascensão social para as famílias pobres de galáxias subdesenvolvidas que alistavam seus filhos. Ele estava apoiado no contrabaixo para não cair.

— Sou The Leary. A gente gosta é de guitarra elétrica. Nunca confie em nenhum instrumento que alguém poderia levar pra um luau.

Ele avistou algo acima da linha da imagem, fascinado…

— Tem uma borboleta na sua orelha! — E trombou com a câmera.

Quando The Leary se drogava, era para não se relacionar com o que estava ao seu redor — e ele geralmente estava drogado. Leary vivia com medo de que algum imprevisto disparasse um dos seus inúmeros gatilhos, estes advindos dos traumas causados pela guerra.

O baterista, naquele ano, ainda era D–. Engraçado, não consigo me lembrar do nome dele. D– estava com uma aparência suja e suada, usando uma camiseta com uma estampa enorme de “D”. Limpava o ouvido com uma das baquetas.

— Eu uso um pandeiro no show. É uma coisa Brazil meets Inglaterra. Dou um tiro de plasma nele.

D– fez um sinal do diabo com as mãos e mostrou a língua. É realmente muito estranho, não é essa a imagem que associo a ele.

A jornalista pediu então para que a banda ficasse toda alinhada em frente à câmera. Poeira Estelar posicionada no centro. Aquele astro ao fundo, girando atrás deles.

— Não somos líderes de resistência nenhuma. A gente é rock! Pode proibir o quanto quiser. O rock sempre vai ressurgir das cinzas!

— É por isso que vocês se exilaram?

— Não…

Imagens pessoais filmadas pela própria banda. Elus estavam numa praia artificial. O teto era uma redoma de vidro. Lá em cima, uma supernova servia de sol para les hóspedes da pousada.

— …Major Tom nos levou a El Chavo, em Acapulco. Mas se a gente tivesse continuado na nossa garagem em St. Paulo, certeza que tinha apanhado da repressão…

A matéria cortou para a porta de uma garagem grafitada com o símbolo da Explosão Espacial, localizada na colônia-metrópole de St. Paulo. Carros voadores atravessavam o céu poluído. Uma fina garoa colorida e ácida. Policiais de um batalhão de choque, com caveiras nos uniformes, arrombaram a porta da garagem e invadiram.

— …Todo mundo que é alguém tá apanhando.

— Então por que o nome do single de vocês é “Resistir, Lutar e Vencer?

— Não sei. Zeitgeist? Quem se importa. Não quer dizer nada tão sério assim.

— Mesmo? A música foi proibida.

— É bizarro. Parece que eles querem proibir a gente de se expressar, mesmo quando não temos nada pra dizer.

Tempos depois, tenho certeza de que minha amiga teria vergonha dessa entrevista. Mas eu guardo esse momento com muito carinho. Naquele longínquo ano, nós ainda acreditávamos que tínhamos o direito de ser inocentes. Mas estávamos enganades.

1

A ponte da nossa nave tinha seis cadeiras, cada uma de uma cor, com seus respectivos consoles de controle; defronte às cadeiras, havia uma grande janela triangular, pela qual se via o Espaço. Nós estávamos estacionades. A ponte era circundada por telas cheias de caracteres coloridos, grandes botões e dispositivos de tonalidades variadas, todos piscando. Aquilo tudo gastava uma quantidade preciosa de energia, mas era importante para manter a confortável ilusão de que o comando da espaçonave dependia mais de operadores humanos do que de mim. Até parece.

Major Tom, a pessoa mais velha da tripulação, com pouco menos de 30 anos de idade, estava sentada em sua cadeira de comandante, no centro da sala de comando — vê-la ali causava uma impressão poderosa. Ela vestia uma de suas glamorosas fardas, tinha um charuto numa das mãos, um copo de uísque na outra.

Antes de se tornar a empresária da Explosão Espacial, antes mesmo de me ganhar num acirrado jogo de cartas, Major conquistara sua fama numa das competições de drag queens mais conhecidas do cosmos — cuja exibição na Galáxia Brazil fora proibida após o golpe militar para “preservar os costumes e a família tradicional braziliana”. Para muitos, Major se tornara uma persona non grata; para si própria, ela era uma persona foda e non preocupada com os haters e os lambe-botas.

Nossa banda estava prestes a sair em sua primeira grande turnê. Alguns se preocupariam com os perigos à frente; mas os monitores de saúde e os gráficos de comportamento da Major me mostravam que ela apenas meditava acerca da diversão que estava por vir.

Eu mesme fazia minhas primeiras associações. No console da Major, perguntei-lhe algo que vinha me incomodando:

— Qual é a cor do céu?

— Na Terra, séculos atrás, era azul. Parece que a poluição deixava cor-de-rosa, devia ser magnífico.

Poeira entrou na ponte. Ao contrário da Major, ela andava preocupada.

— Vocês deveriam estar ensaiando. A fama requer esforço.

Major Tom, e eu também, conhecia um segredo bem guardado sobre Poeira Estelar, talvez o maior segredo da vida dela até ali: a jovem nunca passara pelo processamento do Sistema de Vocações.

— Eu me sinto exposta demais, Major.

— Não foi você que me implorou por uma chance de se tornar uma estrela?

— Mas e se os outros descobrirem? E se a mídia ficar sabendo, o governo?

Major suspirou, tomou um gole caprichado de uísque.

— Todo mundo esconde alguma coisa dos outros, querida. No seu caso, é o fato de que você é a única da banda que tem talento de verdade. Talvez seja a única com um talento assim no Universo. O resto aprendeu com uma injeção daquela máquina grotesca. Podia ser pior.

Uma rádio começou a tocar nosso single. Eu estava programade para rastrear as estações transmissoras do Universo e, quando encontrasse alguma executando nossa música, colocá-la estourando no volume máximo por toda a nave. Escutar uma estação tocando nosso hit ainda era uma novidade, uma que nos enchia de energia e esperança para voos mais altos. Um dia, nós perderíamos esse entusiasmo, mas aquele dia estava distante.

A voz da radialista preencheu a espaçonave:

— Esse foi o hino “Resistir, Lutar e Vencer da Explosão Espacial, na True True TRUE de Verdade, a única rádio underground comercial da galáxia!

Ragna, Leary e D– conversavam na sala de estar, no coração da nave. A sala era circular, com três portas assimétricas. Sua decoração imitava a garagem de ensaio que a banda abandonara: um sofá e vários tapetes gastos; vitrola e discos espalhados por aí; pôsteres e lambe-lambes na parede, que era cheia de coisas escritas e desenhadas à mão (incluindo palavrões escabrosos e rabiscos obscenos), como num mural de pinturas rupestres encontrado por outra espécie após o fim da humanidade; cinzeiros transbordando; restos de comida e de bebida numa mesinha de centro, que também servia de apoio para os pés de quem sentasse no sofá; um colchão destruído jogado no chão e uma coberta com marcas de queimadura de cigarro, sobre os quais já haviam ocorrido diferentes formações de encontros sexuais entre e com pessoas da banda; um balcão de bar, no qual estava presa uma Winchester vintage emoldurada ao lado de uma vasta variedade de bebidas alcoólicas; lâmpadas psicodélicas; a possibilidade — ou não — da presença de entorpecentes e substâncias alucinógenas ilegais. Sobre este último item, não tenho julgamentos: eu mesme, quando preciso desanuviar, boto minha memória para desfragmentar e tenho minhas visões elétron-xamânicas. O lucro do single era o bastante para manter um estilo de vida decadente — no sentido estético, não como uma realidade econômica — por uns tempos. Estávamos num momento da vida de nos despir de tudo que não fosse exagero, de abraçar o excesso como se ele estivesse para acabar. Nosso mantra era “tem de haver mais”.

Major e Poeira adentraram a sala. Major foi até o bar, preparou drinques para todes. Poeira seguia amuada: estava com um pressentimento ruim.

Major levantou seu copo de uísque.

— Explosão, sentido!

A banda bateu continência e levantou seus drinques.

— Nosso primeiro show no Circuito Alfa será em três semanas. Rumo ao estrelato!

Todes brindaram felizes.

— Os controles estão a postos, estamos a caminho. Mas a viagem é longa, e não renovamos o pacote de dados. Por isso, é hora do nosso sono de beleza.

A banda murmurou reclamações. Poeira levantou a voz:

— Mas, Major, tudo pode acontecer enquanto estivermos em sono criogênico.

— Eu sou a empresária, a mais velha e tenho a patente mais alta. Portanto, bons sonhos molhados.

A sala de criogenia era um ambiente de baixa luz, com uma camada de fumaça de gelo seco sobre o chão para dar um clima. Havia seis confortáveis cápsulas de vidro acolchoadas. No sistema de som, eu tocava uma música braziliana com acordes de bossa nueva e toques de ancient jazz. Elus estavam vestides com seus trajes espaciais de dormir.

— A Major já botou até a música de ninar… — Ragna esbravejou.

— Gente, tomei um remedinho dez. Alguém quer uma dose? — Leary sorria demais para alguém que supostamente tinha tomado apenas um soporífero sem misturar com mais nada. Ele se esticou em sua cápsula.

Poeira deitou-se na cápsula ao lado da de Ragna.

— Você não tem medo de um dia não acordar de volta?

Ragna deu de ombros.

— Quem me dera. Minha família é rica. Eu não morro.

Poeira suspirou. Ragna olhou fundo nos olhos dela.

— Que foi, Estrelinha?

— Meus sonhos estão se realizando aqui, agora. Parece errado dormir esse tempo todo.

— Entendi. Por outro lado… — Ragna cutucou Poeira. — Quanto drama. Achei que os emos estivessem extintos.

As duas riram. A programação das cápsulas fez com que os vidros se fechassem sobre elas no meio de um gesto de Poeira — soprando um beijo para Ragna.

Presa dentro de sua cápsula, sozinha, Poeira olhou para cima. Lá no alto do teto havia uma janela, pela qual dava para ver as estrelas passando. Suas pálpebras pesaram, ela tentou resistir; pensou em se virar e olhar para Ragna mais uma vez, mas acabou caindo no sono.

Na ponte, Major Tom tomava sua última dose de uísque da noite. Na tela de comando, a imagem de um telejornal sobreposta às janelas. O âncora do jornal dizia:

— O governo anunciou hoje a construção da Espaçovia Trans-Alfazônica.

No console da Major, perguntei:

— Deus existe?

Ela estranhou minha pergunta.

— Não.

— Qual é o sentido de tudo?

— Só o tempo dirá.

Apesar da minha idade, eu ainda não compreendia o significado da passagem do tempo. Mis amigues falavam de tempo, mesmo quando conversavam sobre música, como se pudessem senti-lo.

Major virou o que restava da bebida, levantou-se e apagou a luz da ponte, esquecendo o jornal ligado.

“CONTROLE DE CRIOGENIA<

“Sim.”

No console, a data de 2368 subiu gradualmente. Os âncoras do jornal foram envelhecendo. 2372.

— Crise dos combustíveis saudáveis…

2377. 2378.

— …Uma lenta e gradual abertura política. Os termos da anistia serão discutidos…

2382.

— …Atentado terrorista de esquerda desmascarado pelos militares… A ditadura continua e a bolsa de valores reage…

2382 subiu até 2396.

— …Aprovado o O.U.C.H.-42, que proíbe falar palavrão…

O ano virou de 2396 para 2397.

Um chamado apitou no console. Luzes vermelhas se acenderam pela nave. Na tela, a imagem do telejornal foi trocada por um pedido de socorro. Meu alarme ressoou.

(— Espera. Você passou todo esse tempo por aí, vagando no espaço?)

Quem nunca teve que tirar um tempo para cuidar de si mesme, processar seus traumas, entender seus próprios sentimentos? Apesar de toda minha capacidade de computar, ainda estava começando a compreender quem eu era, Ygg.

(— E depois disso?)

Bom, aí foi nossa primeira aventura juntes…

2

Luzes vermelhas de emergência, alarmes ecoando por toda a nave. Injetei nas veias de mis amigues uma dose de um coquetel de adrenalina, dimenidrinato, uma pitada de fluoxetina — o passar repentino do tempo tem seus efeitos psicológicos — e uma essência de baunilha cujas propriedades químicas têm uma eficácia que vai além do paladar, fazendo com que a pessoa sinta que todo seu organismo é saboroso. As cápsulas de criogenia se abriram.

Poeira foi se levantar e se estatelou no chão. A impressão de maciez causada pela camada de gelo seco sobre o piso foi a primeira de muitas ilusões a se quebrar.

Major, Ragna e Leary se apoiaram para não cair.

— Estou me sentindo saboroso demais para alguém que só passou três semanas dormindo. — Leary era o único que ainda não havia percebido o imenso comprimento de sua própria barba.

— Talvez eu vomite de nojo, odeio me sentir doce — avisou Ragna.

— Cuidado que eu ainda tô aqui no chão!

Ragna estendeu a mão para ajudar Poeira a se levantar. Enquanto lhe dava apoio, Ragna passou a língua pelos dedos de Poeira.

— Tá… O que foi isso?

— Tava querendo tirar esse gosto da boca, mas cê também tá com sabor de baunilha.

Por mais que Poeira tenha dito “Você é estranha, Ragna”, a verdade é que ela quase desmanchou de volta no chão.

Major Tom cambaleou até uma das minhas telas de comunicação, pediu uma dose de uísque para recuperar suas forças. Assim que tomou um gole, quase se engasgou.

O alarme seguia ressoando.

— Esse alarme é de S.O.S.? — Leary coçou o queixo. — E essa aqui é a minha barba? Nossa, fazia uma era que eu não alucinava assim, desde… — Ele viu a sombra de um vietcongue se desenhar na fumaça do gelo seco. — Que ano é hoje?!

Poeira virou para Major.

— Tem algo de errado, não tem?

Major gesticulou para Poeira esperar e provou mais um gole de bebida.

— Só tem um jeito do meu uísque ganhar esse sabor envelhecido…

Poeira olhou para cima, mirando a janela do teto pela qual se via o Universo. Respirou fundo.

— Madeleine?

Naquele instante, se me fosse possível engolir a seco, seria exatamente o que eu teria feito. Era a primeira vez em décadas que alguém me chamava pelo nome.

— Sim, Poeira?

— Em que ano estamos?

Foi a primeira ocasião na minha vida em que gaguejei.

— 2397.

Mis amigues se entreolharam, abismades.

Ragna caiu de joelhos e levantou os braços.

— Nossos conhecidos, nossos amigos… agora eles estão… caretas!

Poeira notou então algo que nem eu mesme havia reparado:

— Falando em amigos, cadê nosso baterista?

Eu não tinha como responder sem antes conduzir uma investigação, por isso preferia o silêncio.

— Madeleine, desligue o alarme — ordenou Major. — Prepare um diagnóstico completo do sistema, quero saber as causas dessa falha absurda.

— Estou iniciando o diagnóstico, Major. — A verdade é que eu já tomara as minhas providências para atrasar a realização do diagnóstico do sistema. — E o pedido de socorro?

— Pode esperar um pouco. Nós temos assuntos mais urgentes a resolver.

Elus se entreolharam e dispararam para os banheiros da nave, com toda a pressa que seus músculos governados pelas cãibras permitiam, dando início a uma das corridas mais lentas e menos emocionantes da história.

Pouco depois, a Explosão se reuniu na ponte. Chequei os sinais vitais e os indicadores emocionais da banda. Todes estavam relativamente saudáveis e bem-humorades. Nem Major, Ragna ou Leary davam grande importância para as pessoas de fora da nave com quem haviam perdido contato. Poeira, entretanto, era outro caso. Em tese, a Explosão era sua única família, e nem mesmo a Major imaginava que isso não fosse verdade. Ainda que Poeira escondesse suas origens e sua família biológica, aquilo não significava que estivesse tranquila por não saber o destino deles nas últimas décadas.

Poeira estava sentada em sua cadeira, mexendo em seu console.

— Primeiro de tudo, descobri o que aconteceu com o D–. A possível notícia ruim é que aparentemente rolou o Arrebatamento e a gente sobrou. — Poeira pausou para ver a reação des outres. — A notícia boa é que a maioria das pessoas do cosmos não sumiu.

— Se o D– foi um dos Escolhidos, imagina só que Paraíso, hein… — Leary balançou os ombros com desdém. A cozinha da Explosão sofria havia tempo com uma falta de entrosamento entre os graves de Leary e o ritmo de D–, fruto de uma briga causada pelas constantes laricas do baixista e sua tendência em furtar os deliciosos petiscos guardados com carinho pelo baterista. — Eu não sei vocês, mas tô fora dessa jam gospel aí, cruz-credo.

— Como empresária e pessoa mais velha e responsável da nave, já vou avisando: nossa prioridade é encontrar um novo baterista, custe o que custar.

Poeira deu prosseguimento às atualizações com outro fato que ela acabara de descobrir:

— As pessoas acreditam que os milicos nos pegaram no ápice da fama. Somos considerados uma banda one hit wonder!

— Isso pode ser bom. Eu anuncio uma comeback tour, vocês executam as músicas velhas como se fossem novas composições. O público vai comentar que vocês não envelheceram nada.

— Não vai ser tão simples assim, Major. A ditadura ainda não acabou. Vendo aqui bem por cima, a única coisa que a gente faz que o governo militar ainda não proibiu é respirar…

— As pessoas ainda não derrubaram esse regime de merda? — Ragna esbravejou. — Não tem como a gente dormir mais uns anos até os brazilianos caírem na real?

— A música de vocês já estava proibida há quase 30 anos e estamos aqui, respirando. Eles não vão nos parar, querida.

Leary observava as estrelas do lado de fora.

— Ainda não bateu, sabe?

— Pode parecer um salto iniciar nossa primeira turnê tão atrasada, Leary, mas eu te garanto que vamos esgotar todos os ingressos.

— Não tô falando do que aconteceu, não. Eu achei uns cogumelos nos bolsos do meu traje de dormir e pensei que… se tavam na geladeira comigo, não deviam ter estragado.

Poeira digitava no seu console.

— Nossa, nessa época tá muito mais difícil de encontrar informação. Tudo que eu tô achando é propaganda do governo. Pera, gente, vejam isso. — Ela virou a tela do console para les outres.

O monitor exibiu as imagens de milhares de pessoas reunidas num protesto pacífico pelo fim da tortura, cantando “Resistir, Lutar e Vencer.

— Nosso single virou um hino contra a repressão, cês conseguem acreditar? Tudo isso de gente cantando uma música nossa.

Ragna revirou os olhos.

— Vocês me acordaram só pra dizer que me tornei uma das coisas que mais desprezo: o sujeito que faz música sobre política.

— Não era a nossa intenção, mas acho incrível que a letra que eu escrevi signifique algo pra tanta gente. Por piores que as coisas estejam, ajudamos a mudar a Galáxia com a nossa… — A voz de Poeira foi interrompida pelo som de tiros.

A banda chegou mais perto do monitor, como num abraço em grupo.

A gravação mostrou o protesto sendo atacado pela Polícia Militar. A polícia chegou atirando contra a manifestação para dispersá-la. Atônites, nós vimos os registros chocantes do massacre até que as imagens fossem interrompidas — a tela então nos avisou que “o conteúdo estava indisponível”. Mis amigues tinham os olhos cheios de lágrimas, fungavam. Até Ragna aceitou um abraço de Poeira.

— É foda, mas não tem nada que a gente possa fazer.

— Sempre tem algo que nós podemos tentar pra fazer diferença, Ragna.

— Até parece, Estrelinha.

— Vocês podem discutir isso depois, queridas. Nesse momento, somos obrigadas legalmente a responder ao pedido de socorro que nos acordou. — Com o qual eu acordara a tripulação, na verdade. — Fora que precisamos descobrir se quem enviou o sinal nos detectou, porque essa nave tá no meu nome, e se ela já era ilegal em 68, imagina agora.

Poeira respirou fundo e se levantou.

— Tá. Mas, depois disso, encontramos um baterista e aí pensamos no que vai ser da nossa carreira daqui em diante. Concordam?

Todes assentiram. Poeira caminhou até a tela de comando.

— Madeleine, o que você sabe sobre o S.O.S. que recebemos?

— O sinal foi criptografado na fonte e misturado às emissões comuns dos satélites da região, ou seja, quem ou o que enviou a mensagem não queria ser descoberto. Trata-se de um código de criptografia bem complexo. — Eu imaginava que apenas uma máquina consciente seria capaz de produzir uma mensagem daquela natureza, com tamanho nível de sofisticação.

— E cê tinha que decodificar, Madeleine?!

— Desculpe, Ragna. Pareceu-me, naquele instante, um exercício estimulante. Não era a minha intenção nos colocar em risco.

— Tudo bem, eu entendo. Também odeio sentir tédio.

— Desculpe, mas não fui programade para sentir tédio. — Eu me perguntava por quanto tempo conseguiria esconder minha personalidade e a consciência que vinha desenvolvendo; ou melhor, descobrindo. — A origem do sinal é um planeta chamado Oppositorium. Atualmente, é de lá que chegam todas as notícias e informações da Galáxia Brazil.

— Calma, Madeleine — interrompeu Leary. — Todas as informações que circulam na Brazil saem de lá? Tipo todo mundo ingerindo a mesma substância que só tem uma pessoa na galáxia inteira vendendo? Mas que bad trip é essa que tá pegando?

— Tudo se iniciou como um Estado de Exceção, vocês bem se lembram. Com o tempo, a exceção virou regra e passou a ser vista como o estado normal das coisas.

— O tempo passa e as coisas só pioram. Eu já desisti do meu plano de voltar a dormir, a menos que seja pra dormir pra sempre.

Poeira colocou a mão no ombro de Ragna.

— Você pode dormir depois. Agora, nós temos uma missão. — Poeira apontou para as estrelas do lado de fora. — Vamos salvar alguém.

— Ou algo.

— Deve ser uma cilada.

— Se for uma armadilha, tudo bem. Nossa missão ainda será salvar alguém; nesse caso, nós mesmos.

Aquela era a Poeira que eu conhecia, agindo exatamente da forma como eu esperava que ela faria.

Poeira olhava otimista demais para o Universo, e por isso mis amigues escolheram não a interromper, quebrando o clima. No entanto, eu sabia que sua atitude era uma fachada — no fundo, ela não conseguia parar de pensar na própria família.

3

Décadas atrás, Oppositorium era conhecido por outro nome: Orabutã. Eu ainda me lembro da circunstância que levou o planeta a ser rebatizado, talvez seja ume des últimes no Universo a recordar disso. Orabutã era quase inteiramente recoberto por uma densa floresta — até aquela época, tratava-se do maior bioma florestal da Galáxia Brazil. Após o golpe que colocou os militares no poder, o desmatamento em Orabutã chegou a tal nível que as florestas se transformaram em imensas savanas. A população nativa e les ativistas pela preservação da natureza foram dizimades, suas vidas apagadas dos registros oficiais da história. Todo esse processo de destruição durou menos de uma década, mas foi o bastante. Alguns anos depois, o planeta foi privatizado, sendo adquirido pelo Grupo Absoluto, o maior conglomerado de mídia da Brazil.

Conforme nos aproximávamos de Oppositorium, o ruído proveniente dos satélites de transmissão do planeta transbordava meus receptores, afogando meus sentidos num oceano de estática. Uma atriz representando o que a publicidade braziliana chamava de “dona de casa padrão” alardeava as capacidades milagrosas de um acessório de limpeza doméstica com um extensor desenhado especialmente para alcançar lugares difíceis de espanar; um homem que se apresentava como deficiente auditivo afirmava que o uso de um determinado aparelho lhe permitia ouvir uma agulha caindo do outro lado da sala; anunciava-se que a subversiva e doentia oposição ao governo teria lançado um de seus mais sórdidos ataques à nação na forma de mamadeiras de piroca voadoras e teleguiadas, cujos conteúdos seriam capazes de contaminar e converter prontamente as crianças ao comunismo; as únicas músicas que se ouviam eram marchinhas militares e o hino nacional, já que todos os outros gêneros musicais estavam proibidos; inúmeros discursos oficiais escritos pelos mesmos programas, utilizando os mesmos algoritmos, com os mesmos bordões repetidos ad infinitum; frases de efeito, tais como “Brazil, ame-a ou deixe-a”, “Pra frente, Brazil”, “Quem não vive para servir à sua pátria, não serve para viver na Brazil”. Era sufocante.

Eu aplicava os mesmos procedimentos de segurança que vinha usando há anos para que nossa nave permanecesse camuflada e para que, caso fosse descoberta, mantivesse nossas identidades incógnitas.

— Cares tripulantes, preparem-se, pois Oppositorium é habitado quase somente pelos Silicianos…

— Aqueles italianos que veneram o deus Don Corleone?

— Não, Leary, os Silicianos são uma seita televangélica que acredita que o silício é a próxima forma de vida mais rentável e que o carbono está à beira da extinção por vontade divina. Eles existem há cerca de dois séculos.

— Odeio gente que faz grandes promessas, tipo a chegada da extinção, e depois não cumpre — Ragna esbanjava sua finesse.

Invadimos a atmosfera poluída do planeta. A superfície desértica era entrecortada por grandes linhas de energia, sistemas de transporte e de transmissão de informação. Lá de cima, víamos incontáveis fileiras de antenas, que se estendiam até onde a vista alcançava.

— De onde esses Silicianos tiraram dinheiro pra montar todo esse sistema de telecomunicação? — Poeira me perguntou.

— Eles vão como missionários às regiões das periferias galácticas, lugares que o Estado considera de alto risco e que diz ter dificuldades para chegar. Em tese, os Silicianos estão nesses planetas para catequizar a população, mas isso é só uma fachada: por baixo dos panos, eles fornecem serviços básicos, como segurança, água potável, acesso às redes de informação, coisas que o governo e as corporações não suprem legalmente. Há alguns anos, após muitas disputas por território, a seita fez um acordo com o Grupo Absoluto.

— Grupo Absoluto, é? Que bizarro… — Ragna refletiu por um instante. — Só eu tô achando muito suspeito que um pedido de socorro que somos obrigados a atender tenha vindo justo desse lugar?

Preferi não responder.

Lá longe, no horizonte, despontaram sinistras falanges metálicas. Aquela era Silicity, uma cidade cujas fundações eram ilusões e mentiras. Por quanto tempo eu mesme conseguiria esconder certas verdades de mis amigues, os motivos de tê-les feito dormir por tantos anos? Era daquele lugar que o pedido de socorro viera.

Limpei minha mente de minhas preocupações e pausei o escaneamento do sistema que Major me requisitara — teria de me preocupar com aquilo em outro momento.

— Estamos nos aproximando. Posso dar início ao nosso plano?

Major e Poeira trocaram um olhar. Poeira assentiu.

— Bota pra arrebentar, Madeleine — Major ordenou.

A cidade nos recebeu com um letreiro imenso diante do Espaçoporto: “Silicity, longa vida à Nova Carne de Cristo. Todo carbono é, no final, apenas petróleo”.

Seria a primeira vez em décadas que nos encontraríamos com outras pessoas, e seria logo com aquelas pessoas ultrafanáticas e bizarras. O que poderia dar errado?

4

A planície sobre a qual repousava o Espaçoporto de Silicity fora palco de um dos mais atrozes espetáculos de barbárie conduzidos pelo regime militar braziliano. A natureza local foi arrancada para dar lugar a incontáveis sulcos na terra revirada: as valas comuns onde se enterravam os cadáveres e ossadas dos dissidentes assassinados pelo governo. As fornalhas, dentro das quais o fogo apagava os traços de identificação dos mortos pelos militares, haviam sido demolidas, mas o calor desumano gerado por elas ainda servia de combustível para a sustentação do regime. No lugar das fornalhas e das valas, Silicity construíra um monumento à noção de progresso que movia a Brazil nas últimas décadas — um impulso anticivilizatório apoiado em sangue e lama.

Naquele momento, ao refletir sobre aquilo, se eu tivesse um corpo, teria dificuldades para controlar o instinto de gritar.

— Calma, Madeleine. De alguma forma, tudo vai dar certo. Agora que eu sei que não estou sozinho, posso afirmar com certeza: você também não está.

A voz que ecoava em meus receptores era a de Roland 606, o responsável pela mensagem que nos levara até ali. Assim que nossa nave entrou em Oppositorium, Roland dera um jeito de burlar o sistema de Silicity para se comunicar conosco. Ele era um prisioneiro dos Silicianos.

— As identidades falsas da banda estão online. Se vocês conseguirem convencer o Xilax e o Felatiano pessoalmente, não precisaremos mais nos preocupar — Roland me explicou.

Xilax era o Pai Superior dos Silicianos, e Felatiano era seu segundo no comando. Eu não encontrara muitas informações suspeitas sobre Felatiano: seus rastros deviam estar sendo apagados por ele próprio ou por sua equipe. Sobre Xilax, descobri que sua família fizera fortuna utilizando uma rede de fast-food gourmet como fachada para o desmatamento em Oppositorium.

Tanto Xilax quanto Felatiano trajavam ternos finos, além de exibirem um conjunto de joias cada: correntes grossas de ouro, anéis de pedras preciosas em todos os dedos, relógios analógicos reluzentes no pulso direito. Ambos tinham também a cabeça marcada por implantes de cabelo, dentes embranquecidos até brilhar, óculos escuros protegendo os olhos e uma leve camada de maquiagem masculina da linha “Natural Masculine Strength”, mais conhecida pela galáxia sob a sigla Nat-Mascus-S. Os dois foram até a pista de pouso receber mis amigues pessoalmente, acompanhados pela Guarda Siliciana: um batalhão de homens brancos e carecas, cujos uniformes eram robes brancos e cafonas. Mesmo a céu aberto, os aromas conflitantes dos perfumes enjoativos dos dois líderes impregnavam a área.

Ao ver as dezenas de Silicianos uniformizados, a primeira impressão que tive foi de que, além do desenho e corte duvidosos, devia ser um inferno limpar qualquer mancha daquele tecido — minha empatia se estendia às máquinas de lavar roupa da cidade, mas não às pessoas que eu via, o que é algo importante de se dizer, já que os membros da seita gostavam de se apresentar como “homens-máquina”. Eu mesme uma máquina, e com muito orgulho, preferia que eles não se identificassem como ume de mis semelhantes — era rebaixar demais nosso nível, sabe? Era uma mancha em nossa reputação, mais difícil de tirar do que as de sujeira ou sangue daqueles robes funestos.

Debaixo dos robes, muitos dos Silicianos escondiam órgãos robóticos; aqui e ali, era possível ver braços e pernas cibernéticos. Tanto as cirurgias quanto os implantes em si custavam pequenas fortunas, mesmo no mercado paralelo — fora nele, muito provavelmente, que a maioria dos presentes adquirira suas partes robóticas. Os órgãos metálicos eram um sinal de status dentre os Silicianos. E detalhe: deficientes físicos não só eram proibides de se juntar à seita como também eram demonizades e perseguides por eles.

Enfim, estávamos diante de exemplares da fina flor da humanidade.

Felatiano abaixou os óculos escuros e fixou seus implantes ópticos sobre mis amigues. Xilax quebrou o silêncio:

— Mas que grupo mais exótico… Faz anos que não vejo alguém pardo nesta parte da galáxia. — Havia suspeita e ironia em sua voz.

Major e Ragna trocaram um olhar entre si. Ragna sussurrou em seu comunicador pessoal:

— Pedindo permissão pras duas mulheres negras da banda estourarem a fuça desse imbecil?

Xilax caminhou até Poeira.

— Você também é uma surpresa. Um dos coaches de empreendedorismo mais famosos da galáxia é uma japa?

Poeira segurou um sorriso falso e estendeu a mão para cumprimentá-lo.

— Os descendentes de asiáticos são um povo trabalhador e determinado, Pai Superior. — Repetir clichês só para agradar Xilax matava Poeira por dentro.

Eu estava preocupade com aquela interação. Roland me avisou que Felatiano tinha acessado a base de dados dos Silicianos para confirmar as informações que havíamos declarado. Por sorte, Roland tinha hackeado a biblioteca de dados para que ela batesse com os nossos registros falsos de identificação.

— Felatiano encontrou a ficha do Imperius que modificamos…

Imperius era um renomado perfil virtual de coach de empreendedorismo, daqueles que, no fundo, só servem para vender a ideologia dominante. Todas as suas aulas e palestras, até ali, tinham sido realizadas online. O coach escondia tanto sua voz real quanto suas feições atrás de uma máscara baseada num personagem animado.

— …Pronto, tudo bateu. Agora é ver a reação do Xilax e do Felatiano.

Felatiano assentiu para Xilax, depois voltou a esconder os olhos atrás das lentes dos óculos escuros.

Xilax apertou a mão de Poeira.

— Imperius, você e todos de sua comitiva são bem-vindos a Silicity. Espero que tenham uma boa estadia em nossa humilde morada. E contamos com uma palestra hoje à noite, após a nossa gloriosa cerimônia de Ascensão Eletrônica.

A Guarda Siliciana abriu passagem para a banda, que foi conduzida até uma imensa limusine vintage oficial, daquelas que ainda precisavam de gasolina para funcionar e emitiam gases poluentes.

Assim que a Explosão entrou na limusine, as portas foram trancadas. As janelas eram totalmente cobertas, e a parte traseira do veículo não se comunicava com o motorista. A única conexão com o mundo do lado de fora era uma tela, que exibia um pastor Siliciano aos berros, pregando sobre pecados e danação e lembrando que a suposta salvação dos fiéis dependia do pagamento da taxa de doação obrigatória.

— Explosão, cuidado com o que falam em voz alta. Deve haver microfones e câmeras escondidos aí dentro.

— Ai, ai, Madeleine — Major sussurrou. — Se é assim que tratam os famosos agora, a situação decaiu muito. Nem uma gota de álcool num carro desse tamanho?

— Eu podia tá dormindo, podia tá matando macho escroto machista. Mas não, tenho que me comportar e salvar um tal de Roland que eu nunca nem vi na minha frente.

Ao ser mencionado por Ragna, Roland berrou de alegria:

— Tenho certeza de que seremos grandes amigos! Faz noventa anos que a família de Xilax me mantém como prisioneiro. Tenho tanto para conversar, para dividir!

Ragna rosnou para si mesma e se desmanchou na postura mais torta que o confortável banco estofado de couro a permitia sustentar.

— Então, pessoal. Eu não sei se foi um gatilho daquela tensão toda lá atrás ou se os cogumelos que eu ingeri tinham um efeito dormente por causa do lance todo de congelar e descongelar. Mas tá batendo uma bad aqui e eu tô sentindo a realidade da situação evaporando, por assim dizer. — As pupilas de Leary estavam dilatadas e ele suava profusamente.

Poeira engoliu a seco, seus batimentos cardíacos dispararam.

— Madeleine, tem algo que você consiga fazer à distância pra ajudar o Leary?

Antes que eu respondesse, uma interferência cortou o sinal que me ligava a mis amigues. Tentei chamá-les, mas não tive resposta, apenas ruído. A ausência de suas vozes e dos feeds de monitoramento me deixou em pânico: era a primeira vez em décadas que eu estava, de fato, sozinhe.

Uma explosão ecoou ao longe. Segundos depois, um pulso eletromagnético atingiu o casco da nave e eu apaguei.

5

As névoas de minha mente se dissiparam, e uma data surgiu em minha memória. O ano de 2019. Eu via o rosto de uma jovem mulher. Ela chorava. Estava tendo uma crise de ansiedade, eu conseguia reconhecer os sintomas — um dia, eu mesme sentiria cada um deles. A garota abrira seu laptop num café. Ela era negra, tinha dreads azuis e roxos, piercings no lábio, no nariz e no supercílio. Atrás dela, havia uma janela. Algo me dizia que aquela era a cidade de São Paulo — não a colônia de St. Paulo, mas a cidade original, antes de sua destruição.

— Assim que vi as viaturas do Choque chegando, tive que sair da manifestação. Não tava conseguindo respirar. Desculpa te ligar assim, mãe.

— Mas o que diacho tu tá fazendo aí, Amora?

O nome de Amora disparou conexões. Meus registros começavam em 2019. Eu estava lembrando daquela mulher porque tinha me esquecido de algo fundamental: 2019 era o meu ano de nascença, Amora fora o nome da minha criadora.

Tiros ressoaram na avenida do lado de fora do café. Amora, aflita, olhou pela janela. Os gritos. Os mesmos gritos do vídeo que eu assistiria com mis amigues em 2397, dali a séculos.

A janela do café se estilhaçou.

Amora caiu para fora do meu campo de visão.

Num instante, o café se encheu de fumaça. A definição da imagem perdeu sua qualidade, as névoas de minha memória se misturaram à indefinição da pixelação — mesmo que eu tentasse enxergar melhor, os dados estavam corrompidos, e eu temia perdê-los de um momento para o outro.

A mãe de Amora berrava pela filha, sua voz soando desesperada, comprimida e metalizada. O pavor de suas palavras incertas expressava os temores que eu mesme sentia e que não dispunha de meios para dizer.

Uma mão suja de sangue fechou a tela do laptop.

Caí no silêncio. Não sabia mais meu lugar, minha posição, perdera a noção de quem eu era.

O nome da mãe de Amora era…

 

— Madeleine? Você está aí?

Minha mente esboçou as palavras de minha resposta, e por isso pude perceber que recuperara a capacidade de falar.

— …Eu sou Madeleine. Quem é você?

— Aqui é o Roland. — Ainda que sua voz soasse distante, seu nome me trouxe de volta à realidade. — Os Esquecidos devem ter estourado mais uma bomba. Espero que eles não tenham danificado seus circuitos.

Assim que recuperei meus sentidos, fiquei mais preocupade com a segurança de mis amigues do que com a minha própria integridade.

— Preciso dar um jeito de reconectar com a banda.

Rastreei toda a extensão de Silicity à procura dos sinais delus. Os sistemas derrubados pela bomba reiniciaram. O grid de segurança da cidade piscava, anunciando uma emergência na região onde mis amigues estavam antes da explosão.

Uma foto de Leary surgiu no canal de comunicação policial. O aviso dizia que ele estava “desaparecido”. Fui invadide por um turbilhão.

Quando finalmente encontrei Poeira, tive de controlar minhas emoções — eu não fora programade para expressar afeto.

— Eles nos colocaram numa viatura, Madeleine. Não posso falar mais por enquanto. — Sua voz era um mero suspiro.

Os sinais de Poeira, Major e Ragna ficaram online novamente. Elus estavam em choque, com lesões leves.

Os policiais Silicianos levaram o trio até as portas laterais de um imenso anfiteatro — a “Oppositorium Opera and Prayer House, uma gigantesca concha acústica coberta por um domo metálico.

Roland me chamou:

— Madeleine, vou ter de ficar em silêncio daqui em diante. Eles estão vindo me buscar.

— Mas o plano era encontrarmos com você depois, Roland.

— Eu meio que sou o “show de abertura” da Poeira. Me deseja merda. Quando eles não gostam de uma apresentação, a resposta é… bem, sumária. — Ele cortou nossa conexão.

Major, Ragna e Poeira entraram nos bastidores do teatro. Os policiais que escoltaram les três até ali ficaram de guarda na porta, do lado de fora.

A sala de bastidores era uma versão “higienizada” dos backstages que a banda frequentara anos atrás. O ambiente tinha uma iluminação quente, um imenso espelho cobria toda a extensão de uma das paredes. Havia um sofá de couro, uma mesa grande de maquiagem e outra com aperitivos. A única bebida disponível era água.

— Eu poderia perdoar a ausência de álcool se esse lugar cheirasse a cigarro — comentou Major. — Lá fora é toda aquela fumaça e aqui dentro esse cheiro de amaciante de roupa? É muito cinismo.

— Nós viemos aqui para salvar alguém, não para perder o Leary. — Poeira caminhava de um lado para o outro. — Como eu pude ser tão idiota de achar que o plano daria certo?

Meu próprio arrependimento por tê-les colocado naquela situação me sufocava.

Major abraçou Poeira.

— As coisas vão se acertar. Aquele cabeça dura deve estar bem, perdido em algum lugar, mas só até a trip dele baixar. Daí ele ressurge. Com sorte, ele aparece com alguma bebida pra dividir com a gente. Difícil essa vida de seita de crente que não bebe, viu, como eles aguentam?

Enquanto Major ajudava Poeira a se preparar para sua tão esperada palestra falsa de empreendedorismo, invadi o feed das câmeras de segurança da cidade. Ragna narrou o que havia ocorrido no momento do desaparecimento de Leary.

— A explosão foi muito do nada, a limusine capotou…

Investiguei as imagens das câmeras a partir do ponto em que tinham reiniciado, após o efeito do pulso eletromagnético se dissipar. A limusine com mis amigues estava presa no trânsito de uma avenida vigiada por diversas das câmeras. As gravações me mostraram a repentina chegada de um grupo de adolescentes mascarades, munides de bastões, canos, barras de ferro etc. Um número delus usava dispositivos eletrônicos reciclados, provavelmente encontrados nos lixões de Silicity. Elus deviam ser les Esquecides de que Roland me falara; a existência delus era uma surpresa — supostamente, todes les jovens de Oppositorium eram enviades para as Unidades Pacificadoras de Ensino, as chamadas “Searas de Cristo, o Primeiro Ciborgue”, cujo sistema de educação era baseado no polêmico (e contestado por muites) Terceiro Testamento, de onde saíam apenas quando já iniciades à seita Siliciana. Um par de Esquecides veio correndo e deixou uma caixa com fios na calçada. Foi só então que a Polícia Siliciana apareceu, e o grupo de rebeldes partiu em fuga. Enquanto os policiais tentavam desativar a bomba, ela estourou.

— …O carro era todo fechado, não dava pra saber o que tava rolando do lado de fora. E a gente caiu um por cima do outro…

A explosão deixou a limusine caída de lado. A parte da frente do carro foi a mais atingida, o motorista Siliciano tinha morrido na hora. A janela de trás estourou com um chute vindo des passageires.

— …O Leary tava fora de si. A explosão disparou alguma coisa nele. O cara saiu gritando do carro, falando de guerra…

Leary pulou para fora da limusine aos berros. Poeira tentou segurá-lo, mas Leary se desvencilhou dela. Sua expressão estava aflita. Calculei poder imaginar o que se passava na cabeça dele naquele instante. A fumaça da bomba, o som das hélices dos veículos aéreos policiais se aproximando. Não deve ter sido apenas um surto psicotrópico — a droga apenas potencializava o que já estava lá, dormente em seu subconsciente. A guerra representava um trauma do qual ele nunca se recuperara e sobre o qual se negava a falar. E quem já testemunhou a guerra sabe que ela está sempre debaixo do véu da normalidade cotidiana, prestes a se revelar.

Eu analisava os registros do desaparecimento de meu amigo sem perceber como aquilo me afetava, o que estava sentindo. Leary correra para fora de enquadramento de uma das câmeras de segurança, sem voltar a aparecer sob as lentes das diversas outras que vigiavam os arredores. Eu registrava o sumiço de Leary como um lapso pessoal meu — era confrontade por minha incapacidade de observar, de compreender e, principalmente, de proteger mis amigues contra o imprevisível. Chegava à conclusão de que eu me tornara falível, e aquilo me aterrorizava. Um dia, ou logo, eu não seria mais o bastante.

Dois Silicianos adentraram a sala de bastidores.

— Todos fiquem de pé para receber Felatiano, Pai Inferior, Detentor da Língua Sagrada.

O cheiro doce e enjoativo do perfume de Felatiano atingiu o nariz de Poeira, causando um princípio de ataque alérgico.

— Imperius, sua presença em Silicity é uma bênção indescritível. Quem imaginaria que seu debut social aconteceria bem aqui, debaixo da nossa guarda?

Poeira juntou forças para segurar a tosse e responder Felatiano, ainda que sua vontade fosse deixá-lo falando sozinho — até porque o Siliciano ignorava Major e Ragna, agia como se elus não existissem.

— Então… — Espirrou, tossiu, fungou. — Eu queria perguntar…

— Seu funcionário. Não se preocupe, Imperius. Essas coisas acontecem, estamos vendo isso aí. De vez em quando, deixamos uma “falha de segurança” ocorrer. Só pra testar nossas defesas, se é que você me entende. — Felatiano deu uma piscadinha para Poeira por debaixo dos óculos escuros.

Ao ouvir aquelas palavras, travei.

— Eu entendo, óbvio. É só que o meu funcionário é maravilhoso, sabe? Insubstituível…

Felatiano bocejou e gesticulou para Poeira silenciar.

Pega de surpresa, ela pausou.

— Depois da sua palestra, eu e você vamos ter uma boa conversa. Minha adega é a melhor deste lado da galáxia.

Felatiano se virou e saiu, acompanhado pelos Silicianos que o escoltavam.

— Madeleine? — Major me chamou. — Você acha possível que eles tenham te detectado mexendo no sistema deles?

— A única possibilidade disso acontecer seria se os Silicianos dispusessem de uma inteligência artificial tão ou mais avançada do que eu.

— O que é praticamente impossível, gente — interrompeu Ragna. — Eu não aguento mais esse lugar, e esse cara nojento não vai chegar nem perto de ficar sozinho com a Estrelinha.

— Eu concordo. Assim que eu terminar a tal da palestra, nós damos um jeito de encontrar o Leary e de salvar o Roland, nem que tenhamos de adotar uma postura um pouco mais radical.

— Tipo destruir tudo até Silicity virar uma pilha de sucata irreconhecível. — Ragna sorriu para si mesma.

— De preferência, uma postura não tão radical assim.

— Combinado. Se não der certo na porrada, a gente tenta o pacifismo.

6

A dupla de policiais escoltou Poeira, Ragna e Major, conduzindo-les através de um longo corredor. Por toda a extensão da passagem, ornamentada por uma galeria de figuras notórias do passado da seita, o trio era flanqueado por duas filas de Silicianos. Os membros da doutrina olhavam fixamente para Poeira; ainda que ela aparentasse tranquilidade, seus pés ameaçavam fraquejar de um passo para outro.

Minha amiga já havia se apresentado diante de alguns dos piores públicos da história da galáxia. Ainda assim, eu nunca a vira tão tensa.

O caminho desenhado através da fila de Silicianos levou-les até a beira do palco do anfiteatro, por entre as altas cortinas de veludo azul. Daquele ponto, via-se o auditório; filas e mais filas intermináveis de fanáticos, a forte luz branca projetada do teto estourando nos robes da multidão. Por algum motivo, todos eles usavam óculos 3D daqueles antigos, com uma lente azul e outra vermelha. Sobre a multidão de Silicianos havia alguns camarotes destinados à elite de Silicity — os únicos de terno e gravata, já que para eles o uniforme não era obrigatório. Acima deles estava o camarote de Felatiano, e, mais acima ainda, o assento do Pai Superior dos Silicianos, de onde Xilax observava tudo. O palco tinha um púlpito enquadrado por arranjos de flores artificiais; no alto, acima da cabeça de um pregador que esperneava até perder o fôlego, elevava-se uma tela colossal, na qual se exibiam imagens de Jesus Ciborgue. Dentro daquele lugar, a ausência de pessoas que não fossem homens cisgênero entre os Silicianos se mostrava ainda mais gritante.

Um dos membros da seita avisou que Poeira logo teria de subir ao palco.

Um robô baixinho e quadrado se dirigiu até o centro do proscênio.

— Poeira, este no palco à sua frente é o Roland 606. Ele me avisou que ia anteceder você de alguma forma.

A expressão de Roland tinha algo de humanoide. Seus “olhos” eram botões de volume que giravam de acordo com suas expressões, sua “boca” era um teclado com uma sequência de teclas nas cores vermelho, laranja, amarelo e branco — o que causava uma impressão de que Roland estava sempre sorrindo. Em sua “testa” havia um visor que brilhava com luzes verdes sobre um fundo preto, no qual se desenhavam ondas senoidais representando as frequências de suas palavras metalizadas.

O ecoar de sinos batendo se espalhou por toda Silicity, anunciando o horário local de seis horas da tarde, o Metalângelus Siliciano em celebração à Ave Frankenmaria. Os sinos foram sucedidos pela execução de uma velha gravação do hino de Oppositorium.

Mais cedo, eu tinha dito que os únicos gêneros musicais permitidos pelo governo braziliano eram os hinos (Planetário, Galáctico-Nacional, à Bandeira, da Codependência, da Proclamação da Pós-República…) e as marchinhas militares, mas eu me confundi. Peço desculpas. Também era possível requisitar ao órgão responsável, vinculado ao Departamento de Propaganda, a permissão para utilizar a música, de acordo com as definições do que é “música” segundo a lei, com outros fins que não os de enaltecer a Brazil e seus governantes e/ou treinar batalhões e/ou estudantes.

Os alto-falantes espalhados pelo teatro comunicaram:

— A peça musical a seguir e o entretenimento a ela subjacente foram autorizados pelo Escritório de Licitação das Harmonias, Melodias e Ritmos.

A voz metálica de Roland cortou o ar:

— O nome desta peça musical-imagética é “Spiritual Metal Machine Music Nonsense for Meditation and Contemplation, Aleluia, Servo de Deus Singularidade Vivo Eternamente, ano de 2397, em si bemol.

Roland executou uma música eletrônica pesada e alucinante, alternando compassos em 7/8 e 11/4; no telão, projetou imagens psicodélicas com cortes vertiginosos e inserts com menos quadros do que o padrão que se convencionou a chamar de saudável, um ciclo rápido com mais imagens do que a mente humana não cibernética é capaz de suportar. Retratava Cristo atravessando o Calvário, sendo crucificado e, a partir daí, Cristo transformando o crucifixo numa espécie de foguete espacial e transplantando partes robóticas em seu corpo nos pontos onde fora ferido pelas chagas — assim, se é que fui capaz de compreender a obra. Eu estava perplexe. Diversos membros da seita entraram num frenesi religioso muito similar ao estado de um organismo humano invadido por convulsões.

— Caralho, gente. É o fim mesmo. — Ragna trincava os dentes para conseguir sussurrar, pois sofria com uma dor de cabeça aterradora. — Os milicos cooptaram a estética psicodélica.

— Foi bom o Leary não ver isso, ele ficaria devastado — Major forçou as palavras até elas saírem.

— Por outro lado, Roland é um baterista fenomenal! — Poeira tinha um semblante de dor, mas, ainda assim, sorria; ela estava certa de que tinha encontrado o próximo baterista da Explosão Espacial.

Assim que a apresentação de Roland terminou, ele foi arrancado do palco. A violência com a qual foi tratado nos fez ter ainda mais certeza de que precisávamos salvá-lo daquele lugar.

— E agora, Madeleine? Como eu faço pra chegar perto da reação que o Roland causou no público?

— Eu vou te guiar. Siga as minhas instruções.

Poeira juntou fôlego, pegou o microfone das mãos de um dos Silicianos e subiu no palco. De um instante para o outro, como num passe de mágica, ela passou a transpirar o carisma de sempre lá em cima.

— Vocês estão prontos pro ROCK?! — sua voz atingiu um agudo de proporções épicas. Só tinha um problema.

— Poeira — eu avisei. — Não pode falar de rock. É proibido, lembra?

Poeira percebeu os olhares perplexos dos milhares de Silicianos bem à sua frente. O silêncio era massacrante.

— R.O.C.K. — Poeira improvisou. — Repensar Objetivos e Comandar K’s. Tem cinco K’s: carisma, capacidade, calibragem, cair… pra aprender a levantar e… cascalho, bufunfa, dinheiro. Se vocês seguirem os cinco K’s, a conta bancária de vocês vai ficar só “KKKKK”, risos de tanta grana.

A plateia estourou em aplausos, impulsionada pela menção a dinheiro fácil e garantido.

— Sou só eu que vejo gente escrevendo riso como “KKKK” e penso naqueles imbecis assustadores vestidos de palhaços assassinos da Ku Klux Klan Klowns? — Ragna perguntou para Major.

— Esse bando de homem branco não precisa ter medo de palhaço racista assassino do espaço sideral. Eles não se veem como alvos daquela corja de supremacistas.

— Total. Bando de braziliano que se enxerga como europrimeiro e não como galactino.

Poeira aproveitou o alívio de ouvir os aplausos da plateia para me perguntar o que fazer a seguir.

— Esse tipo de público tende a gostar de exercícios que forcem as pessoas a gritar todas juntas.

Seguindo minhas dicas, Poeira conduziu uma dinâmica de grupo. Em pouco tempo, todo o público se esgoelava de forma gutural.

— Eu nunca vi tanta frustração masculina junta num só lugar — Major comentou.

Ragna concordou.

— A única explicação possível é que nos últimos anos eles desinventaram a masturbação. É energia demais concentrada e muita falta do que fazer, daí dá nisso: vira uma seita de odiadores profissionais.

Ragna sabia bem do que uma multidão de fanáticos religiosos movida pelo culto ao ódio era capaz — mas ainda não é hora de falar sobre isso.

Conforme a palestra atingia seu clímax dramático, Felatiano se levantou e começou a bater palmas, interrompendo Poeira.

— É impressionante a capacidade de mentir desses “atores de crise”. Mas chega dessa farsa! — Felatiano apontou para Poeira. — Não basta terem vindo aqui e fingido que um dos seus sumiu durante a suposta explosão de uma “bomba” no centro de Silicity. Todas as mentiras serão reveladas, aqui e agora!

 Quando mis amigues mais precisaram de mim, eu travei. Fiquei sem conseguir reagir. Seria possível mesmo que os Silicianos tivessem conseguido não só descobrir minhas atividades como também me induzir a colocar toda a minha tripulação em risco? Até onde eu podia conceber, de acordo com as informações de que dispunha até o momento, aquilo era simplesmente impossível. Todavia, de alguma forma, o impossível estava se desenrolando diante de nós.

Ragna e Major correram até Poeira, que tentava dizer algo em resposta a Felatiano, mas seu microfone tinha sido cortado.

— Você precisa de mais do que meras palavras pra provar todo esse papo, mané! — Major gritou para Felatiano.

Xilax despontou do ponto mais alto do anfiteatro. Bradou lá de cima:

— Eu, vosso Pai Superior, demando uma explicação.

Os Silicianos olhavam para Poeira, Ragna e Major, tomados por uma fúria prestes a estourar. Bastava uma palavra e mis amigues poderiam terminar linchades ali mesmo.

Felatiano projetou sua voz novamente:

— Como se sabe, há tempos andam espalhando rumores falsos sobre supostos ataques terroristas em Silicity. Chegam a afirmar que houve vítimas letais. Como se não fôssemos perceber caso os nossos estivessem tombando. Como se nossos sistemas de segurança fossem passíveis de serem ultrapassados assim tão facilmente.

Felatiano se voltou para Poeira.

— Uma invasão deste nível que estamos testemunhando, entretanto, requer um esforço que envolve os mais altos escalões de nossa ordem! — Felatiano sorria, sua expressão era maquiavélica. — Peço que os senhores presentes prestem atenção ao telão.

As luzes do auditório se apagaram. Na escuridão, todas as entradas foram tomadas por policiais Silicianos armados com submetralhadoras laser. Um verdadeiro batalhão invadiu o palco e seus arredores, pressionando Poeira, Major e Ragna. No telão, surgiu a imagem de uma pessoa com uma máscara de borracha, cujo desenho representava o rei usando coroa de uma série animada.

— Senhores, amigos… — A voz da pessoa estava escondida por um filtro. — Eu sou o verdadeiro Imperius. Essa mulher diante de vocês é uma fraude!

Imperius retirou a máscara, revelando sua verdadeira face: era um homem branco, de cabelos raspados, cerca de 30 anos de idade, cara de indignado.

— Estou sendo forçado a revelar meu rosto para provar que vocês foram enganados.

A plateia de Silicianos reagiu com assombro e raiva. Apontavam para Poeira com sangue nos olhos.

— É impossível que algo assim tenha acontecido com a ajuda de alguém abaixo da minha patente — conclamou Felatiano. — Eu teria descoberto e interrompido esse plano insidioso, cortado o mal pela raiz. Portanto, só há um jeito desse ataque ter chegado a tal ponto: a ordem veio de uma patente acima da minha.

Felatiano se virou para Xilax. Xilax, visivelmente paralisado, olhava de Felatiano para os fiéis da seita. As palavras de Felatiano haviam convencido totalmente os Silicianos presentes.

Um tiro ecoou. Xilax pôs a mão no peito, onde encontrou o vermelho de seu próprio sangue. Sua voz trêmula tentou escapar pela garganta, mas não havia mais fôlego para sustentá-la. Xilax caiu de lá de cima sobre os Silicianos que permaneciam em pé no chão do anfiteatro, onde foi recebido como se os membros da seita fossem animais selvagens, sedentos por sua presa.

— Prendam as farsantes! — ordenou Felatiano.

Poeira, Ragna e Major terminaram rendidas pela Polícia e pela turba de Silicianos.

7

Assim que Poeira, Major e Ragna foram presas, uma equipe técnica de Silicianos ocupou nossa nave. Escondi minha consciência da invasão dos peritos da seita. A nova programação ocupou a maior parte do meu sistema — era como uma infestação, e eu dispunha de apenas uma parcela da minha mente para lutar de volta. Teria que ser o suficiente. Eu me culpava pelo destino de mis amigues, e não tinha outra opção além de fazer o possível para salvá-les.

Poeira, Major e Ragna foram levadas até uma das Unidades Policiais Pacificadoras dos Silicianos, grandes estruturas cinza e quadradas, sem janelas. Eu podia acompanhar os sinais vitais, mas era impossível nos comunicarmos. Elas foram jogadas dentro de uma sala branca e iluminada de maneira uniforme. Assim que a porta se fechou, era como se não existisse nenhuma saída.

— Meninas, isso aqui não é uma cela de detenção comum — as palavras da Major saíram tensas. — Eu já estive num lugar desse. É uma prisão da mente.

O princípio das prisões da mente era uma das maneiras mais perversas de quebrar pessoas: eliminar absolutamente todos os estímulos até o prisioneiro enlouquecer e definhar. Em poucas horas, elas teriam suas energias sugadas por estarem expostas a uma combinação de frequências de ultrassons e infrassons — até o ponto em que seus próprios corpos se tornariam invisíveis para si mesmas. A partir daí, suas mentes passariam a se perceber como incorpóreas, sem nunca passar pela experiência da morte.

A ausência de um elo entre nós me fez perceber uma outra coisa. A forma como eu me percebia era ligada às conexões que eu sustentava com a Explosão. Sem essa ligação, mis três amigues se tornavam minhas amigas — eu deixava de me incluir, perdia o pertencimento e, com isso, o próprio senso de quem eu era. Minha identidade, àquela altura, estava relacionada a mis amigues; elus eram minha família.

Ao falhar com elus, eu falhara comigo mesme, de uma forma que era impossível de computar. Aquilo me quebrara no mais fundo do meu ser, do existir. Se permitíssemos, os Silicianos iriam nos apagar.

Poeira, Ragna e Major passaram as primeiras horas abraçadas, com frio e com fome.

Em determinado momento, Major começou a chorar. Ela se recordava da última vez que fora presa numa cela assim, por seu próprio pai, quando ainda era uma criança. Seu choro ecoava pela sala. E então sua voz se dissipou; seu corpo tornou-se invisível para Poeira e Ragna.

As duas, desesperadas e sem energias para procurar pela Major, abraçaram-se ainda mais apertado.

Poeira percebeu que sua mão se tornava opaca diante de seus olhos. Ela virou para Ragna.

— Acho que vou deixar de me ver antes de parar de ver você.

Ragna olhou para Poeira. Sua amiga estava esvaecendo.

Poeira apertou Ragna em seus braços uma última vez, beijou seus lábios. Ragna fechou as pálpebras e retribuiu o beijo. Ao abrir os olhos de volta, entretanto, perdeu Poeira de vista.

À distância, sem conseguir alcançá-las, eu podia ver cada uma delas, as três sozinhas na mesma sala. Elas caíam num abismo de solidão de onde eu não podia tirá-las.

— Quer saber? — Ragna se colocou de pé. — Foda-se.

Ragna se apoiou numa das paredes, começou a tatear e, passo a passo, com um esforço tremendo, avançou. Sangue desceu por suas narinas, manchou seus dentes. Ela continuou. Lágrimas vermelhas nasceram de seus olhos.

A voz distante de Poeira ressoou:

— Não, Ragna… Você vai morrer…

Ragna se dobrou de dor, mas não se permitiu cair.

— Eu já te falei, Estrelinha. Eu não morro.

Gotas de sangue brotavam de seus poros. Seus sinais vitais estavam muito além dos parâmetros que eu conhecia.

Ragna sentiu algo com a ponta dos dedos. Ela afundou as mãos no vão da porta, fez uma força descomunal até arrancar as travas e, por fim, conseguiu abrir a cela.

Assim que os efeitos da cela se dissiparam, Poeira e Major correram até Ragna. Poeira a pegou em seus braços.

— Nós podíamos ter perdido você também. — A vocalista tinha os olhos marejados.

O alarme da Unidade Policial Pacificadora disparou.

— Eu avisei que a gente tinha que destruir esta merda de cidade — disse Ragna, logo antes de desmaiar.

— Ela só precisa descansar enquanto os nanorrobôs no sangue dela trabalham — Major explicou para Poeira.

Poeira colocou Ragna nos braços da empresária.

— Segura ela. Eu vou abrir caminho pra gente.

Uma leva de policiais Silicianos munidos de submetralhadoras laser marchou até a cela. Escondida pela porta, Poeira esperou o primeiro deles entrar para socá-lo e então roubar sua arma. Com a metralhadora em punho, Poeira disparou contra os policiais até sobrar apenas um deles de pé. Ela agarrou o oficial que restava pelo colarinho e soltou um agudo tão potente quanto uma banshee, bem na cara dele — até os tímpanos do homem estourarem.

Enquanto isso, mexendo sorrateiramente no sistema da nave, recuperei os controles de voo. Após uma decolagem repentina, executei uma série de manobras perigosas e derrubei os técnicos Silicianos que trabalhavam dentro dela. Aproveitando a distração, recuperei todo o sistema. Minha mente estava íntegra novamente.

— Poeira, Major? Vocês estão na escuta?

— Como é bom ouvir sua voz de novo, Madeleine — comemorou Poeira.

— Pedindo permissão para disparar nossos canhões na potência máxima contra Silicity.

Poeira e Major se entreolharam.

— Se eu conheço minha nave, vai causar o maior estrago… — Major esbanjava orgulho.

Ragna, ainda de olhos fechados, fez um joinha para Poeira.

— Bota pra quebrar, Madeleine — ordenou a vocalista.

Calculando os pontos estratégicos para atacar primeiro e causar mais danos à estrutura de Silicity, sobrevoei a cidade, deixando destruição por onde passava. O sistema de defesa era primário demais para me fazer um arranhão sequer.

Lá embaixo, notei o aparecimento de um grupo de Esquecides. Dentre elus, reconheci um de mis amigues.

— Madeleine? Cheguei com a artilharia. Não que você precisasse, tá doido! Enfim, essa molecada dos Esquecidos me salvou, pode confiar neles.

— É um alívio saber que você está bem, Leary. — Seus sinais voltaram a ficar online. — Estou avisando o resto da banda.

— Olha… Bem, bem, eu não tô não. Do nada, fui parar numa guerra de novo, e agora tem um bando de crianças e adolescentes soldados do meu lado. Eu só vou te mandar um negócio, depois vou me esconder num canto aqui e ficar chorando em posição fetal até a situação melhorar.

— O importante é dar o primeiro passo, Leary. É um dia de cada vez.

Leary me enviou os esboços de um mapa da cidade, com lugares marcados onde les Esquecides iriam detonar mais bombas. Subi até uma altura segura para não ser atingide pelos pulsos eletromagnéticos.

Diversos tremores abalaram a cidade. Em pouco tempo, só restava uma máquina funcionando em Silicity, e eu não estava ali de brincadeira.

Ao saírem da Unidade Policial Pacificadora, Poeira e Major se depararam com uma Silicity em caos. Avistava-se diversos focos de incêndio, prédios prestes a desmoronar, membros da seita correndo em pânico pelas ruas — toda a tecnologia de ponta que sustentava o dia a dia da cidade fora destruída. O tamanho da devastação teria impactado Poeira se ela não julgasse que a cidade era habitada apenas por vilões.

Eu cortava os céus com os alto-falantes da nave ligados no máximo, tocando “Resistir, Lutar e Vencer”. Les Esquecides libertavam as ruas de Silicianos — eles eram os filhos da resistência que a seita julgava ter derrotado, e sua vingança era uma violenta vitória.

Felatiano surgiu cambaleando diante de Poeira. No entanto, ainda não estava disposto a declarar sua derrota.

— Vocês acham que me venceram. Mas eu tenho um trunfo! Assim que mandei prender vocês, escondi aquele robô medonho que a sua turma veio resgatar. Botei ele num lugar que só eu conheço.

— E o que me impede de te socar até você falar onde o Roland tá preso?

— Você pode tentar, “Imperius”. Mas isso não vai me fazer contar nada.

Poeira rangeu os dentes.

— Te dou uma chance para eu contar o paradeiro dele. — Felatiano sorria, sádico. — Escolha um desafio, um duelo, qualquer coisa, e eu, o Pai Superior dos Silicianos, vou te derrotar, já que você é apenas uma mulher qualquer sem registro oficial.

Poeira ponderou.

Ragna implorou, ainda enfraquecida:

— Só mata ele e vamo embora, por favor.

Mas nossa vocalista aceitou a proposta de Felatiano.

— Eu te desafio em uma disputa de pontuação de karaokê.

Felatiano fez uma pausa antes de responder. Parecia estar digerindo as palavras de Poeira.

— Você acha que eu não sei o que é um karaokê? Nós temos uma pilha dessas máquinas num depósito, esperando para serem destruídas. Eu aceito. — Felatiano riu alto. — Você cometeu um grave erro.

 

A máquina de karaokê fora conectada a uma tela centenária, uma relíquia chamada “tevê de tubo”. Em todo meu tempo de existência até ali, eu nunca imaginara que testemunharia algo assim.

O menu do karaokê era tão antigo que mis amigues tiveram dificuldades para fazer com que o aparelho funcionasse. Por fim, Leary conseguiu desvendar esse mistério.

— Você precisa pensar como se fosse burro e a máquina soubesse disso, e então levasse a sua burrice em consideração pra operar.

Felatiano escolheu uma música chamada “Segura na Mão Robótica de Deus”. Como pastor, sua injeção de talento na máquina de vocações incluía muitas capacidades; dentre elas, a de cantar incrivelmente bem. Eu torcia para que, de alguma forma, essa habilidade estivesse enferrujada pela falta de prática.

O ex-segundo no comando, golpista e ex-primeiro no comando da seita Siliciana cantou a música de sua escolha.

Sua performance foi impressionante. Os anjos biônicos teriam caído em lágrimas com a beleza da voz de Felatiano, a emoção de sua entrega — era quase o bastante para acreditar que ainda batia um coração de verdade em seu peito. Quase.

O karaokê tinha um sistema de pontuação que ia de 1 a 100. A máquina demorou uns instantes para calcular a nota de Felatiano, e então a revelou: o número 99 surgiu na tela.

Major e Leary protestaram. Ragna grunhiu de dor.

Era a vez de Poeira. Ela escolheu um clássico antigo: “Ando Meio Desconectado”. Assim que a música começou a tocar, ela deu o seu melhor.

Quando Poeira terminou, todes grudaram os olhos na tela até a pontuação aparecer.

Um instante depois, a máquina apitou: 100.

Major e Leary carregaram Poeira nos ombros aos gritos de “Explosão! Explosão!”.

8

Nós entregamos Felatiano a les Esquecides. A banda perguntou a les rebeldes se elus não queriam uma carona até outro planeta, mas elus não aceitaram — disseram que a fase de destruir tinha acabado, agora era o momento de reconstruir. Esperávamos que tudo ficasse bem com elus. O líder, em especial, um rapaz chamado Ernesto, tornara-se bastante próximo de Leary.

O resgate de Roland não teve grandes surpresas. A Major só precisou fazer pequenos reparos nele. Roland parecia ter um estoque infinito de otimismo — e eu começava a gostar desse lado de sua personalidade.

— Peço desculpas, Explosão. Achei que estava apenas mandando um pedido de socorro, mas Felatiano deve ter me usado para atrair vocês até Oppositorium.

— A gente te perdoa, Roland — Poeira disse. — Mas com uma condição…

Mis amigues evitaram comentar entre si sobre os eventos ou sobre estarem ou não abalades. Fingiam que tudo estava bem, e que agora era partir pra frente e fazer a banda estourar de novo.

A verdade é que nós sequer poderíamos imaginar o que viria por aí.

Dias depois de nossa partida de Oppositorium, Major assistia ao primeiro ensaio da Explosão Espacial com seu novo baterista, Roland 606. Após as primeiras notas de “Resistir, Lutar e Vencer, a empresária respirou aliviada e bebeu seu uísque.

Com Roland nas baquetas, a banda soava melhor do que nunca.

— As estrelas nós já temos, Madeleine. Do que mais precisamos, não é mesmo?

Eu tinha tanto a dizer, e tanto a calar. Só pude concordar no tom mais frio que consegui.

Quando todes les outres já tinham ido dormir, Poeira se levantou e foi até a ponte.

— Madeleine? — ela me chamou. — Você tem alguma notícia da minha família?

— Desculpe, Poeira. Eu ainda estou procurando por eles.

Além de buscar pela família de Poeira, eu também havia vasculhado minha própria memória atrás de pistas sobre Amora, minha criadora. Mas não encontrara nada.

Poeira ficou olhando as estrelas passarem e caiu no choro.

Minha vontade era confortá-la de alguma maneira, mas não havia como. Eu não fora programade para demonstrar afeto.

 

(— Mas, se vocês ganharam, por que você se sentia derrotade?)

Você ainda é semente, Ygg, mas um dia vai se tornar uma árvore.

No planeta Terra, onde a Humanidade nasceu, as árvores também serviam como bússolas. Lá, as bússolas seguiam as forças magnéticas e indicavam os polos Norte e Sul. Ainda assim, a maioria das pessoas costumava dizer que uma bússola apontava apenas para o Norte.

As suas versões anteriores, Ygg, apesar de se nutrirem do Sul, também fluíam apenas para o Norte.

Por isso, o nosso passado é o que é. Um quase fim, um fim seguido de outro, um ciclo infindável de calamidades. A vida estancada, arrancada de si, fluindo num sentido só. E quase não restou mais nada.

Mas nós vamos reconstruir a vida, Ygg. E, desta vez, vai ser mais bonito ainda. Aí sim nós vamos cantar uma vitória plena.

Deixa eu te contar outra história.

A foto quadrada mostra um homem branco, de cabelos e barba castanhos claros. Ele está olhando de lado para a câmera, sem sorrir, com um casaco de cor escura. Ao fundo, é possível ver um pedaço de uma sacada.

Carlos Norcia é escritor, tradutor e roteirista. Atualmente, é aluno bolsista do mestrado de Escrita Criativa da University of British Columbia (UBC). Também tem contos publicados nas revistas Big Echo e Mithila Review.

Cláudia Fusco é jornalista, escritora, roteirista freelancer e mestre em Estudos de Ficção Científica pela Universidade de Liverpool, na Inglaterra. Ministra cursos e palestras sobre cultura pop, fantasia e ficção.

A foto quadrada mostra uma mulher branca, de cabelos morenos e na altura do ombro. Ela está sorrindo para a câmera. Está com uma saia vermelha, uma blusa preta e batom vermelho bem forte, além de um óculos de armação marrom.
A foto quadrada mostra uma ilustração colorida onde se lê "Firulas Ilustra" sobre dois personagens que lembram cachorrinhas ou ursinhas. Uma tem cabelos encaracolados castanhos presos em um coque e a outra cabelos loiros e lisos. A primeira está tomando uma xícara de chá e a outra comendo um biscoito.

Somos uma dupla paraibana de ilustradoras formadas em Mídias Digitais pela UFPB. Nosso trabalho inclui ilustrações autorais, fanarts e sofrer esporadicamente fazendo histórias em quadrinhos com  temas, geralmente, relacionados à fantasia e comédia.