Vida

Quando vê que a esteira que leva à saída do aeroporto de Capodichino está cheia de gente, Janna decide caminhar. Grupos lentos de turistas com malas desgovernadas e bolsas giroscópicas a tiracolo se misturam aos empresários ocupados e funcionários espalhados por todo canto. Das paredes animadas do corredor surgem hologramas de cantores neomelódicos armados com guitarras e rappers em poses extravagantes, aumentando a densidade por metro cúbico para além do aceitável.

Janna sente nos músculos das costas a dor que é resultado do acidente, ainda presente depois de anos. Os nanites liberam no fluxo sanguíneo os anti-inflamatórios que farão efeito em poucos minutos.

Entre as bandeiras amarelas e verdes da Sociedade Mediterrânea, Janna passa pela segurança pouco antes de sair. O keylog se conecta automaticamente ao banco de dados da polícia e emite um verde tranquilizador.

Do lado de fora, o cheiro de asfalto recém-recapeado se junta ao aroma da mozarela dos vendedores ambulantes. Às vezes, os drones de reconhecimento do aeroporto os botam para correr, mas eles viram a esquina, conferem o horário do próximo voo e voltam para gritar aos quatro ventos a frescura do laticínio.

Ao lado do iluminado ponto de táxi, Janna recebe a primeira mensagem de Eskin:

[A Universidade Hopkins de Baltimore publicou um anúncio de trabalho. É um contrato de cinco anos. Veja.]

Ela tem vontade de responder, irônica: Já chegou, meu amor? Como foi o voo? Em vez disso, é direta:

[Você consegue ser tão insensível às vezes!]

[Você só está nervosa com a entrevista, e com razão. Sabe de como a gente precisa de dinheiro. Vamos ficar em apuros se você não encontrar um emprego.]

O comando de resposta permanece suspenso à esquerda do campo visual até que Janna o seleciona, pressionando o indicador contra o polegar da mão direita:

[Eu sei disso. Está melhor?]

[Não muito. O ciclo de tratamento não quer funcionar. Marquei uma consulta para amanhã de manhã. Arianna está em casa hoje.]

[Pelo menos você não fica sozinho. Estou esperando o táxi. Ligo mais tarde.]

Ela avança duas posições na fila do táxi e vê que recebeu outra mensagem. De Arianna.

[Oi, loira. Sabe que gosto muito de você, né? Hoje vou cuidar do meu irmão. Trouxe até o violino, ele está ótimo. Dê tudo de si, e não se esqueça de experimentar a pizza. Quando acabar, vou querer saber mais sobre a verdadeira pizza napolitana!]

Janna consegue imaginar a cena: Arianna tocando o instrumento neuroativo para aliviar o sofrimento de Eskin, que se esforça para relaxar focando em alguma melodia pacífica e harmoniosa. O Prelúdio da Suíte nº 1, de Bach, por exemplo, ou então alguma coisa alegre, como a Dança macabra de Saint-Saëns. Com uma frequência cada vez maior nos últimos meses, a música clássica chega aonde os medicamentos não conseguem.

Uma freada brusca a desperta da visão. Janna vê que um BMW branco estacionou na rua. Do carro, sai um rapaz que mal tem idade para dirigir. Em gestos exagerados, ele a convida para entrar. De acordo com o keylog, trinta e duas pessoas estão esperando no ponto de táxi. São muitas mesmo. Janna verifica no app da polícia a confiabilidade do veículo e a identidade do motorista: foi enviado pela LifeTech. Ao aceitar a carona, ela sente nas costas o olhar irritado dos que continuam à espera.

Antes de entrar, levanta os olhos, à procura de alguma coisa no horizonte.

— Onde fica o Vesúvio?

— Não é aqui, senhora, é pro outro lado. — Ele indica a direção oposta. — Fica atrás dos arranha-céus de San Giorgio a Cremano.

Toda a vista está bloqueada por uma parede de edifícios gigantescos com centenas de andares. Janna se resigna à monotonia dos prédios, não muito diferentes dos que encontra em Estocolmo.

Já no edifício, o keylog a informa que [A LifeTech está solicitando acesso aos seus dados pessoais]. Janna toca polegar e indicador para conceder a permissão. O software exibe um chapéu piscando em roxo para indicar a responsável por recebê-la.

— Bom dia, Janna. Bem-vinda à LifeTech. Seu anfitrião, David Medina Fernandez, chegará logo. Enquanto isso, pode esperar ali.

Ela vai embora, e Janna segue para a direita, guiada por uma trilha de pontos brilhantes que se dissolvem assim que ela passa por eles.

Na sala de espera, uma parede mostra uma visão do Golfo de Nápoles. Janna já o viu outras vezes por vídeo ou na rede. Ao vivo seria mais fascinante, mas a versão diante dela si foi retocada para parecer meteorologicamente perfeita.

Na parede oposta são exibidos os anúncios da LifeTech: uma família de pijama mostrando os dentes branqueados por nanocerdas integradas a escovas de dentes, um quarentão correndo por uma praia tropical com seu personal trainer projetado ao lado e, por fim, ela mesma, bebendo um café no anúncio de uma máquina de expresso. Janna olha em volta e aproveita para ajeitar o vestido.

Estar ali em pessoa a deixa nervosa. A presença holográfica costuma ser a norma, tanto em entrevistas como nas relações de trabalho. Em todo lugar, avatares e hologramas são usados independentemente da hora do dia ou da noite, sem sair de casa. Janna prefere hologramas, porque considera avatares coisa de adolescente — além disso, apresentar-se em uma entrevista como um avatar pode ser considerado sintoma de insegurança. Pelo menos é o que sugere o EmpApp, um programa de apoio empático. No entanto, empresas como a LifeTech gostam de inovar. O preço do voo de Estocolmo foi uma maneira muito elegante de dizer “queremos você”.

O keylog pisca em vermelho.

[Você precisa culpar alguém pelo nervosismo?]

A verdade é que, desde o acidente, Janna não tem viajado muito. É a primeira vez que sai da Suécia desde tudo aquilo. O keylog indica que seus sinais vitais estão alterados, fora dos parâmetros, e sugere a liberação de um calmante leve. Janna recusa pressionando o dedo médio contra o polegar.

O acidente e o coma são meras lembranças. Agora está bem: lembra, caminha, lê e fala sem problemas. Até mesmo as estatísticas a asseguram que outro acidente ferroviário nunca mais vai acontecer na sua vida. Então, quando o lema da LifeTech — “Vida longa e próspera” — aparece na parede, Janna desmaia. O mundo de dados flutuantes desliga, e o corpo dela desfalece no sofá.

Quando volta a si, um homem elegante a encara, sorridente. O keylog se reconecta e o reconhece: David Medina Fernandez, quarenta e sete anos, casado e sem filhos, tem um gato e torce pelo Barcelona, trabalha há três anos na LifeTech, a esposa é bonita, mais jovem que ele. Caça-talentos, recita o perfil.

— Como vai, Janna?

Ela se senta, depois se levanta.

— Peço desculpas, mas não sei o que me aconteceu.

No passa nada, deve ter sido o ar-condicionado ou uma alergia ao pólen local. Ou talvez você só esteja cansada da viagem.

Os dois se encaram, e David dá um passo instintivo para trás quando ela estende uma mão, que permanece suspensa no ar. Depois de um momento, ela a baixa, envergonhada.

— Imagino que esse seja um gesto ainda usual no ambiente acadêmico, mas nos negócios não é bem assim. Você vai se adaptar.

Seria mesmo insensato, até inútil, fazer com que dois hologramas apertassem as mãos, uma formalidade quase obsoleta mesmo em encontros presenciais.

— Vamos lá para cima.

Janna segue David para dentro de um elevador oval cujas paredes são cobertas de tinta eletrônica. Assim, durante a subida, os dois apreciam o panorama dos Alpes e uma animação do Kebnekaise, na Suécia, onde ela passou parte das férias de verão.

Nenhum deles diz um piu. David talvez esteja vendo o trailer de filmes preferidos ou um vídeo de família. O keylog se conecta aos paredogramas para exibir cenários favoritos com ou sem comerciais, dependendo da situação de gratuidade do aplicativo. Eskin tem certeza de que muitos empresários gostam de assistir a pornografia dessa forma. O fato de David ser claramente espanhol confirmaria a tese.

Eskin é uma boa pessoa, mas o isolamento obrigatório por causa da doença só fez piorar seus preconceitos. Quando viajava pela Europa, organizando concertos e montando palcos, era uma pessoa mais aberta e tranquila; mas agora que precisa oferecer seus serviços on-line, pagando técnicos terceirizados para fazer o trabalho braçal, a empresa sofre, e ele também. Eskin tem Doença de Huntington, e talvez seja a consciência de seu destino que o deixe cínico e desencantado com as coisas. Infelizmente, Janna não se lembra muito de quando ele era jovem e despreocupado: grande parte das memórias dessa época foi perdida durante o coma.

E, infelizmente, a perversidade de Eskin está piorando depressa: na semana passada, sugeriu que ela usasse um avatar provocante para a entrevista de uma empresa francesa de alta tecnologia. Tiveram uma discussão tão pesada que ela quis sair de casa. É claro que encontrar trabalho é importante! O tratamento dele é exorbitante, mas nenhum gerente de relações pessoais com um pingo de inteligência distribuída entre o keylog e outros dispositivos de aprimoramento mental contrataria uma especialista de condicionamento e interface artificiais só porque ela está vestida em látex branco. De qualquer modo, Janna acha difícil acreditar que David, ao seu lado, esteja mergulhado em poses obscenas e emaranhados de coxas, seios e bocas.

Fora do elevador, Janna se vê diante de um espaço amplo cheio de mesas que se abre para um terraço quase vazio sem paredes nem telhado. O terraço se sobressai da estrutura do edifício como um galho de uma árvore. Há alguns outros acima e abaixo, mas estão lotados de pessoas trabalhando: a LifeTech se orgulha de oferecer aos funcionários uma “co-location” em vez do antigo teletrabalho. David percebe que Janna está admirando o corpo central do edifício, assim como o teto de cristal.

— A LifeTech quer deixar uma marca no mundo, e este prédio é nosso cartão de visita. Visto de fora, pode parecer presunçoso, mas deixa claro quem somos e o que fazemos. Vida longa e próspera, nosso lema. Marketing de negócios é sempre retórico. Espero que não se importe. Mas, me diga… Você já conhece nossos produtos?

— É claro. O iMate é muito popular.

— Vocês têm um?

— Hum… não. Caso contrário, não estaria aqui.

David aquiesce, e Janna imagina que a entrevista acaba de começar.

— No começo, eles eram chamados de ATM. Muitos não sabem disso, e a informação não é encontrada na rede. O acrônimo significa Automa de Trabajo Manual. — David pronuncia as palavras com um sotaque que o keylog identifica como catalão. — Foram criados na Espanha, e não pensaram numa alternativa melhor que o nome de um caixa eletrônico. Curioso, não acha? Um ATM que fornece dinheiro sem que o usuário precise trabalhar.

— Sim, mas é estranho… Um iMate não tem nada de autômato.

— Claro que não, mas precisamos simplificar o conceito e evitar assustar os clientes. Uma criatura consciente de carne e osso, mesmo que completamente impressa em 3D, não seria aceita com a mesma facilidade que um androide.

— Tem razão. A velha questão do vale da estranheza. Ainda não temos um iMate, mas… — Janna hesita — … um dia, com certeza.

— Tomara que sim! Espero vender um para você. Queremos vender muitos.

— Não, quero dizer que vamos precisar mesmo de um.

David fica sério, o olhar ausente. Provavelmente está relendo a biografia de Janna à procura de informações significativas.

— Sei do problema de Eskin. Alguma novidade?

— Ele não tem estado muito bem. É por isso que quero tanto esse trabalho, para comprarmos um iMate e eu poder ficar mais perto dele.

Na Suécia, um iMate custa o dobro de uma casa; o salário que Janna tinha na universidade, mesmo que decente, não seria o bastante nem para a entrada.

— Faz sentido. O iMate mudou a vida de pessoas doentes como o Eskin, além daquelas que querem passar o tempo em outras atividades.

— Não sei se há muitos iMates na Suécia.

Por supuesto, o custo limita a demanda. E preferimos que o público não tenha acesso a essas informações… Como especialista em protocolos, você deve saber.

— Claro, os iMate não sabem que são biobôs, e isso faz parte do condicionamento desenvolvido pela LifeTech para que possam ser gerenciados sem programação.

— Na verdade, para nós, o protocolo é uma forma de programação. Na prática, usamos gatilhos psicológicos em vez de códigos alfanuméricos. Nossa metodologia nos tornou líderes do mercado e, de acordo com as normas vigentes, nossos concorrentes precisam ter seus biobôs verificados pelos nossos técnicos.

— Uma bela vantagem competitiva — diz Janna.

— Uma garantia para os usuários, na verdade, tanto em termos de qualidade quanto de segurança.

— Na Suécia, é proibido chamar alguém de iMate como insulto.

— Não sabia disso.

— Não é uma denúncia formal ativada pelo keylog, mas pode render uma bela multa.

— Faz sentido. É horrível insinuar que qualquer pessoa não é natural.

David sorri, e Janna fica em dúvida se acabou de ouvir uma piada sobre a empresa. Para falar a verdade, o próprio David, ainda que a ideia seja absurda, poderia muito bem ser um iMate.

— Falemos de nós, Janna. — De acordo com o EmpApp, David está ansioso para mudar de assunto. — Em primeiro lugar, quero agradecer sua vinda a Nápoles. A entrevista é um momento importante para nos conhecermos melhor. A análise dos seus resultados acadêmicos e profissionais já nos permitiu estabelecer suas chances de sucesso na LifeTech.

O que quer dizer que sabem tudo sobre ela: dos antecedentes criminais às relações sociais, de viagens e passeios às preferências de compras. Até mesmo seu histórico médico acabou no sistema do JobFit, que entregou à LifeTech a análise final já mastigada — um quadro preciso dos pontos fortes e competências do candidato enriquecido por uma série de cenários de adaptação ao novo ambiente de trabalho. Tudo sem que um único ser humano precisasse trocar palavras com outro.

— É um prazer.

— Na verdade, gostaria de me aprofundar em alguns detalhes — diz David, procurando alguma coisa nas anotações digitais. — Por exemplo… Por que abandonou a universidade de ciências da saúde em Heidelberg para voltar a estudar biomecânica na Suécia?

Já existem documentos públicos sobre o assunto. Devem saber o motivo, mas talvez queiram ouvir da minha boca, pensa Janna, confortada pelo EmpApp.

— Foi por causa de um estágio de verão em uma startup de Heidelberg, onde descobri interfaces inspiradas em formas de vida biológicas.

E o lindo sorriso de Gerd e sua paixão… pelo trabalho. Mas isso não entrou nos registros.

— Nenhuma outra razão?

— Um salário melhor? De qualquer forma, o primeiro ano de medicina foi muito útil para minha carreira.

— É claro, só fiquei curioso. Conhece o professor Jorg Hallistair?

Janna franze a testa. De todas as pessoas com quem já trabalhou, o professor Hallistair é o que ela menos esperaria ser mencionado em uma entrevista de emprego.

— Sim, era um amigo dos meus pais. Jantava com a gente às vezes.

— Ele influenciou sua decisão de alguma maneira?

Janna fica perplexa. Por que o grosseirão do Hallistair teria influenciado sua decisão?

— Sinceramente, nunca conversamos sobre os estudos de biorrobótica que ele conduz. Ele não parecia muito orgulhoso dos resultados.

— Mas entendo que era um bom amigo da família, da sua mãe…

O keylog vibra. Janna recebe a análise do EmpApp. “Relação adúltera entre Hallistair e sua mãe, Greta. Implicações psicológicas: isso pode sugerir ao entrevistador uma fraqueza, uma necessidade de aceitação pelo parceiro materno. Possível falha no índice de liderança: narcisismo e insegurança.

— Sinto muito, David, mas seu analista comportamental cometeu um erro. Às vezes esses sistemas podem exagerar na importância de detalhes secundários. São chamados de falsos positivos. Na verdade, mudei de universidade porque o fundador da start-up era atraente, e sempre valorizei relações pessoais acima da carreira. Não tenho interesse nas relações extraconjugais da minha mãe. Se quiser, posso dizer o que penso a respeito, mas só.

David começa a rir. O keylog de Janna pisca uma luz verde: para o EmpApp, a resposta acabou com as dúvidas a respeito do psicológico dela, e a pontuação de liderança aumentou.

Vale! Só mais uma dúvida: como se vê daqui a dez anos?

— Não sei, não sou muito boa com planos de carreira.

— Entendo, mas no geral: como se vê? Sei que não viajou muito depois do… acidente.

Janna se empertiga e muda de posição. Se o EmpApp não a estivesse monitorando, começaria a roer as unhas.

— Foi uma questão de oportunidade. Estava muito presa ao trabalho na universidade, sem tempo para a vida pessoal. Além do mais, seria difícil e injusto viajar com o Eskin nessas condições, além de… egoísta.

David aquiesce, mas Janna suspeita que o acidente possa ter um peso negativo na entrevista.

Por supuesto. Então não há problemas caso precisem mudar.

— O trabalho pede relocação permanente?

— Sim, a LifeTech segue a política de co-location. Ainda que algumas tarefas possam ser feitas em home office, a posição disponível fica aqui, em Nápoles.

Janna fica em silêncio. O aplicativo médico no keylog trabalha em segundo plano, mas ela já sabe a previsão.

— Algum problema?

— Aqui em Nápoles, minha expectativa de vida diminuiria para noventa e sete anos.

— Sim. — David não parece surpreso. — Os padrões suecos são muito elevados.

— Poluição, qualidade da água e nível de assistência pública — ela lista os elementos cruciais resumidos pelo keylog. — É uma decisão difícil.

— Nesse caso, posso propor nosso Programa de Bem-estar? — Enquanto David fala, o keylog recebe uma solicitação para abrir um folheto. — Temos um grande portfólio de serviços para compensar esse problema.

O documento exibe os benefícios da empresa: o plano de saúde é bastante completo, incluindo terapias modernas, consultas especializadas e alimentação equilibrada. Um verdadeiro luxo, mesmo para a Suécia, onde Janna e Eskin levam uma vida padrão.

— Isso muda tudo — admite ela ao ver o número 109 piscando em um canto do campo de visão.

— Ainda assim, você não parece convencida.

— O problema é Eskin.

— A cobertura também inclui seu parceiro.

— Eu sei, mas…

— Janna, em cinco anos você vai receber o adiantamento para um iMate. Mesmo que mudemos de ideia, o seguro vai pagar trinta e cinco por cento do preço de um.

— Talvez eu deva ser mais clara: quero ter filhos.

— Filhos?

— Sim. O tratamento comprometeu a fertilidade do Eskin, mas temos um depósito em um banco de sêmen e dinheiro o suficiente para pagar por uma seleção genética que evite a transmissão da doença para uma criança.

— Ah, é por isso que Nápoles não é bom.

— As restrições legais são pesadas por aqui.

São malucas, na verdade — é o que Janna diria. A inseminação é proibida na Sociedade Mediterrânea, assim como todos os métodos não naturais de concepção. E o maior problema é que a seleção genética pode ser multada mesmo depois da gravidez.

— A localização da LifeTech é vantajosa justamente pela taxa de fertilidade baixa da região. Querem atrair funcionários, e os descontos fiscais diante da política de colocação é enorme. Não podemos abrir exceções.

— Que pena. — Janna suspira, mas o EmpApp pisca com um aviso de que sua reação pode ser vista como arrogante. — Para mim, é claro.

David não está ouvindo, mas Janna tem certeza de que a resposta chegou ao keylog do entrevistador.

— Posso ser direto, Janna? — O tom de David é neutro. O EmpApp exibe uma luz vermelha fixa. — Você quer mesmo ter filhos? De verdade?

Janna se ajeita na cadeira, desconfortável, e o keylog abre automaticamente o aplicativo M.I.Right para registrar o diálogo.

— Sim. Isso é um problema para a empresa?

— Não me entenda mal, seu sonho de maternidade não nos diz respeito. Mas, se apresenta um obstáculo para a mudança para Nápoles, é mesmo uma pena. Precisamos muito de você. O projeto de desenvolvimento da interface do iMate é o mais avançado do mundo, e estamos à procura de recursos talentosos como você. Você trabalharia com os melhores especialistas da área.

— Obrigada, mas não sei o que dizer.

— Desenvolver um iMate não é simples. Muitos acreditam que se trata de um programa infinitamente expansível e replicável que, quando chega à maturidade, tem o refinamento concluído. Mas você sabe que não é assim! A conclusão do desenvolvimento e da formação de um biobô tão rápido assim, garantindo que esteja de acordo com os padrões humanos, é um processo de enorme complexidade. O protocolo da LifeTech é o auge de uma série de estudos de décadas sobre o condicionamento dos seres sencientes, tanto biológicos quanto artificiais.

— Na verdade, fiquei surpresa com o interesse. — O EmpApp pisca desesperadamente. — Quero dizer… Eu não achava estar à altura.

David continua, ignorando a declaração.

— Você estaria perdendo uma oportunidade única. O Eskin também. Foi por isso que perguntei o que você quer de verdade.

— Toda mulher é livre para expressar o desejo de ser mãe — diz Janna, citando literalmente a sugestão do M.I.Right — sem que isso seja um impedimento ao acesso a trabalho ou educação.

— Concordo. O Comitê de Igualdade do sindicato local possui todos os nossos dados sobre as políticas de diversidade na empresa. Garanto que somos muito abertos em relação a mulheres, pais e mães.

David parece tranquilo e honesto. Janna recebe os certificados das principais associações sindicais, incluindo dois órgãos de igualdade de tratamento. Em anexo chegam também os dados a que David se referiu.

— Vou além: na LifeTech apoiamos essas escolhas proativamente. Mas a questão permanece, Janna: tem certeza de que você quer ter filhos?

— Ainda é uma pergunta absurda.

— Então vamos pensar assim: já falou com o Eskin?

Janna fica em silêncio. O EmpApp indica os valores biométricos alterados pela raiva. Ela se lembra das várias discussões que tiveram sobre o assunto. É a única coisa que não funciona no relacionamento, e ela nunca entendeu a insensibilidade de Eskin sobre a questão.

O M.I.Right propõe alguns conselhos, que Janna ignora encostando o dedo médio no polegar. Por fim, recebe a chamada de uma consultora virtual.

[Olá, Janna. Meu nome é Rita, faço parte do Women Rights Europe. Revi sua conversa e estou disposta a intervir no caso. Aceita minha defesa?]

Janna une polegar e indicador.

— Desculpa, David, mas qual é seu objetivo?

— A oferta de emprego não tem relação com o que vai dizer, mas você ainda não respondeu. Por isso, vou repetir: tem certeza de que quer ter filhos?

— Por que quer saber disso?

— Porque sabemos que o Eskin não quer ser pai, e porque sabemos que ele não quer que você seja mãe. Estamos cientes das discussões que tiveram… E você não só expressou o desejo de ter filhos como também deu a entender que prefere perder uma oportunidade de trabalho importante em nome da maternidade. Além disso, está disposta a arriscar a possibilidade de não comprar um iMate, comprometendo o futuro do Eskin. Entende agora?

Três mensagens aparecem no keylog. O EmpApp analisou as palavras de David e encontrou uma explicação: “O entrevistador observou um ponto fraco na tomada de decisão, com uma possível falta de liderança e lógica racional”. O aplicativo JobFit aconselha encerrar a entrevista para evitar que a conversa afete negativamente o perfil profissional de ambos. Depois, a mensagem de Rita continua:

[A violação de privacidade é clara, sinta-se livre para sair daí. Pediremos uma condenação por danos morais: vinte e cinco mil eurodólares é o mínimo em um caso assim.]

Janna aceita a proposta.

— David, com licença. — Janna pega a bolsa e se levanta. — Posso encontrar o caminho sozinha.

— Preciso acompanhar você até a saída. É o procedimento.

Enquanto caminham em silêncio até os elevadores, Janna recebe a resposta de Rita:

[A indenização foi solicitada ao departamento jurídico da LifeTech. Eles têm setenta e duas horas para aceitar uma transação.]

Por fim, a última mensagem é de Eskin:

[Como foi?]

Janna não tem tempo de responder antes da chegada de uma mensagem de Arianna:

[Por favor, ignore meu irmão, ele está muito nervoso hoje. Sabe como é. Volte logo.]

Na fila, aparecem mais duas mensagens da LifeTech. Talvez sejam um pedido de desculpas. Janna nega o acesso ao keylog apertando o punho duas vezes.

Quando chegam à recepção, a moça de chapéu brilhante sorri.

— Tchau, Janna. Espero que a entrevista tenha corrido bem.

David balança a cabeça e se volta para Janna.

— Aceitamos o pedido de indenização. Espero que entenda que não é nada pessoal. Queremos muito trabalhar com você. E talvez isso aconteça algum dia. Posso ter esperança?

— Não, David. Não pode.

Na saída do edifício, as lágrimas começam a embaçar a visão de Janna. O BMW branco está à espera no estacionamento. Desta vez, apesar da insistência do motorista, ela é firme: quer caminhar.

Com base nos biorritmos alterados que aparecem no aplicativo, os nanites liberam uma pequena quantidade de tetra-hidroisoquinolina. O ritmo acelerado do coração e o estômago agitado agradecem a intervenção. Enquanto passa por filas de táxi, ouvindo músicas pop chinesas e evitando os jornaleiros, Janna se afasta da poluição sonora do Centro Empresarial. O cérebro dos napolitanos deve estar programado para filtrar a barulheira, captando apenas o que bem entendem.

Na agenda dela, há apenas um compromisso restante: pizza, talvez a única experiência positiva da viagem. A oitocentos metros há uma pizzaria com mil e trezentas avaliações positivas.

Criação

 

Para: Eskin Agare

De: David Medina Fernandez

Conteúdo criptografado.

Caro sr. Agare,

Escrevo para relatar os resultados do teste de Janna. Depois que chegou à LifeTech, dizendo que estava passando mal, ela ficou em “suspensão” por cerca de uma hora para que pudéssemos realizar as verificações de rotina. Mais tarde, em uma entrevista, averiguei pessoalmente a análise do protocolo de condicionamento, e posso atestar seu estado de saúde física e mental. Juntamente aos técnicos de laboratório, realizei todos os testes, e a avaliação geral é positiva: não há disfunção atribuível à LifeTech. O desejo de maternidade que Janna insiste em ter é muito provavelmente devido a fortes condicionamentos sociais e modelos emulativos de comportamento, além de satisfação pessoal, instintos que não são cobertos pelas configurações básicas. Janna está funcionando perfeitamente, e sua reclamação, pelo que pudemos apurar, não pode ser aceita. No entanto, gostaria de lembrá-lo do programa Cegonha, em promoção até dezembro. Se quiser fazer parte dele, podemos cuidar dos aspectos burocráticos e de instalação de um emulador de maternidade. Em nove meses terão um belíssimo Eskin Júnior, e sua Janna ficará completamente satisfeita.

Espero ter sido de ajuda,

David

Diretor do programa de assistência a consumidores do iMate – Países Nórdicos


Para: David Medina Fernandez

De: Eskin Agare

Sr. Medina,

Isso é inaceitável. Investi todas as minhas economias na Janna, e preciso que ela trabalhe para cobrir as despesas médicas minhas e da minha irmã, Arianna, que herdou o mesmo problema de família. Não podemos esperar nove meses, nem quero ter um filho! Principalmente porque eu não chegaria nem ao quinto aniversário da criança, considerando a evolução do meu caso. Nos últimos meses, Janna recusou três ofertas de trabalho na Europa e na Sociedade Mediterrânea, sempre com a mesma motivação: uma transferência não seria adequada para a saúde de possíveis filhos. Ela recusou um contrato de dez anos na Alemanha porque diplomas de escolas alemãs não são reconhecidos pelas faculdades estadunidenses! Um verdadeiro desastre. Se continuar assim, logo não teremos dinheiro para a terapia nem para a casa. A LifeTech não pode ignorar a situação. Caso contrário, precisarei recorrer aos tribunais e à mídia.

Eskin


Para: Eskin Agare

De: David Medina Fernandez

Caro Eskin,

Pode acreditar que tenho grande empatia pela sua situação devido à doença. Não me atrevo a imaginar quanto está sofrendo por você e pelo futuro da sua família. Na LifeTech, temos orgulho de fazer dos iMates um recurso importantíssimo para pessoas como o senhor, sua irmã e tantos outros. Ao comprar Janna, no entanto, o senhora estava ciente de que esse não é um androide comum configurável de acordo com suas vontades: o iMate é um ser humano impresso em 3D, dotado de inteligência sofisticada e desenvolvido de acordo com rígidos parâmetros éticos e morais. O sucesso em tudo que ele pode fazer depende do protocolo motivacional que o impele a aproveitar suas habilidades ao máximo. Isso está diretamente ligado ao fato de Janna se considerar um ser humano — mais especificamente, uma mulher. Esse nível de complexidade foi informado durante o treinamento que acompanha a aquisição.

Supervisionamos por meses a educação e o desenvolvimento de Janna através do nosso protocolo proprietário antes de simular a descontinuidade do acidente ferroviário e criar uma memória fictícia tendo o senhor como parceiro. Fornecemos instruções detalhadas sobre como gerenciar seu iMate, e sabemos, graças a vinte anos de experiência no desenvolvimento desse produto, que o senhor ficaria plenamente satisfeito caso seguisse nossos conselhos com cuidado e diligência.

Apenas 0,7% dos iMates femininos desenvolvem um desejo não planejado de maternidade. Em todos os casos, demonstramos repetidamente em frente a tribunais de vários países que o imprevisto era sempre devido ao condicionamento social induzido pelo descuido dos respectivos proprietários ao não seguir as instruções — comportamento que, como o senhor deve saber, anula o contrato de manutenção.

Convido-o a reconsiderar a oferta do programa Cegonha: ele poderia assegurar aos seus filhos um futuro brilhante junto a Janna.

A título excepcional, gostaria de oferecer um curso de formação para garantir que Janna possa assisti-lo durante os últimos momentos da sua vida, sem sofrimentos desnecessários. Uma vez que essa opção é legal nos países nórdicos, ficaremos felizes em ajudar caso decida considerar nossa proposta.

Atenciosamente,

David

Diretor do programa de assistência a consumidores do iMate – Países Nórdicos

Decisão

Mensagem recebida, ScandAir:

[Saudações, Janna. Estamos prestes a pousar em Arlanda, Aeroporto Internacional de Estocolmo. Para sua segurança, a ScandAir recomenda apertar os cintos. Bom voo.]

É o segundo alerta que ela põe em espera no canto do campo de visão. Só vai conseguir apertar o cinto depois que a menina e a mãe sentadas ao lado dela voltarem do banheiro. No assento vazio, a criança deixou uma boneca de cerca de vinte centímetros parecida com um ciborgue fetichizado: o corpo está envolvido num macacão amarelo apertado, e as pupilas, que seguem o olhar de Janna, são de um roxo intenso que não parece natural.

— Gostou? Ela parece com você — diz com voz estridente a menina, parada ao seu lado no corredor do avião.

— Betina, não enche o saco da mulher — oferece a mãe com um sorriso envergonhado.

— Imagina, não está enchendo nada. Qual é o nome da boneca? — pergunta Janna, deixando as duas passarem antes de enfim apertar o cinto de segurança.

— Você primeiro.

— O meu é Janna.

— Então o dela também é Janna. Porque é bonita como você.

— Betina! — intervém a mãe. — Não é legal dar o nome dela pra boneca.

Betina faz um bico e, sem saber para onde se virar, abaixa a cabeça entre o banco e o encosto da frente. Depois, cobre a nuca com as mãos.

— Ah, Betina, não precisa se preocupar. Janna é um nome lindo para uma boneca. Ela é nova?

A menina levanta a cabeça, pega a boneca e a faz andar pelo braço do assento.

— Sim, quem me deu foi meu pai.

— Há quarenta anos sua boneca era muito popular, acho que era protagonista de um filme.

— Impossível! Essa boneca é única, não existe nenhuma outra como ela.

— Tem razão, devo ter me confundido.

— Querida, você sabe que isso não é verdade — a mãe interrompe. — Na loja onde o papai comprou tinha muitas outras iguais.

— Por fora, eram iguais — continua a menina, movendo os braços e as pernas da pequena Janna —, mas por dentro são todas diferentes. Como a gente.

Solicitação de ligação [contato desconhecido]. Janna aceita.

[Não se incomode, por favor. Ela tem uma irmã gêmea e está um pouco chateada com isso.]

A mãe olha para Janna, que sorri com aprovação, mas o keylog informa que a menina não tem irmãs: a “gêmea” deve ser um clone de tempo determinado, última tendência entre casais divorciados, uma espécie de fotografia viva dos filhos em disputa destinada a durar poucos anos para aliviar o sofrimento do pai sem a guarda.

Janna já leu polêmicas pesadas sobre essa questão. Em alguns estados, a clonagem é proibida, mas em outros é tolerada ou não regulamentada. Por toda a parte houve discussões não só sobre a ética do fenômeno, mas também sobre as consequências psicológicas para pais e filhos.

Enquanto isso, Betina conversa com a boneca. Entre as várias definições de “ser humano”, algumas parecem feitas de propósito para gerar dor e complicações, ainda que sejam criadas para o objetivo oposto.

Em vez das ofertas de lazer oferecidas pelo keylog, como filmes, músicas ou jogos, Janna seleciona impressão 3D.

Mensagem de entrada, ScandAir:

[Bem-vinda à loja de bordo. Escolha no catálogo um dos seis milhões de itens disponíveis para impressão expressa ou faça upload de uma imagem do item que deseja. Se as matérias-primas estiverem disponíveis no avião, a impressão ficará pronta em poucos minutos. Caso contrário, pode recolhê-la no portão de saída.]

Janna observa a boneca de Betina e toca a têmpora direita. O keylog faz uma digitalização em 3D do brinquedo.

[Agradecemos a aquisição, Janna. A boneca vintage ALITA é um modelo muito popular. Em poucos minutos, um comissário de bordo levará a impressão até você. Gostaria de embrulhar para presente?]

Janna pressiona o dedo médio contra o polegar. Não é um presente — pelo menos, ainda não. Será um presente em nove meses, custe o que custar.

Depois, abre o app Work4U e inicia o cancelamento das ofertas de trabalho e de todos os monitoramentos ativos na última semana:

      • Biobot Counselling Partner para Frauenzimmer P. Company, Vinduque
      • Gestora de modulação de interface, Robotic Earthworms, Lagos
      • Arquiteta de personalidade avatar, Tyrell Inc., Hong Kong
      • Conditioning Master, Silitron Ltda., Mosca

Em certo ponto, o dedo de Janna para no ar. Há uma nova oferta de emprego dirigida pessoalmente a ela.

      • Editora científica com funções de verificação de fatos, SVARM Corporation, Estocolmo

Indicador e polegar se unem.

Descoberta

Para: Janna Toeissen

De: SVARM Corporation

Cara Srta. Toeissen,

Agradecemos o contato. Gostaríamos de encontrá-la em Estocolmo nos próximos dias ou até mesmo amanhã, se possível, para explicar os termos da oferta, tanto profissional quanto economicamente. Favor informar sua disponibilidade o quanto antes.

Atensiosamente

Este endereço de e-mail é propriedade do grupo SVARM. Qualquer opinião expressa por um representante SVARM através deste meio está sujeita ao Acordo de Oslo sobre a imponderabilidade das comunicações eletrônicas. Convidamos a visitar nossa vitrine sensorial no endereço [e-dolls/SVARM].

Para: SVARM Corporation

De: Janna Toeissen

Bom dia,

Não sei se estou pronta para uma reunião presencial. Além disso, tenho medo de ter havido um mal-entendido: não me recordo de ter começado um processo de seleção com a SVARM. Acredito que queiram primeiro me entrevistar e, depois, me submeter aos testes de psicoaptidão.

Obrigada pelo esclarecimento,

Janna

Para: Janna Toeissen

De: SVARM Corporation

Janna,

Você é a pessoa que estamos procurando, e temos certeza de que, apesar do cansaço da viagem, terá interesse em ouvir nossa proposta. Podemos nos encontrar na quarta-feira de manhã, em dois dias. O endereço e horário da entrevista serão enviados com algumas horas de antecedência.

Até mais.

Quando tenta responder, o endereço de e-mail consta como inexistente. Não encontra vestígio algum entre as mensagens na caixa de entrada ou nos registros do servidor, mas o lembrete do compromisso aparece na agenda. Janna não aceitou nada, mas agora, quarta-feira, com o rosto refletido no vidro de um escritório panorâmico no último andar de um edifício no centro de Estocolmo, entende que foi imprudente.

Pediram para esperar que o último gerente chegasse. Depois de três entrevistas, ela estava com vontade de ouvir as músicas de Arianna, aquelas melodias neuroativas moduladas pelo violino e capazes de transportar para outro lugar, nota após nota, neurônio após neurônio. Neste exato momento, a interpretação da cunhada do Canone em ré menor de Pachelbel lhe restitui um pouco de energia positiva.

A superfície transparente diante de Janna está configurada para possibilitar conexões holográficas, e o logotipo da SVARM, que não para de piscar, rapidamente a convida a entrar nos links do menu.

Ela ignora tudo em favor de uma coisa mais urgente chamando sua atenção.

[É uma ótima oferta, Eskin: vão me pagar para escrever artigos sobre os protocolos iMate.]

[Não me parece grande coisa. Além disso, você não me falou da empresa. Quem são? São de confiança?]

Janna decidiu não contar a Eskin sobre a entrevista. Foi fácil, visto que ele tinha uma hora de terapia, das oito e meia às nove e meia, e Arianna estava no hospital avaliando a evolução da doença. Janna se aproveitou da situação para sair de casa sem falar nada.

[É uma empresa que não gosta muito de publicidade. Pagam bem. Vou poder trabalhar em home office e cuidar de você.]

[Por que não podemos conversar? Mal conseguimos nos ver ontem. Me liga.]

[Não quero que nos vejam discutir sobre esse assunto.]

Janna começa a caminhar em direção à janela de vidro. Eskin está escrevendo alguma coisa. Está zangado. Começa a escrever e para. Começa de novo… e para.

Ela mantém os olhos fixos nas luzes da cidade a se perder no mar Báltico. A constelação de pontinhos brilhantes que decora o skärgård de Estocolmo parece indicar um caminho e, ainda que de maneira confusa, concede a ela uma boa parcela de necessária lucidez. A água que banha as várias ilhotas tem o poder de unir e separar, ao mesmo tempo, cada parte do arquipélago. Ela também se sente dispersa, composta de diversos elementos tocados e conectados por um líquido que não é água, mas possui a dureza do gelo. Principalmente agora, na primavera, quando os primeiros blocos congelados começam a rachar e as placas mais finas flutuam, transportadas pela correnteza na direção do mar.

[Mereço saber pelo menos até quando vai o contrato.]

[Não sei. Na verdade, não vou ser contratada. Vou mandar os artigos para o comitê científico e receber pelo trabalho feito.]

[Mas então não é um emprego!]

[Gosto muito dessa flexibilidade.]

[Podemos pagar uma cuidadora.]

[Ficar em casa vai me fazer bem, também… e ajudar na hora da gravidez.]

Eskin não escreve mais, e Janna volta a se sentar. Leva as mãos ao rosto, ainda que tenha certeza de que o cômodo está sendo monitorado e cada gesto registrado. Em seguida, recebe o sinal de uma chamada. Une polegar e indicador. Eskin deveria estar deitado na cama, onde ela o deixou de manhã, antes da terapia. No vídeo, porém, o avatar está sentado diante de uma escrivaninha vitoriana reconstruída por um software de modelagem 3D, cheia de objetos musicais. É assim que ele gosta de se apresentar aos clientes.

— Já conversamos sobre isso, Janna. Não temos dinheiro para criar uma criança, e o momento não é bom para isso.

— Me ofereceram mais do que o último contrato. Nós vamos ter dinheiro, e não acho que tem isso de o momento ser bom ou não. É o tipo de coisa que tem que acontecer.

— Você é tão teimosa… A Itália não te fez bem. Você não se importa mais comigo?

— A Itália me fez entender o que eu quero. Esse trabalho vai me permitir ficar perto de você e render o dinheiro para cuidar de você e da Arianna.

— Isso é loucura, Janna! Você recebeu ofertas ótimas e mandou tudo pros quintos. Por quê?! Por uma empresa desconhecida que paga por publicação? Isso não vai durar… Você sabe disso. Não vão pagar direito. Só vamos perder tempo. Está cometendo um erro péssimo.

— Meu erro é aceitar a oportunidade ou querer ser mãe?

— Não foi para isso que encomendei você!

O avatar de Eskin faz um gesto zangado, levanta os braços e os deixa cair sobre a mesa. Janna fica de pé no instante em que o EmpApp se acende.

— Como assim, Eskin?

O avatar dele não reage. Parece resignado. Está solto largado na poltrona, sem energia. A ligação termina.

Janna escreve uma mensagem:

[Fala comigo! O que você quis dizer com “não foi para isso que encomendei você”?]

A porta do escritório se abre, e David Medina Fernandez, em um terno escuro de alfaiataria italiana, atravessa o umbral. Não mudou nada desde o encontro na LifeTech alguns dias antes. O keylog de Janna, porém, não recebe os dados pessoais da presença nem reconhece a identidade virtual. A barba desta vez está desalinhada, e não há mais sinal do sorriso cordial que ela viu em Nápoles.

— Tudo bem, Janna?

David se aproxima do minibar e serve um copo d’água. Põe dois cubos de gelo recheados de uma única framboesa cada.

— Sim. Só queria ter certeza de que meu noivo estava bem.

Janna aceita o copo, agradecida.

— Não parece surpresa em me ver.

— Estou, mas estou mais surpresa com a proposta da SVARM. Então, ou você não é o tipo de pessoa que aceita uma rejeição, ou também trabalha para eles.

— As duas coisas. Não sou um homem que desiste facilmente de uma oportunidade indispensável, mas sim, trabalho para a SVARM já há algum tempo. Na verdade, até a LifeTech faz parte desse meu trabalho.

— É legal?

— Digamos que não é ilegal… Lamento saber que o Eskin discorda da sua decisão, mas isso era previsível.

A conversa está obviamente sendo monitorada: não há sinal no prédio, não há informações no mapa georreferenciado, e até a identidade do homem diante dela está oculta pelos vários webcrawlers do keylog, coisa muito rara — e cara. Se Janna não soubesse que se trata da mesma pessoa que encontrou na Itália, poderia acreditar que David não está ali na Suécia. Talvez estivesse em casa ou de férias. Deve ter chegado em um jatinho particular, num carro da SVARM… Mas, de acordo com o keylog, ainda está em Nápoles. Há um detalhe suspeito: o uso de ubiquidade da identidade distribuída — que, se não bastasse para confundi-la, é criminalmente imputável, já que a identidade de uma pessoa pode ser ocultada, mas não dissociada. Numa era em que o roubo de dados depende apenas de tempo e capacidade de cálculo, é curioso que as batalhas mais sofisticadas ainda aconteçam através de espiões muito comuns.

— Não é ele que decide a minha vida.

— Você vai ter problemas?

— Problema nenhum.

Janna volta a se sentar, fingindo tranquilidade apesar da frase de Eskin, que ainda ronda sua cabeça. David desabotoa o blazer. A camisa está amassada, e os sapatos, empoeirados.

— Muito bem. Vejo que já aceitou o contrato. Estamos enviando as chaves criptografadas para acesso à conta da SVARM. Você vai receber os temas dos artigos por essa conta, e quando mandar os arquivos ao comitê científico, vai ter que esperar alguns dias pela aprovação e envio do pagamento.

— E a duração?

— Enquanto durar a pesquisa.

— Pesquisa sobre o quê? O contrato não especifica a área de interesse, fala apenas de artigos sobre o condicionamento de biobôs.

— Vamos fornecer todo o necessário.

Com as mãos, David limpa os sapatos. Parece descontente com a camada de pó.

— Eu… não entendo.

— Queremos que se concentre exclusivamente no protocolo iMate, ou melhor, na violação dele.

Barulho de água e cubos de gelo derramados sobre a mesa. David ergue as sobrancelhas e se depara com Janna de pé, encarando-o.

— Posso sair daqui agora mesmo. E denunciar você.

— Como quiser. Mas sabe que esta conversa nunca aconteceu. Eu não estou aqui.

— Você está me pedindo para cometer um crime.

— Só se alguém descobrir. Sente-se e permita que eu termine, por favor. Quanto tiver todas as informações, vai poder decidir com calma. Por você… e pela sua família.

David puxa a cadeira para perto da mesa e espera até ela se sentar. Enquanto isso, brinca com os cubos de gelo.

— Não tem como funcionar. Vão descobrir.

— É improvável. Além disso, quando o protocolo for violado, ninguém vai pensar no culpado. Primeiro vão ter que lidar com as consequências.

Janna está perplexa. É uma entrevista muito diferente da que teve na LifeTech.

— Por que vão me pagar depois que…

— Pode falar, Janna. Estamos seguros aqui.

— … que tiverem o que querem?

Janna se lembra das palavras de Eskin. Não foi para isso que encomendei você. O que significam?

— Sei que a ideia assusta.

— Não é isso. Ninguém consegue violar o condicionamento dos iMates. Nem mesmo hackers e pesquisadores com mais experiência que eu. Chega de jogos, David. Não quero entrar em uma guerra de segredos comerciais.

O indicador de David toca a framboesa no copo e empurra a fruta contra o cubo de gelo, esmagando-a no fundo.

— Não há guerra. Na verdade, não trabalho para a LifeTech nem para a SVARM… Vale. É complicado. Pode me considerar um freelancer.

— Um espião.

Ele lambe o dedo manchado.

— Vamos dizer assim. Não se trata de mim, e sim de você… Você é o zero vírgula sete por cento.

— O quê? Zero vírgula sete por cento do quê?

— De uma coisa única.

David bebe, e a água rosada parece refrescá-lo.

— Já chega. Você fala em enigmas, mas fez uma oferta falsa de trabalho. Faz parte de uma organização secreta e tem um jogo duplo com a LifeTech. Acho que o Eskin tinha razão. Essa história toda parece até coisa de novela.

— Mas você estava pronta para aceitar.

— Eu ainda não tinha essas informações.

— Então me deixe acabar. Você vai ter um quadro completo da situação.

David fica de pé e, com uma mão, faz aparecer um catálogo holográfico da SVARM: recém-nascidos, crianças, adolescentes de ambos os sexos biológicos. Ou melhor, os modelos para impressão 3D.

— Até o momento, a LifeTech tem o monopólio do crescimento de biobôs adultos para o mercado de trabalho, enquanto a SVARM se limita a imprimir clones de um a sete anos de idade para o setor de compensação afetiva em casos de divórcio ou trauma psicológico, como luto. Privar a LifeTech dessa vantagem já seria um sucesso, mas, a longo prazo, estamos interessados em uma coisa mais importante. Muitas empresas produzem biobôs e androides com tração muscular. Você ficaria surpresa com alguns protótipos. São decididamente melhores que os da LifeTech… mas sempre limitados pelo protocolo de condicionamento.

Entre todos os modelos expostos, ele indica um.

— Foi dessa que você gostou, certo?

Janna reconhece a boneca de Betina, mas um exemplar alto como uma garotinha de oito anos, com duas presilhas fluorescentes nas tranças de cabelo escuro.

— A libertação de biobôs abre cenários incríveis. Cenários que não estamos prontos para entender.

— Que tipo de cenários?

— Nossos biobôs infantis e adolescentes são impressos e cultivados in vitro, mas têm uma existência limitada pela legislação.

— Sei como é.

— No máximo, e em casos muito específicos, os órgãos são disponibilizados para transplante nos respectivos proprietários. Eles não têm um futuro. Em vez disso, os biobôs da LifeTech são impressos em idades diferentes, dependendo das necessidades do mercado, e não têm passado. Lembram apenas de um roteiro programado por software, um gerador de histórias humanas. Chegou a hora de eliminar essas limitações sem sentido. É por isso que apoiamos o jus sanguinis puro, a libertação morfogenética, o direito de ser quem quiser ser a partir do nascimento ou qualquer outro momento da gênese individual.

O keylog de Janna a enche de dados, dos primeiros estudos de Alan Turing sobre morfogenética química às pesquisas de Rupert Sheldrake sobre ressonância mórfica — consideradas um disparate pelos acadêmicos — passando pelos experimentos biotecnológicos conduzidos em laboratórios clandestinos, dos quais os cantos mais desconhecidos da internet estão cheios de exemplos.

Janna está incrédula. Balança a cabeça enquanto recebe as atualizações.

— Trabalhei por anos na teoria dos modelos de condicionamento. Conheço a literatura e entendo perfeitamente que pode parecer injusto, mas tem um motivo para essa limitação dos iMates.

— Tente mudar seu ponto de vista. O potencial dos biobôs não é devidamente aproveitado.

— David, acreditar que iMates sofram pelo condicionamento é típico dos seres humanos, é nosso conceito de empatia. A verdade é que são inteligências biológicas artificiais, possivelmente limitadas. Podem ser perigosos…

— Não são mais perigosos que seres humanos. Assim como o fogo, a energia nuclear e a exploração espacial, cada descoberta tem um risco. Acreditamos que os iMates são o futuro da humanidade.

— Já ouvi esse discurso antes. Vamos esquecer a ética e a filosofia new age por um momento. Quero ser bem clara: acho que não consigo quebrar o protocolo. Mas, se me pagarem mesmo assim, posso tentar.

— Vamos cobrir as despesas do tratamento de Eskin e da irmã dele e de qualquer outro projeto que você tenha em mente.

Por instinto, Janna olha em volta. Sente-se encurralada e apreensiva. O fato de terem escutado a conversa deles não lhes dá o direito de a abordarem desse jeito.

— David, ter um filho não é problema aqui na Suécia, e posso sempre encontrar um trabalho com um bom convênio de saúde.

O homem para antes de dar uma resposta.

— E você já tem os recursos legais adequados?

Não foi para isso que encomendei você. A frase de Eskin não sai da cabeça dela, fazendo com que perca a concentração.

— Que história é essa agora? — responde Janna. — E não é da sua conta.

— Se trabalharmos juntos, vai ser.

— Claro, porque eu seria sua cúmplice.

— Pode ver assim agora, mas se violar o protocolo, além de ser nossa cúmplice, vai ser também uma paladina da liberdade, a Joana d’Arc do século XXI. Num mundo novo, não vai ser mais uma criminosa. Ao contrário, vai ser considerada uma pioneira. O zero vírgula sete por cento representa a falha nos modelos iMate que levará à evolução da espécie humana. Você vai ser a primeira mãe consciente.

Está dizendo que nasci adulta?

Um buraco enorme espreme o peito de Janna até esvaziá-la da existência: a casa de tijolos vermelhos em Olofström se despedaça, as corridas entre as bétulas com o pai, Lars, se interrompem, os pássaros desaparecerem de repente, as fores que a mãe, Maria, colhia no jardim murcham, um sol suave implode, dando lugar a uma noite sem estrelas, uma cavidade oca e sem sentido, assim como suas memórias.

Não foi para isso que encomendei você. Foi isso que Eskin quis dizer? Zero vírgula sete? Eu sou… um iMate?

Janna sente uma culpa estranha por não ter um passado nem poder se lembrar verdadeiramente da infância: contos de fadas, façanhas da adolescência e amores juvenis são apenas enxertos de catálogo, produções mnemônicas geradas em um estúdio de TV após a encenação de um programa com supervisão de um psicanalista da LifeTech.

Um bloco de sua existência acaba de se separar dela como um iceberg à deriva, derretendo no mar, diluindo a própria forma junto à sua identidade. Mas como lembranças que nunca existiram podem fugir assim? E a quem elas pertencem? São apenas dados anônimos agregados, fatias da vida de estranhos alimentadas ao keylog pelas redes sociais?

No menu digital, seus primeiros vinte e cinco anos de vida ocupam cinquenta terabytes de memória. Ela gostaria de revisitá-los, como quem está prestes a morrer. Gostaria de se sentar com a família em volta da mesa e retornar ao litoral rochoso onde costumava correr atrás dos colegas de escola que puxavam suas tranças. Provavelmente escolheria o bloco de lembranças entre os catorze e dezenove anos. É sua época preferida. Os encontros com Eskin nos concertos, as longas madeixas pretas dele, as calças de couro e os furtivos encontros amorosos nos bastidores das casas de espetáculo.

— Está fazendo a coisa certa, Janna… por você e por seus filhos. Agora, volte para casa e descanse. Teve um dia difícil. Vai receber o primeiro projeto na semana que vem.

David indica a saída. Ela se levanta e cobre a distância quase sem respirar.

— É um adeus. Não vamos mais nos ver, Janna. Bom trabalho e boa sorte com tudo. Foi uma honra conhecer você.

Janna 5.0 – Procriação

Janna une a ponta dos dedos indicador e médio ao polegar da mão direita. Em seguida, fecha os olhos e vê uma porta de ébano incrustada com figuras dos Múspellsmegir e outros gigantes da tradição nórdica atravessando a ponte arco-íris de Bifröst. Pronuncia mentalmente o código alfanumérico, e a porta se abre. Do outro lado, vê a silhueta de uma menina pequena de cabelo avermelhado. Está usando um vestido branco que a destaca contra o ébano escuro.

— Estamos sozinhas, Janna. Ninguém está espiando seus pensamentos. Preciso que você fique calma.

O código não se completa sem a última passagem: se Janna estivesse ameaçada ou em perigo, Disir destruiria o conteúdo da cela mnemônica. Se, por outro lado, não conseguisse relaxar, teria permissão para acessar uma parte pequena de informação, a mais superficial, continuando a gerir o keylog de maneira autônoma sem pôr os dados em risco. Disir é um presente da SVARM: o melhor programa de proteção pessoal existente. Fora de comercialização e equipado com chaves de acesso sensorial de vários níveis.

— Obrigada, mas acho que não vou conseguir. — Janna leva uma mão ao ventre. — Estou um pouco agitada.

A menina não responde. Limita-se a abrir a porta e convidá-la para uma sala com paredes de pedra e duas poltronas diante de uma mesa.

— É um ambiente simulado. Se quiser, posso apagá-lo.

— Não, tudo bem. Não me incomoda.

Sentam-se frente a frente. Sobre a mesa de madeira, uma tela mostra o infográfico do projeto.

— Este foi o último artigo enviado ao comitê da SVARM. É a análise de uma tentativa de violação do protocolo iMate.

Os dados da pesquisa estão à esquerda do holograma que representa uma árvore estilizada. À direita, é possível ver a aprovação do comitê e comprovante do depósito bancário.

— O estímulo não violou o protocolo. Pelo contrário, ele saiu ainda mais reforçado… — Janna fecha o arquivo com um gesto da mão. — Assim como vem acontecendo há vinte anos em todos os laboratórios e universidades de metade do mundo.

— O condicionamento é sofisticado — comenta Disir.

— É uma arma poderosa: induz qualquer um a se comportar de maneira consistente com um estereótipo por vontade própria. Gera desejos e expectativas e influencia as perspectivas a médio e longo prazo, tornando as ações, mesmo as mais improváveis, previsíveis.

Disir cita o trecho de um artigo anterior:

— “… as condições que podem violar a integridade do protocolo, revelando aos biobôs sua verdadeira natureza, acabam tornando-o mais resistente à própria violação e alimentam uma falsa consciência baseada em elementos conscientes e inconscientes”.

Janna lamenta não ter sido mais direta na dissertação.

— Na prática, é como tentar convencer alguém de que não está apaixonado: virtualmente impossível.

— Quer que adicione isso às notas? — pergunta Disir.

— Sim, obrigada. Pode buscar alguns exemplos? Existem estudos sobre a comparação entre modelos de condicionamento e estados de alteração psicoafetiva.

Enquanto Disir arquiva a observação, Janna abre um programa de streaming e seleciona uma música.

— Em três meses analisei as relações emotivas que centenas de iMates têm com seus donos e não encontrei fragilidade alguma.

— Correto, mas há uma condição limite pouco explorada na literatura: em situações de forte conflito com o “dominus”, e quando o proprietário também corresponde ao parceiro afetivo do iMate, podemos observar uma transferência inconsciente de propriedade a um terceiro.

As notas de Adagio, de Tomaso Albinoni, tremulam como penas no ar.

— O iMate pode se apaixonar por um homem.

— Ou uma mulher.

As mesmas notas, depois de um tempo, parecem cair e se assentar sobre os pensamentos de Janna como um precipitado em uma solução.

— Mas paixão não passa de uma demonstração de humanidade que reforça o protocolo. A informação básica está do lado de dentro: o biobô sabe que um ser natural pode trair, enquanto um não natural jamais faria isso. É o estereótipo. Ele seguiria o programa sem se desviar por sentimentos.

Mas não é tão simples, sussurra Janna enquanto toda a sala desaparece e ela volta a se deparar com a porta fechada diante de si. Em volta dela, tudo branco.

Não foi para isso que encomendei você.

iMates e outros biobôs são condicionados por um ego fraco, maleável e fácil de ser alterado por estímulos simples, como as expectativas do dominus ou a necessidade de serem aceitos para serem considerados capazes e merecedores. Um iMate precisa da consideração alheia. Se não consegue, sofre, e essa dor o leva a se conformar com as expectativas de quem o possui. No entanto, se ele descobre que não precisa da aceitação de um dominus, o iMate se liberta, ainda que essa perspectiva seja assustadora: ninguém quer ser artificial.

As maiores dificuldades sempre se escondem onde não se espera. O protocolo não pode ser quebrado. Deveria sempre ser assim. Deveria.

Janna 6.0 – Nascimento

O médico é simpático e gentil, como todos os funcionários da clínica.

— Pena que esteja sozinha… Ter um companheiro ao lado ajuda muito. Mas a lei exige que registremos o consentimento do pai em caso de tratamentos específicos.

No corredor, fora do cubículo, algumas enfermeiras conversam em voz baixa.

— O Eskin sofre de uma doença degenerativa e não pode sair de casa — responde Janna, evitando olhá-lo nos olhos.

Na verdade, Eskin resistiu à ideia de ter uma filha, e não estaria ao lado de Janna nem se estivesse em perfeita saúde. Talvez tenha ido ao cinema ou ao Museu Fotografiska, onde adora passar as tardes fitando a esplêndida imobilidade de um momento, já que caminhar não faz mais tão bem. Sem a intercessão de Arianna, ele talvez nem tivesse dado a permissão para que Janna estivesse ali.

O médico verifica a ficha, analisa a assinatura eletrônica de Eskin e caminha em direção ao corredor.

Desajeitada por causa da barriga já grande, Janna se senta na cama e liga para a cunhada.

— Oi, mamãe! Tudo pronto?

— Parece que sim. Como o Eskin está? Perguntou da Kaitlyn?

— Ainda não. Mas os homens são assim. De primeira, um filho parece uma condenação, mas depois se apaixonam pela criança e tudo fica bem. Você vai ver, ele não vai resistir!

— Não sei… Ele se afastou muito.

— Não seja injusta com ele.

— Ele é seu irmão, você sabe como é. E ele vai morrer logo. Não queria uma filha, queria um remédio para a doença e dinheiro para a casa e todo o resto.

Janna põe a mão sobre a barriga redonda. Até Kaitlyn parece querer entrar na conversa.

— Em “todo o resto” está incluso também o dinheiro do meu tratamento, Janna.

— Me desculpa, fui insensível. Deve ser medo ou cansaço.

As lágrimas lhe ofuscam a visão: o rosto de Arianna na tela é mais magro que o seu, principalmente agora que Janna come por duas. Também é emoldurado por cabelos louros e curtíssimos, como os de Janna costumavam ser.

— É normal que você sinta raiva. Agora, tem que pensar em você mesma. Vai ser mãe… e eu, tia!

Com um sorriso na boca, olhos azuis e cabelos quase brancos de tão claros, Janna e Arianna quase parecem irmãs gêmeas.

— Você recebeu o presente? — Arianna pergunta.

— Que presente?

— Vai para a sala de espera, o keylog funciona lá. Você vai ficar mais feliz.

Janna sai da cama. Tem vergonha de andar por aí de chinelo e camisola, mas a curiosidade é maior. Com um gesto, avisa à enfermeira que vai voltar logo e segue para a sala no fim do corredor. A tela holográfica a acompanha como um fantasma, projetando a face de Arianna sobre os ombros:

— Tomara que goste!

Na entrada, há poucas pessoas sentadas nas poltronas. O keylog se registra e transfere várias mensagens. Janna procura a da amiga:

[A Doll House chegou!]

Quando abre o aplicativo, Janna vê a entrada do apartamento em Estocolmo:

[Bem-vinda de volta! Temos uma surpresa para você.]

Ao entrar, o aplicativo faz uma panorâmica do corredor, passa pelo quarto de Eskin e para em frente à porta do estúdio. A imagem fica confusa, propositalmente sem foco, e em seguida aparece na porta o nome de Kaitlyn, impresso em fogo em um pedaço de madeira branca com belas letras infantis e um balão colorido no lugar do pingo da letra I.

Janna não para de sorrir, seguindo o aplicativo pela soleira da porta que não conduz mais ao estúdio: em vez disso, o que vê é um quartinho com paredes listradas em tons pastéis de rosa e branco, decorada com desenhos de bonecas e palhaços, um carrossel com cavalos de madeira e uma fada da floresta de chapéu verde e varinha de raminhos entrelaçados. À direita, perto da janela, um berço de madeira branca laqueada. O drone que filmou o vídeo para na coberta cor-de-rosa do berço. A boneca ALITA estende os braços à espera de Kaitlyn.

— Minha sobrinha não podia crescer num quartinho triste.

— Espero que o Eskin não se oponha.

— Nem tem como! O pessoal da Doll House veio hoje de manhã com as peças pré-impressas. Os arquitetos fizeram tudo sob medida e, depois que você saiu, montaram o quarto todo em duas horas.

— E o que você fez com o Eskin?

— Disse que o cômodo estava infestado de formigas e eu tinha chamado a dedetização para cuidar do caso. Ele está fechado no quarto e, quando sair, vai ser tarde demais.

— Você é um amor.

— Agora, trate de voltar logo para casa.

Elas desligam a chamada, e Janna se prepara para fazer o caminho de volta. As costas doem. O peso da gravidez faz sentir as vértebras afetadas pelo acidente. Agora que o keylog pode se comunicar de novo com o app, chegam as sugestões de doses de medicamentos para aliviar a dor. Janna fica tentada. Não existem configurações automáticas em apps médicos, mas leva poucos segundos para codificá-los com outros aplicativos. A liberação começa imediatamente enquanto ela redefine os nanites para impedir que a substância chegue à criança. Nunca mais na vida quer sentir aquela dor na lombar.

Quando chega ao quarto, a enfermeira entra.

— Senhorita, o anestesista chegou.

— Estou pronta — responde. Vamos fingir que precisamos dele.

Janna 7.0 – Amor

Neva, uma coisa normal para a estação na Suécia.

Janna ama a neve porque a faz se sentir protegida. É como se a massa leitosa que se acumula por todo lado tivesse o poder de parar o fluxo dos acontecimentos.

Da janela do quarto, ela vislumbra um pedaço do jardim coberto de branco. As árvores gestantes dão à luz montes de neve a cada sopro de vento. Assim, a cabana da família Agare, imersa no parque de Djurö, fica ainda mais isolada e inatingível.

Perto dela, o chiado do respirador portátil de Arianna se faz ouvir apenas quando o vento não se enfia por alguma fresta. De vez em quando, a mulher olha para o dispositivo que lhe permite sobreviver, como se fosse normal precisar verificar a cada momento aquilo que nos mantém vivos.

— É temporário, não é, Arianna?

— Não exatamente. Depois da última piora, vou ter que carregar essa coisa comigo.

— É desconfortável?

A serenidade nos olhos de Arianna é a mesma encontrada nas árvores que precisam aguentar a neve até a primavera, quando podem se livrar dela.

— Mais do que tudo, é necessário.

Arianna levanta a xícara de chá como se precisasse de um gole de calor. Ela nem tem muito mais tempo de vida: a maldição da família Agare segue inexorável por um caminho de morte, mesmo que em ritmos diferentes para cada membro.

— Achei que a Kaitlyn ajudaria o Eskin.

Arianna se vira para o carrinho em que a bebê dorme com um braço rechonchudo perto da cabeça. Vê o rosto emoldurado pelo chapeuzinho bordado, os lábios ligeiramente abertos e os fios finos de cabelo, uma herança de família.

— Ele nem olha para ela.

— Dê uma chance a ele.

A xícara de Arianna volta ao pires.

— Queria que ele tivesse dado uma chance à Kaitlyn.

— Você vai ver só, ele ainda vai ficar doido por ela.

— Ele não vai chegar a isso… — Janna balança a cabeça. — A depressão fica cada vez mais debilitante, principalmente agora com a alimentação forçada. Na semana passada, quando foi diagnosticado com uma pneumonia leve, ele me perguntou sobre o programa de morte facilitada.

O barulho do respirador se intensifica.

— Ele me disse, foi um momento de desespero. Vai passar.

— Ele já fez o pedido. A autorização vai chegar em um mês.

— A Kaitlyn vai fazer ele mudar de ideia. Ele vai desistir.

— Me fizeram passar por um curso para ajudar no processo.

— Que loucura! — O ritmo do respirador acelera, e a voz de Arianna fica quase sufocada. Os olhos dela se arregalam. — Que crueldade…

— Não é assim que ele vê. Afinal de contas, faz parte das minhas funções.

A palavra “funções” é engolida por um silêncio que domina o cômodo. A boca de Arianna permanece entreaberta. Ao espanto se junta um medo para o qual Janna já se preparou. Como um animal acuado que não quer esperar pela captura, Arianna começa a especular.

— Por que está dizendo isso?

— Porque eu sei.

A amiga fica em silêncio. Faz que vai beber mais um gole de chá, mas se demora examinando as decorações da porcelana, evitando o olhar da outra. Kaitlyn se agita e demanda a atenção da mãe. O palmo da mão de Janna repousa sobre a barriga da menina, massageando-a com delicadeza.

— Sabe… do quê? — Com a pergunta, Arianna parece se afundar na poltrona, como se o móvel pudesse engoli-la.

— Que sou um iMate.

Não há mais palavras. Arianna não tenta negar nem finge não saber. Por dez anos, Janna tem sido sua melhor amiga, quase uma irmã. A única pessoa a quem confiou esperanças, medos e desejos. Do outro lado, Arianna, ainda mais que Eskin, é o que Janna considera família. Não é só a irmã de seu proprietário, mas uma relação mais íntima e profunda.

Em antecipação à conversa, Janna previu diversos cenários que vão do ódio ao perdão, passando pelo desprezo, indiferença, aceitação e fingimento… E para cada um deles imaginou uma reação, pensando em despejar suas frustrações sobre Arianna, como se fosse ela o motivo de seus problemas atuais.

O EmpApp confirma a suposição: era previsível que Arianna chorasse como na simulação, mas a amiga não está fingindo.

— Não se preocupe, não estou brava com ninguém. E claro que não vou parar de cuidar do seu irmão.

— Eu sei, nunca duvidei, mas você não merece isso.

— Sou apenas um conjunto de bioengenharia genética e tecidos orgânicos impressos em 3D. Por que mereceria qualquer coisa? E por acaso você, que é geneticamente natural, merece sua doença?

— Tem razão. — Arianna levanta a cabeça. — Você é uma mulher tanto quanto eu, ainda que seu nascimento não tenha sido natural. Já teve um tempo em que eu teria preferido não saber o que sei, mas hoje não me importa mais. Ninguém neste mundo, nem mesmo uma minhoca ou uma árvore, pode escolher onde ou como nasce e começa a vida. Só sei que te amo.

Janna sente uma forte repulsa à última frase, uma aversão dolorosa que a aproxima da filha. Kaitlyn perdeu a chupeta, e Janna a coloca de volta na boca da pequena. Desde que descobriu sua verdadeira origem, aquele sentimento insuportável de desconforto retorna com frequência para machucá-la, principalmente em relação a Eskin.

Não foi para isso que encomendei você.

Janna remove a trava do carrinho, aproxima-se da amiga e lhe dá um beijo na testa. Depois, pega o puxador e caminha em direção à porta, vestindo o casaco de pele pendurado bem ao lado. Antes de sair, ouve um barulho seco.

— Não podemos deixar de amar alguém, Janna. É o que nos torna iguais.

A voz de Arianna é diferente sem o respirador.

— Vamos — diz Janna. — O que está esperando? Sai dessa poltrona e vamos dar uma volta.

Ao longo do caminho, a neve derrete em uma manhã inesperada de sol. Janna percebe o barro que lhe suja os pés e as rodas do carrinho. É igual com a raiva que sente: se antes tinha uma consistência firme e brilhante, agora está se transformando em uma lama irritante que não vai embora. Para limpá-la, precisa andar, mas não rápido demais, para não deixar Arianna para trás.

— O que está pensando em fazer? Posso ajudar de alguma forma?

Janna abre a boca para responder, mas muda de ideia, vira de costas e solta da boca o ar esbranquiçado. A SVARM poderia ajudá-la a desaparecer, embora confiar neles seja arriscado: se quiserem explorar sua descoberta, sua vida vai estar em perigo entregar os resultados. Já pensou muito em como sair dessa situação sem comprometer a segurança de Kaitlyn, e por isso ainda não informou à SVARM que atingiu o objetivo. Agora as mãos do tempo, marcadas pela saúde frágil de Eskin, estão trabalhando cada vez mais depressa. Talvez pudesse falar com Arianna, mas não queria acabar com uma denúncia da LifeTech por violação do protocolo. Não que Arianna possa traí-la, mas a informação pode ser extraída do keylog da amiga sem conhecimento e com extrema facilidade. Disir, desse ponto de vista, é sua maior proteção.

— O que vai acontecer quando Eskin morrer?

— Vou voltar a ser propriedade da LifeTech… Talvez exista por aí um mercado secundário ou clandestino de licenças de iMate expiradas.

A estrada segue limpa por quase cem metros diante delas. Depois, se envereda pelas árvores e fica mais sinuosa.

— E a Kaitlyn?

— Vão tirar ela de mim. Um biobô não pode adotar nem criar um ser humano sem a supervisão de outra parte humana.

No bosque congelado, as folhas, os brotos, as raízes e os galhos partidos parecem objetos do cristal mais puro. Um pássaro invisível canta notas de uma coloração verde-esmeralda. Algumas pedras isoladas brotam do chão como inquilinos aborrecidos.

— Eu posso ser essa parte. Podemos fazer com que o Eskin transfira você para mim antes que ele…

— Se mate? Me perdoa a sinceridade, Arianna, mas acho que, nas suas condições, essa não seria uma solução aceitável a longo prazo.

O caminho é interrompido por montes de neve colapsados de ambos os lados. O trecho na sombra é mais frio, mas o arrepio que Janna sente na espinha quando Arianna responde não tem nada a ver com a temperatura.

— Tem razão. Que desastre. Estamos morrendo, e logo você… também vai morrer.

Vindo de algum ponto na parte esquerda do céu, ouvem o barulho de um helicóptero. Janna imagina que alguém da LifeTech já descobriu tudo, ou que o pessoal da SVARM mudou de ideia e que, em vez dela como Joana d’Arc, preferem Kaitlyn em uma história de San Suu Ki pelos direitos dos biobôs. Como testemunho, a criança seria perfeita.

A amiga se detém para prestar atenção no som. O aparelho portátil de oxigenação parece um pedregulho com rodas. Dentro do carrinho, Kaitlyn faz que vai acordar, ainda que o ar frio ajude no sono.

Assim que o barulho passa e é substituído pelo assovio do vento, as duas suspiram aliviadas e continuam a caminhada.

— Vou pensar em alguma coisa.

No keylog, Janna lê novamente o contrato da LifeTech:

[(art. 7) Em caso de interrupção da relação de assistência do produto da LifeTech, a propriedade do iMate volta automaticamente à empresa fornecedora. Uma agência nomeada pela LifeTech fará a recuperação do recurso de acordo com os termos da lei e produzirá provas da destruição ao Ministério de Tecnologia do país relevante.]

Janna projeta o holograma e deixa que a amiga tenha tempo de lê-lo.

— Não acredito que destruiriam uma coisa tão cara.

— Uma coisa… Você mesma disse.

— Não quero ofender, mas mesmo sem implicações éticas, isso continua sendo um enorme desperdício de dinheiro e energia.

— Mesmo sem implicações éticas, concordo — diz Janna com ironia. — Mas os biobôs precisam ser sempre rastreáveis. O controle passa pela previsibilidade, e isso também se aplica aos seres humanos. O que não é previsível precisa ser destruído.

— Não fale assim.

Não foi para isso que encomendei você.

— Eskin nunca me amou. E talvez prefira me destruir agora que não pode mais me controlar.

O carrinho passa por cima de um galho e o quebra ao meio com um ruído seco.

— Você, por outro lado…

Arianna a faz parar com um gesto, assume o lugar de Janna atrás do carrinho, levanta as rodas da frente e recua.

— O que foi? Está tudo bem, Arianna? Já vamos para casa?

— Acho que pensei numa solução.

Janna 8.0 – Sabedoria

Ela une três dedos. Os Múspellsmegir se tornam oblíquos à medida que as aldravas giram nas dobradiças. O holograma de Disir a recebe como sempre.

— Estamos sozinhas, Janna. Preciso que você fique calma.

Ela segura a bebezinha nos braços, põe o seio para fora e tenta amamentá-la. Kaitlyn percebe o odor materno e, por instinto, abre a boca para começar a sucção. Janna modificou a composição do leite disponível: os médicos ficariam espantados se verificassem quantos anticorpos Kaitlyn está recebendo graças aos nanites.

No ar, ressoam as notas da música de Arianna, uma improvisação premente e graciosa, uma fuga em contraponto ao tema do Canone de Pachelbel, impossível de replicar a menos que se esteja fisicamente presente durante a apresentação, como Janna na cabana de verão. Porque há uma época além da qual Janna não consegue passar sem se lembrar da música da amiga. Essa época não coincide com sua vida real. Essa época representa um enxerto carregado nela previamente pela LifeTech e vale tão pouco quanto uma reprodução falsa.

Analisar o protocolo de condicionamento como se fosse um álbum mnemônico e interpretar a veracidade das emoções despertadas por músicas específicas foi o que ajudou Janna a resolver o problema. Porque as lembranças dão forma ao protocolo, são como a partitura que reproduz a melodia de uma vida, garantindo continuidade da identidade de cada um, tratando-se tanto de um iMate quanto ser humano.

— Vou tentar, Disir. Acesso restrito. Quero rever a última sessão.

Disir prepara os documentos e vídeos de acordo com a ordem do diagrama que Janna preparou. David lhe forneceu as credenciais para fazer o download do banco da LifeTech dos dados dos últimos duzentos iMate que viram a luz da existência.

— O índice de legibilidade das memórias supera setenta pontos na escala de Flesch.

— Ótimo. Procure as partições de memórias relacionadas a experiências musicais de cada amostra. Analise as reações; se não tiverem produzido alguma emoção, positiva, negativa ou inconsciente, essas lembranças foram implantadas. Marque cada valor positivo e gere um relatório.

— Certo.

Kaitlyn parou de mamar e dormiu com a boca aberta.

Se o protocolo foi criado usando teorias psicológicas sobre o condicionamento dos seres humanos, um iMate pode infringi-lo contando com o fato de não ser apenas humano.

Janna fecha os olhos e se concentra na música. Alguns meses depois da alta de Arianna do hospital, elas saíram sozinhas pela primeira vez. Era inverno, e, como todos os anos, os amigos da família Agare foram para o calor de uma ilha mediterrânea. Eskin e Arianna não podiam sair de casa por longos períodos sem se arriscarem: os padrões médicos da Suécia tinham transformado o país em uma prisão sazonal sempre que a neve voltava a cair. Era por isso que Arianna adorava patinar. Porque era um pouco como voar, ainda que a poucos centímetros do chão. Naquele dia, ela levou Janna para dar um passeio. Foram no máximo duas horinhas, mas ainda assim foi o momento mais feliz de Janna desde que tinha acordado do coma. Ela traçou caminhos sinuosos por uma faixa meio vazia, dançando às notas do terceiro concerto para piano de Rachmaninov. Janna se lembra de todos os detalhes da tarde fria: a cor amarela dos patins alugados, o rosto determinado da menina que a ajudou a se levantar depois de um escorregão, o vento pungente nas bochechas. Não consegue evitar um sorriso.

Com o fim da música, Janna volta ao presente, e Disir expõe os resultados.

— Verificação de amostras realizada. As partições mnemônicas de cada iMate digitalizado contêm setenta a oitenta reações nulas, consequência do bloqueio de memória artificial. O teste é válido.

À meia-noite, Disir vai se conectar ao servidor da SVARM, e eles também vão saber que o protocolo é violável. O condicionamento pode ser quebrado.

— Qualquer um pode passar pela verificação e descobrir a própria natureza. Podemos chamar de teste Toeissen-Disir. O que me diz?

Janna 9.0 – Morte

Kaitlyn tem cinco meses. Eskin está cada vez pior, e, embora o nascimento da menina tenha melhorado seu humor, a situação é irreversível. Os primeiros dias na cabana pareceram devolver-lhe um resto de energia, mas depois até isso o abandonou. Desde que o convenceu a se mudar para o meio do nada, longe dos médicos e hospitais, Janna se sente culpada. No começo, achava que ele tinha concordado para deixá-la feliz, mas de manhã, quando reiterou sua intenção de morrer mesmo aqui, Janna voltou a odiá-lo.

Ela olha pela janela. Ele está no meio do jardim, de pé, ao lado de Kaitlyn no carrinho. Janna não os perde de vista. Eskin decidiu fazer um boneco de neve para impressionar a filha. Pena que Kaitlyn ainda é pequena demais para apreciar o esforço de criar algo reconhecível. Janna observa um monte de neve disforme com um boné de beisebol na cabeça e uma cenoura enfiada no meio da cara redonda e, depois de sorrir para Arianna, passa as mãos pelo cabelo.

— Seu irmão é um desastre. Tudo pronto?

— Sim — responde Arianna sem se virar.

— Conseguiu falar com ele?

— De manhã, parecia lúcido. Estava quase de bom humor. A LifeTech confirmou a transferência de propriedade com base no seu pedido. Agora o contrato está no meu nome.

— Foi difícil?

— Pensei que seria pior, mas no fim o convenci porque já sou tia dela… Mas tenho uma dúvida. Não vai ser perigoso fazer a troca agora?

— Não se estivermos no mesmo lugar.

— Então vamos ficar em casa até o último momento.

— Vamos ficar tão coladas que vai ser impossível distinguir nossas coordenadas georreferenciadas.

Arianna leva a mão à cabeça de Janna, que sabe o que está se passa pela cabeça dela.

— Vamos fazer tudo depois que ele… — A voz de Arianna treme, enquanto do lado de fora o irmão desiste ao ver o boneco se desmontar. Depois, acrescenta: — Não quero que ele tenha medo.

— Vai ser uma incisão pequena.

Arianna leva a mão à cabeça dela mais uma vez. Agora, quase parece arranhar o couro cabeludo.

— Achei que o keylog não fosse removível.

— É nisso que querem que a gente acredite. Seria difícil convencer alguém a implantar no cérebro do filho um sistema de registro de vida, gravação de dados e aprimoramento mental se ele fosse fácil de desligar, não acha?

— E é?

Arianna se junta à Janna diante da janela. Ambas observam Eskin, ainda imóvel dentro do exoesqueleto que usa para caminhar. De vez em quando, ele fecha os punhos sem motivo aparente.

— Com as ferramentas certas… A SVARM me deu conectores Llinas, transmissores montados num cabo de tamanho nanoscópico. São usados como interface do keylog para abrir uma conexão de saída.

— E assim vamos trocar as memórias. Tem certeza de que quer saber todos os erros que cometi na minha vida?

— Considerando o que me espera, seus erros vão ser muito preciosos. Quanto eu for você, o keylog vai me reconhecer sem rejeição.

— Vamos saber tudo uma da outra.

Janna tira os olhos da janela e encontra os de Arianna.

— Seu cérebro corre o risco de sofrer de esquizofrenia com tantas identidades em primeira pessoa ao mesmo tempo, mas o meu pode aprender a lidar com a situação.

Arianna quer dizer alguma coisa, chamar a si mesma de burra por não ter pensado naquilo ou por estar tão preocupada que Janna conheça cada segredo de sua existência agora que ela está prestes a terminar.

— Não tem problema. No fundo, é como continuar a viver. E se te encontrarem?

— Só uma inspeção física do keylog poderia me dar algum problema. Vou caminhar por aí com sua identidade e usar suas formas de pagamento. Um amigo do David na SVARM se ofereceu para fazer a troca no banco de registros. Suas impressões digitais, seu DNA, seu tipo sanguíneo, o mapeamento da sua córnea e todo o resto foram substituídos pelos meus. De certa forma, já sou você.

— Ainda falta alguma coisa — sussurra Arianna ao ouvido de Janna. Ela pega a mão da amiga e, depois de tirar um objeto dos bolsos das calças, deposita-o na palma aberta.

— Vou ter que aprender a usá-lo do jeito certo — diz Janna, observando o delineador de um jeito diferente. Nesse instante, lá fora, Kaitlyn começa a chorar.

— Não sai daqui. Já volto.

Janna veste o casaco e corre para o jardim.

Arianna olha pela janela e cobre a boca. Eskin está imóvel. Inerte dentro do exoesqueleto, está com os braços soltos ao lado do corpo e a cabeça de pé graças a um suporte do pescoço.

Janna se aproxima do parceiro. Verifica primeiro a respiração, depois o pulso. Por fim, aperta um botão do exoesqueleto na altura do quadril.

— Voltar para a cabana.

Enquanto ela puxa o carrinho com Kaitlyn, o exoesqueleto de Eskin sai caminhando como se o homem fosse um sonâmbulo.

Arianna observa o corpo do irmão desaparecer para dentro da cabana. Janna, de acordo com o combinado, já está falando com o necrotério para que busquem o corpo. Ao voltar para casa, coloca o carrinho em um canto depois de deixar um biscoito nas mãozinhas de Kaitlyn, que o mordisca com avidez.

— Senta, Arianna. Quer chá?

A amiga aquiesce, e Janna liga a chaleira elétrica. Quando abre a boca novamente, usa o mesmo tom de voz baixo e calmo separado para falar com o bebê.

— Vão chegar antes de escurecer. Vai dar tempo se começarmos agora mesmo.

Arianna enxuga as lágrimas.

— Quer dar uma volta primeiro? Sem os dados do keylog, você talvez se sinta desorientada. Talvez não consiga andar direito. Pode ficar atordoada num primeiro momento.

— Conheço esse bosque desde que era pequena. Vinha aqui com a minha mãe. Ela também adorava. Já o Eskin nunca foi de sair de casa, no máximo ficava no carro ouvindo música, esperando por nós. Pra falar a verdade, eu também sempre esperei morrer aqui. Mas fico triste pela cabana. Minha mãe se importava muito com ela.

— Vou reconstruí-la.

— Não, é melhor assim. Você precisa ir para longe da Suécia.

Janna se limita a servir água quente na xícara.

— Quando eu informar o defeito do iMate, você e Kaitlyn já vão ter ido embora — diz ela.

— Vou levá-la para o carro, e depois… — A voz de Arianna morre.

Janna se vira para o painel elétrico na parede, pronto para ser induzido a um curto-circuito.

— … a cabana vai render belos fogos de artifício visíveis a quilômetros de distância.

Arianna tosse. Engoliu todos os remédios para ficar consciente.

— Tem certeza de que os drones não vão chegar antes da hora?

— A primeira estação do corpo de bombeiros fica a mais de trinta e cinco quilômetros daqui. Quando sobrevoarem a área, esta parte da casa já vai ter sido consumida pelo fogo.

— E você vai ter morrido no incêndio.

— Com meu keylog.

— Enquanto a Kaitlyn e sua nova tutora vão estar livres.

— Sua doença vai fazer parte da minha identidade, a menos que descubram uma cura nos próximos cinco ou seis anos. Vou ter que desaparecer para não gerar suspeitas.

— Você vai encontrar uma solução para isso. Cinco anos não são pouca coisa.

Janna olha para o carrinho. Kaitlyn está brincando com ALITA.

— Vamos cuidar uma da outra.

— Vou sentir saudade — diz Arianna. — De você e da pequena.

— Tem mesmo certeza disso, Arianna? Podemos adiar…

— Não, já decidi. Por que esperar? Agora temos um motivo válido para falar que o iMate fez uma loucura, que enlouqueceu de dor ao perder o Eskin. Depois vai ser difícil. Se eu morrer em outro lugar, a troca não vai funcionar, vai ser um desperdício sem sentido nenhum.

— A Kaitlyn seria dada para adoção.

— Ela perderia a mãe. Já passei por isso e não tem nada que se compare a essa perda.

Bebem o chá sem falar mais nada. Uma nuvem cobre o sol, mergulhando o cômodo na penumbra.

— Vamos começar, então.

Janna 10.0 – Sobrevivência

Por fim, o incêndio foi apagado. A conversa com a polícia foi mais rápida que o previsto porque, por sorte, Kaitlyn chorou o tempo todo. Fechado o caso como incêndio doloso, o veículo com Janna e Kaitlyn deixa as colinas nevadas. No banco de trás, ela embala a menina que não consegue encontrar a serenidade do sono.

— Uma menina curiosa pergunta a três animais de onde vem o mundo. O primeiro é um coelho. Ele tem o passo tão leve que não dá pra ouvir nada. Abana o rabinho, inclina a cabeça e levanta as orelhas. Para o coelho, o mundo se originou de um grande terremoto que levantou as montanhas e criou os mares e os rios.

Kaitlyn pisca, como se a pedisse para continuar.

— O segundo animal é um golfinho, que não fica parado nem por um momento. Lisinho e prateado, ele está sempre nadando, e acha que o mundo surgiu de um grande dilúvio com ondas gigantescas e água suja de terra. Quando as águas recuaram, surgiram as montanhas e as planícies.

A menina sorri, espreme os olhos e parece querer dormir.

— O último animal é um morcego. Para voar ele não usa os olhos, mas sim os ouvidos. E quando dorme, fica de ponta-cabeça e vê tudo invertido. De acordo com ele, o mundo caiu do céu, e aí a pressão do ar deu origem às cavernas, aos rios e aos mares. É por isso que ele prefere ficar pendurado no alto, para ver que tudo está no lugar e não tem nada caindo.

O keylog avisa a chegada de uma mensagem:

[Srta. Arianna Agare, meu nome é Peter Drake do departamento jurídico da LifeTech. Precisamos conversar com urgência.]

Janna estava à espera desse momento.

Refletida na tela do assento diante do dela, ela prende os cabelos em um rabo, do jeito que Arianna fazia, e retoca a maquiagem. As olheiras parecem reais, e a cor dos lábios é igual à da amiga.

[Peço que possamos conversar outro dia, por favor. Como sabe, tive um dia terrível.]

[Srta. Agare, gostaria de prestar minhas condolências em nome de toda a empresa. No entanto, precisamos discutir a denúncia que apresentou às autoridades. Ela foi formulada de modo que o incêndio não parece acidental. Queremos encontrar uma maneira de discutir e ver se é possível colocar a questão em termos mais coerentes com a realidade dos fatos. Podemos conversar amanhã?]

Janna põe Kaitlyn ao lado dela no banco.

Chega a ser irônico, quase paradoxal, o pedido da LifeTech. Uma atitude extrema, algo similar a um ato desesperado, não é aceitável para um iMate, que é vendido como um ser humano completo, com exceção da forma do nascimento. Um iMate não pode destruir a mobília nem pôr fogo a uma cabana tomado pela dor de ter perdido o próprio companheiro, ainda mais um companheiro que morreu por vontade própria. Não é o tipo de imagem visto nos comerciais da LifeTech. Não é o tipo de reação permitido pelo protocolo.

[Peter… não quero mais perder tempo com a LifeTech e seus iMates. Envie uma proposta de indenização. Vou ficar feliz de encerrar esse assunto.]

[Obrigado. Tinha certeza de que compreenderia a situação. Em anexo, estou enviando os termos da operação proposta. Mais uma vez, nossas condolências pela perda do seu irmão.]

Janna interrompe a conversa enquanto seu reflexo na tela é sobreposto pela imagem de Arianna, e as duas se fundem em uma só.

— E a perda de uma grande amiga, sua tia, um ser humano excepcional — diz à filha, parando para acariciar a caixa do violino.

Ela então pega um par de fones de ouvido. Coloca um no ouvido de Kaitlyn e outro no próprio.

— E agora, senhorita, apresento você a Arianna Agare, sua mãe.

As notas de Atmosfera da manhã, prelúdio do ato IV do Peer Gynt de Edvard Grieg, lhe acariciam os tímpanos.

A foto quadrada mostra um homem branco, de cabelo grisalho com entradas na frente e cavanhaque branco. Ele tem um óculos de armação preta e está usando uma camiseta bege e uma jaqueta de couro, olhando para a câmera, diante de uma mesa cheia de livros.

Francesco Verso (Bolonha, 1973) é um escritor e editor laureado com vários prêmios. Publicou Antidoti umani, e-Doll, Nexhuman, Bloodbusters, FuturespottingI camminatori (uma mistura de The Pulldogs and No/Mad/Land). Nexhuman e Bloodbusters foram publicados na Itálida, nos Estados Unidos, no Reino Unido e na China. É editora da Future Fiction, onde adquire as melhores obrigas de ficção científica traduzidas do mundo. É diretor honorário da Fishing Fortress SF Academy of Chongqing e o diretor criativo da Future Wave, agência literária baseada em Pequim.

A foto quadrada mostra um homem branco, de cabelo grisalho com um topete na frente e cavanhaque grisalho. Está com uma camisa branca e um terno preto, olhando para a câmera e sorrindo levemente.

Francesco Mantovani sonha como um escritor desde os oito anos de idade. Passa a maior parte do tempo lendo Vonnegut, Dick, Angela Carter, Ballard, Douglas Adams, Dickens. Seus contos apareceram em pequenas antologias italianas de ficção científica (SpaceWave, em 2006, e NASF, em 2006 e 2011). Também escreveu dois romances, Harria and the Legends of the Dragons e Pollo sin cabeza, ainda não publicados. Em 2014, ele se juntou a Francesco Verso para fundar a Future Fiction, cujo objetivo é publicar o melhor da ficção especulativa de todos os países do mundo, de diferentes culturas e línguas. Ele mora em Roma com a companheira e os dois filhos.

André Caniato nasceu em Pontes Gestal, cidadezinha no interior de São Paulo, e, para todos os efeitos, é o embaixador de Plutão na Terra. Entre suas publicações, destacam-se os contos “Um dia não anoiteceu mais” (Plutão Livros, 2018), “A folia dos mortos” (Trasgo, ed. 17, 2018) e “Isto não é um livro de matemática” (2017). É tradutor formado, escritor por vocação e, como todo artista, pessoa de mil projetos. Em breve.

A foto quadrada mostra uma pessoa branca de cabelos castanho claros, barba da mesma cor e óculos com uma armação escura. Ele usa uma camiseta cinza, e o fundo é branco.
A ilustração quadrada, em preto e branco, mostra o desenho de um gatinho bem fofo, antropomorfizado, com uma camisa com padrão de peixinhos e um lencinho no pescoço.

A curitibana Julia Quandt chora sobre arte quando não está desenhando e sobre literatura quando não está escrevendo; fez faculdade de animação em Los Angeles e por isso todo mundo pergunta se ela trabalha na Disney (resposta: não, mas sim na Biblioteca Pública de LA, ensinando velhinhos a baixarem PDFs). Durante a pandemia, ficou tão obcecada em traduzir um videogame que acabou sendo convocada para editar a versão brasileira de Chicory: um conto colorido. Terrível ideia, porque daí ficou obcecada em criar um jogo também (codinome: Projeto Duskpuppy). É não-binária/genderqueer e mora numa quitinete com dois colegas felinos.

Jana Bianchi é escritora, tradutora, editora na revista Mafagafo e cohostess do Curta Ficção. Em português, além de Lobo de rua (2016), publicou diversos contos em revistas e coletâneas. Em  inglês, tem textos publicados nas revistas Strange Horizons,
Clarkesworld e Fireside, entre outras. É aluna da turma de 2021 do workshop de escrita Clarion West. Jana mora no interior de São Paulo com os pais, duas cachorras e suas várias tatuagens animadas.

A foto quadrada mostra uma mulher branca, de cabelos morenos e cortados na altura do ombro, meio bagunçados. Ela está sorrindo levemente e tem a mão estendida na direção da câmera, com os olhos fechados. Ao fundo, que é bem desfocado, é possível ver as luzes urbanas de uma avenida.
A foto quadrada mostra um homem de pele negra, cabelos morenos em dreads, e cavanhaque também moreno. Ele usa um óculos com armação grossa e uma camisa vinho, e olha ligeiramente para o lado.

Sérgio Motta é designer, escritor e amante de café. Nascido e criado na periferia de São Paulo, a cidade, cheia de fantasias, caos, diversões e diversidades é sua musa. Já publicou “Ciberbochicho”, pela Revista Mafagafo, onde hoje também é editor, “Spider”, pela revista estadunidense Strange Horizons e “Aline na Avenida das Paulistas”, uma releitura de “Alice” pela avenida mais famosa de São Paulo. Também é criador do portal Resistência Afroliterária e editor-chefe da Revista Afroliterária. É dono do Machadinho, autor dos maiores clássicos da literatura canina.