Um antiquário em Copacabana é o refúgio perfeito para quem quer fugir da correria — e dos perigos — da cidade do Rio de Janeiro. Mas o que começa como uma simples visita em busca de abrigo da chuva se transforma numa aventura sem precedentes, envolvendo magia, criaturas sombrias… e uma possível oferta de emprego.
6.975 palavras | Aproximadamente 30 min de leitura
Quando digo que tenho um emprego em Copacabana, a galera acha o máximo. Trabalhar perto de uma das praias mais famosas do mundo, no coração da princesinha do mar — mesmo que o trabalho seja maçante, deve ser ótimo só pelo local.
Bom, não é. Exatamente pela fama do bairro, a população da área se acha ainda mais soberana que o habitual do carioca. E ainda que eu gostasse de praia… não é como se desse tempo para usufruir.
Mas o motivo principal do meu desagrado é morar na Baixada Fluminense — um detalhe que significa horas de condução cheia entre minha casa e o trabalho. Somando todo o trajeto, são quatro horas perdidas, sem poder fazer muito além de me distrair com o celular e segurar as barras do trem para sobreviver a mais um dia.
“Poxa, Bruno, tem gente em situação muito pior que a sua”, é o que costumo ouvir quando respondo que não gosto, especialmente quando a pessoa não é da Baixada.
Eu sei que tem gente pior que eu… Eu divido espaço com essas pessoas diariamente na ida e na volta. Mas a conversa termina aí, não é? Dizer que existe gente em situação pior é a bandeira que indica a falta de argumento da outra parte. É onde termina o interesse dela em tentar se engajar com a sua condição.
De qualquer forma, eu tento não reclamar muito. Juro. O salário é bom no restaurante onde trabalho — bom o suficiente para justificar a distância, pelo menos. E vejo a minha situação como temporária, como um período de transição entre o fim da faculdade de biologia e um emprego na área.
Claro que, do jeito que o Brasil está, o mais provável é que eu continue não conseguindo nada no campo da pesquisa. Mas a esperança de que as coisas vão melhorar persiste e me leva adiante. A esperança é um sentimento que parece ter uma jovialidade perpétua, uma energia incalculável. Morre por último e morre jovem.
Basta ninguém dizer que deve ser ótimo trabalhar em Copacabana que eu fico na minha — e a verdade é que, apesar de achar ruim, eu já estou acostumado.
Exceto quando cai um dilúvio no fim do expediente.
Numa noite dessas eu solto o verbo, mesmo sem ter ninguém para ouvir.
— QUE RAIVA DESSA CHUVAAA! — grito, correndo e ficando cada vez mais molhado.
Cheguei a ver as nuvens se acumulando durante a tarde, e torci para conseguir sair antes do toró desabar. Quando o vendaval ficou forte e a galera de maiô e sunga começou a passar correndo na frente do restaurante, entendi que era tarde demais.
O mundo estava caindo em água, raios, trovões e ainda mais vento. É um daqueles temporais em que quase não adianta ter guarda-chuva — você vai se ensopar de qualquer jeito. Ainda assim, abro o meu guarda-chuva e tento encarar o mau tempo.
Avanço como posso pela calçada, já sofrendo com a ideia de saltar na Central do Brasil e encarar a baldeação do metrô para o trem, ambos certamente lotados. A estação fica a metros do restaurante, mas naquela noite parece estar a quilômetros.
Quando viro a esquina e tento atravessar a rua, sou atingido pela potência máxima do vendaval que vem do mar. Me atiro de volta na calçada e, sem condições de avançar, encosto num gradil e me arrasto para pelo menos achar algum abrigo. Não rola voltar para o restaurante. Estou essencialmente ilhado naquele ponto.
Encontro um toldo de madeira que permite que eu me proteja um pouco. Suspiro aliviado e fecho o guarda-chuva, agora torto de tanto ser atingido por todos os lados. Observo por um instante o temporal quase horizontal passando pela rua, estranhando que só eu esteja abrigado ali. Tudo bem que não tem mais ninguém andando a pé na calçada, mas eu não podia ser o único louco que estava tentando encarar a chuva… Podia?
Olho para trás, e minha confusão se transforma em alívio.
Debaixo do toldo de madeira está a entrada do que aparenta ser um estabelecimento comercial — uma porta com aviso de “ABERTO”. Giro a maçaneta e entro, abandonando, pelo menos por enquanto, a ideia de chegar no metrô.
Vou parar em um pequeno saguão de entrada, com piso de taco e uma cortina de miçangas coloridas do outro lado. Um ambiente irresistivelmente acolhedor naquelas condições.
Próximo da porta, vejo um cabideiro para depositar casacos e um suporte para guarda-chuvas. Estou sem casaco, então só coloco o guarda-chuva. Sacudo as roupas e os tênis para ver se deixo pelo menos uma parte da água para trás antes de entrar. Sem jeito de me secar direito, entro na loja pronto para cumprimentar algum funcionário e anunciar minha presença.
Passar pela cortina de miçangas é como atravessar um portal para uma época antiga. A loja — um antiquário — consiste em uma coleção de… coisas. Espalhadas por várias prateleiras e mesas. Itens de vários formatos e materiais distintos, artesanatos de vidro, madeira, tecido. O piso de taco do pequeno saguão de entrada dá lugar a um tapete muito macio, e eu hesito em entrar, receoso de molhar o que não devo.
— Olá? — falo, sem receber resposta.
Espero por quase um minuto, estudando os objetos espalhados pelo antiquário. Bolas de cristal, corujas de madeira, um gramofone, uma estatueta de vaca, uma do Cristo Redentor, postes de vidro, murais em línguas que desconheço. E livros. Centenas e centenas de livros. Tudo tem um ar de amontoado, mas não do tipo que causa incômodo ou que leva ao bolor do abandono. É um amontoado deliberado. Não consigo decidir se a loja está bagunçada ou se está arrumada de uma forma que vai além da minha compreensão. Cada milímetro da grande sala parece aproveitado por algum objeto, e o barulho da chuva fica mais fraco ali dentro.
Olho para o teto e vejo uma claraboia redonda de vidro grosso. Do lado de fora, a água da chuva corre feito cachoeira. Eu nunca tinha visto uma cúpula daquele tipo no Rio de Janeiro, pelo menos não fora de uma igreja.
O saguão está cada vez mais frio. Cansado de esperar e precisando me aquecer, entro de vez no antiquário. Ainda tenho medo de estragar o tapete, mas ele é tão felpudo que parece absorver a umidade dos meus tênis.
Ali dentro acabo me sentindo bem mais protegido da chuva. E da própria cidade do Rio de Janeiro, pois tudo parece pertencer a outro lugar. Um lugar ainda análogo, porém distante.
Avalio de perto os objetos que avistei da entrada. São realmente curiosos, do tipo que dá vontade de saber as origens. Quem entalhou aquela corujinha de madeira com olhos verdes? Quem teceu os arabescos daquele quadro de fios? Cada item, do mais simples ao mais intricado, possui uma memória. Se aquelas coisas falassem, eu poderia passar horas ouvindo suas histórias.
Seguro uma das corujas com a vaga impressão de que dá para desvendar alguma coisa do seu passado só de tocá-la.
Nesse mesmo instante, surge alguém atrás do balcão nos fundos da sala e diz:
— Boa noite.
Coloco a coruja depressa sobre a mesa, com a sensação de que fiz algo errado. Viro o rosto para responder ao cumprimento e explicar que só estava procurando abrigo da tempestade.
Mas não consigo dizer nada.
Porque a pessoa diante de mim é o garoto mais bonito que já vi na vida.
Olho para ele boquiaberto pelo que parece uma eternidade. Só me ligo de que devo estar parecendo um completo palerma quando ele dá risada.
— Tá tudo bem? — ele pergunta.
— Tá… sim… Eu entrei aqui pra fugir da chuva.
Ele olha para a cortina que dá para o saguão de entrada, depois de volta para mim.
— É mesmo? Sozinho?!
— Foi…
A pergunta é estranha, mas não me importo — estou totalmente enfeitiçado por aquele rapaz. Ele deve ter a minha idade, talvez seja um pouco mais novo. Seus cabelos encaracolados caem em uma franja bagunçada na testa, e sua pele negra combina com os olhos castanhos. Os lábios, o nariz… Tudo nele é magnético para mim. Eu não sou do tipo que fica encantado desse jeito com facilidade, então o impacto é maior ainda. É uma atração tão forte que fica até difícil de entender. É mais do que achá-lo bonito — eu quero conhecê-lo.
Mas ele mal me dá bola, olhando mais para a entrada do que para mim. Noto que ele está com os lábios apertados e uma expressão apreensiva. Só então sinto que existe alguma coisa bem errada naquela conversa. Será que ele acha que entrei com alguém para assaltar a loja? Fico ofendido com a hipótese.
— Eu estou sozinho mesmo, de verdade — falo, cruzando os braços.
— É melhor você ir embora — diz o garoto. Ele se volta para mim, e eu fico abalado por conta da sugestão.
— Pô, tá a maior chuva lá fora. Não posso esperar passar um pouco, pelo menos?
— Qual é o seu nome?
— Bruno. Por quê?
— Bruno, é sério. É melhor você sair daqui. Eu não posso explicar mais do que isso.
Agora é tudo oficialmente estranho, mas não arredo o pé.
— E o seu nome, qual é? — pergunto irritado, como se saber o nome dele fosse resolver alguma coisa.
— É Jefferson. Cara, por favor, você…
Jefferson se interrompe e desvia o olhar novamente. Só que ele não encara a cortina da entrada, mas sim a porta atrás do balcão.
— Ferrou — ele murmura, ainda olhando para trás. Então vira para mim, segura a minha mão e começa a andar muito rápido. — Vem comigo.
Não tenho presença de espírito suficiente para me desvencilhar. Sem alternativa, caminho depressa entre as mesas e estantes da sala para acompanhá-lo enquanto ele me puxa.
— O que tá rolando? — consigo perguntar. Quase peço para ele largar a minha mão, mas uma parte ridícula de mim aprecia o contato repentino.
Jefferson não responde. Em vez disso, ele me arrasta por uma porta que eu não tinha visto até então, escondida entre duas prateleiras abarrotadas de livros. Ele fecha a porta com força, solta minha mão e se abaixa até seu rosto ficar na altura da fechadura. Olho da porta para ele, sacudindo a cabeça.
— O que tá rolando? — repito a pergunta com um tom mais severo.
— Shhh!
Jefferson pede silêncio com tanta seriedade que eu me limito a arregalar os olhos e ficar quieto. Um cheiro antisséptico invade minhas narinas. Observo em volta e vejo que estamos em uma despensa comum, cheia de potes, vassouras, velas, panos e produtos de limpeza.
Estou prestes a protestar e a pedir mais explicações quando ouço um barulho na loja do outro lado da porta. Soa como algum objeto maciço caindo no chão.
— Ai, droga… — diz Jefferson, que para de espiar pela fechadura e faz uma careta.
Outro barulho, igual ao anterior. Depois, um outro mais agudo, como vidro quebrando.
— Drogaaa…
O ruído que se segue parece o de chuva caindo dentro do antiquário. Parece algum tipo de enxame. Ou um bando de morcegos em pleno voo.
Jefferson me puxa pelo antebraço e me arrasta para o fundo da despensa.
— Promete que não vai contar pra ninguém? Por favor.
— Contar o quê? — pergunto exasperado.
Um baque forte na porta faz a despensa inteira tremer, e eu procuro algum apoio enquanto potes e cabos de vassoura caem em cima de mim. Atordoado, tento me segurar na maçaneta da porta.
Só que não é a porta por onde entramos. Na verdade, nem dá para chamar de porta — é uma maçaneta grudada na parede. Instintivamente, puxo a maçaneta e a parede… desaparece.
— Assim que der eu explico! — Jefferson diz, saindo pela abertura na parede.
Ele me puxa de novo. E, dessa vez, não é para nenhum lugar coerente.
Há plantas por todo lado. Árvores de troncos grossos, folhas de palmeira, flores de muitos tamanhos — não dou nem dois passos e já me encontro submerso em um mundo de cheiros, formas e cores.
Chego a achar que é um jardim. Seria um pouco excêntrico ter um jardim interno com uma vegetação tão exuberante no centro da cidade, mas tudo bem. Só que não é um jardim normal: os troncos das árvores têm uma tonalidade violeta, várias das flores têm pétalas de textura metálica, e algumas das plantas emitem luz própria.
E é tudo real, eu tenho certeza. Não é um truque. Aquele jardim é mágico. É a única palavra que encontro para definir a impossibilidade orgânica que nos cerca.
— Como você conseguiu abrir a parede? — ele pergunta, como se fosse uma dúvida normal.
— Sei lá! Eu só… — começo a dizer. — Cara… Esse lugar é… mágico?
— Mais ou menos — é a resposta de Jefferson, que continua a avançar por entre plantas cada vez mais surreais. — Eu já te explico. Precisamos achar um lugar seguro primeiro.
Um estalo atrás de nós, seguido pelo estrondo de uma árvore caindo. Jefferson acelera, e eu também aperto o passo. Olho para trás e não vejo nada, e no alto só enxergo a copa das árvores. Nada que lembre um teto ou o céu.
Avançamos correndo pelo mato, mas o cansaço me obriga a parar.
— Espera! — digo, respirando fundo e apoiando as costas numa árvore. Jefferson para de correr e me olha contrariado. — Espera um pouco.
Imóvel após correr como nunca antes, sinto minha mente ameaçar se desprender da racionalidade. Nada indica que eu ainda esteja dentro de uma loja em Copacabana. A cada instante tenho que me lembrar de que aquela floresta fica dentro de um estabelecimento, só que está ficando cada vez mais difícil aceitar esse disparate.
— O que tá acontecendo?! — pergunto. Minha voz sai um misto de confusão e desespero.
Jefferson esfrega o rosto com a mão, como que para ganhar tempo antes de começar a falar. Então olha para o escuro da floresta por onde viemos. Não se ouve nada além do leve crepitar das folhas.
— Acho que estamos seguros por enquanto.
— Você acha? Seguros do quê?
— Como é que eu vou te explicar isso…?
— Só fala!
— Não é isso. Eu estou literalmente escolhendo as palavras. — Jefferson faz uma pausa. — Vem cá, você assiste a séries, filmes, lances assim? Coisas de ficção com fantasia?
— Assisto, claro — respondo, sem entender o que uma coisa tem a ver com a outra.
— Certo, eu não vou ficar dando muito rodeio, então. Confirmando o que você perguntou agora há pouco: sim, essa casa é mágica. Acho que a explicação mais adequada seria dizer que essa casa está viva…
— Ok. A casa é mágica. E tá viva. — Parte de mim acha que é tudo uma espécie de pegadinha elaborada. Ou um sonho. Não dá para acreditar, mas não parece haver explicação além do que Jefferson diz. — E do que a gente tá fugindo?
— De uma merda que eu fiz. Você não devia ter passado da primeira sala no antiquário. Mais que isso: você nem devia ter entrado aqui hoje! Mas calhou de você entrar, e na pior hora possível, porque eu deixei escapar uma coisa que não devia. E agora tenho que achar um jeito de consertar tudo isso enquanto te mantenho em segurança.
Quero argumentar, mas Jefferson parece genuinamente preocupado com o que pode acontecer. É como se, junto com o nível de absurdo, a gravidade da situação também aumentasse.
A real é que eu adoraria conhecer uma casa mágica. Só que o papo está indo por um caminho que não me agrada nem um pouco.
— A gente tá correndo risco de vida?
— Com sorte, sim. O problema é que pode acontecer coisa ainda pior.
Antes que ele possa revelar o que seria pior do que morrer, a conversa é interrompida pelo som de galhos estalando e se partindo atrás de mim, como se um gigante afastasse as árvores para passar.
Jefferson olha alarmado por cima do meu ombro.
— Temos que sair daqui. — Jefferson começa a afastar os galhos de um arbusto, procurando alguma coisa. Ele se embrenha no meio das folhas e diz: — Vem comigo!
Atravesso o arbusto a tempo de ver Jefferson abrindo uma porta entre duas árvores.
A passagem dá numa escadaria ampla com degraus cobertos por um carpete azul, iluminada por luminárias embutidas nas paredes. Não faz sentido, mas eu já estou desistindo de procurar por lógica.
Jefferson fecha a porta atrás de nós. Quando ele começa a descer os degraus, pergunto:
— Você é o dono desse lugar?
— Não — ele responde, rindo. — Eu só trabalho aqui. A ideia do antiquário é que apenas pessoas que precisam de alguma coisa especial encontram a entrada. Geralmente a minha chefe consegue prever a chegada dos visitantes, e aí a gente monta uma agenda. Só que você não estava na agenda. O que significa que você deve estar atrás de alguma coisa. Você está precisando do quê, Bruno?
Respondo com a primeira coisa que me vem à cabeça:
— Dinheiro.
— Justo. — Ele suspira e ri de novo. — Mas, definitivamente, não é um motivo para entrar no antiquário.
Outro estrondo atrás da porta, que agora está bem acima e bem longe de nós. Jefferson começa a descer mais depressa.
— Que inferno está atrás da gente? — pergunto.
— “Inferno” define bem.
— Sério? São demônios ou algo assim?
— Demônios, monstros, espíritos, diabretes… criaturas do caos vindas de um outro lado e que não deveriam existir nesse aqui. Eu não sei o nome oficial dessas coisas em particular, mas acho que dá pra você entender o drama. Eu as soltei sem querer quando estava tentando fazer outra coisa. Agora tenho que dar um jeito de prendê-las.
A escada parece descer para sempre. As paredes estão cada vez mais estreitas, e sinto um princípio de claustrofobia.
— E qual é o seu plano? — pergunto arfando, fazendo esforço para acompanhar o passo dele.
— Sabe como eu falei que o antiquário só aparece quando alguém precisa de alguma coisa? Bom, eu agora preciso de um jeito de prender esses bichos. Então estou contando que a casa vai me ajudar de algum jeito.
Encaro Jefferson com a minha melhor cara de “sério isso?”, mas ele não dá ideia. Ele avança por mais alguns degraus e para em um ponto qualquer da parede, onde mexe a mão e materializa mais uma passagem. Atravessamos a nova porta, deixando para trás a escadaria infinita.
O ambiente seguinte é uma mistura de bar com museu: há uma série de artefatos espalhados ao redor de um balcão circular de mármore, e, no centro, uma estante cilíndrica cheia de garrafas coloridas que vai do chão até o teto.
Os objetos daquele salão são de um estilo bem diferente dos que vi na primeira sala do antiquário. Logo de cara, vejo a estátua de uma criatura que lembra um dragão em chamas, um machado gigante que só o Thor conseguiria erguer pendurado numa parede e uma estante com porta de vidro guardando cálices feitos de materiais brilhantes. Também há vasos compridos, além de estátuas e maquetes com representações estranhíssimas e indecifráveis. A mais compreensível para mim está pendurada no teto e parece a Via Láctea, mas com animais em vez de planetas. Onde deveria ser a Terra, o terceiro componente, há uma baleia entristecida. E o Sol é a cabeça de um bebê com rosto bizarro. A maquete toda orbita devagar.
— Ótimo — diz Jefferson assim que entramos no local.
— “Ótimo”? Certo.
Ele avança por entre as estátuas até chegar a uma pilha de bolsas e acessórios do outro lado da sala. Vejo mais armas espalhadas pelos cantos, especialmente lâminas. Fico esperançoso de que realmente haja uma solução.
No meio da pilha que Jefferson vasculha, um objeto em particular chama a minha atenção. Não é uma arma, mas sim uma mochila simples, de couro.
— É aquilo ali? — pergunto, apontando.
— Isso! Como você sabe?
Jefferson pega a mochila no meio das bolsas e a abraça com um sorriso.
— Essa é a solução dos nossos problemas! — ele fala animado, ignorando meu sarcasmo. — Agora temos que esperar.
Jefferson se agacha, apoiado em um dos joelhos, segurando a mochila diante de si na direção da porta fechada.
— Mas como é que…?
— Silêncio.
— Putz…
Eu me coloco atrás dele. Qualquer que seja o resultado dessa sandice, não quero estar na frente na hora em que os tais demônios aparecerem.
Mais de um minuto transcorre sem nada acontecer. Parece que estamos esperando alguém atirar uma bola de beisebol. Sem aguentar a quietude, tento perguntar de novo, agora mais baixo:
— Como é que essa bolsa vai resolver o problema?
Ele olha para trás com uma careta, mas felizmente não me manda ficar calado de novo.
— Eu vou prender os diabos na mochila.
— Eles não vão caber aí — digo, e me arrependo na mesma hora. Porque é claro que eles vão caber.
Jefferson balança a cabeça e sorri.
— Eu era assim também, no começo — ele diz pensativo.
— Assim como?
— Não acreditava em nada que estivesse além das minhas percepções. Se alguma coisa ia contra o que eu estava acostumado, só podia ser mentira.
— Eu não sou assim!
— A vida fica bem melhor quando a gente se desliga dessa necessidade de estar sempre certo. Se não melhor, definitivamente mais fácil.
Agora sou eu que balanço a cabeça, mas sem sorrir. A lição de moral repentina me deixa na defensiva, mas, no fundo, sei que é só porque eu concordo. E, considerando a situação, eu até que estou levando numa boa. Jefferson sorri de novo, mas não dou a ele o gostinho de uma discussão.
— Cadê os diabos? — pergunto.
— Também não sei. Eles já deviam estar aqui.
Uma sombra de dúvida cobre seu rosto por um segundo, o que me deixa apreensivo e inclinado a mudar de assunto. A confiança de Jefferson é a minha única âncora com a sanidade.
— Pra quem você trabalha?
— Pra minha chefe.
Espero ele continuar, mas ele não diz mais nada.
— Você é bem engraçadinho, né? — digo.
— Desculpa. Na real é porque eu estou nervoso. E você é divertido.
Sinto meu rosto esquentar.
Estou prestes a dizer uma coisa estúpida quando ouço um barulho ao longe. Dessa vez, é como se uma manada de elefantes estivesse desabando pelos degraus da escadaria.
— Ai, ai, ai… — deixo escapar.
Jefferson vira o rosto para mim, mas, antes que consiga falar, a porta explode em mil pedaços de madeira. Os “diabos” entram, e eu entendo o motivo de ele não saber exatamente como chamá-los.
A massa que atravessa a passagem é como um enxame de mariposas com tentáculos. Mas também pode ser uma matilha de lobisomens com sanguessugas nas costas. Ou uma procissão de zumbis. Há carne e dentes para todos os lados. E garras, muitas garras.
Eu vou morrer hoje. Não tenho a menor dúvida.
Fecho os olhos e ouço a voz de Jefferson declamar palavras que não compreendo.
Uma ventania fortíssima começa a soprar do nada, e eu abro os olhos para procurar onde me apoiar. Me seguro nos ombros de Jefferson, que está tremendo dos pés à cabeça. A ventania está concentrada na nossa frente, um redemoinho que leva todas as criaturas para dentro da mochila.
Jefferson vacila com o esforço de manter a bolsa aberta na direção da porta. Aquela quantidade de coisas não deveria caber ali, mas está funcionando. Continuo olhando para aquele fenômeno, dando o meu melhor para não perder os sentidos.
Jefferson afivela a parte de cima da mochila, e o vento para tão subitamente quanto começou.
A única evidência da presença das criaturas de antes é a porta, que continua destruída. A mochila nos braços de Jefferson está cheia ao ponto de ficar estufada, mas parece normal — apenas uma bagagem com algumas toalhas a mais.
— Funcionou? — pergunto, soltando o ar dos pulmões.
— Sim. Acho que sim…
— O que você falou na hora em que eles entraram?
— “Saltem todos pra dentro da mochila.” Felizmente eu sei algumas frases na língua deles.
— Que… específico.
Jefferson dá de ombros.
— Não tem muita utilidade saber perguntar as horas ou pedir um copo d’água para demônios.
Ele coloca a mochila nas costas. Eu me afasto um pouco.
— Tem certeza de que isso é seguro?
— Nenhuma! Mas nos livramos dos diabos. Agora tenho que dar um jeito de me livrar da mochila.
Dessa vez Jefferson vê a minha cara de “sério isso?”. Ele me direciona um sorriso torto, e eu também acabo sorrindo. Mesmo sem saber como resolver o problema, ele está muito satisfeito com o que conseguiu fazer até aqui. Seu jeito de encarar cada momento sem se prender ao passo seguinte é assustador para mim. E sua alegria é contagiante. Principalmente depois da adrenalina da fuga.
Não temos tempo de formular o próximo passo: a mochila começa a se sacudir com violência nas costas dele, repuxando a ponto de fazê-lo cair no chão. Dou um grito com o susto, mas Jefferson apenas olha confuso de um lado para o outro.
— Não deu certo! — anuncio, apesar de não fazer ideia do que está acontecendo.
Sigo meu primeiro impulso: o de ajudá-lo. Começo a tentar tirar a mochila das costas de Jefferson.
Não sei se faz parte da mágica da mochila ficar nas costas de alguém ou qualquer coisa do tipo, mas, naquele momento, eu não me importo. Com dificuldade por conta das sacudidas, solto um dos braços de Jefferson e o puxo para perto de mim. A bolsa vai se afastando sozinha, sem parar de chacoalhar. Caio sentado no chão ao lado do garoto misterioso enquanto observo aquela bolsa fisicamente impossível com as criaturas inexplicáveis dentro.
As fivelas parecem estar contendo os demônios, mas também tenho a impressão de que vão perder as forças a qualquer momento.
Ouço um estrondo similar a tantos outros que já ouvi desde que entrei nesse lugar.
Quero manter os olhos abertos para ver o momento da minha morte, por mais incompreensível que ele seja, mas não consigo. Fecho os dois olhos, preparado para o pior e desejando que pelo menos seja rápido.
O frio em minha pele me faz pensar que eu talvez já tenha morrido no temporal e que esteja caído numa sarjeta de Copacabana — e que aquele antiquário talvez seja um delírio dos últimos espasmos do meu cérebro, juntando imagens desconexas num sonho derradeiro. Ou uma espécie de além.
O mundo inteiro balança, mas eu continuo vivo.
Parte de mim só quer morrer de vez. A outra continua abraçando Jefferson, que agora me agarra com força. Pelo menos eu não vou morrer sozinho. Naquela noite, descubro o motivo das pessoas terem tanto medo de morrerem sozinhas. É porque sozinho tudo é mais desesperador. Estar com alguém pode não fazer diferença depois da morte, mas certamente deixa a transição mais suportável.
Silêncio.
Ainda vivo.
Quando me forço a abrir os olhos, o que vejo não ajuda a afastar minha impressão de que tudo não passa do último sonho de um moribundo.
A mochila continua estufada, só que agora está inerte. Parada mesmo. Ninguém diria que ela contém a essência de um sem-número de demônios.
Do lado da bolsa, vejo uma mulher de penteado volumoso. Ela veste jeans, uma blusa creme e um par de botas que parece caro. Mas o elemento que mais chama atenção são seus óculos escuros espelhados, que refletem a luz da sala e contrastam com o negro retinto de sua pele.
Ah, e suas mãos estão brilhando. Uma versão mais sutil do mesmo brilho envolve a mochila por um instante antes de desaparecer.
— Abigail! — Jefferson grita com alegria, ficando de pé e indo na direção da mulher.
Demoro um segundo para processar que aquela deve ser a “chefe” que ele mencionou. Também me levanto, limpando a poeira das calças. Jefferson fala em tom animado com a mulher e, pelo pouco que consigo registrar enquanto me recupero, conta toda a nossa aventura pelo antiquário.
— Que bom que você chegou! — ele diz, parecendo um garotinho que encontrou a mãe no mercado. — Mas, olha, essa mochila não tá funcionando direito. Aquele gnomo te vendeu gato por lebre.
Abigail olha para mim — eu acho, mas só consigo ver meu próprio rosto refletido nos óculos —, depois se volta para Jefferson. Sua expressão é ilegível.
— Jefferson… — ela diz. Sua voz é firme e doce ao mesmo tempo. Meio rouca, meio suave. Do tipo que faz você parar de falar na mesma hora para escutar. — Quem é esse garoto?
Jefferson parece ter acabado de lembrar sobre a minha presença.
— Ah. É o Bruno.
Abigail olha para mim de novo, e dessa vez tenho certeza. Ela tem um sorriso amistoso nos lábios.
— Oi, Bruno. Sinto muito que você tenha passado por problemas na minha casa. Tive que dar uma saída e achei que o Jefferson fosse conseguir ficar quieto por algumas horinhas.
— Ei! — Jefferson retruca. Ele parece querer dizer alguma coisa para se defender, mas não encontra as palavras e faz uma cara engraçada.
— Oi — respondo. Ela está pedindo desculpas, mas, por algum motivo, me sinto um intruso. — Tá tudo bem, eu acho.
— Você aceita um café? — ela pergunta.
E então estou diante dessa estranha dupla, o garoto bonito ao lado da moça estonteante. Com a mochila estranha aos pés… nessa sala bizarra… dentro de uma casa absurda.
Tudo é tão extremamente impossível que dá uma volta completa e fica simplesmente normal. Alguma coisa na situação me quebra — ou me conserta — de vez, pois, em vez de resistir e fazer mil perguntas, eu respondo o mais natural e animadamente possível:
— Eu aceito!
***
Estamos de volta na sala da entrada, com as estantes cheias de livros e objetos intrigantes. Apesar da barulheira que ouvi quando nos escondemos na despensa, a disposição das coisas não está diferente. Não há nada fora do lugar, nem mesmo quebrado ou molhado.
Quando entrei no antiquário pela primeira vez, aquela sala me pareceu bem estranha, de outro mundo. Agora era o cômodo mais normal do mundo. Quase familiar.
Noto que Abigail faz um movimento com a cabeça para Jefferson. Ele deve ter entendido a mensagem, pois faz que sim e sai da sala pela passagem atrás do balcão.
Fico a sós com Abigail, esperando que ela diga alguma coisa. Ela se dirige até uma poltrona e pede que eu me sente em uma outra logo à frente.
— Quantos anos você tem, Bruno?
— Vinte e dois — respondo. Penso na idade dela e não consigo decidir um número entre vinte e quarenta.
— Hum… Você é um dos visitantes mais novos que recebemos desde… Bom, desde o Jefferson. O que te trouxe até aqui? Estava procurando por algum objeto específico?
— Não. Eu tava procurando abrigo da chuva.
Ela tira os óculos e os coloca sobre uma mesinha do lado da poltrona. Quando olha para mim de novo, perco o fôlego. Seus olhos possuem tons de violeta, e um é mais claro do que o outro. “Violeta” é a cor mais próxima que consigo encontrar para aquelas tonalidades, mas é como enxergar o fundo de um oceano que me encara de volta e, de repente, fico com medo de ser tragado por inteiro. Olho para a claraboia no teto, imaginando se a luz dos olhos de Abigail pode ser uma ilusão causada pela luz, mas não encontro nada que possa provocar aquele efeito.
Noto que parou de chover. Mas que horas são? Meu celular continua no bolso, mas não ouso puxá-lo. Não ouso me mexer.
— O que o Jefferson te falou? — Abigail pergunta como se eu não tivesse virado o rosto assustado no meio da conversa.
— Ele… — Tento me lembrar das informações enquanto volto a encará-la devagar. Felizmente, seus olhos estão mais normais. Ainda têm dois tons diferentes de quase-violeta, mas não parecem mais capazes de engolir a minha alma. — A gente não teve muita oportunidade pra conversar porque tava… Sabe? Fugindo dos demônios que ele soltou por acidente, mas… ele falou que só entra aqui quem precisa. Que a casa é mais ou menos mágica e que ele trabalha pra você.
Digo tudo isso como se estivesse falando de coisas comuns. Abigail sorri.
— Essa é uma explicação surpreendentemente precisa, Bruno.
— Ah, e eu abri uma parede… com uma maçaneta…
Ela me observa com atenção antes de dizer:
— Tem certeza de que nunca lidou com magia?
— Tenho. Acho.
Nisso, Jefferson ressurge de trás do balcão, trazendo consigo um bule e três xícaras.
— O café tá pronto — ele diz ao depositar a bandeja sobre uma mesinha entre mim e Abigail. Depois, serve o café com cuidado para os três e se senta num banquinho.
— É mágico? — pergunto desconfiado.
— Não — Jefferson responde. — Mas se quiser nós temos uns mágicos, sim. Curam desde frieira até disfunção erétil.
Abigail dá uma risadinha, e Jefferson olha para ela satisfeito. Sua postura mudou um pouco desde a chegada de Abigail. Como se ele buscasse a aprovação dela ao fazer qualquer comentário.
— Bruno, tudo o que o Jefferson te contou é verdade: só encontra este antiquário quem precisa. Mas eu não estava sabendo da sua visita, o que é particularmente estranho. Mesmo considerando que a chuva às vezes distorce as mecânicas deste lugar, você no máximo teria visto a loja. Não teria entrado.
— Foi uma chuva bem forte — sugiro.
Ela sorri de novo.
— Isso não tem muito a ver. Mas, veja bem, você ter encontrado a gente não é um problema. Só é uma coisa que eu preciso entender. O antiquário é minha responsabilidade. — Ela olha de soslaio para Jefferson. — E não pense que você escapou, Jefferson. Nós ainda vamos conversar a sós sobre o que você causou.
Jefferson encolhe os ombros e faz uma careta. Eu me vejo querendo socorrê-lo de algum jeito.
— Olha, não sei qual é o esquema dessa loja, mas a meu ver o Jefferson foi um funcionário exemplar! Ele tentou me fazer ir embora antes que a coisa ficasse… doida. E depois, quando a gente teve que escapar dos demônios, ele fez de tudo pra me proteger. Não entendo nada do que aconteceu aqui, mas… tô vivo, então são cinco estrelas pro atendimento.
Tanto Abigail como Jefferson levam um instante para entender o que eu estou tentando fazer. A ficha parece cair ao mesmo tempo para ambos, felizmente, e eles riem juntos. Eu também rio, só que meio sem graça.
Nessa hora, em vez de estar em uma loja misteriosa eu me sinto na casa de uma família. Uma que eu apenas não entendo muito bem.
— Me conte sobre você, Bruno — Abigail pede do nada. — Você trabalha aqui em Copacabana?
— Sim. No restaurante Jardim das Oliveiras.
— Aquele na Prado Júnior? Adoro aquele lugar.
— Isso. Eu tava indo pra casa, mas acabei vindo parar aqui.
Abigail continua a fazer perguntas no que aparenta ser uma sessão de terapia improvisada. Mas não me ofendo. Eu quero falar.
Depois de saber sobre o meu trabalho e meus horários, ela começa a perguntar sobre a minha família. Falo de como é morar com a minha mãe em Nova Iguaçu, de como ela trabalha com costura desde que o meu pai nos abandonou e dos perrengues que eu passo com dinheiro e com a distância diária para o trabalho.
Falo de como a faculdade de biologia não me deu tantos contatos quanto eu achei que teria quando me matriculei, e também de como está complicado seguir carreira no que eu realmente quero. Acabo revelando minhas opiniões sobre a cidade do Rio de Janeiro, incluindo as que evito divulgar. Jefferson bebe o café em silêncio, e Abigail me observa sem interromper.
Só depois de muito falar, noto que contei mais sobre mim para os dois do que já tinha contado para qualquer outra pessoa. Mas, em vez de arrependido, eu me sinto leve.
Abigail olha para o fundo de sua xícara.
— Você tem alguma coisa especial, Bruno. Confesso que ainda não sei o que é… nem o que fazer quanto a isso.
É assim que começo a entender o porquê de Jefferson procurar a aprovação dela. É estranho, mas, mesmo quando admite não saber o que fazer, Abigail transmite uma confiança incrível.
Sinto que a conversa está chegando ao fim, mas não quero ir embora. Eu corri riscos dentro desse lugar, mas isso só me dá mais vontade de conhecê-lo a fundo. O que eles vão fazer depois de terminar comigo? Apagar a minha memória? Não dá pra simplesmente deixar pra lá.
Existe magia de verdade. Quero ficar ali para entender. Para aprender.
Aproveitando que Abigail está observando distraída a própria xícara — ou muito concentrada, difícil dizer —, olho para Jefferson, suplicando por um jeito de prolongar minha estadia. Não nos conhecemos nem perto do suficiente para que ele sequer suspeite do que eu quero, mas foi Jefferson quem me colocou naquele dilema. Nada mais justo do que a solução partir dele.
Sinto que algo me conecta à loja. Não sei se é coisa da minha cabeça ou se é um sinal de que sou “especial”, como Abigail sugeriu, mas tenho certeza. Estou ligado àquelas duas pessoas por uma força invisível. Uma força que me levou até ali e que provavelmente me trará de volta caso eu tente escapar.
Não sei se é por realmente estarmos ligados num nível transcendental, mas a questão é que Jefferson entende.
— Aí, que tal o Bruno trabalhar aqui? — ele sugere para Abigail.
Ela levanta os olhos devagar e encara Jefferson.
— Hum… Bom, é verdade que você obviamente está precisando de ajuda.
Ela aponta para a mochila com os diabos, que trouxe consigo nas próprias costas quando saímos da sala com artefatos de museu. Ela havia depositado a mochila num canto do antiquário, e eu já tinha quase me esquecido dela de tão inerte que estava.
Jefferson dá de ombros.
— Não posso negar.
— O que você acha, Bruno? De sair do restaurante e vir trabalhar aqui? Garanto que o salário é melhor.
Nem acredito naquela proposta. A empolgação deve ser evidente em minha expressão, pois Abigail sorri e diz:
— Não precisa decidir agora. Está tarde, e você passou por fortes emoções. Vá para casa e descanse. Você pode passar aqui de novo amanhã ou quando quiser voltar. Tenho certeza de que vai conseguir encontrar o antiquário de novo.
O comentário dela sobre “ir para casa” me atinge com a realidade da situação. Puxo apressado o celular do bolso e finalmente confiro o horário. Já passa da meia-noite.
— Ferrou — comento. — Já é madrugada. Impossível chegar em casa.
Abigail se levanta da poltrona.
— Venha comigo.
Jefferson vem atrás de mim, e Abigail me leva para uma outra porta. Mais uma daquelas passagens que ficam invisíveis até que alguém me mostre.
— Valeu, cara — Jefferson diz, esticando a mão para me cumprimentar. — Desculpa aí. Prometo que vou dar um jeito de compensar por você quase ter morrido por minha causa.
— Que é isso, tranquilo — falo por reflexo. — A gente se vê.
Sou acometido por uma profunda tristeza. Nem penso mais em como é impossível ir para casa sem gastar uma nota com um táxi que aceite me levar até a Baixada ou com pernoite em um hostel. Só penso no risco de nunca mais ver aqueles dois na vida, mesmo com Abigail garantindo que eu posso voltar.
Ela faz um movimento diante da porta, e suas mãos brilham de novo.
— Normalmente eu diria para você passar a noite aqui, Bruno — ela diz. — Mas, por conta do que o Jefferson fez, a casa está instável. Peço de coração que você volte aqui quando puder para a gente conversar melhor sobre a minha oferta. Se quiser, é claro.
Ela abre a porta, e o que aparece do outro lado não é uma floresta, nem um museu estranho ou uma dimensão paralela.
É a rua da minha casa.
— Uma das vantagens de trabalhar aqui é que o transporte é show — comenta Jefferson.
Quase choro, mas nesse caso é por uma emoção bem mais simples: a do assalariado que está para arrumar um emprego perto de casa. Mesmo que a proximidade se dê por conta de uma distorção da realidade.
Atravesso o batente da porta boquiaberto, indo parar na minha rua de madrugada. Aquela rua simples e conhecida, com cheiro de terra e de asfalto molhado, com som de funk alto em um terreno baldio ao longe.
— Até mais, Bruno — diz Abigail.
— Tchau, Bruno. A gente se vê — diz Jefferson.
A porta se fecha com um clique antes que eu consiga me despedir. Quando me viro para trás, não há mais nada além de ar acima da rua.
Ando apressado até o portão de casa, os olhos arregalados e a adrenalina correndo pelo corpo. A janela da sala está acesa. Minha mãe com certeza ainda não foi dormir, preocupada com meu sumiço. Quando olhei a hora no celular, vi que ela tinha tentado me ligar várias vezes.
Imagino que vou levar um esporro, e que depois ela vai me abraçar chorando. Ainda não sei o quanto vou contar para ela, ou mesmo no quanto ela vai acreditar. Nem eu sei no quanto acredito.
Se eu chegar a dormir, em poucas horas vou ter que acordar para pegar o ônibus, depois o trem, depois o metrô. E vou encarar as horas de expediente no restaurante até poder dar o fora e voltar ao ponto onde encontrei o antiquário no meio do temporal.
Pode ser que eu não o encontre. Talvez ele nem exista, e eu só esteja completamente pirado. Ou talvez Abigail tenha dito o que disse apenas para que eu fosse embora com tranquilidade.
Mas talvez ela tenha falado sério, e talvez eu possa realmente trabalhar lá, junto dela e de Jefferson, fazendo sei lá o quê. Talvez minha vida vá ficar de cabeça para baixo nos próximos meses — da melhor forma possível.
Mas nessa noite o que vem amanhã não importa. Quem sabe nunca mais importe.
O que importa é que hoje eu descobri que a vida ainda tem alguma magia para me ajudar a seguir em frente. Para sobreviver.
Destranco o portão e vejo minha mãe de pé na sala. Como previ, o alívio no rosto dela rapidamente dá lugar à raiva, e ela vem na direção da cozinha para me receber. Entro, ainda sem saber direito o que vou dizer para me explicar.
Não tenho certeza de mais nada, mas dessa vez sinto que está tudo bem.
Franklin Teixeira nasceu em Nova Iguaçu, no estado do Rio de Janeiro, onde cursou Enfermagem no ensino médio e Direito na faculdade, e é na mesma cidade que atua como escritor e advogado. Sua mãe o presenteava com livros antes mesmo que ele aprendesse a ler, o que ajudou a despertar um interesse profundo na leitura e na escrita. Uma das inúmeras ideias que sempre fervilharam em sua mente se traduziu no seu primeiro romance Verdades Invisíveis, publicado na Amazon. Também possui contos publicados na plataforma Wattpad.
André Caniato nasceu em Pontes Gestal, cidadezinha no interior de São Paulo, e, para todos os efeitos, é o embaixador de Plutão na Terra. Entre suas publicações, destacam-se os contos “Um dia não anoiteceu mais” (Plutão Livros, 2018), “A folia dos mortos” (Trasgo, ed. 17, 2018) e “Isto não é um livro de matemática” (2017). É tradutor formado, escritor por vocação e, como todo artista, pessoa de mil projetos inacabados. Em breve.