A ilustração no centro da capa mostra um computador de aparência antiga, laranja, com uma tela preta e alguns números verdes, como se fosse um código. Atrás do computador tem uma pilha com alguns livros e, apoiado no teclado, há uma foto que mostra três crianças (duas meninas e um menino) brincando na praia. Uma das meninas tem pele branca, e a outra menina e o menino têm pele negra. No fundo, em tons neons e sem contorno, há o que parecem tentáculos de um polvo. O título “Emitindo” vem abaixo do logo da Mafagafo (que é rosa claro), à direita, em azul claro. Do lado esquerdo, em cima, há o logo da Mafagafo com a informação “Temporada 003 - Agosto de 2020”. Bem na parte debaixo da capa vem as informações "Escrito por Benjamin Edgar Jacob” e “editado por Bárbara Morais” no mesmo rosa claro do título da Mafagafo. Acima do título da Mafagafo, há as informações “Ilustração: Mari Couto” e “Direção de Arte: Giovanna Cianelli”.

Pam é uma humana adotada por um casal de erianos, uma espécie alienígena de octópodes telepáticos que veio para a Terra há mais de dois séculos. Aos trinta e dois anos e sem nenhum contato com os pais e os irmãos, se vê numa situação inusitada quando recebe dezenas de mensagens do pai através de uma rede social pouco usada. Não haveria problema nenhum se não fosse por um detalhe: ele se matou há oito anos.

19.600 palavras | Aproximadamente 1h25min de leitura 

1.

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🐙 @PapisPolvo51

Ei, @PamdaCansada

Já faz tempo, né?

Isso… está sendo transcrito?

Bom, espero que sim. Bom.

E então, querida?

Como estão as coisas contigo? E seus irmãos?

Eu queria estar aí, mas, bom… Bom.

15:58 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Você… Será que você pode não contar nada disso pros seus irmãos? Me disseram que eu poderia mandar essas mensagens pra uma pessoa apenas… Se contar pra eles que te escolhi, sabe, acho que eles vão ficar chateados.

Em especial sua irmã.

16:00 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Ela sempre disse que você era minha preferida e sempre retruquei que os pais não têm preferidos.

Acho que você já tem idade suficiente pra eu confessar que era mentira.

Sim, você sempre foi minha preferida.

Mas não conte pra sua irmã.

Isso a magoaria em qualquer idade.

16:01 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Jurei que não seria como o meu pai nesse aspecto, sabe? Nunca fui o preferido dele e isso me magoava.

Hoje, acho que o entendo.

Essas coisas de preferido… elas acontecem naturalmente.

Estão fora do meu poder de escolha porque sou falho.

16:01 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Quando tivemos a ideia de adotar, sua mãe e eu, pensamos muito. Fizemos cálculos. Quer dizer, sua mãe fez os cálculos. Enquanto ela cuidava da logística e estatísticas, fiquei com a parte das dúvidas e perguntas. Não dormi por muitas noites me questionando se era o certo.

16:03 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Escolhemos te adotar porque nunca confiei em mim para amar uma criança que se parecesse comigo.

Todo mundo disse que era loucura, é claro. Disse que jamais nos adaptaríamos a você e que você mesma sentiria falta da interação com seus iguais.

16:05 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

A assistente social que acompanhou o processo de adoção passou por uns perrengues pra poder ajudar sua mãe a reduzir minha ansiedade com relação a você, sabe? Com a quantidade de crianças órfãs e abandonadas, eles precisavam muito de famílias dispostas a adotar.

17:00 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Ela se esforçou bastante pra que você chegasse até nós.

No dia que finalmente nos conhecemos, dava pra ouvir a vibração baixa de alegria que ela emitia conforme interagíamos na sala de recreação. Você não deve ter ouvido, era muito baixo para seus ouvidos captarem.

17:03 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Tive medo que minhas preocupações estivessem certas, no início.

Dava pra ver que quando você chegou na nossa casa, estranhava tudo. O formato dos móveis, o tipo de comida que preparávamos, até o português que emitíamos.

Falávamos.

“Não se emite, se fala.”

Lembra disso?

17:06 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Foi a primeira coisa que você me disse. Aconteceu uma semana depois de você começar a frequentar nossa casa. Estava brincando no carpete com os blocos que te fiz na marcenaria.

Nunca me encarava. Acho que você ainda tinha medo. Não te julgava, eu também tinha.

17:08 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Você sempre me pareceu muito pequena e frágil. Seu esqueleto, corpo… eles pareciam de papel. E eu era imenso. Sempre estive abaixo da média, mas você me fazia sentir um gigante.

Meu pai me falou depois de um tempo que isso era normal.

“Os filhos distorcem sua ideia de tamanho.”

17:09 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Enfim.

Você estava no carpete, com aqueles blocos, e aí te falei algo. Devo ter te pedido pra “emitir” o que achava dos blocos.

Aí você disse: “Não se emite, se FALA, seu bobo. Papai gosma não sabe nada.”

Você tinha seis anos e era cheia de propriedade.

Achei graça daquilo.

18:15 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Admito que nunca gostei desse apelido: “Papai gosma”

Mas contanto que você me chamasse de pai, me sentia satisfeito.

Me magoava um pouco ser chamado de gosmento, é claro. Ok, talvez me magoasse MUITO.

Mas não tinha muito o que se fazer.

18:17 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Conversei com sua mãe sobre isso algumas vezes. Ela sempre me pediu pra ter paciência. Não foi fácil, é claro. E apesar de tudo, imagino que ela também tenha sofrido toda vez que você corria de nós e se escondia debaixo dos móveis, querendo se manter longe.

18:20 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Sua mãe era de poucas palavras, eu sei. Pra você, que sempre foi uma oradora apaixonada, deve ter sido complicado conviver com o silêncio dela depois que parti.

As pessoas me contam coisas aqui, sabe?

Sei sobre os seus irmãos, a viagem do Di, o livro da Bela…

Sinto muito, Pam.

18:26 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Sei que talvez isso não signifique muita coisa.

Talvez não signifique nada.

Nessa via de mão única fica complicado ter certeza de algo.

Lembro daquela vez que você brigou comigo por minhas broncas serem verdadeiros monólogos. Você tinha o quê? 15 anos?

Era complicado…

18:30 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Mesmo tão jovem, você estava certa, admito.

Me arrependo de não termos conversado mais, ainda que tenhamos tido várias conversas.

Gosto de pensar que estávamos sintonizados.

Com a falta que você me faz, porém, parece que perdi tempo demais ouvindo apenas a mim mesmo.

19:00 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Acho que me perdi aqui.

Deixa eu pensar…

“Papai gosma.”

Você vinha com cada uma que, sinceramente…

19:10 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Sua mãe me disse pra ter paciência.

“É só uma fase.”

Mas… tive medo que você tivesse lembranças ruins da sua outra família, a biológica. Pensei que fosse nos rejeitar, que não fosse dar certo. Pensei tanta coisa, Pam.

Acho que você entende.

19:13 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Tive paciência mais pela sua mãe do que por mim mesmo.

Não queria incomodá-la com as minhas crises. Ela já se estressava o suficiente no laboratório, no hospital, nas reuniões com o governo.

E eu? Eu era só um escritor remoendo fracassos em espiral.

Ridículo.

19:15 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

A quantidade de bonecos que te fiz era equivalente aos meus medos. Cavalos, peixes, aquele bicho engraçado… Pikachu? Você adorava esses bichinhos estranhos e velhos.

Foi assim que conquistei sua confiança tão árdua:

Paciência infinita e uns Pokémon de madeira.

Valeu a pena.

19:16 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Aos poucos, você deixou de me chamar de “Papai Gosma” pra me chamar pelo meu nome, o real.

Admito que achava admirável você tentar reproduzir os cliques e guturais que o formavam quando seu aparelho fonador jamais teria estrutura pra emiti-los com perfeição.

19:28 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Depois de alguns meses nessa brincadeira, você se cansou e me deu um nome novo. Hélio. Falou que era porque eu combinava com o elemento químico. Talvez fosse o meu jeito de flutuar ao seu redor?

Nove anos de idade e refinada a ponto de me fazer sentir vergonha por ser medíocre.

19:30 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Nunca pensei em ter um nome humano antes de você. Mas desde que cheguei aqui, só peço para que me chamem de Hélio.

Finjo que assim estou em casa, por mais que saiba que minha casa é apenas ao lado da sua mãe, de você e dos seus irmãos…

19:36 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Bom.

Você deixou de me chamar de “Hélio” aos poucos.

Arriscava um “pai” vez ou outra, por debaixo da respiração, como quem dá um espirro contido.

Eu fingia que nem reparava pra não te deixar constrangida.

Toda noite antes de dormir listava pra sua mãe esses momentos como vitórias.

19:40 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Quando ficava brava, é claro, você voltava a me chamar de gosmento. O dia que parou de me chamar assim em definitivo foi o dia que te falei como me fazia chorar por dentro toda vez que usava essa palavra.

Aí foi a sua vez de chorar e a minha de me sentir culpado.

20:01 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Você me abraçou com força e pude ouvir cada coisinha se movendo dentro de você. Seus órgãos, sangue, células. Por baixo das ventosas dos meus tentáculos, todas as informações que jamais poderia me esconder.

Sempre detestei essa habilidade, sabe?

Mas é o que eu sou… Era.

20:04 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Meu pai dizia pra nós, seus tios e eu, que não havia ponto de troca para reclamarmos sobre a vida que tínhamos recebido, que era melhor nos acostumarmos com ela. Achei que ele estivesse sendo seco. Depois entendi.

Entendi também que podemos lutar pra nos sentirmos melhor, apesar disso.

20:05 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Você deixou de usar a palavra gosmento depois daquilo e nunca mais brigamos feio.

Exceto por…

Teve aquela vez, a última vez que nos falamos.

Mas não quero pensar nisso, sabe?

Não quero que pense que ainda estou magoado.

Eu nunca pude ficar muito tempo bravo contigo, Pam.

20:07 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Sabe qual a minha primeira lembrança sua?

Você tinha cinco anos. Eu nunca tinha visto um humano bebê tão de perto. Digo, criança.

Cabelo, olhos, até o seu tipo de pele. Achei suas mãos fofas. Elas eram pequenas, com dedinhos gorduchos.

20:09 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Sua pele era marrom por todo o corpo, menos nas palmas das mãos e nas solas dos pés. E você tinha unhas. Unhas coloridas com giz de cera, porque não podia usar esmalte.

Você adorava desenhar flores pequenininhas, e me descrevia todas com simplicidade, já que eu não podia enxergá-las totalmente.

20:12 – 8 de Jun de 2029

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🐙 @PapisPolvo51

Foi estranho te ver crescer tão rápido. Me explicaram que você cresceria rápido… Não deveria ser uma surpresa, certo? Mas foi.

Sinto como se não tivéssemos passado tempo suficiente juntos.

Sinto como se tivessem me roubado o tempo como seu pai.

21:12 – 8 de Jun de 2029

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Sentiu os dedos dormentes ao terminar de ler a última frase. Estava sentada na frente do monitor do trabalho e aquilo que deveria ser mais um teste de API da sua ferramenta com o PiuPio se transformara numa sucessão de sentimentos estranhos, incômodos e que a faziam se sentir com vinte anos de novo.

Fazia pelo menos seis meses que desinstalara o aplicativo do celular. Não era uma atitude tão surpreendente assim, considerando-se que o PiuPio não era nem de longe tão popular quanto o Twitter, nem tão bem estruturado quanto o Mastodon, portanto ninguém queria usá-lo. Correção: ninguém além de seu chefe, viciado no PiuPio, que lhe pedira para configurar uma integração com o site deles.

Agora…

Que porra era aquela?

Fechou os olhos e o aplicativo. Esfregou a testa com força. Depois, estalou a mandíbula, seu tique quando estava nervosa.

O pai estava morto há oito anos.

Oito anos atrás tinha encontrado seu corpo molenga e esverdeado caído no banheiro, a cabeça semidiluída num sangue pegajoso por conta do ácido que ingerira para cometer suicídio.

Colecionava aquelas lembranças deslocadas, trechos entrecortados do espaço-tempo, como alguém que apanha conchas na praia e depois as enfileira num móvel na sala de estar: os oito tentáculos esticados pelos ladrilhos amarelados do banheiro. O fato de que um policial tivera de serrar alguns cujas ventosas grudaram e não se soltavam de jeito nenhum. Mais daquele sangue de piche escorrendo pelas frestas no piso. Diego, seu irmão mais novo, do lado de fora, implorando para que as assistentes sociais o deixassem entrar em casa para ver o pai.  Os vizinhos flutuando até a porta de entrada deles, curiosos para ver aquilo que fora, comprovadamente, o primeiro caso de suicídio na espécie deles. Alguns tiveram convulsões.

Bela, sua irmã, diria anos depois que o pai era insano e fora melhor daquele jeito. Não fora tão sofrido quanto poderia, certo?

— Eu li numa revista que quando escritores fracassam eles tendem a se tornar pedófilos. Faz parte do ciclo de frustração e autodestruição deles — ela afirmaria dando batidinhas controladas no sachê de estévia com o qual adoçava seu suco. Seus dedos brancos tinham pontas avermelhadas, como se a pele externalizasse sua irritação com o assunto. — O papai nunca foi normal, ele sempre… Sei lá, Pam, ele sempre foi esquisito até pros padrões de um alienígena… todo mundo sabe disso. Certo?

O croissant que pedira estava esfriando no prato enquanto ouvia Bela fazer aquelas declarações. Quanto mais olhava pra ele, torto e transpirando gordura, mais pensava no corpo do pai contra os azulejos — não era uma memória recente, mas ainda era vívida demais para suportar facilmente. Começou a ficar enjoada, a desculpa perfeita para deixar a irmã sozinha e ir para o banheiro do restaurante recuperar o fôlego.

Lavou o rosto e contou os espaços entre a própria respiração, como a psicóloga ensinara. A calma não veio. A tremedeira nas mãos foi ficando pior e ao se olhar no espelho viu seu rosto embaralhado, os elementos nele dispersos como vegetais flutuando numa sopa. Sentiu a pressão forte e sufocadora dos tentáculos do pai nos seus pulsos, as palavras dele soando como um sortilégio nas suas sinapses. O termo “despersonalização” ainda não passara perto das consultas tímidas que tinha com a psicóloga na época, então não sabia que estava passando por uma crise desse tipo.

Se soubesse, talvez fosse mais fácil evitar se afogar.

Em vez de fugir, se viu envolvida pelas palavras que permeavam as lembranças da última conversa que tivera com ele, um dia antes do suicídio:

Por que você não morre logo?

As palavras eram como uma sirene soando nas suas orelhas. De súbito, todos os sons foram cortados. Surda pela crise de ansiedade. Tentou falar, chamar a irmã, mas a voz também estava travada na garganta.

— Pam? — chamou uma voz atrás de si, arrancando-a do torpor.

Quando olhou por cima do ombro, já não estava mais no restaurante com Bela, tampouco no coworking. Não, naquele momento tinha dezessete anos e ainda usava aparelho nos dentes. Diego não passava de uma criança com o calção sujo de areia da praia e abria a porta do banheiro feminino com temor, o olhar desesperado de quem precisa de apoio.

— Pam, a mamãe sumiu! E o papai… ele tá tendo um ataque.

Sentindo a camiseta úmida de água do mar apertar-se em volta do tronco, acompanhou o irmão na direção daquela cena que parecia um teatro bizarro: No meio do corredor que dava para a emergência, o corpo do pai convulsionava no piso. Pessoas se reuniam em torno dele gravando a cena com os celulares, como se o estremecer de sua cabeça e o ricochetear dos tentáculos fosse uma apresentação. O pai emitia um som alto, tão desnorteante, que a deixou zonza.

— Panda? — chamou Di, apertando seu braço, lágrimas correndo pelo rosto. — Panda, o que a gente vai fazer? Ele vai morrer também? Pam?

Pamela? — A mão em seu ombro a fez pular na cadeira.

O supervisor da equipe a encarava com temor, mantendo distância. Notou que outros funcionários do coworking estavam observando o desenrolar da cena de rabo de olho e logo se voltaram para as próprias telas.

— Tudo bem aí?

— Sim — respondeu, percebendo que tinha acabado de socar a mesa com os dois punhos. Quebrara uma unha da mão esquerda, que repousava no canto oposto ao teclado. — Desculpe, eu só… só estou um pouco frustrada com esse código.

O supervisor concordou devagar com a cabeça, não parecendo acreditar muito naquilo.

— Hoje é aniversário… o dia da morte do seu pai, certo? — ele relembrou. — Não é melhor… ir pra casa descansar?

— Ah. — Tinha se esquecido daquilo também.

Porque, é claro, todo mundo sabia a data em que o primeiro e único eriano cometeu suicídio — ainda mais com a quantidade de avisos que circulavam pelas redes sociais, praticamente uma prévia do Setembro Amarelo compartilhada à exaustão. Uma ironia, considerando quão pouco os humanos ligavam para os erianos.

— É… acho que posso ir pra casa por hoje.

— Tudo bem, vou avisar ao chefe. Desculpe não ter lembrado antes, Pam.

— Sem problema, Fred.

Ela apanhou a própria bolsa, recolheu os fones de ouvido e fugiu dos olhares curiosos.

Em casa, tornou a abrir o perfil do PiuPio e reler as mensagens escritas na timeline. Levou a mão ao peito; o coração não parecia mais tão acelerado agora. Tomou o ansiolítico que o psiquiatra prescrevera para emergências, só por precaução.

Então, clicou no perfil do tal @PapisPolvo51.

Como seria esperado de um perfil fake, não havia outras mensagens postadas, apenas aquelas que lera no trabalho, publicadas um mês antes. A opção de enviar mensagens para o usuário não estava habilitada, então se quisesse perguntar quem diabos estava por trás de uma brincadeira tão sem graça, teria de enviar uma resposta direta para os pios que a pessoa postara.

— Ok, quem caralhos você pensa que é? — começou a escrever.

Apagou letra por letra e tornou a respirar fundo.

— Muito engraçado — começou de novo —, mas vou te denunciar para a delegacia de crimes virtuais por assédio.

Pronto, isso soava mais adulto e controlado.

Enviou a mensagem.

Dois segundos depois do envio, no entanto, um pop-up com uma mensagem de erro do PiuPio pulou na sua frente, informando: “Mensagem indisponível”.

Tornou a atualizar a página.

O perfil fora deletado.

2.

Pensou em ligar para a irmã e contar sobre o que acontecera, porém descartou a ideia; Bela usaria isso para se promover de alguma forma nas redes sociais. Quantos seguidores não poderia angariar contando Histórias Tristes e Traumáticas da Infância? Aquele papo de “eriano pedófilo” com certeza conquistaria meio mundo entre os grupos radicais antierianos.

A alternativa era falar com o irmão, mas não sabia o número dele. Merda, nem sabia se Di ainda morava no Brasil.

Largou o celular de lado e se sentou na frente da TV, cometendo o erro de ligá-la com um comando de voz.

Deu de cara com o documentário que aquele canal insistia em passar todos os anos, na data da morte de seu pai, comprado de uma empresa de streaming famosa. O título era O que as estrelas nos trazem. O conteúdo não era nem de longe tão bom quanto o nome.

Falava sobre a chegada das primeiras naves aportadas na Terra trazendo os refugiados do planeta-anão Éris. Eles fugiam de uma doença que dizimava todo o planetoide, não apenas seus habitantes como também a fauna e flora do lugar.

O documentário fora feito do ponto de vista dos humanos. Por melhores que fossem as intenções, era recheado de xenofobia velada, coroado por uma exotificação que a deixava enojada.

Trocou de canal com um “próximo” que escapou partido de seus lábios.

No canal seguinte, óbvio, deu de cara com o documentário produzido em cima da suposta história de seu pai.

Hélio foi um caso único nos registros dos erianos, disse o narrador e prosseguiu: Devido à sua natureza psíquica, os erianos são uma espécie profundamente interligada entre si, sendo suas emoções e pensamentos compartilháveis através de uma rede mental. Muito empáticos, eles viviam numa harmonia utópica até serem atingidos por um caso considerado inimaginável: um suicídio. Naquele dia, todos os erianos habitando a Terra sentiram a morte dele, sendo isolados ou não.

Aos poucos, vieram as opiniões de especialistas de ambas as espécies, entre psicólogos e outras áreas médicas, além da opinião de escritores, amigos próximos e outros erianos que haviam ficado extremamente sentidos com a morte de um dos seus naquelas circunstâncias.

Não era fácil esquecer a sensação do ácido destruindo sua pele viscosa, desmanchando seus ossos porosos e, por fim, diluindo seu precioso cérebro, eles disseram. Palavras humanas não davam conta de descrever isso, literalmente.

Quando a imagem da mãe surgiu na tela, flutuando alguns centímetros acima do assento especial para apoiar sua cabeça longa, sentiu o ímpeto de desligar a televisão, mas continuou assistindo. A vibração baixa dela, tão familiar depois de todos aqueles anos morando juntas, despertou um sentimento pesado que a impediu de se mover no sofá.

Por cima dos sons que ela emitia, haviam posto uma dubladora que reconheceu de comerciais e outros documentários estranhos. Na legenda, uma tentativa de transcrição fonética do nome da mãe acompanhada da descrição “Médica neurologista e esposa da vítima”.

Ele sempre foi muito quieto, emitiu sua mãe na voz daquela estranha. Não gostava de compartilhar os próprios pensamentos. Dizia que não se sentia confortável. Eu respeitava porque era o jeito dele. Ele era escritor, então costumava ficar muito tempo quieto pensando nas palavras certas, por isso nunca imaginei que algo assim pudesse ocorrer.

Ouvir aquilo fez Pam sorrir de leve. Lembrou do pai falando que aquela coisa de compartilhar o tempo inteiro pensamentos e sentimentos o sufocava. Havia um termo para definir erianos que agiam assim: isolados. Os erianos respeitavam esse tipo de comportamento a curto prazo, mas nos casos mais extensos… era comum que os isolados fossem afastados pouco a pouco da convivência social aberta, alguns até se bloqueavam na rede neural compartilhada e viviam envoltos por um “muro” ou algo próximo disso.

Eles deixavam de interagir até se tornarem alheios à vida pública, passando a maior parte do tempo em suas próprias moradias, não compartilhando as mentes mesmo em família. Isso era uma ocorrência mais frequente na segunda geração de erianos que havia nascido na Terra.

Havia, inclusive, algumas dezenas de estudos dedicados a discutir se o fenômeno de isolamento era algo que poderia ser considerado normal, graças à assimilação da cultura humana de individualismo, se poderia ser considerado um defeito neural provocado pela atmosfera distinta do planeta ou se era apenas um sintoma de algo maior, como quadros de depressão e ansiedade. Esta última hipótese era rejeitada. Como alguém que vivia numa espécie empática poderia sofrer com algo assim?

Seu pai tinha vindo com a primeira leva de erianos que migraram forçadamente para a Terra, mais de cento e cinquenta anos antes. Talvez pelo pai ser mais recluso com relação aos outros, mas não com a família, ninguém tenha pensado que aquilo era de fato um problema. Ele só era um pouco peculiar.

Embora parecesse que boa parte de suas memórias de infância tinha sido jogada em um buraco negro, ainda se recordava de algumas das longas discussões que tivera com ele. Uma delas sobre jogos de FPS e como o pai era péssimo manobrando os controles adaptados para erianos. Ela costumava repousar as mãos sobre os seus tentáculos para poder ajudá-lo a mirar e atirar nos inimigos. No início, a sensação daquela pele molhada era estranha, mas depois passou a ser confortável. O zumbido de satisfação escapando pela boca diminuta do pai a deixava tranquila.

Sentia-se conectada a ele, ainda que não tivesse acesso à sua mente como ele poderia ter à dela.

Tornou a prestar atenção ao documentário quando um som alto na televisão a despertou. Estavam falando sobre os conflitos antierianos, que se arrastavam por décadas, sem parecer que se encerrariam algum dia. As imagens passando pela tela eram entrecortadas, de qualidade ruim e embaçada, algumas vindas de arquivos pessoais de erianos e humanos, outras gravadas por câmeras de segurança, exibindo humanos tentando atacar erianos e humanos aliados.

A voz de outra narradora explicou que os conflitos tinham como base o desejo de segregação dos erianos pelos humanos, que temiam perder seus direitos e soberania sobre a Terra. Um carro em chamas apareceu na tela: uma família inteira de humanos presa enquanto o eriano que os acompanhava no banco do carona saía incólume e tentava retirar as pessoas de dentro do veículo com seus tentáculos.

Não suportou ver mais nada.

Desligou a televisão e saiu da sala, rumando para o quarto, onde ficou um bom tempo deitada na cama. Tentou esvaziar a cabeça, mas o pai, a mãe e os irmãos ficavam indo e vindo em sua mente.

Lembrou-se de quando o pai flutuava baixinho ao lado da sua esteira (ela só passara a dormir em camas depois dos quinze, quando já não acreditava mais no bicho-papão), enquanto lhe contava a história. Não uma história, mas a história, algo que eles tinham inventado desde que aquela casa se tornara seu lar definitivo. Naquela época, a história tinha seis anos de duração.

— Devíamos mandar isso pro Guinness — falava toda noite pra ele, se achando muito esperta por ter aprendido o que era o Guinness durante uma de suas buscas pela rede. — É a maior história já contada no mundo!

Ele concordava toda vez para agradá-la. Nunca lhe dissera que para isso precisariam ter se gravado durante aquela hora diária ao longo dos anos. Apenas esticava um tentáculo e o prendia um segundo no seu cabelo, emitindo um som engraçado, como um beijinho estalado, enquanto lhe dizia que ela deveria ir descansar.

— Mas você ainda não acabou a história! — devolvia, sorrindo com afetação da piada.

Não, vamos terminá-la amanhã, respondia ele e mesmo que seu rosto não tivesse olhos, só um monte de pele enrugada e manchada de marrom, podia imaginá-lo piscando de um jeito cúmplice.

Podia vê-lo naquele instante deixando seu quarto e indo para o que ele dividia com a mãe. No cômodo, os móveis todos tinham bases altas de madeira para que pudessem ficar bem acima do chão, longe do ar frio que os erianos detestavam. O pai estaria sentado à escrivaninha usando o teclado mecânico para escrever. O teclar ininterrupto dele enquanto trabalhava em algum texto, seguido do leitor enunciando baixinho as palavras, a ajudava a pegar no sono.

Naquela época, ele contribuía para um jornal eriano e aos finais de semana atuava como editor em uma revista online de ficção científica, então passava bastante tempo se dedicando às palavras. O público-alvo da revista eram especificamente erianos acima de cem ciclos, por isso Pam não tinha permissão para lê-la, não tinha idade para isso.

Tinha dezesseis anos e detestava ser contrariada. Somando isso à personalidade afrontosa de Bela, que na época tinha completado doze, era óbvio que a restrição não seria levada a sério.

A memória do que sentira ao fazer um download escuso de um dos volumes da revista nunca a abandonaria. Bela estava olhando por cima do seu ombro enquanto ela acessava o site do pai no velho notebook que compartilhavam, sussurrando de vez em quando um “Anda logo!” como se aquilo dependesse apenas da força de vontade dela e não da conexão horrível. Quando terminaram, ficaram olhando em expectativa o arquivo carregar suas artes abstratas e cinzentas antes de começar a ler.

A história era a última da revista, um conto breve cuja essência já se perdera na sua mente. A prosa eriana era confusa, complexa como um mosaico, e fluía entre o passado e o futuro, o ocorrido e o prestes-a-ocorrer e talvez até o-que-jamais-ocorreria, o que não a agradou. Não largara a leitura de cara porque era teimosa, queria saber que tipo de coisa o pai escrevia.

Não é dos melhores, hein, meninas, o pai comentara por cima delas.

Bela soltara um gritinho assustado e correra para o quarto, com medo da represália, deixando-a revirando os olhos.

— Essa garota não tem jeito…

Não seja tão dura com ela. Irmãs mais velhas devem proteger as mais novas.

— Ela me dá preguiça.

Sempre enxergara Bela como uma menina dramática e manhosa, que requisitava demais a atenção dos pais, num misto de temor e adoração que a irritava. Só depois fora capaz de compreender que ela não fazia por mal, mas sim por reflexo. Ao contrário de si, que tinha ficado órfã com a morte dos pais num acidente, os pais de Bela ainda estavam vivos, na prisão e com um mandato que os impedia de ficarem a menos de um quilômetro da filha. Nenhum parente pôde (ou quis) ser encontrado, algo assim.

Pam nunca perguntara o que aquelas pessoas tinham feito à irmã e ninguém em casa falava sobre isso. Era como uma regra entre eles: não falar sobre o que ocorrera antes do orfanato. Como se a vida tivesse sido um teatro de sombras até ali. Anos depois, Bela se tornaria uma atriz de relativo calibre e lançaria uma biografia contando tudo nos mínimos detalhes. Fora um sucesso de vendas. Pam nunca lera a cópia autografada que ela lhe enviara. Tinha medo do que poderia estar escrito sobre ela e o pai.

— E sobre o conto — Pam comentou dando de ombros, tentando fingir que estava pronta para o castigo que viria —, acho que você podia ter sido menos abstrato.

Foi só um tapa buraco, o cara que ia escrever o conto final deu pra trás de última hora, a cabeça dele estremeceu num pulsar característico, que os anos tinham-na ensinado tratar-se do seu próprio dar de ombros. Não precisava ser fascinante de verdade.

— Mas foi bom, sabe? — mentiu, porque sabia que ele precisava ouvir aquilo. — Só podia ter sido… melhor.

Tudo bem, Pam, ninguém morre por ser medíocre.

Quis dizer a ele que estava errado, mas nesse momento o pai estendeu os tentáculos e fechou suavemente o tampo do notebook.

— Tô de castigo?

É, você tá.

— Por ler sua história?

Não, por me esconder as coisas. Seu castigo é… brincar com sua irmã. Conte suas histórias pra ela.

— Você acertou direitinho no castigo, hein…

Pois é, sou um especialista nisso. Já era, Pam, bora que a Bela te espera.

O celular tocou e tornou a abrir os olhos. A tela anunciava um número restrito. Atendeu, contrariada.

— Alô?

Oi, Pam. — Demorou um tempo para reconhecer a voz do irmão do outro lado da linha. Ele soava muito mais velho. Diego deve ter sentido que ela demorou a reconhecê-lo, pois declarou: — Sou eu, seu único irmão legal?

— Oi, Diego — falou, trocando o celular de orelha e apoiando-o no ombro. Sabia que o irmão nunca ligaria se não fosse de extrema urgência e já sentia o cansaço inundando-a por antecedência. — Algum problema?

Uau, as pessoas costumam perguntar se anda tudo bem antes, Pamela.

— Bom, se eu te perguntar e não estiver, você vai me dizer?

Um silêncio estranho se ergueu entre eles.

Ah.

De volta ao lar.

Diego resmungou algo que não conseguiu entender, como se falasse com outra pessoa, então tornou a se dirigir a ela:

Bom, enfim, irmãzinha, o que eu queria saber é se você falou com a nossa mãe hoje.

— Não, por que eu falaria?

Porque — ele estava usando aquele tom afetado que odiava e a fazia se sentir como uma criança —, na data de hoje o marido dela, que por sinal era nosso pai, se matou e foi um puta trauma do caralho. Só por isso!

— Bom, você mandou uma mensagem pra mamãe hoje? — indagou, dando um tapa na própria perna, irritada. — Ou será que só eu tenho essa obrigação?

Você foi a última a sair de casa, foi quem viveu com ela por mais tempo — Diego apontou, igualmente irritado.

— Não é como se tivesse sido uma escolha minha, Diego.

Você também é quem mora mais perto dela.

— Ok, e daí, Diego? Era pra eu ligar ou pra passar na casa dela? Se decide aí, parceiro!

Ele ficou quieto. Em seguida, deixou o ar escapar pelo nariz, denunciando que ia começar o dramalhão, sua especialidade. Às vezes, achava que ele deveria ter seguido carreira nos palcos, não em publicidade.

Tá bom, Pamela, já entendi que você está cagando pra nossa mãe!

— Ah, eu quem estou cagando? Não fui eu quem saí de casa aos dezesseis por não aguentar seguir as regras dela!

A casa não era a mesma sem ele — pela primeira vez ele soou sincero, o que a pegou desprevenida. Ficou em silêncio, ouvindo sua respiração do outro lado da linha. — Você sabe… que nunca mais foi igual sem ele. A gente devia ter saído de lá, Pam. Sei lá… Sabe? Era errado continuar lá. Com as coisas dele, o banheiro… e tudo.

— Eu sei — viu-se concordando, esfregando a testa. Como imaginara, aquela era uma conversa cansativa. — Eu sei, Di.

Eu queria notícias dela — ele explicou, os ânimos se abrandando ao ouvir o cansaço em sua voz. — Acordei pensando nele. Por causa dessa porra de espetáculo que montaram em torno dele. E aí pensei em como ela estaria…

— Não a vi hoje — limitou-se a falar. — Pode ser que a Bela tenha ido visitá-la, mas duvido muito.

Entendi.

Não disseram mais nada. Pensou em falar com ele sobre as mensagens enviadas por alguém fingindo ser o pai. Ensaiou como faria isso.

Bom, sabe o nosso pai suicida que te fez meter o pé de casa antes de completar a maioridade? Ele aprendeu a zapear na internet e está por aí tuitando no pós-morte.

Ok, isso seria pior do que o dia do velório do pai…

Diego não permitiu que aquela fala se concretizasse; anunciou que precisava pegar um voo para Johannesburgo ou algo assim e desligou. Apesar de exteriorizar toda uma personalidade sociável e extrovertida, se tornara arredio, avesso a qualquer tipo de proximidade com outros membros da família.

Mais uma das sequelas da morte do pai? Sentiu frustração por não saber responder aquilo. Muita coisa apagada e distorcida com os anos, fonte inesgotável para sessões de terapia.

Largou o celular na cômoda, tornando a deitar com um suspiro.

A mãe. Como será que ela estaria?

Isso não vai te fazer nenhum bem, Pamela.

Olhou para o relógio na parede de canto da sala. Seis e quinze. Respirou fundo. Uma, duas, quinze vezes. A sensação de sufocamento não abandonava sua garganta, fazendo-a puxar a gola da camisa para tentar recuperar o ar.

“Fica quieta”. A voz de Diego soou em sua cabeça, muito mais jovem do que aquela no telefone. “Você vai estragar tudo!”

— Eu tô sufocando aqui, cacete! — respondeu e de repente não estava mais em sua casa, mas sim na casa dos pais, puxando a gola da camiseta surrada de Nina Simone que usava como pijama enquanto ia para a cozinha e abria a geladeira. O jornal da manhã avisara que aquele seria o dia mais quente do ano, mas não falara nada sobre a noite, o que a deixara puta. Odiava passar calor. — O que cê tá aprontando?

Di fez gestos exagerados para que ficasse em silêncio, olhando por cima do ombro. Notou então o montículo de dobras esverdeadas em cima do sofá — o pai deles.

— Ele tá dormindo no sofá de novo?

— Ah, ele deve estar se debatendo de novo… E você sabe que o sono da mamãe é sensível — Di retrucou. — Agora vê se fica quieta e não atrapalha.

Bebendo água direto da garrafa, observou o irmão se aproximar pé ante pé do pai adormecido, um pote cheio de creme de barbear na mão.

— Onde cê arrumou isso, garoto?

— E isso importa? — ele retrucou com deboche.

Quase se engasgou quando viu seu irmão enfiar um dedo no pote e depositar uma boa quantidade de creme na cabeça do pai, que emitia um ronco abafado.

— Isso pode fazer mal pro papai! — falou, preocupada.

— Vai nada, para de ser chata!

Quando ele terminou de desenhar uma carinha feliz na cabeça dele, os olhos de tamanhos desiguais e uma boquinha de lábios murchos, Pam se viu cobrindo a boca para não rir alto.

— Cala a boca! — Di censurou-a, ainda que ele próprio estivesse se retorcendo para não rir.

Foi quando o pai emitiu um ronco mais alto que os sobressaltou e fez correr para o quarto dela, a porta batendo forte demais.

— Será que ele acordou? — questionou, preocupada.

— Acordou nada! — Di esfregou o que restara do creme de barbear no short de tactel, a sombra do sorriso ainda visível no rosto. — Ele só dorme mais pesado se morrer.

— Bom, então acho que cê pode ir pro seu quarto, né?

— Ah, Pam, qual foi? Me deixa dormir aqui contigo!

Ele já estava acomodado na cama enquanto falava isso, os braços apoiando a cabeça, os pés sujos se sacudindo na colcha florida.

— E pra quê isso agora, garoto?

— Ai, sei lá, só queria ficar um tempinho com a minha irmãzinha, que é que custa?

Soltando o ar pela boca, empurrou-o para o lado, deitando-se também. A convivência com Di tinha lhe ensinado que não era bom contrariá-lo. Imaginou que ele tivesse caído no sono, pois era dado a capotar na cama desde que viera morar na casa, três anos atrás. Se enganou.

— Pam? — ele chamou, sobressaltando-a.

— Que foi?

— Como é ter uma namorada?

Hermes tinha sido apresentada à família no último final de semana e estava surpresa que Di não a mencionara antes.

Hm, pra que quer saber?

— Sei lá… A Hermes gosta de videogame?

— Bom, ela quer ser programadora de jogos, então acho que sim.

O irmão deu um sorriso amplo, o rosto marrom e coberto de sardas assumindo o formato de um coração.

— Isso é muito maneiro!

— O que cês tão falando aí? — Bela enfiou a cabeça pela porta do quarto, o cabelo castanho e repicado surgindo antes mesmo de seu rosto. — E por que o papai tá enrolado no sofá com uma carinha de desenho animado feita com pasta de dente?

— Mistérios da vida! — Pam respondeu, abrindo espaço para a irmã deitar-se ao lado dela.

— Não é pasta de dente, é creme de barbear, sua ignorante! — Di retrucou, ofendido.

Como era de se esperar, ele e Bela entraram numa discussão sobre as diferenças do uso artístico de pasta de dente e creme de barbear. Pam desbloqueou o celular e mandou uma mensagem para Hermes. Não lembrava o que tinha escrito, apenas que continha emojis e memes o suficiente para ser considerado um diálogo saudável e sem objetivo.

— Se um dia eles se separassem, será que deixariam a gente escolher com quem ficar? — A pergunta de Di flutuou do nada no ar, súbita como um ataque cardíaco.

Soltou uma risada roncada enquanto Bela deixou escapar uma interjeição de choque.

— De onde cê tirou isso? Eles nunca vão se separar! Os erianos são tipo, modelos de amor eterno e tal, esqueceu?

Di virou de barriga para baixo, balançando as pernas, o rosto compenetrado muito diferente do seu normal.

— Mas… e se eles se separarem mesmo assim? A gente nunca mais vai se ver?

— Di, eles não vão se separar — Bela disse, tacitamente, pulando Pam para se sentar ao lado de Di. — De onde cê tira essas coisas, garoto?!

— Ai, de lugar nenhum, gente! — Diego parecia afundar na cama, os olhos evitando as irmãs. — Mas se eles se separarem mesmo assim, eu quero ficar com a mamãe. O papai já tem a Pam e você. A mamãe precisa de alguém pra cuidar dela.

— E por que você acha que a Bela e eu ficaríamos com o papai? — pronunciou-se, enfim largando o celular.

Di a fitou com condescendência, como se dissesse não é óbvio?

— Você ama o papai tipo pra cacete. E a Bela ama vocês dois. Então vocês duas ficam com ele. É assim que funciona.

— Você não ama o papai? — Bela devolveu, irritadiça.

— Claro que amo! Mas a mamãe precisa mais do meu amor do que ele.

— Por quê?

— Sei lá — respondeu, emburrado. As razões pareciam quase tocar sua superfície, mas não estava com paciência para pressioná-la. — Eu só sinto, beleza? Ela parece tão sozinha perto dele…

— Eles são iguais, Di — explicou, tentando desempenhar o papel de irmã mais velha paciente. — Os dois são erianos e vivem na cabeça um do outro. Por isso eles se casaram e isso tem, tipo, uns cem anos. Eles se amam e vão continuar juntos pra sempre. Agora para de pensar nisso, tá bom?

— Não é verdade.

— O que não é verdade?

Não é verdade — ele se limitou a repetir e virou para o lado, se desvencilhando do afeto dela e do olhar embasbacado de Bela. Depois de um minuto em silêncio, acrescentou: — Às vezes, quem a gente mais ama vai embora e nem diz adeus pra gente. Até parece que vocês duas não sabem disso.

— Nunca vamos dizer adeus um pro outro, Di — Bela retrucou e pela primeira vez Pam a viu amuada, se recolhendo contra seu braço, como costumava fazer quando chegara na casa. — Né, Pam? Vamos estar sempre juntos.

O que estão fazendo aí, patota?

Os três pularam juntos na cama quando o pai entrou no quarto. Os tentáculos apontaram para a carinha pintada no rosto, e Bela começou a rir de nervoso.

Tá bem, a quem eu devo essa harmonização facial?

— Ah, pai… — Di fez uma expressão grave. — Com certeza à Pam e à Bela!

A lembrança a fez sorrir contrariada, então suspirou. Levantou e tornou a calçar os tênis. Apanhou a bolsa na mesa da sala e saiu de casa, decidida a encontrar a pessoa por trás do perfil que mandara aquelas mensagens.

Ia se arrepender disso? Provavelmente.

Mas era melhor do que ficar na cama rememorando lembranças que não trariam ninguém de volta, nem corrigiriam seus erros.

3.

Lembrava da casa de Hermes ter visto dias melhores.

Localizada no subúrbio, próxima à rodoviária principal, ela se espremia entre um bar e uma igreja protestante como se já estivesse em estado de obsolescência programada. Pintada de um azul descascado, com a imagem de um santo desconhecido entalhada na porta de entrada, a casa provocava em si um misto de nostalgia e nervosismo.

Depois que Diego fugira de casa para um intercâmbio desesperado e Isabela fora viver com algum namorado, o silêncio e a presença arrastada da mãe começaram a piorar seu quadro de depressão. Fora Hermes quem lhe dera abrigo naquela época e a casa diante de si se tornara seu lar por mais de três anos.

Mesmo assim, sentiu que a porta parecia rejeitá-la quando o punho bateu contra ela — Hermes odiava campainhas. Só queria dar as costas ao lugar e sair correndo. A oportunidade se perdeu quando a porta se abriu, os tentáculos amarelados de Hermes desfazendo a série de trincos e fechaduras que ela instalara na entrada na época em que o movimento antieriano ficara mais agressivo.

Depois de tanto tempo sem vê-la, finalmente encarava de frente a ex-namorada. Achou que podia desmaiar a qualquer segundo. Hermes com certeza achou a mesma coisa, pois antes até de cumprimentá-la fechou um tentáculo em torno da manga de sua camisa, tomando cuidado para não tocar sua pele, e a carregou para dentro, sentando-a no sofá.

Você parece, ela começou, hesitante em empilhar as palavras.

— Muito bem? — ofereceu, forçando um sorriso.

Mal pra caralho, eu diria, comentou enquanto flutuava até a cozinha e começava a revirar as panelas em busca de uma chaleira. Vai querer uma xícara?

— Estou tentando parar com o café — Pam achou forças para dizer. — O psicólogo recomendou. Por causa da ansiedade.

Hermes largou a chaleira e mesmo sem rosto parecia ter um ar de decepção.

Ok, o que você precisa?

— É tão óbvio assim que isso não é só uma visita?

Você tende a evitar confrontos emocionais, então acho que fugiria de mim por mais ou menos o resto da sua vida. Logo, a conclusão é que você está aqui porque precisa de algo.

— O que eu fiz pra merecer levar essas coisas na cara logo que pus os pés na sua casa?

Talvez eu seja rancorosa… Se tivesse aceitado o café, isso não estaria acontecendo.

— Isso não é justo…

Não sou eu quem faço as regras, querida.

Sentou-se na cadeira da cozinha enquanto Hermes preparava a bebida. Não porque quisesse ficar perto dela — a perspectiva de ficar naquela sala rememorando cada pequena memória feliz do que vivera ali lhe parecia uma tortura desnecessária. A cozinha era nova, Hermes informara. Passara por uma reforma para corrigir alguma coisa, cano quebrado, algo assim. Zero lembranças, portanto, terreno seguro.

Então, vai me falar por que está aqui ou não?

Hermes sempre fora assim. Não que seus pais pudessem ser régua de medida para qualquer coisa, era só que… todos os erianos com mais de cem ciclos sempre lhe pareceram… cordiais demais. Uma cordialidade que por vezes soava artificial e distante, como se não interagissem de maneira espontânea. Talvez fosse o medo da rejeição humana… Ou talvez eles tivessem apenas uma mentalidade diferente por pertencerem a outra geração.

Mas Hermes? Hermes não se tolhia nem abalava. A primeira coisa que ela lhe dissera na primeira aula que formaram dupla na faculdade foi “Oi, sou a Hermes, é, sou não-binária como a maioria dos erianos e não, não leio nada do Lovecraft, e não, não sei como invocar aquele outro que não é o Cthulhu e tem um nome tão bosta quanto. Não insista, obrigada”.

Ela era capaz de ficar horas a fio falando de técnicas de blackbox e descrições de filhotinhos fofos e extintos do planeta que nunca chegou a conhecer. Fazia parte da primeira geração que nascia na Terra e vivia a maior parte do tempo como isolada. Ao contrário de seu pai, que se sentia intimidado pela falta de privacidade do compartilhamento, Hermes se mantinha afastada porque, dizia, ter tanta gente na sua cabeça te faz questionar quanto de individualidade você tem.

O café ficou pronto cedo demais e ainda que tivesse tentado enrolar para não responder a pergunta inicial, soprando a bebida quente, Hermes ficou impaciente e foi a primeira a quebrar o silêncio.

Pamela.

Seus ombros tensionaram. Ninguém a chamava assim, exceto sua família e talvez as atendentes de telemarketing.

Vai me contar ou não o que houve?

— Preciso da sua ajuda. É sobre o meu pai.

Ela sabia bem o quanto a morte do pai contribuíra para que sua saúde piorasse, então suas palavras vieram embrulhadas em preocupação.

O que tem seu pai?

Explicou sobre as mensagens estranhas, as memórias que nunca compartilhara com ninguém expostas em mensagens de 380 caracteres para todo mundo que quisesse ver, o jeito tão típico do pai de se comunicar transbordando pelas linhas e parecendo afogá-la em sentimentos que não experimentava havia muito tempo.

Cacete… Quem você acha que pode ter feito isso?, Hermes questionou depois que Pam ficou calada tempo o bastante para deixar claro que sua narrativa confusa terminara.

— Não tenho ideia. Também não consigo imaginar uma razão para que alguém inventasse de trazer essas coisas à tona agora, sabe?

Alguém querendo te sacanear?

— Não sei. Não tenho inimigos.

Nem amigos, sua cabeça comentou contra sua vontade.

Esquisito… E como posso te ajudar com isso?

— Posso contratar seus serviços de hacking?

Hermes emitiu um som abafado, uma mistura de risada e ronco.

Claro, é o que paga os boletos, né, linda?

— Ok, e o que eu faço?

Só loga na sua conta e faço a minha magia.

Fez login no notebook que Hermes lhe ofereceu sem pedir segundas explicações.

Sabe, ela comentou de repente, depois de quinze minutos imersa no trabalho. Você nunca me falou sobre o seu pai.

Aquilo a fez rir.

— Ah, não, esse é o momento clichê da história em que eu te conto várias memórias felizes com ele e tenho revelações que me fazem entender o que está acontecendo? E pronto, tudo muda na minha vida e eu deixo de ser uma depressiva de merda?

Não, Hermes pontuou com firmeza e pôde sentir o reflexo das discussões que tiveram no passado contraindo os músculos das próprias costas. Só acho que conversar sobre ele pode te trazer algum alívio.

— Ah, jura? — bufou.

E eu gostaria de saber mais sobre ele também.

— Por quê? O que poderia falar que você já não saiba? Você sentiu quando ele morreu, estava na cabeça dele!

Só porque estávamos lá, havia desconforto evidente na forma como Hermes compunha aquela frase, aquele plural ao qual ela não escolhera pertencer, não quer dizer que o tenhamos conhecido como você conheceu, até porque, tecnicamente, ele era um isolado… Não se pode resumir a vida inteira de uma pessoa apenas em sua morte.

— O que você quer saber?

Como ele era? Tipo, de verdade. Não esse mito que a mídia criou. Como ele era pra você?

— Essa frase é engraçada, porque talvez ele fosse um mito pra gente, mas por razões distintas — respondeu depois de algum tempo. — Ele era… colorido. No trabalho em que estou agora, conheci uma garota que tem sinestesia e às vezes penso que a relação que ela descreveu ter com as cores e as palavras serve bem para descrever como eu enxergava meu pai. Faz sentido?

Sinestesia? O que isso tem a ver com ele?

— Meu pai… — sentia-se cada vez mais ridícula por estar tendo aquela conversa. — Era escritor. O que era engraçado pra mim, porque a língua dos erianos é ágrafa; mas até aí, não falei nada que você não saiba. É só que… Sei lá, me parecia fazer sentido não ter um alfabeto e escrita e livros quando tudo que cê tem na cabeça pode ser transmitido para os outros através da mente e todo mundo é praticamente imortal. Por isso me perguntava porque ele virou escritor. Parecia complicação demais.

Em Éris ele era jardineiro. Lá eles não tinham faculdade, qualquer conhecimento era repassado pela conexão mental. Os erianos acreditavam que para se tornar um mestre em algo eram necessárias duas coisas: dom natural e tempo. O pai tinha um dom natural em lidar com qualquer tipo de planta, não importava se era endêmica ou não. E tempo?

— Ele passava muito tempo cuidando delas, adubando, regando, podando. Criava suas próprias plantas, fazia experimentos com sementes e enxertos… Tudo o que passava por ele florescia e dava frutos. Duas das Orquídeas erianas expostas no Museu Orgânico do Rio de Janeiro foram criadas por ele. Minha mãe quem me contou. Ele não falava muito sobre essas coisas.

Ouvi falar sobre essas orquídeas. São consideradas uma das espécies mais lindas do mundo. Seu pai parecia bem humilde.

Pam desejou dizer a Hermes que aquilo não tinha nada a ver com humildade, mas sim com um ciclo lento e doloroso de autodestruição provocado pela doença dele. Não era possível escapar daquele verdadeiro ouroboros que a depressão se tornava, sempre rejeitando os próprios feitos, jamais sendo suficiente naquela escala de fim indefinido. Resolveu ficar quieta. Não se sentia à vontade de verdade para explicar aquilo.

E onde entra a sinestesia?

As palavras dele. Elas eram de cores diferentes a cada dia.

As palavras que ele escrevia?

— Não, as palavras que ele emitia na minha mente. Eu te falei sobre isso uma vez.

Ter a mente tocada por um eriano era uma experiência difícil de esquecer. Muitos humanos tinham uma visão errônea, provocada pelos filmes e séries, de que a comunicação eriana envolvia uma “voz mental” sendo projetada na mente do interlocutor humano. Desde que conhecera o pai, passara a ter consciência de que sua mente funcionava como um oceano profundo e as palavras flutuavam por ele, sendo pescadas de vez em quando.

As palavras do pai emitiam brilho próprio, deixando-a abalada ou fascinada dependendo da conversa. Ele não fora seu primeiro contato alienígena — antes disso tivera a diretora do abrigo em que morara, assistentes sociais, professores… Por isso, quando sentira aquele pulsar colorido tão distinto em sua mente, sentiu que caíra num santuário dentro de uma caverna conectada ao mar. Cada sentença que ele ditava era como um reflexo da água luminescente se projetando, iluminando estalactites, revelando a ela os reais contornos de onde habitava.

Conversar com ele a enchia de tranquilidade, em especial depois de conversas complicadas com outros seres humanos, onde meras palavras ditas em voz alta não pareciam dar conta de expressar o que pensavam e sentiam.

Ah… Esse negócio… Vocês enxergam nosso contato de uma forma… engraçada. Sempre precisando “traduzir” em palavras aquilo que emitimos pras suas mentes. Então, alguma teoria de por que ele se tornou escritor quando veio pra Terra?

— Não sei — deu de ombros e terminou o café. — Ele veio pra cá na primeira migração. Antes de conseguirmos entender a física de vocês, antes do fim da escravidão, antes de Hitler e, sei lá, às vezes eu tinha a impressão de que era como se ele tivesse estado aqui desde sempre… Foi um dos voluntários na missão inicial dos erianos para negociar com os humanos. Ele viveu nas guerras. Tinha… umas marcas na cabeça, você deve ter visto no documentário. Inventaram uma teoria de que era sinal que ele se mutilava, mas era mentira. Foram ferimentos provocados por humanos nas guerras.

Nenhum eriano lutara em qualquer guerra, era contra a natureza deles. Por isso na primeira guerra antierianos que acontecera, entre a primeira e a segunda guerra mundial, o pai se aliara ao exército e participara da equipe de socorristas. Foi onde conhecera a mãe dela. Com o fim da guerra, decidiram largar tudo e se casar. Ele trabalhava com flores e sonhava ser escritor enquanto a esposa dava início ao curso de medicina, depois à especialização em neurologia. Com o tempo, a mãe viraria uma das maiores neurologistas do mundo, sendo consultada com frequência por celebridades e políticos. E ele… bom, escrevia.

Sabia que era injusto com a história dos pais resumi-la daquela forma, meia dúzia de frases que nem se dignara a interligar de fato, porém sentia que devia isso a si mesma, à sua integridade física e mental. Era mais fácil esquecer que os pais tinham sido como ela um dia, jovens e com sonhos, até aquele mundo arrebentá-los.

Você acha que essas coisas… sei lá, acha que ele era traumatizado ou algo assim?

Sua língua coçou para não soltar um É óbvio que sim.

— Não — respondeu Pam, porque se sentia mal em admitir que compartilhava com o pai aquela saúde mental precária. Suas merdas nunca pareciam tão pesadas quanto as dele. — Essas coisas ficaram no passado.

E sua mãe? Como foi para ela lidar com tudo isso? Você sempre pareceu meio distante dela. Antes mesmo de ele morrer, você nunca me falou muito sobre ela.

Pam estalou os dedos e deu uma risada seca, sacudindo os ombros.

— Não tem muito o que falar, Hermes.

Não?

Não. A mãe era… complicada. Ela vivia trabalhando, sempre acabava chegando muito tarde em casa e não comparecia quase nunca às reuniões na escola. Não tinha tempo para ajudá-la no dever de casa, não estava lá quando aprendera a andar de patins e muito menos tivera disponibilidade para conversar quando chegara em casa chorando pelo bullying que sofrera num passeio na escola.

Suas frases preferidas flutuavam entre Estou cansada, querida, por que não vai falar com o seu pai? e Agora não dá, filha, preciso concluir esse relatório e a clássica Muito legal, mas agora não tenho tempo pra isso, Pamela.

Às vezes, achava que ela nunca desejara ser mãe — então Bela chegara e depois Diego, e a mãe se mostrou tão atenta e responsável e disponível, a impressão passara a ser de que nunca quisera ser sua mãe.

Você não pode ter certeza disso, Hermes comentou, parando de digitar no notebook para repousar um tentáculo em seu ombro. Aquilo a fez querer chorar; quanto tempo fazia que não se abraçavam? Sentia falta do cheiro de ressaca e cafeína que a pele molhada dela exalava, do conforto e tranquilidade de estar com alguém que a amava e a fazia se sentir protegida.

— Quer saber como eu sei disso? Ela deixou bem explícito quando começamos a namorar  disse, sem conseguir conter o tom rancoroso.  Ela fez questão de falar que nosso relacionamento nunca iria pra frente. Que era uma perda de tempo e no final eu partiria seus corações, fosse terminando o namoro pela minha volatilidade enquanto humana, fosse morrendo pelo meu tempo de vida ridiculamente pequeno.

“Mas quando Diego começou a sair com um carinha eriano? Uau, só faltou chamar todo mundo para entregar um prêmio de relacionamento do século pra eles! Tudo o que vinha de mim era razão pra desconfiança ou pra falar não seja tão passional, querida. Às vezes, acho que meu pai deixava meus irmãos de lado para tentar compensar essa falta de amor dela por mim. Ele se importou tanto comigo e no final…”

O quê?

— No final, eu acabei com ele. — Apoiou a testa na mão, respirando fundo e tentando não se quebrar inteira enquanto colocava aquilo pra fora.

Não foi isso que aconteceu, Pam, você sabe…

— Não, foi exatamente isso que aconteceu, Hermes! Eu acabei com ele. Do mesmo jeito que acabei com a gente ou com os meus irmãos. Porque é isso o que eu faço. Minha mãe estava certa.

Pam, seu pai estava doente, e seus irmãos… Eles eram crianças, e a situação toda.… Isso não é culpa sua. Não é culpa de ninguém.

— Não é tão simples — Pam disse, batendo na mesa e se arrependendo quando Hermes se encolheu. — Me desculpa, eu… só… — Suspirou, resignada. — Quando eu tinha dezessete anos, a Bela quase morreu. Foi atacada por medusas na praia, teve choque anafilático. Foi uma merda. Minha mãe ia e vinha pelo corredor do hospital, tentando conversar com os médicos e ver o que podia ser feito. Ela pediu pro meu pai tomar conta do Di, que tinha acabado de chegar na família e estava meio que em pânico, porque a gente viu de perto a Bela ser atacada, e eu já disse que foi uma merda, né? Foi uma senhora merda. Meu pai não aguentou. Ele só desabou. Foi a primeira vez que o vi tendo uma crise.

— Ele só… caiu no chão… e dava pra ver o corpo dele tremer tanto que parecia uma gelatina. Pensei que ele estava morrendo. Achei que ele ia se desmantelar tipo um efeito ruim em Doctor Who, saca? Mas ele não se desfez num milhão de bolinhas de gosma, nem entrou em combustão espontânea. Ao invés disso, só continuava se sacudindo em silêncio, preso num outro mundo, longe da gente, do hospital, da Terra. Aí eu tentei ajudá-lo a levantar, toquei nele… e as palavras dele me acertaram feito um soco: eles não disseram que ia ser assim.

Fez uma pausa, respirando fundo. Sentia que seria apenas questão de tempo até seu próprio corpo se reduzir a uma poça de fluidos indefinidos no chão.

— Quando casais erianos vão adotar, eles recebem acompanhamento, como casais humanos — falou, fechando os olhos pelo cansaço. — Só que existem diferenças. Porque somos muito diferentes, afinal… Bom… A assistente social precisa preparar os pais erianos para a expectativa de vida dos filhos humanos, se é que me entende. Não vivemos tanto quanto vocês e os pais erianos adotam sabendo que vão enterrar os filhos. É engraçado porque mesmo antes de eu entender o que era ser uma mulher negra nessa sociedade racista, ainda criança, sempre me pareceu meio óbvio que eu ia morrer antes deles e não havia nada que pudesse fazer pra evitar isso. Ter chegado até os dezessete pra mim era um milagre.

“E isso… veio como uma contrarresposta ao que ele emitiu quando o toquei. Ele percebeu que todos poderíamos morrer sem que ele pudesse impedir.”

Limpou a garganta, sem jeito.

— Ele estava tão assustado, Hermes… E quando viu meus pensamentos… Tentei acalmá-lo, mas ele não falava comigo, só emitia um chiado horrível, como se estivesse ofegante. E aí o som foi ficando mais alto, o que assustou o Di, que começou a chorar, e eu não sabia o que fazer porque porra, eu era só uma adolescente! Uma enfermeira brotou do nada e gritou com a gente, mandou pararmos com o escândalo, estávamos incomodando todo mundo. Ela chamou um médico quando ele não parou. Tiveram de dopá-lo, porque ele continuava e o som era insuportável…

Seus dedos se abriram e fecharam, como se ainda tentassem agarrar os tentáculos do pai enquanto ele era arrastado por enfermeiros raivosos pelos corredores abarrotados do hospital.

— A Bela sobreviveu. Minha mãe deu um jeito. Voltamos com ela pra casa depois de três dias. E aí tudo voltou ao normal. Bom, tudo deveria voltar ao normal. Porque não pude parar de pensar naquele som, foram duas semanas dele soando sem pausa na minha cabeça. Até que, eventualmente, eu esqueci… E esquecer o som foi como temporariamente esquecer da morte. Ou talvez eu só tenha me tornado boa em ignorá-la. Sabe quando me lembrei de novo?

Não, Hermes respondeu, sobressaltando-a pela lembrança súbita de que ainda estava ali escutando-a.

— Meu pai voltou a fazer esse som depois que voltei pra casa… Por causa daquilo.

Do ataque que você sofreu, Hermes depositou as palavras como alguém que colocasse um presente indesejado na mesa. E do seu sequestro.

— É. Ele não aguentou por minha causa, Hermes.

Não. Isso não é verdade.

— Ele surtou porque eu quase morri, entende? Ele estava vivendo a porra de um luto comigo viva

Pamela… Hermes projetou com cuidado seu nome, a palavra reluzindo num tom rosáceo antes de se afundar no seu oceano interno. Seu pai estava muito mal. Ele precisava de ajuda especializada. A gente nunca ouviu falar de algo assim acontecer. Você não teve culpa, não tinha como adivinhar.

— Não, você só quer que eu me sinta melhor. Um suicídio não passa de uma morte assistida. Ele estava sofrendo, Hermes, e eu não fiz nada pra salvá-lo.

Você também estava sofrendo, um tentáculo a segurou, gentilmente. Ainda está sofrendo, Pam. Por favor, me deixa…

— Não. Desculpa, mas não. A gente já viveu isso. Eu sei como termina essa história.

Se é o que você quer, então que assim seja…

Hermes a soltou e se voltou para o notebook, tornando a parecer alheia à sua presença.

E tudo em que conseguiu pensar foi que não queria nada, mas era como as coisas deveriam ser se quisesse manter aqueles que amava seguros de seu próprio potencial destrutivo.

Isolá-los do campo minado que era e assim evitar a detonação.

Mesmo sem descobrir quem estava por trás das mensagens, Hermes lhe fornecera informações o suficiente para ter um ponto de partida. Poderia começar sua busca a partir de um raio de dois quilômetros no Centro da cidade, o que significava que teria de despender algum tempo para encontrar quem quer que tivesse começado aquela brincadeira.

Você vai ficar bem?, Hermes questionou quando lhe entregou o papel com as informações impressas. Isso a fez se sentir culpada, pois nem sequer perguntara como ela estava ou o que andava fazendo da vida.

Você já foi melhor, Pamela, sua voz interna a censurou.

— Vou. Obrigada, Hermes.

De nada. Olha… você pode voltar aqui um dia. Só pra gente rever Buffy ou qualquer coisa assim.

E depois de um tempo parecendo buscar as palavras certas, o corpo flutuando de um lado para o outro nervosamente, falou:

Sinto sua falta. Às vezes. Não é nada preocupante.

Aquilo fez com que seu coração doesse.

— Eu sei. Qualquer dia desses… eu passo aqui.

Antes de fechar a porta, Hermes parou na entrada da casa, fingindo analisar o movimento das pessoas e ônibus que passavam ali.

O que seu pai disse?, falou de repente.

— Sobre…?

Sobre a gente. No início.

Limpou a garganta e sacudiu a cabeça, espremendo os olhos para se juntar à ex-namorada naquela pseudoanálise. O dia estava agradável. Poderia voltar para a casa de Hermes, se sentar abraçada com ela e assistir uma série qualquer apenas pelo prazer de sua companhia. Não seria difícil, seria, Pamela?

— Ele disse que esperava que eu fosse muito feliz.

Só isso?

— Não. — Riu, esfregando a nuca sem jeito. — Ele falou que… ah, esquece.

Não. Me conta, por favor.

— Ele disse que… você era muito especial. Que tinha te sentido na rede e tinha visto seus sentimentos. Disse que você era sábia, gentil e que me amava tanto que por uma semana seus pensamentos felizes equilibraram a negatividade que os erianos sentiam desde sempre por conta dos conflitos civis. Também comentou que você era bem clichêzona e adorava isso.

Hermes apertou a maçaneta, a cabeça amarela mirando o chão.

Você nunca me contou essas coisas, Pam.

— Eu não queria que você se sentisse pressionada. Ou envergonhada. Desculpa.

Clichêzona? Você inventou isso.

— Eu juro que não inventei!

Hermes tornou a erguer o rosto, a pele se enrugando na mimese de um sorriso humano.

Obrigada por ter me procurado, Pam. Fico feliz em ter te visto.

— Nada… eu quem agradeço…

Desejou que Hermes dissesse algo mais, que ia levá-la em casa, que ia ficar tudo bem, que não seria nada. Mas no fim, ela apenas fechou a porta devagar.

Tudo o que passou por sua cabeça depois, degrau a degrau enquanto ia embora, era que também sentira uma falta tremenda dela e que gostaria de se sentir mais forte para dizer isso.

Mas tudo bem, quem sabe outro dia.

4.

— Papai?

Fala, Pam.

— O que é estrupo?

O pai, que se projetava acima de si, a cabeça apontando para o teto, recolheu os tentáculos para o centro do corpo. Era como assistir um vídeo de cobras sendo consumidas pelo fogo, seus corpos longilíneos se comprimindo e retorcendo até quase sumirem.

Estupro… é algo ruim, ele fez uma pausa, as palavras de uma tonalidade tão opaca em sua mente que era complicado diferenciá-las. Isso era o equivalente dele a sussurrar? Onde você aprendeu essa palavra?

— Os garotos na escola falaram isso pra mim.

Por quê?

Apertou mais o lençol contra o corpo. Tinha dez anos e apesar de ainda não entender o que era estupro em si, era inteligente o suficiente para entender que era algo ruim. A sonoridade da palavra, suas três sílabas marcadas, a faziam pensar em algo vergonhoso, uma coisa que não se devia enunciar em voz alta, como uma maldição.

— Não sei — mentiu. — Eles são muito bobões.

O pai virou a cabeça, os tentáculos se movendo do centro do corpo, se libertando de novo, pendendo como fios grossos de serpentina. Pôde ver que o rosto que Di desenhara nele com creme de barbear ainda estava lá e seus olhinhos desiguais pareciam fitá-la com julgamento.

Estupro é um tipo de violência que humanos cometem entre si.

— Os erianos estrupam?

De novo aquele tremor súbito nos tentáculos e podia jurar que o corpo do pai se erguera mais alto, se afastando.

Não, Pam. Não conseguimos ser violentos, faz parte de quem somos.

— Mas foi você mesmo que me ensinou que cada pessoa e eriano é diferente entre si!

Um uivo escapou da pequena boca dele, como um filhote sufocando. Por um segundo seus pensamentos se tornaram de um verde-tóxico que a deixou enjoada.

Lembra quando a mamãe te ensinou que nós somos diferentes fisicamente? Nossos corpos e órgãos e tudo mais?, ele respondeu depois de algum tempo.

— Aham.

Então… A parte do nosso corpo que ativaria o instinto violento foi diminuindo e diminuindo, até que atrofiou e por fim foi eliminada conforme as gerações passaram. Isso já faz muito tempo O alinhamento desse sistema solar era diferente do atual. Por isso é fisiologicamente impossível sermos cruéis. Sabe o que é “fisiológico”?

— É quando se refere a algo do nosso corpo — falou, ainda pensativa. Mordeu os lábios, impedindo as palavras de saírem.

Ele notou. Sempre notava.

Você quer me mostrar o que houve na escola, Pandinha?

Recolheu os braços, cruzando-os no peito. Sabia que o pai nunca seria capaz de machucá-la. Na verdade, tinha medo pelo pensamento oposto: e se o que mostrasse a ele o machucasse?

— Você não vai gostar — alertou.

Sou capaz de suportar qualquer coisa por você.

Estendeu a mão devagar e ele se abaixou, quase se sentando ao seu lado no chão. Um dos tentáculos, menor e mais fino, se enrolou em torno do seu pulso suavemente, como uma pulseira.

A cena passou como um flash por seus olhos, tão real quanto uma imagem gravada: andava com Maria Luiza até a cantina no recreio, quando um grupo de garotos mais velhos passou por elas e começou a discutir com a amiga. Os ataques se voltaram para si porque a defendera. Um dos meninos, o mais alto e que parecia mandar nos outros dois, lhe dera um empurrão no ombro e a chamara de putinha de alienígena. Depois lhe dissera que só servia pra ser “estrupada” pelos pais. Que os erianos vinham pra Terra apenas para machucar as mulheres humanas e roubar bebês para servirem de sopa. Tinha dito outras coisas também, mas ela não lembrava, pois caíra no choro e cobrira as orelhas para deixar de ouvir.

O tentáculo do pai a apertou com tanta violência que quase a fez gritar, então a soltou e foi como ser largada no vácuo.

Ele continuava flutuando próximo, estremecido, a cabeça grande parecendo sofrer convulsões.

— Pai? Pai? Você quer que eu chame a mamãe?

Não precisa… estou bem.

Ficaram em silêncio. O aperto quente dele levou um tempo para se dissipar onde a pele de seu pulso se tornara esbranquiçada.

Nunca machucaríamos você, Pam, ele falou enfim. As palavras eram como névoa, tentando se dissipar por qualquer buraco que encontrassem, como se o mero gesto de trazê-las à tona fosse uma vergonha. Mas… mas se tiver medo de nós um dia, fujaaaAaaAAaaa

As palavras mal terminaram de ser organizadas quando o pai começou a guinchar de forma dolorosa, a última sílaba se estendendo e virando um gemido agonizante. Um líquido esverdeado escorreu do crânio alongado dele, pingando em suas pernas cobertas. Antes que tivesse tempo de gritar, o corpo despencou acima de si, o sangue se derramando por seu colo, sujando seu rosto e cabelo. Tentou afastá-lo, mas a carne flácida se desfazia e se abria mais, revelando o interior branco e preto como as vísceras reviradas de um peixe. Quis escapar do peso sufocante dele, porém os tentáculos zumbificados se ergueram e entraram em sua garganta.

Os olhos brancos riam conforme Pam morria sem ar.

No segundo seguinte, estava sentada na cozinha da casa em que crescera.

Tinha seis anos de novo, ainda que naquela cena tivesse vinte anos a mais: foi a última vez que vira a mãe. Ela flutuava à sua frente, cortando tomates, o som da faca batendo contra a tábua de madeira ecoando pelo ambiente como um pedido de socorro em código Morse.

Palavras plácidas, inexpressivas, foram alinhadas entre ambas. Não havia rancor nem ultraje nem tristeza ali. Apenas a constatação de um fato:

Então você vai morar com a sua amiga, Pamela.

Sem perceber, sua boca se abriu no automático e declarou aquilo que vinha ensaiando sozinha na frente do espelho havia muito tempo, ainda que as palavras tivessem saído mais trêmulas do que gostaria.

— Ela é minha namorada, mãe. Você sabe. E sim, vou. Acho que preciso sair daqui. A casa tem lembranças demais.

A mãe continuou fatiando os tomates. Sempre detestara tomates, mas ela insistia em prepará-los.

Ouvia apenas a lâmina cortando a fruta e arrastando o cubo para o lado sobre a madeira, seu próprio coração pulsando alto nas orelhas, a sinfonia do terror e abandono, por que você não fala mais comigo?

— O quê? — falou, a voz pequena.

A mãe não interrompeu o eterno fatiar de seus tomates.

Por que você deixou de falar comigo?

— Eu não deixei de falar com você. Você quem ficou em silêncio. Quando eu falava contigo, você só… Só me respondia com silêncio e julgamento.

Você se tornou agressiva e reclusa. Como o seu pai.

— Meu pai nunca foi violento.

A culpa foi sua por ele ter se matado.

Sua cabeça tentou dizer a ela que aquilo não estava acontecendo, É só um sonho, Pam. Só um sonho e nada mais.

Devia ter sido você, não ele, sabe?, ela enfim terminou de fatiar os tomates, depositando-os na panela que trazia em fogo baixo no fogão.

Ao contrário do pai, cujo corpo era verde com manchas amarronzadas, a pele da mãe era verde com manchas azuladas e roxas, como o universo. Ela era linda e não havia palavra que descrevesse isso melhor. E mesmo tão linda, não recebera um nome humano — aquele pensamento a pegou de supetão. Nunca fora nomeada por ela ou pelos irmãos, porque uma palavra humana não seria o suficiente para comportá-la.

Os radicais deviam ter matado você, teriam nos poupado de todo o sofrimento que vivemos, a mãe continuou, placidamente. Ela nunca lhe dissera aquelas coisas. Mas quem precisa de palavras quando se tinha o silêncio durante o jantar, frases mal encaixadas que não configuravam diálogo algum? Quem precisa de acusações quando seu aniversário passara em branco e então sua formatura na faculdade, e não ouviu sequer um “sinto muito” quando anunciou que terminara seu namoro de quase dez anos?

Quem precisa de julgamento quando o amor da sua mãe se esgota diante dos seus olhos e não há o que possa se fazer para fazê-lo retornar?

Seu pai tinha um futuro todo à frente dele, a mãe falou, ignorando seu interior sangrando. Estatisticamente falando, a vida dele teria sido mais longeva e produtiva do que a sua, que mal vai chegar aos sessenta se continuar com esses seus hábitos horríveis. Seu pai salvou vidas, criou coisas belas para presentear o nosso mundo e o seu, escreveu livros e constituiu uma família. E você, Pamela? O que você fez, além de machucar seus irmãos, decepcionar sua mãe e fazer seu pai cometer suicídio?

Você é um desperdício de existência.

Abriu os olhos e estava no quarto, mas sabia que não havia acordado de todo.

Estava envolta numa bolha de ar, que a abrigava de ser absorvida e esmagada pelo oceano que inundara sua casa, bagunçando as prateleiras, livros e eletrônicos, fazendo peças de notebook e periféricos flutuarem pelo ambiente. O pai flutuava alguns centímetros acima da colcha de cama, vivo, inteiro. Podia ver as marcas fundas em sua cabeça, ainda não cicatrizadas. Os tentáculos se moviam para limpar o sangue verde-pântano e costurar os ferimentos ao mesmo tempo.

— Pai — chamou, mas não teve resposta.

Notou então que estava presa à uma cadeira, acorrentada e por isso não se movia.

Pode me ajudar, Pandinha?

Ele lhe estendeu uma agulha entre os tentáculos cobertos de sangue coagulado e sentiu o estômago revirar. O tentáculo com a agulha recuou e ele a afundou na própria pele cegamente, tentando se costurar.

Sinto demais sua falta.

Se precisou reunir coragem para responder aquilo? Não. A verdade é que mal conseguia respirar com as correntes apertando-a tanto e parecia que seu coração, tão lento no peito, pararia a qualquer segundo.

— Também sinto sua falta, pai.

Sua mãe não te odeia.

— Não é o que parece.

Eu juro. Ela só não sabe o que fazer. Pro nosso tempo de vida, oito anos não significam nada. Ela ainda precisa pensar.

— Bom, pro meu tempo de vida, oito anos são o equivalente a um quarto da minha vida até agora. Ela devia pensar nisso.

Ela pensa. Eu juro que pensa.

— Você está morto. Nenhuma promessa sua faz diferença agora, pai.

É uma pena, porque não deixa de ser verdade.

Ele ficou em silêncio enquanto terminava de costurar os cortes que Pam nunca tivera tempo de contemplar de verdade. Só conhecia as cicatrizes brancas e assépticas que haviam restado na pele dele, tão finas e trêmulas que pareciam meramente estrias.

Eu sinto muito, Pam. Você não tem noção do quanto.

— O que eu podia ter feito por você, pai? Como eu podia te salvar?

Não houve resposta; ele tinha partido.

O resto do sonho foi apenas ruído de estática e escuridão em sua caverna no mar. Será que era isso o que o pai via agora que estava morto?

Quando acordou no dia seguinte, acordou de verdade, sentiu que havia perdido alguns anos de vida. Com um gosto amargo na boca, se ergueu e foi até o banheiro. Parou na frente da pia, o espelho trincado dividindo seu rosto em duas metades desconectadas.

Sem forças para evitar a dor, apenas deixou as lágrimas fluírem, na esperança de que lavassem a tristeza.

5.

Foi fácil arrumar uma desculpa no trabalho para ser dispensada e ir investigar as mensagens. Só precisou dizer o quanto se sentia emotiva pela morte do pai e pronto: uma semana de licença. Ninguém queria uma suicida integrando o quadro de ex-funcionários, muito menos sendo parente de outro suicida famoso.

Queria poder afirmar que fizera uma busca metódica nos endereços que lhe dariam alguma pista de quem enviara as mensagens, mas só andou em círculos, passando pelos mesmos cafés, as mesmas padarias, os mesmos prédios empresariais, qualquer lugar cujo wi-fi conseguira captar. Não tinha a menor ideia do que fazer para localizar a pessoa que se passara por seu pai.

Você teve a audácia de achar que ia ser fácil, né, Pamela?

Expirou pela boca. Ia manter a calma, não importava o quanto a situação fosse uma merda.

Talvez você só precise voltar para casa e pensar mais?

Levou algum tempo para tomar uma decisão. Saiu do meio da calçada, onde as pessoas esbarravam em si sem se importar em pedir desculpas. Os pés a levaram ao mesmo ponto de ônibus em que costumava pegar a condução quando voltava do estágio. Meia hora depois, descia a esquina cujos mínimos detalhes ainda estavam gravados em sua mente e em menos de cinco minutos parou no portão da residência em que vivera por vinte anos.

Bom…

Sua cabeça lhe dissera para voltar para casa e era isso o que ela estava fazendo, pelo visto.

Tudo era familiar e, ao mesmo tempo, não era.

Sentia que tinha algo errado em si, como se tivesse sofrido um deslocamento de retina, mas talvez fosse só o olhar nostálgico tentando se sobrepor ao olhar factual do agora. Reconhecia o portão de ferro riscado, o pequeno degrau antes da porta, o jardim minúsculo cercado por bordas de cimento e azulejos cor de rosa, afinal, nada daquilo havia sofrido mudança nos anos em que estivera fora.

Ainda assim, era como estar ali pela primeira vez.

Ficou parada encarando o botão do interfone, localizado na parede próxima ao portão. Abriu e fechou os dedos algumas vezes, como se estivesse bombeando coragem dentro do próprio corpo. Enfim, quando aceitou que aquilo não faria diferença, apertou o botão. Não escutou qualquer som que indicasse que o interfone estivesse funcionando. Decidiu esperar um pouco mais antes de tentar novamente.

A porta abriu, revelando o interior escuro da casa e o corpo flutuante da mãe. As sensações que lhe invadiram foram cortesia dela. Apesar de costumar ser imperturbável, a mãe pareceu não se conter e emitiu uma série de notas incômodas que provocaram um formigamento em seu couro cabeludo e queimação nas pontas dos dedos e garganta, podendo ser traduzido para a língua humana como: Oh.

Aquilo era bem a cara dela.

— Oi, mãe.

Que surpresa, a mãe se apressou em flutuar na direção do portão, destrancando-o com um movimento fluido de três de seus tentáculos arroxeados. Vamos. Vou preparar um chá para você.

— Claro.

O estômago revirou diante da própria resposta. Não queria chá nenhum. Os pés quiseram recuar, mas se obrigou a entrar quando a mãe lhe deu passagem e depois se manteve forte quando ela fechou a porta.

Já volto. Fique à vontade. A casa é sua.

A mãe sumiu pelo corredor que levava à cozinha, deixando-a parada na sala, olhando as fotografias de uma infância amarelada, marcada por pessoas e eventos dos quais não se recordava bem. O chão de madeira estava encerado com o mesmo produto que os pais começaram a comprar quando fora morar com eles ainda criança ­­­­­­­­— o que usavam antes lhe dava alergia.

De um lado da sala, os móveis para humanos (um sofá verde brega e um pufe surrado que tinha o apreço de Pam desde sempre), do outro os móveis dos erianos (duas poltronas estreitas e nem um pouco ergonômicas para corpos não-octópodes), elevados por sutis armações de madeira que o pai projetara na oficina localizada nos fundos da casa. Lembrava-se de escalar o pedestal de madeira se sentindo a própria Mulan, sem se importar com a bronca que levaria por estar ali, se arriscando a cair e machucar o braço só pelo desafio, como já acontecera uma vez.

Ouvia os sons da mãe abrindo vários armários ao mesmo tempo, levando a chaleira à pia e depois ao fogo, os potes de açúcar e biscoitos sendo posicionados na mesa — um balé tão organizado e que beirava a compulsão. Cada vez mais se sentia como uma criança ao andar por aqueles corredores, os dedos traçando a superfície das portas, os olhos se acostumando novamente ao ecossistema da casa.

A porta da direita fora seu primeiro quarto, antes que Bela e Di chegassem requisitando seus próprios espaços. O papel de parede continuava o mesmo, reparou quando empurrou um pouco a porta entreaberta, um monte de ursinhos contra um fundo azul. Avistou a mancha no tapete de quando os três se reuniram escondidos para comer pizza e assistir o Rock in Rio de madrugada. Empoeirado num canto estava o quadro de quase um metro que ela e Di tinham pintado numa oficina que a mãe insistira que eles deveriam participar.

Di estava sentado na cama quando abriu a porta, revirando um cubo mágico com uma expressão concentrada — claro, aquele tinha se tornado o quarto dele depois de um tempo. Bela, sentada no chão, tentava tirar notas da flauta doce que ganhara na escola.

— Credo, que clima desanimado — a Pam adolescente comentou, fechando a porta atrás de si e se sentando ao lado do irmão.

— Bela ainda tá mal — Di explicou baixinho. — Mas ela não quer falar com a mamãe…

— Eu tô bem — Bela retrucou, mas era visível em suas olheiras fundas e lábios ressecados que não se recuperara totalmente do ataque das medusas na semana anterior. — Eu só… sei lá, tô meio coisada, mas vou ficar melhor!

Crianças, a palavra piscou um instante em sua cabeça e soube que o mesmo ocorrera na cabeça dos irmãos quando eles abanaram o rosto, fitando o vazio. Vão dormir, está tarde.

— Tchau, Pam. — Di a abraçou rápido, colocou o cubo em cima da cômoda e se enfiou embaixo das cobertas. Ela sabia que ele esperaria a mãe dormir e então voltaria para a resolução do quebra-cabeça.

— Tchau. — Bela se despediu com um aceno desanimado e saiu, indo para o próprio quarto.

Pam voltou para o corredor, onde avistou a mãe. Ela tinha preparado o chá e a aguardava. A cabeça pendia para trás, os tentáculos largados pela mesa. Exausta.

Fiz um chá, vai querer?, a mãe questionou com brusquidão. Tornou a fechar a porta do quarto, tentando sufocar as lembranças lá dentro. Não funcionou, pois uma estava ali fora com ela, afinal.

Sentou-se à mesa e apanhou uma xícara.

— Obrigada, está muito bom — agradeceu, mesmo que só tivesse dado um gole breve no líquido. Seu nervosismo era tão profundo que mal podia sentir cheiro, que dirá o gosto do chá. A mãe se levantou, abrindo a geladeira e fechando-a.

O que estava fazendo no quarto do seu irmão?

Respirou fundo. Olhou para a xícara e viu o próprio reflexo.

— Só estava conferindo como eles estavam — respondeu.

Tem noção do quanto estou estressada? Vocês ficam andando o dia inteiro pela casa, não me deixam dormir na minha folga, e agora isso? Vai ficar fazendo passeios noturnos também?

— Desculpe incomodar…

Bebeu o chá a baforadas lentas, tomando o cuidado de manter o olhar no tampo da mesa, nos armários de compensado, no chão de linóleo. Esperava que aquele fantasma sumisse e pudesse seguir o fluxo natural da vida.

Isabela não está bem, disse a mãe, as palavras invadindo sua cabeça subitamente. Por que vocês escondem as coisas de mim? Com seu pai, vocês falam na hora.

— Não estamos te escondendo, é só que…

Vocês têm a mim também, sabia? Ele… seu pai está doente, Pam. Não pode ficar cuidando de vocês, ele precisa se cuidar. Tudo bem Di e Bela não entenderem, mas você já é grandinha o suficiente pra isso.

A dureza se transmitindo nas palavras dela, tornando-a tão incisiva e temerária… Será que a mãe se lembrara dessa conversa na manhã em que encontraram o corpo do pai no banheiro? Será que pensara “ele precisava se cuidar” quando policiais passaram por elas, carregando seus pedaços numa sacola de plástico?

Será que lembrara disso quando agarrara o cotovelo do homem com os restos mortais do marido, implorando com palavras que transbordaram para a mente de todas as pessoas na casa:

Por favor, quando isso vai acabar?

— Não temos previsão, senhora — dissera o policial, o rosto expressando o incômodo pelo toque dela em sua mente. — Sinto muito.

Isso vai acabar?, falara a mãe naquela noite, tantos éons antes da morte do pai, descansando o rosto na mesa. Algum dia vocês vão me enxergar como a mãe de vocês e não como apenas uma estranha?

Mal tinha piscado e se viu de novo no presente, a lembrança dispersada. Restava apenas o chá e a sensação ruim de algo lhe apertando o coração.

Então, vieram as palavras plácidas da mãe atual, se organizando com cuidado diante de si. Como vai a vida?

— Vai bem — mentiu, não porque desejasse esconder as coisas dela, mas porque ela se tornara parte daquele grupo de pessoas com as quais não tinha a mínima intimidade para compartilhar os próprios problemas. — E você? Como está?

Bem também, foi a resposta que recebeu. Como vai seu irmão?

O tentáculo envolvia a xícara adaptada como se fosse um amuleto. Ainda não tinha dado um único gole.

Bem — repetiu, ciente de que a falta de detalhes apenas contribuía para a gritante exposição de que sabia tanto quanto a mãe sobre a vida de Di. Então, se recordou de algo que poderia usar para melhorar aquela má impressão: — Ele estava indo pra Johannesburgo da última vez que nos falamos.

Que bom, pra que ele ia pra lá?

Sentiu vontade de morder a própria língua diante do tropeço: óbvio que a mãe faria esse tipo de pergunta.

— A trabalho, eu acho — disse, sem firmeza alguma.

Retornaram para o silêncio desconfortável, muito mais confortável que os simulacros de conversa. Infelizmente não por muito tempo.

E Bela? Como vai?

Não fazia a menor ideia. Tinham perdido contato fazia anos, mesmo que tivessem se mantido mais próxima dela do que de Di. Como poderia encará-la depois daquele dia no restaurante e da forma como gritara no banheiro com ela?

Eu sinto falta dele, berrara, e você não devia repetir merdas antierianos só porque não sabe lidar com a falta que ele te faz também!

— Bela também está bem. — Repetiu o que lera num portal de notícias dois meses atrás: — Ela vai fazer outra novela.

Ah, a mãe assentiu. Que bom.

— Mãe — Pam começou e estagnou, os dedos girando a xícara na mesa, emitindo um som abafado. — Por que ele virou escritor?

Mesmo com a mudança brusca de assunto, a mãe não pareceu abalada.

Pra que você quer saber disso, Pamela?

— Sei lá — respondeu. Porque é dessa forma que lido com questionamentos aos dezessete anos e também aos trinta, quis acrescentar. O que falou realmente foi: — Talvez a gente pudesse entender…?

A mãe sacudiu a cabeça e suas palavras, que sempre eram projetadas como um filme preto-e-branco lento e pausado, ficaram mais fortes, tingidas de um azul profundo como o fundo do oceano:

Porque ele nunca foi normal, Pam. A cabeça dele… Ele não era como nós. E quando aprendeu o que as palavras escritas podiam encarcerar e matar dentro dele, não quis saber de mais nada. Ele vivia apenas pra aprender novas rotas de fuga e eu… Sabe em quantas línguas seu pai podia emitir pensamentos?

Levantou o olhar, observando a face inexpressiva da mãe, que ainda parecia carregar todo o julgamento do mundo.

— Não.

Eu também não. Mas ele sabia muitas… Línguas que até os humanos perderam, porque os povos originários foram massacrados e sua cultura, dizimada. Era esse o nível do amor dele pela fuga. Ele não queria… Não, ele não sabia como pertencer aos nossos. Então, se recolheu.

— Você acha que ele fazia isso porque era mais fácil?

Não, a mãe parecia assombrada conforme empilhava as palavras. Acho que ele fazia isso porque não sabia mais o que poderia fazer, querida.

Ela tornou a se calar. Pam podia ouvir o relógio na sala e o barulho que a geladeira velha emitia, seu motor denunciando que precisava ser trocado.

Ele não se matou por sua causa, sabe, querida, a mãe comentou. Essa culpa que você adotou como se fosse parte de você… deveria deixá-la ir.

Aquela frase fez Pam rir, engolindo um princípio de choro. Uma coisa era viver com a consciência culpada, se questionando o que poderia ter feito ou não para salvar a vida do pai — outra bem diferente era receber da mãe o reconhecimento de que não fora a responsável.

Foi uma série de coisas. A mente de um suicida não é algo simples, não tem mapa que explique como ela funciona. Conforme a mãe falava ia se comprimindo numa bolinha, parecendo tão pequena que poderia abraçá-la sem dificuldade.

Continuou, cada palavra brilhando no fundo de sua mente:

Eu não aguentava mais a forma como ele… Ele estava sempre tão… Tão absorto por aqueles textos. Você não lembra, não é? Sua memória sempre foi horrível. Quando seu irmão chegou, as crises dele pioraram. Pensei que ele fosse melhorar. Isso acontecia com frequência: ele ficava mal, então algumas semanas depois parecia melhor, mais animado, até se conectava conosco na rede e eu não percebia que aquilo era apenas o ciclo da doença progredindo em torno de si mesma, os altos e baixos tão mecânicos quanto um gráfico…

Ele não melhorou depois de nenhuma daquelas vezes, não importava o quanto o tempo passasse. Não era uma melhora, era uma trégua, eu devia ter percebido antes, a mãe sacudia a cabeça. Ele parecia estar sempre doente e infeliz, e já não fazia mais nada além de escrever aquelas histórias… Nunca tivemos um caso de separação na nossa espécie. Sabe o que significa “nunca” para uma espécie que pode viver éons? Nós… Eu não sabia o que fazer. Conversei com ele. Tentei conversar… Ah, Pam… Você entende, não é? Por favor… Me diga que você entende, filha?

Os pensamentos da mãe continuaram num fluxo complicado de entender e interpretar, a lógica se perdendo em meio aos sentimentos que transbordavam. Para Pam, era como se fossem seus, mesmo sem tocá-la.

Divórcio. Os erianos eram conhecidos por terem parceiros que viviam e morriam juntos, deixando o mundo em paz, sem brigas ou problemas. Pensar que seus pais poderiam ter precisado de terapia de casal a deixou surpresa, ainda que não pudesse julgar depois de como seu relacionamento terminara com Hermes, das sequelas deixadas na outra e em si…

Jamais imaginara que a relação deles tivesse ficado tão ruim. Ainda que fosse a irmã mais velha, vivia internalizada nas próprias coisas: estágio, faculdade, o namoro com Hermes que era tão difícil por causa do preconceito dos outros. Não tinha tempo para prestar atenção naquela vida doméstica que se tornara tão cansativa. Quando parou para pensar em como tratava as coisas em casa, como se tudo fosse desimportante e apenas um grande drama dos irmãos ou dos pais, se sentiu envergonhada. Sentiu que devia ter olhado menos para si mesma — e não conseguiu deixar de pensar, ao mesmo tempo, que fazia bem ser egoísta certas horas.

Eu sempre postergava o momento, a mãe prosseguiu, as palavras parecendo abandonadas conforme as emitia. Falava pra mim mesma que iria embora quando ele pudesse seguir sozinho. Só que não deu certo. Esse momento não existia e só… Ele me consumiu. Inteira. Me desculpe, não queria que você e seus irmãos soubessem depois do que houve. Me desculpe, Pam.

— Mas, mãe… Fui eu quem machucou ele — sussurrou.

Não pensou que a mãe fosse compreender tão fácil, por isso ficou surpresa quando ela sacudiu a cabeça.

Pamela… não! Sempre amamos você… Seu pai…

— Mas eu parti o coração dele.

Não. Não, não funciona assim, meu amor…

Por que ela sentia que já tinha tido aquela conversa um milhão de vezes e ainda assim não era o suficiente? Por que parecia que a culpa sempre seria maior do que qualquer perdão que pudesse receber?

Seu pai te amou até o final. E eu também te amo.

O tentáculo da mãe se esticou um momento e repousou sobre seu cabelo, emitindo aquele som suave de beijo que o pai tanto repetia. Talvez tenha sido aquilo que a tenha feito desabar de vez e só… falar. Falar tudo o que estava preso, deixar as palavras correrem e libertá-la. Falou sobre as mensagens, a busca pela pessoa que as escrevera, o pesadelo, o medo irracional. Guardou para si o desejo de escapar da própria vida, a constante fuga interna que compartilhava com o pai — imaginou que a mãe pudesse chegar nesse tipo de conclusão sozinha.

Foi o seu pai quem enviou as mensagens, a mãe disse depois que sua maré alta tinha perdido forças.

Conteve o palavrão de surpresa que desejou soltar. Respirou até sentir que estava levando embora todo o oxigênio do cômodo e parecer que a pressão sanguínea diminuíra. Perguntou, já ciente de que ia se arrepender:

— Como pode achar uma coisa dessas, mãe?

Ela lhe estendeu um tentáculo e uma ventosa se grudou em seu pulso, transmitindo mais do que palavras: junto dela vinham o assombro, a culpa, os segredos.

Porque ele não está morto, filha. Não por inteiro.

6.

Fazia calor naquele dia, se lembrava disso porque os shorts pinicavam suas coxas na pele próxima à virilha e os jornais noticiavam vários casos de idosos solitários morrendo à noite, sozinhos, sufocados no próprio suor. O plástico que recobria o banco do motorista grudava nas suas costas ainda que estivesse dirigindo por menos de dez minutos, fazendo-a se sentir envelopada. No banco de trás, Bela discutia alto com Di, que mantinha os braços cruzados no peito, debochando de cada palavra dita por ela com aquele jeito típico de adolescente bonachão. Do outro lado, com a cabeça voltada para a janela, estava o pai, absorto na paisagem.

— Que horas vocês vão sair de lá?

O pai não parecia estar prestando atenção em nada que se desenrolava no carro, por isso ficou surpresa quando ele respondeu, as palavras reluzindo num tom acinzentado e plácido:

Umas oito horas, certo, crianças?

Os irmãos aproveitaram a brecha para reclamar sobre a presença dele e relembrar que mais ninguém na escola levaria os pais. Não que tivessem vergonha de serem vistos na festa junina com ele, nunca tinham passado pela fase de ter vergonha dos pais já que os erianos demonstravam afeto de forma mais contida. Ah não, o problema não seria tão simples, não é?

Achava que, mesmo que nunca falassem sobre isso abertamente, os dois tinham medo dos intolerantes que lotavam as ruas naqueles dias. Ouvira mais de uma vez a irmã conversando com as amigas sobre um pai ou mãe de colegas que agia de forma esquisita quando seu pai ia buscá-la na escola. Gente que comentava como não fazia o menor sentido entregar crianças humanas nos tentáculos de seres alienígenas, quer dizer, era uma abominação da natureza, entende? A criança vai crescer confusa e se sentir errada por ter pais tão diferentes. Só estamos pensando no bem dos pequenos!

Gostaria de poder dizer a eles que nunca se sentira errada ou esquisita perto dos pais por ser de outra espécie, porém sabia que não a ouviriam. Também não notava nenhum deslocamento da parte dos irmãos.

Crescer com uma família diferente do padrão nunca os fizera sofrer pela família em si. O sofrimento era provocado pelos outros, na realidade, pelos estranhos julgando-os com olhos que pareciam facas, pelos conselhos não-solicitados, pelo preconceito venenoso disfarçado de preocupação.

Estacionou o carro na calçada da escola dos irmãos e aguardou enquanto os dois quicavam para fora, se esticando e reclamando do calor. O pai descansou um tentáculo em seu ombro, sem tocar sua pele.

Por favor, tome cuidado, Pandinha, pediu e se sentiu envergonhada por ele usar o apelido de quando era criança.

Antes que respondesse, o pai deixou o carro e bateu a porta, fechando-a lá dentro com tudo o que tinha a dizer. Com os tentáculos envolvendo os ombros dos irmãos, os três passaram pelo portão da escola enfeitado com bandeirinhas e chapéus de caipira.

Apertou o volante entre os dedos, pensando se alguém teria contado ao pai que ela tinha se juntado ao grupo de militância da faculdade contra os extremistas antierianos. Não quisera contar nada porque sabia que ele se preocuparia.

O grupo tinha por objetivo discutir as motivações dos antierianos e encontrar formas de enfrentá-los, já que só palavras e teorias não dariam conta de sua violência. Os protestos que organizavam eram em sua maioria pacíficos, já que pretendiam ser condizentes com as atitudes dos erianos — porém a polícia e os extremistas não colaboravam muito para mantê-los assim.

Não havia como derrotá-los apenas com palavras de paz e poemas, e o pai sabia disso muito bem, ainda que sua natureza fosse contra a postura dela. Imaginou como seria chegar em casa e ter de conversar com ele sobre a passeata que organizariam na próxima semana; se ele sabia de uma parte, então era melhor saber de tudo de uma vez.

Esfregou a testa e ligou o rádio. O trânsito a atrasaria para chegar na reunião, mas não se preocupou, afinal estavam apenas acertando os detalhes da passeata. O vice-reitor, que fora selecionado a dedo pelo presidente fascista eleito no ano anterior, estava tentando de todas as formas dissolver o grupo, sem sucesso. Naquele momento os professores envolvidos ainda tinham mais poder do que ele, rebatendo seus planos e ementas exclusionistas. Eles o achavam uma verdadeira piada, inclusive o reitor.

Não podiam imaginar que o vice-reitor fosse abandonar a esfera legal em seu desejo de destruí-los.

Chegou na faculdade e estacionou na vaga de sempre, ao lado do carro de um professor. Se não fosse pela música, que não desligou de primeira, talvez tivesse ouvido a algazarra se desenrolando no canto mais afastado do estacionamento. O som estava alto para impedi-la de ouvir seus pensamentos dispersos, no entanto, e por isso apenas percebeu o que acontecia quando era tarde demais.

O primeiro que viu caído foi um dos professores, a cabeça aberta, os dentes cobertos de sangue. Então, sem tempo para se recuperar do choque, um homem desconhecido a agarrou pelo pescoço e socou-a bem no nariz, fazendo-a ver pontos brilhantes diante dos olhos. Suas pernas amoleceram um instante, mas o corpo treinado em judô enfim reagiu e desviou do segundo golpe do sujeito.

Aproveitando a brecha que o homem abrira, socou-o no estômago, desestabilizando-o, e em seguida o derrubou com uma rasteira. Uma colega que mancava com um machucado sério na perna apareceu gritando. Atrás dela, outros colegas feridos tentavam se afastar dos agressores, armados com pedaços de pau e correntes.

Abriu a porta do carro de novo no segundo em que outro homem aparece e a agarrou, bateu com força em seu rosto, depois em seu peito, deixando-a ar. Ele caiu por cima, seus corpos atravessados nos bancos do motorista e passageiro. Tentou se desvencilhar dele, mas ele conseguiu erguê-la pelo cabelo e fazer sua cara acertar o painel do carro, deixando-a zonza. O sujeito fechou sua garganta com os dedos grossos e quando o ar deixou de circular, sua cabeça se desligou.

Seu último pensamento antes de apagar foi que gostaria de ter ido na festa com o pai e os irmãos.

No início, desejou estar morta.

Não quando acordou com água gelada sendo jogada em seu rosto e percebeu que estava em um galpão escuro, rodeada de homens sem identidade e com péssimas intenções, porque esse não foi o início. O início também não foi quando lhe fizeram perguntas sobre planos de dominação mundial dos erianos ou quantas vezes por dia participava de orgias com os próprios pais. Os tapas e chutes que levou enquanto estava amarrada na cadeira, escutando passiva os berros daqueles sujeitos doentios e perversos? Não, definitivamente aquele não era o início.

O início de tudo se deu quando percebeu que estava amordaçada e nenhum dos homens ali realmente esperava que respondesse suas perguntas sobre conspirações que não existiam. Então, o desespero inundou seus olhos inchados pelas agressões e escorreu por seu rosto, como se fosse uma boneca de cera derretendo.

Foi aí que o homem que liderava aquele interrogatório parou e a encarou com a boca meio aberta. Nunca conseguiria se lembrar do rosto dele depois daquilo, mesmo que ele não usasse máscara e se esforçasse muito. A polícia riria dela, se não pode se lembrar de quem fez isso, o que espera que façamos? A psicóloga daria tapinhas em sua mão, tentando confortá-la, e lhe diria que não se recordava por conta do estresse. Nenhum deles jamais entenderia que não se lembrava do rosto do homem porque ele parecia com qualquer outro homem que já tivesse avistado na rua. Ele era branco? Tinha certeza (tinha? Certo?) que era cisgênero e sem deficiência, mas depois disso a escadaria do discernimento se tornava mais confusa e tortuosa.

O início consistia em: o interrogador sem rosto a fitou e viu o pânico a consumindo como chamas consumindo um edifício. Ele limpou uma lágrima sangrenta que escorrera do seu olho estourado, e ainda conseguia lembrar de como seu sangue parecia reluzir nas palmas das mãos dele. Então, sem expressão na voz, o homem ordenou a um dos outros que observava tudo em silêncio que trouxesse a barra de ferro e a tesoura e o alicate. A misericórdia não existia ali.

Sua dor não foi proporcional ao quanto eles a machucaram porque não durou apenas os dois dias e meio em que eles a torturaram sem razão. Ela se estendeu por muito tempo, se engalfinhando no seu peito e a fazendo ter crises de pânico muito depois, quando suas unhas já tivessem crescido e suas cicatrizes se tornado marcas brancas contra a pele das costas, barriga e pernas.

O início ainda se desenrolava quando os policiais a acharam depois das denúncias de um pedreiro anônimo que passou pelo galpão e ouviu os gritos entrecortados de sua garganta rouca. Ainda era o início quando a carregaram para um hospital público e o exame de corpo de delito era tão extenso que qualquer um o confundiria com uma lista de presença. Quando os irmãos a viram daquela forma e então a mãe, e por último o pai, como numa música infantil, ali era o início também.

A verdade é que tudo aquilo fora um longo início e estava exausta de rodar em círculos em torno de si mesma, se questionando quando viria o final.

Sua família estava lá, dando suporte, mas preferia que não estivesse. A cada pergunta ou olhar preocupado, não importava se estavam apenas sendo gentis ou superprotetores, sentia que tinha fracassado de uma forma fundamental, algo que não poderia ser posto em palavras.

A mãe fora a primeira a se recolher diante de sua agressividade. Os irmãos a seguiram em escadinha, primeiro Bela com seu nariz empinado fingindo que não ia chorar no banheiro, depois Di com os olhares ressentidos. O pai permaneceu. Teria sido mais fácil para os dois se ele só desistisse. Mas ele nunca escolhia o caminho mais fácil, não é?

Por isso, todos os dias ele batia na porta do quarto e lhe perguntava se queria bolo com chá, se precisava de algo da rua ou se já tinha refeito os curativos. Todos os dias, ele esperava que ficasse bem tarde e então entrava no seu quarto (sem chaves, sem trancas, ordenara a psicóloga) e a observava por uma, duas horas, e podia ouvir aquele ruído sofrido que ele emitia como se estivesse machucado, como fora com Bela no hospital.

Uma vez, acordara de madrugada para usar o banheiro e ao retornar para o quarto, avistara o pai e a mãe no próprio quarto pela fresta da porta. O pai estava sentado diante do computador, apertando as teclas copiosamente, o leitor sussurrando suas palavras baixinho. A mãe flutuava próxima a ele, como se sussurrasse algo em seu ouvido, ainda que orelhas não fizessem parte da anatomia eriana. Então, o pai apanhara o teclado e o arremessara no chão num rompante que a assustou e fez a mãe se sobressaltar em sua apatia.

Não podia ouvir a discussão que se desenrolava mentalmente entre ambos, mas imaginou saber a razão. O clima da casa não era o mesmo desde que voltara. Tudo parecia tão quebrado e partido quanto seu interior. Voltara correndo para o quarto quando o pai, ainda discutindo com a mãe, voltou a cabeça na sua direção. Bateu a porta com força, selando-se no cômodo como se pudesse conter a desgraça eminente do lado de fora.

Não sabia ainda que era tarde demais.

Ei.

Ergueu os olhos do piso e fitou a mãe, que flutuava ao seu lado enquanto se moviam até o elevador do prédio.

A culpa não foi sua.

Negou porque negar se tornara um reflexo àquela altura. A boca não falava nada; a história que contava eram sentimentos e sensações através das ventosas dos tentáculos dela agarrados ao seu braço, em parte para mantê-la em pé e em movimento, em parte porque insistira em lhe contar aquilo que nunca conversara com ninguém, nem na terapia.

Afinal, como poderia não ser culpa dela?

O pai a procurara na manhã seguinte, quando estavam sozinhos em casa, a mãe no trabalho, os irmãos na escola. Sua cabeça não precisava trabalhar muito para lembrar das palavras dele.

Por favor, fale comigo.

E os tentáculos estremeciam e retorciam, fazendo-a sentir nojo dele como nunca sentira, não lembrava o motivo. Não, era mentira dizer que não lembrava: os tentáculos a faziam pensar nas cordas que a prenderam, nos dedos e braços a violando, na corrente que a castigara uma dúzia de vezes quando estava prestes a desmaiar durante a tortura.

Gritou com ele como vinha fazendo nos últimos meses desde que voltara. Com a faculdade trancada, aquele era seu passatempo, sua forma de tornar os espaços entre os remédios e consultas algo menos enfadonho. Por isso, usou as palavras para machucá-lo e disse coisas horríveis que ele nunca retribuía porque pensava que não era o que queria dizer.

— Você está errado — lembrava-se de jogar na cara dele. — Eu gosto de ser cruel com você. Porque sou má.

Você só pensa que é má porque quer que haja uma razão para que aquelas coisas tenham acontecido com você, o pai devolveu. Está tentando se culpar por uma coisa que nunca vai ter sido culpa sua. Nem o que aqueles homens fizeram com você, nem as pessoas que mataram aquele dia…

O discurso do pai era repleto de bom senso, mas não conseguia ouvir.

Só desejava que ele se partisse, sem chance de recuperação, irreparável — apenas assim ele poderia compreender seu sofrimento.

— Você não sabe o que fizeram comigo, não tem a mínima ideia.

O pai estendera os tentáculos. Parecia que ia pegá-la pelas axilas, como se ainda fosse uma garotinha.

Por que não me mostra então?

Então mostrara a ele. Deixara que ele absorvesse suas memórias, que bebesse de cada golpe e ferimento, e fora como ser agredida pela segunda vez. Não se importou porque isso significava que o feriria também.

Quando terminou e ele a soltou, não disse mais nada.

Chorou na frente dele ao final, não apenas por se sentir triste, mas por estar furiosa. Naquele tempo parecia que tudo se resumia a isso: sentir um ódio extremo aliado à tristeza profunda.

— A culpa disso tudo é sua. Por que você não morre? Morra.

As palavras se montando como um quebra-cabeça, o corpo do pai se encolhendo e deixando-a sozinha ao flutuar para fora de casa em silêncio.

Teria sido naquela hora que ele decidira comprar o ácido ou um pouco depois?

Seu pai já tinha comprado o ácido, a mãe interrompeu, bem quando o elevador chegou no andar delas. Ele já tinha planejado. Estava tudo pronto, Pam.

— Só está falando isso pra que eu não me sinta mal.

Ele escreveu cartas longas, Pam. Nunca teria feito isso tudo e ainda por cima conseguido uma licença para comprar ácido de venda restrita num único dia. Não é assim que suicidas funcionam.

Cartas? Eu nunca vi nenhuma carta.

As portas do elevador se abriram e a mãe saiu, puxando-a docemente. O corredor era muito claro e limpo, como qualquer hospital que se prezasse. As pessoas que andavam por ali, no entanto, não pareciam médicos e enfermeiros normais: trajavam uniformes completos e amarelos, com máscaras de gás, como se a qualquer momento o lugar inteiro pudesse sofrer um ataque à bomba. Seguiram agarradas pelo corredor infinito, passando por humanos e erianos não identificados. Ninguém as encarou.

— Que cartas são essas?

A mãe a soltou quando alcançaram uma porta com a sinalização 19D presa numa tabuleta.

Seu pai deixou cartas para todos nós. Não mostrei pra ninguém.

Aquilo a fez sentir um tipo diferente de raiva, algo pesado como lodo de pântano se arrastando por sua garganta.

— Você não pensou que poderíamos querer ouvir as últimas palavras dele?

A mãe abriu a porta e antes de entrar, parou. Deixou escapar um som estranho que se assemelhava a um suspiro.

Isso não faria nenhum bem a vocês. Além disso… Eu tive medo, Pam. Ainda tenho.

— Por quê?

Você sempre foi muito parecida com ele. E eu não queria te perder também.

— Eu não faço parte de uma conexão espiritual mundial, sabe? Se eu morrer, não haverá centenas de milhares de humanos sofrendo a minha morte como foi com ele. A vida vai continuar sendo a mesma.

Você acha que seu pai só teve valor por que estava conectado a nós? Acha que é só isso o que o tornava precioso?

Não tinha resposta para isso, e a mãe apenas balançou a cabeça.

Pam, você significa muito pra várias pessoas, por mais que a doença não te permita ver isso. Foi isso o que aconteceu com o seu pai e… É por isso que não conseguia falar com você, eu estava… Eu só não conseguia pensar em como me aproximar de você sem provocar o mesmo que aconteceu com ele.

— Mãe… Não foi sua culpa o que aconteceu com ele — teve forças para dizer.

Uma sensação suave a preencheu conforme a mãe segurava seus dedos.

Acho que nenhuma de nós vai conseguir se livrar disso hoje, querida, mas tudo bem, temos bastante tempo para pensar… Por que não entra e vai dar uma olhada no seu pai?

O quarto nada mais era do que uma caixa branca lacrada sem janelas, com apenas uma saída de ar lateral para o ar condicionado congelante. Notou isso logo que botou o pé nele. Fechou os braços em torno de si mesma e estancou olhando uma caixa transparente, semelhante a uma incubadora, no final do cômodo.

Com passos hesitantes, se dirigiu até ela e parou ao ver os restos da cabeça do pai, centenas de agulhas repousando contra sua pele descolorida e ressecada. Seus tentáculos haviam encolhido, se tornando tão pequenos quanto restos de algas, irreconhecíveis como os tentáculos fortes que conseguiam carregar móveis e pedaços longos de madeira sem auxílio.

Havia também um monitor preto dividido em duas partes, uma mostrando a atividade cerebral do pai num desenho detalhado do complexo cérebro eriano. A outra tinha um cursor branco pulsando indiferente como um coração.

Mordeu o próprio punho, tentando não chorar ao vê-lo daquela forma. Em seguida, os sentimentos começaram a transbordar, todos ao mesmo tempo.

— Por que fez isso com ele? O que… que merda é essa?

Precisávamos saber porque ele fez o que fez, a mãe respondeu, o tentáculo se prendendo um instante no vidro que a separava daquilo que um dia fora seu marido. Não sabíamos se era infeccioso, se poderia se espalhar pela nossa espécie ou se…

— Ele ainda está vivo?

Para fins legais e técnicos, ele está morto faz oito anos. Estamos estimulando as ondas cerebrais em pontos específicos para mantê-lo consciente e responder algumas perguntas. Tentando traçar o que pode ter originado isso.

— Então… — Sentia uma coisa gelada se espalhando por sua pele conforme falava. — Você está mantendo os restos mortais do meu pai numa caixa nesse lugar bizarro por que quer descobrir o que o levou a fazer isso, ainda que tenha todas as evidências diante de si?

Não funcionamos como os humanos, filha. Não é tão simples assim. Não deveríamos ser capazes de…

— De ter depressão? De se matar? Por que você está tão hesitante em falar as coisas como elas são? Sabe, pra alguém que manteve o corpo dele aqui tanto tempo você não parece saber muito sobre o que afligia ele!

A mãe não respondeu de imediato, a cabeça permanecendo abaixada.

Você tem razão. A única coisa que conseguimos descobrir é que não podemos definir o funcionamento de alguém como definimos o significado de uma palavra. Vidas não são equações.

— Isso quer dizer que, apesar de tudo, você não sabe por que ele se matou?

Não. Ele não nos responde perguntas sobre isso. Só sabe falar sobre nossa família. Sobre flores e livros. Sobre bonecos de madeira e sonhos que têm nessa caixa preta. erianos não deveriam sonhar, sabe? Mas ele sonhava. Nunca tinha me falado que conseguia sonhar ao longo dos cem anos que ficamos juntos. Sonha até hoje. Não sabemos como.

— Então ele é mesmo uma aberração, não é? — Deu um sorriso amargo. — Pelo menos não sou a única na família.

Por favor… Não fale dessa forma.

— Foi você quem o definiu assim quando permitiu que o tratassem como um projeto de ciências secreto.

E que escolha eu tinha? Se fosse algo fatal pra nossa espécie e não tentássemos descobrir o que era, quantos de nós não poderiam morrer também? Depois que ele morreu nada nunca mais foi igual. Pra nenhum de nós. Foi como… Não há como descrever isso pra alguém que não faça parte da nossa matriz. Esse idioma, percebe… É tão complicado. Eu gostaria de ser como seu pai. Gostaria de ter as palavras certas para encontrar o seu coração. Mas eu nunca me adaptei às palavras. Sempre amei você e seus irmãos, mas amor enclausurado não traz conforto. E é isso o que nós temos agora… Eu sinto muito, Pam.

Fingiu que coçava a testa enquanto ouvia a mãe falar. Assim ela não veria as lágrias que suas palavras tinham arrancado. Desejou que houvesse outro som além do ruído do sistema de ventilação e dos sinais cerebrais do pai pontuando sua presença no mundo, por isso resolveu que precisava continuar perguntando até que não houvesse mais nada a ser dito:

— Como ele conseguiu me enviar aquelas mensagens?

Alguém teve pena dele depois de tanto ouvi-lo falar sobre a vida que tinha antes e conectou o monitor a uma conta naquela rede social. Ainda estamos tentando descobrir quem foi e como fez isso.

— O que vão fazer quando acharem a pessoa?

Ela será demitida. Só isso. Não somos uma gangue de criminosos, Pam, não matamos pessoas.

— E se ela quiser contar o que acontece aqui?

Vamos tomar as medidas cabíveis para que não aconteça.

Agora está falando como uma criminosa, mamãe.

A ventosa da mãe se desprendeu do vidro da incubadora e ela flutuou de volta para a porta.

Vou te esperar aqui fora.

— Espera! O que… o que você espera que eu faça aqui?

A mãe parou com um tentáculo na porta.

Tem uma cadeira ali atrás. Sente, fale sobre o que quiser. É seu pai, querida… Ele vai adorar falar com você sobre qualquer coisa.

Enfiou os punhos nos bolsos do jeans e olhou ao redor, avistando sem dificuldade a cadeira da qual a mãe falara. Trouxe-a para perto do monitor, que continuava piscando sem indício de que o pai começaria a falar.

Lentamente, estendeu uma mão e descansou-a contra o vidro.

— Oi, pai. Você… pode me ouvir?

Havia uma pequena etiqueta num dos tentáculos encolhidos dele. Estava escrito “Hélio” numa letra redonda, o que a fez sentir vontade de chorar, por mais bobo que fosse.

Foi quando o cursor no monitor começou a piscar e digitar devagar as letras:

|

Oi, Panda |

Já faz um tempinho, né? |

Você recebeu minhas mensagens? |

— É, recebi. Você me assustou.

Desculpa |

— Não tem problema. Já superei.

Ele não disse nada de imediato, o cursor voltando a piscar impassível.

— Eu tenho… tenho tantas perguntas…

|

Imagino que sim. |

Mas sabe… |

Isso realmente importa agora? |

Quer dizer|

Isso muda algo do que aconteceu até aqui? |

O espasmo do tentáculo dele a deixou apreensiva de início. Então, ele o fez repousar contra o vidro o melhor que podia. Estendeu a própria mão e a deixou repousar na direção dele, desejando que pudesse captar cada traço de saudade, alegria e todo o resto que compunha seu corpo naquele momento.

— Eu só queria entender, pai.

Acho que nessa altura é muito tarde para entender, querida. |

E sinceramente |

não sei de verdade se há algo para se entender. |

— Acho que sempre tem algo mais a ser dito… mas… sei lá…

Queria dizer que estava feliz em vê-lo ali, porém… daquela forma?

Como falar isso sem soar horrível e egoísta?

Como dizer com toda sinceridade da sua alma que, apesar de vê-lo daquela forma, tudo o que conseguia sentir era alívio por saber que ele ainda não tinha partido por inteiro?

Porque, afinal, parecia que uma parte de si nunca o deixaria ir embora totalmente.

Depois de dois minutos quieto, ele voltou a escrever:

Panda? |

— Oi, pai.

 

Você ainda lembra onde paramos a história? |

A sem fim? |

Não conteve o sorriso que surgiu em seu rosto.

— Faz mais de dez anos que você não me conta uma história, pai, então não, foi mal, não lembro.

Tudo bem. |

Se importa de começarmos de novo? |

Assim, do zero? |

Limpou a garganta e catou as lágrimas escorrendo pelos dois lados do rosto com a mão livre.

— Claro, pai. Vamos começar de novo.

A foto quadrada mostra uma imagem toda "borrada" por polígonos. É impossível ver muito do Ben, apenas que é um homem de pele branca e cabelo escuro e raspado curto.

Benjamin é um não-octópode LGBTQI+, nem um pouco discreto e totalmente do meio. Tem idade entre 20 e 3.000 anos, cursa faculdade de ciências biológicas apenas para ter material de referência pra sci-fi e escreve histórias no tempo livre entre um tuíte e outro.

Bárbara Morais é economista, escritora e garota mágica aposentada. Fala sobre livros na internet desde 2008 e entre blogs, sites e newsletters, hoje mantém o Pode Entrar, podcast dedicado exclusivamente à obras ficcionais de vampiros. Também trabalha como leitora crítica e é a Desatadora de Nós de Enredo oficial da Agência Página 7.  É autora da Trilogia Anômalos, além de ter histórias em diversas coletâneas, como Garotas Mágicas Super Natalinas em Todas as Cores do Natal e O Fantasma Vem para a Festa, em Aqui quem fala é da Terra.  Você pode encontrá-la em todas as redes sociais como @barbaraescreve.

A foto quadrada mostra uma mulher branca, de cabelos ruivos bem encaracolados cortados na altura do ombro e óculos de aro preto e grosso. Ela está vestida com uma camisa amarela e está autografando um livro, sorrindo. Atrás dela, dá para ver vários livros e revistas em prateleiras.
A foto quadrada mostra uma mulher branca, de cabelos pretos e liso cortados na altura do peito. Ela está sorrindo, usa uma blusa sem manga branca e o fundo da foto é branco.

Sou natural de Porto Alegre, formada em Arquitetura e apaixonada por quadrinhos, ilustrações e animações. Estudei aquarela na Galeria Hipotética, desenho de moda n’A Torre e atualmente curso Artes Visuais e Pós Graduação em Design Gráfico. Fui colaboradora do site Redação Multiverso, expus na Primeira ExpoArte do Feirão das HQs, exposição indicada ao Prêmio HQ Mix de 2018. Participei de duas edições do Feirão das HQs, da Feira Quadrúpede, Feira Urbana, NAI – Núcleo de Arte Impressa e Desafio Dinâmico 2019. Sou autora do zine Mulheres incríveis e desenhista do Relacionamento a distância, lançado em parceria com o escritor Carlos Macedo.