A ilustração no centro da capa mostra duas pessoas em primeiro plano: uma de vestido carmim, luvas e lenço, em estilo meio vitoriano, e outra vestida de terno, camisa e calça de risca de giz. Ao fundo, há vários homens que parecem idosos com caras fechadas, cabelos brancos e barba, e eles parecem olhar de forma hostil à dupla. A capa inteira é cercada por uma moldura rebuscada em tons de vermelho e dourado. O título “Dante & a liga dos anciãos'” aparece, em vermelho queimado, na base da capa, em uma espécie de quadradinho destacado. Dos dois lados desse quadradinho, há molduras com a imagem de perfil de duas pessoas: à esquerda, um homem de meia idade de barba e cabelo castanhos. Uma faixa em cima diz "O médico e esteta" e embaixo Antoine Louison; à direita, um homem novo de cabelo liso. Uma faixa em cima diz "O jovem velhaco especialista em magia" e embaixo Solfieri de Azevedo. Sobre essas duas molduras, há outra faixa dizendo "participações especiais". Dos lados da imagem, há as informações "Escrito por Enéias Tavares” e “editado por Jana Bianchi” em um amarelo meio dourado. O logo da Mafagafo no topo também é nesse tom de dourado. Do lado esquerdo da capa, em cima, há o logo da Mafagafo com a informação “Temporada 003 - Dezembro de 2020”. Acima do título da Mafagafo, há as informações “Ilustração: Karl Felippe” e “Direção de Arte: Dante Luiz”.

11.900 palavras | Aproximadamente 50 min de leitura 

Cada um tem a idade do seu coração.

— George Sand

Assuste o mundo: seja exatamente quem você diz ser!

— George Eliot

PÔLEMICA:

FICÇÃO POPULAR É LITERATURA

ENTREVISTA COM DANTE D’AUGUSTINE

Rádio Atlântica AM

Programa Chá das Cinco

Entrevista Posteriormente Publicada no Jornal

O Crepúsculo, de 20 de Julho de 1891

 

Bom tarde, caro ouvinte e querida dona de casa, aqui é Plínio Alphonsus, o seu comunicador cultural. No programa de hoje, receberemos o escritor Dante D’Augustine, que tomou Porto Alegre dos Amantes de assalto com seus contos inovadores e por suas declarações bombásticas — tão inusitadas quanto a sua etnia. D’Augustine acaba de lançar sua primeira coletânea em formato de livro, com lombada quadrada e título em letras douradas. Crimes crassos levanta a velha discussão sobre a qualidade da conhecida “ficção de polpa”, histórias de mistério sobrenatural, terror sangrento e ciência especulativa que exploram aspectos obscuros da vida moderna. Nesta exclusiva, D’Augustine abre o jogo e conta tudo sobre o que pensa do assunto, seu processo criativo e sua meta futura, agora como escritor publicado.

 Seja bem-vindo, Dante. Vamos à primeira pergunta. Crimes crassos acaba de sair e já ocupa as listas de mais vendidos dos últimos anos, desbancando inclusive os títulos sentimentais editados pela casa editorial O Cubo. A despeito do apelo popular das suas narrativas curtas, ao que deves tanto sucesso?

Gosto de pensar no leitor como um ser humano criterioso que cuida tão bem de sua leitura quanto atenta aos seus hábitos alimentares. Assim como não comemos qualquer coisa que nos oferecem, o mesmo acontece com o tipo de arte que consumimos. O sucesso dos meus contos, diferente do que muitos pensam, não se dá apenas por sua temática popular, mas também pela qualidade do que escrevo. Obviamente, estou sendo pouco modesto, mas quem se importa? Não estou me colocando em qualquer patamar valorativo, mas penso que meus textos fornecem ao público uma alternativa num mercado um pouco exaurido de novas ideias e energias.

Em tua opinião, a literatura contemporânea carece deste novo ímpeto?

Podes me chamar de romântica… digo, de romântico, Alphonsus, mas em minha opinião não lemos estórias para obter a comprovação da nossa miserabilidade e sim para acessar grandes sonhos, jornadas épicas de horror e assombro, existências que possam fazer fulgurar nossas rotinas pálidas e destituídas de intensidade. Não estou apto a criticar outros escritores, mas penso que Crimes crassos apresenta uma alternativa ousada ao “mais do mesmo” ofertado nas vitrines de nossas casas de livros. A meu ver, trata-se de um volume que surpreende, diverte e emociona seus leitores e leitoras, e isso é tudo o que eu espero de um compêndio romanesco.

Essa é a tua poética?

Não sei se eu tenho uma poética. O termo parece-me altissonante e pretencioso. Escrevo contos policiais, de horror e mistério à moda antiga, com uma linguagem que pode parecer empolada a alguns. Porém, tal escolha tem a ver com minha proposta de recuperar um determinado modo de pensar, os traços da nossa identidade cultural que se perderam, na medida em que fomos exaurindo palavras e frases, impressões discursivas do mundo. Fiz isso, em primeiro lugar, porque precisava de uma válvula de escape para minhas angústias. Felizmente, elas estavam em consonância com as próprias inquietações dos leitores dos jornais O Crepúsculo e do Hora Zero. Quando esses escreveram pedindo mais estórias com o inspetor Apolinário, fiquei feliz em lhes satisfazer as vontades.

Falando de seu herói policial, ele foi baseado em algum personagem real?

Ora, ele é um gênio dedutivo, e hoje em dia sabemos quem foi e quem continua sendo a grande referência investigativa mundial. Desde a publicação da Biografia não autorizada de Sherlock Holmes, escrita e publicada por John H. Watson, o detetive londrino tem despertado a fascinação de todos. Quando ele solucionou o mistério do barbeiro assassino Sweeney Todd, ainda na década de 1870, se tornou a principal referência para agências policiais e investigativas, bem como para escritores de mistério. Até hoje pranteamos a morte de Holmes no último ano. O discurso fúnebre do professor Moriarty continua sendo uma das mais belas homenagens já feitas a um ser humano e seus feitos. Então, sim, Apolinário é basicamente uma recriação do Grande Detetive. Mas não apenas isso.

Poderias detalhar mais essa questão, talvez discutindo o teu processo criativo?

Claro. Minha ideia partiu de uma tentativa de homenagear o gênero policial como um todo. Mas, diferente de muitos dos meus conterrâneos, não queria uma história que se passasse em Londres, Paris ou Nova York, mas que fosse brasileira e, em especial, porto-alegrense. Assim, Apolinário é um gaúcho, que fuma o nosso fumo e que fala como nós falamos. Ele caminha pelas nossas ruas, visita nossos monumentos e está preocupado com as questões que nos preocupam, como a exploração social, o preconceito étnico, os direitos das mulheres, o extremismo cientificista e, claro, ele também integra uma sociedade secreta. Para resumir, minha poética está calcada na utilização de um gênero popular estrangeiro, reinterpretado em nosso contexto nacional, a fim de tratar de problemas e assuntos que nos são fundamentais e que por muito tempo censuramos ou ignoramos, interessados em temas e estilos mais confortáveis. Afinal, já está na hora de encararmos os monstros escondidos em nossos armários e debaixo das nossas camas.

Chegamos então à polêmica: em tua opinião, ficção popular é literatura?

Tu estás me perguntando sobre o que é arte, sobre como definimos ou conceituamos aquilo que fazemos no campo da estética. É claro que minha resposta é sim, e é sim porque eu digo que é. Em última instância, arte não é o que tu, eu ou qualquer pessoa, crítico, professor ou editor diz que é arte. Literatura é arte quando nos toca, nos emociona, nos inspira. Então, prefiro deixar a resposta final não comigo ou contigo, e sim com os leitores. Eles vão decidir o que é relevante para eles ou para o tempo em que vivem. O resto é falatório e, como todo bom escritor, estou mais interessado no texto e menos nas opiniões sobre ele. Espero que não me leves a mal por dizer isso.

Não, de forma alguma, apesar de pensar que estás pisando em alguns calos com tal opinião.

Bem, meu caro, Alphonsus, pra que serve um escritor se ele não pisa em alguns calos? Se for de outro modo, ele não escreveria literatura e sim panfletos moralistas, discursos políticos ou novelas sentimentais sobre e para moçoilos apaixonados. Penso que agora, mesmo que indiretamente, respondi à tua pergunta anterior, não?

 Para finalizar, tu agora estás trabalhando numa narrativa longa que tem por protagonista o próprio Apolinário. Comentam por aí que este seria teu último escrito ficcional dedicado ao velho investigador. Isso é verdade? Poderia nos falar sobre este projeto?

 Sim, ele irá encerrar as estórias de Apolinário. Tenho outras ideias em mente, entre elas uma nova forma de literatura que tenha uma heroína feminina por protagonista. Acho que estou cansando, como escritor, de ver o mundo a partir de um olhar masculino ou patriarcal. Desejo doravante experimentar outras perspectivas, meta que estenderei a outros espaços da minha própria vida. Assim, este romance encerrará uma fase não só de minha literatura, como talvez de minha postura pública. Nesta narrativa longa, Apolinário investigará uma série de desaparecimentos próximos à rua do Arvoredo. Será o meu canto do cisne, minha última homenagem aos grandes monstros, daqui ou de qualquer lugar. Penso que a hora de homenageá-los está chegando ao fim, e que precisamos reinventar também nossa literatura e nossa capacidade de sonhar novos sonhos e também pesadelos. Somos brasileiros e sabemos fazer isso muito bem.

Agradecemos a Dante D’Augustine por sua presença no Chá das Cinco. Depois dos comerciais, discutiremos o panorama editorial de nossa nação, agora que os livros de autoauxílio e os compêndios para pintar deixaram os topos das listas dos mais vendidos. Depois, recados dos ouvintes. Não saía daí!

 [Escute a entrevista clicando abaixo]

A imagem em preto e branco, com os traços do lápis nítido, mostra uma mesa com alguns objetos em cima: um rádio antigo, livros e papéis, um pote de nanquin com penas e, à direita, um crânio humano ao lado de uma taça adornada.

I

 Porto Alegre dos Amantes, 4 de outubro de 1892

Do Noitário de Dante D’Augustine

 Meu nome é Dante D’Augustine & eu sou um escritor de mistério.

Há mais de um ano, tenho defendido um ideal de extrema importância: o que eu executo, enquanto escritor de suspense, horror e fantasia científica, é tão válido e fundamental como arte literária quanto qualquer outro gênero considerado mais sério ou respeitável.

A entrevista que dei a Plínio Alphonsus, e que anexei a esta narrativa para prover aos leitores o contexto no qual estou inserido, ilustra este fato com perfeição. Entretanto, mal poderia imaginar que os preconceitos ficcionais, as simplificações sociais e as opiniões estúpidas seriam os menores dos meus problemas.

Minha vida sempre esteve circundada de mistérios, mas não poderia prever que estes ultrapassariam a esfera pública, obrigando-me a interpretar bem mais do que o papel que havia criado para mim: além de escritor, encarnaria a profissão de um investigador em face ao mistério que assolava Porto Alegre naqueles dias.

Um mistério que faria os assassinatos presentes nas páginas de Crimes crassos e investigados por meu detetive ficcional, Apolinário Terra, parecerem historietas da carochinha.

Mas fique tranquila, querida leitora, pois não adiantarei detalhes deste mistério antes do devido do tempo.

Primeiro porque perpassa a natureza de um bom escritor manter o suspense de suas histórias, conduzindo os leitores até a última página a fim de prender seu interesse e atenção. Segundo, porque há muitas reclamações nesses dias sobre os indelicados “spoilers”, como dizem os ingleses, ou então sobre “estragar a surpresa”, como dizemos em território nacional. Antes de começarmos então, apenas alguns avisos.

Sou um escritor de suspense. Então, perdoe-me se em algum momento eu for obrigado a utilizar uma linguagem impressionista e altissonante. Os que acompanham a discussão sobre conteúdo e forma em literatura sabem que eu defendo as duas instâncias, criticando tanto os populares simplistas cuja linguagem apressada ofende aos ledores mais requintados quanto os puristas literatos cujas torsões e exageros lexicais apenas fazem o leitor cair no sono — o que dependendo do contexto até que pode ser um elogio.

Ademais, espero contar com sua mente aberta e não com preconceitos que me são ofensivos e risíveis. Já basta o tempo de relações homoafetivas serem encaradas com condenação e desprezo, não? Já basta a era na qual o amor entre homens ou entre mulheres “não pode ser pronunciado”. E haverá muito disso aqui, uma vez que eu, Dante D’Augustine, estou neste momento vivendo uma relação amorosa com um renomado médico e esteta porto-alegrense chamado Antoine Louison. Não que isso seja segredo a qualquer pessoa. Nosso relacionamento às abertas já foi notícia em vários pasquins da capital. Obviamente, não lemos esse tipo de publicação, sendo a vida mais interessante que as páginas de fofocas. Tivemos conhecimento delas por alguns amigos e também por meu editor — que adorou o escândalo, sabendo que venderia ainda mais de meus livros.

Assim, se tu, prezada senhora, fores uma tradicional defensora da moralidade tacanha dos tempos antigos, fecha este conto e volta aos compêndios religiosos ou aos semanários novelísticos.

Mas se, ao invés disso, fores uma mulher dos novos tempos, tenho certeza de que não encontrarás nada de ofensivo nas honestas linhas que seguem. Fica tranquila, haverá erotismo aqui, mas nada de vulgaridade gratuita e explícita, o tipo de linguagem apelativa que agrada apenas a grosseirões que pouco sabem do assunto.

Mas se estás na dúvida, ou como dizem os homens, “em cima de muro”, em questões de sexo, prazer & liberalidade, então fica por cá e mantenha a mente aberta. Tenho a certeza de que não te arrependerás.

Assim sendo, acomoda-te à poltrona, ao lado da taça de vinho e da cigarrilha, e prepara-te para uma boa diversão, pois prometo entretê-la pelas próximas páginas numa história que compreende violência e vilania, além de uma impactante surpresa que arrematará com destreza a narrativa que segue.

Pronta para começarmos?

II

Porto Alegre dos Amantes, 6 de setembro de 1892

Do Noitário de Dante D’Augustine

Tudo iniciou há um mês, no Café da Praza Quinze, um de meus lugares favoritos em Porto Alegre.

Estávamos eu, Louison e o pintor Basílio de Andrade Neto, em um agradável final de tarde, nos deliciando com os prazeres do álcool, do fumo e dos debates estéticos e culinários.

Eu adorava aquele lugar, pois fora nele que eu conhecera Louison, e fora dali que havíamos partido ao meu estúdio alugado no bairro Matagal para nosso primeiro intercurso, o primeiro de muitos.

Louison se tornara um grande amigo e logo introduziu-me em seu seleto grupo de amigos, que incluía o médico Revocato Porto Alegre, o jovem romântico Solfieri de Azevedo e o supracitado pintor.

Estávamos ali, perdidos numa discussão sobre os meandros intrincados da arte e da decadência, não objetivando chegar a lugar algum, obviamente. Nosso prazer estava apenas no xadrez intelectivo que jogávamos enquanto opúnhamos argumentos, defendíamos opiniões e produzíamos gracejos dignos de um Wilde.

Para a nossa surpresa, o acalorado debate foi interrompido por um velhote atarracado metido numa impecável fatiota escura. Trazia consigo um exemplar de Crimes crassos e pediu-me uma dedicatória.

Eu, que nunca ignorava o pedido de um leitor, atendi-lhe, apesar de não gostar do modo como o velho me olhava e gesticulava, de forma afetada e nada gentil, num misto de admiração e desprezo.

Sou negro. Desculpem-me por não informar isso antes. Este dado raramente é importante para o desenvolvimento de qualquer narrativa, mas neste caso o fato étnico é fundamental para que compreendam não apenas o olhar de superioridade daquele ancião, como também a base da minha impaciência com preconceitos, sejam eles de raça, sexo ou orientação.

“Chamo-me Josefredo Henriques dos Freitas. Sou dos Freitas de Lajeado”, disse o homem, produzindo um riso incontido de minha parte. “Sou um grande admirador de sua ficção, senhor D’Augustine. Realmente trata-se de um grande acontecimento literário, uma honra para nosso estado e para nossa nação. Fico-me perguntando como o senhor pôde, sendo desprivilegiado, produzi-la.”

O infeliz estava testando meu autocontrole.

“Achas que talento e raça estão relacionados, Sr. Freitas?”, disse eu passando os dedos indicador e médio no bigode fino.

“Não me leve a mal, caro senhor. Mas os grandes avanços da raça humana resultaram sem dúvida de habilidosas mãos caucasianas…”

“Enquanto homens não caucasianos e mulheres os serviam.”

Escutei Louison e Basílio rirem baixinho daquela conversa.

Eu devolvi-lhe o exemplar assinado, que foi conferido pelo homem, satisfeito.

Freitas despediu-se deixando comigo um de seus cartões e convidando-me a visitá-lo na noite seguinte, em seu Clube de Cavalheiros, para uma conversa literária. Eu assenti ao convite, mais no ímpeto do que por interesse, confesso.

Quando voltei a sentar-me com meus amigos, rimos do sujeito, que acabara de deixar o café com seu exemplar autografado embaixo do braço magro.

“Dos Freitas de Lajeado. Sério?”, bradou alto Basílio.

“Estás disposto, meu caro”, perguntou Louison, entre um gole e outro de seu vinho, “a perder tempo com uma figura dessas em seu… Clube de Cavalheiros?”

Não lhe respondi de imediato, estudando o cartão que Freitas me dera. Ele mirou-me, do modo como eu adorava. Levantei meus olhos do papel timbrado em delicada letra dourada e encontrei os seus. Eram soturnos aqueles olhos negros, profundos e sagazes, duas orbes ardentes de inebriante escuridão. Olhos que eu amava beijar e admirar no fervor da madrugada fria, entre lençóis úmidos de suor e desejo.

Depois de instantes, aproximou-se um pouco, ficando na ponta da cadeira, com os lábios sinuosos, prestes a flertar com os meus, margeados pela barba escura e bem aparada. Desejei-os pousados nos meus.

“Devo temer ser substituído no hall dos seus afetos?”, perguntou, provocando-me.

Eu lhe dei um beijo apaixonado, para a diversão de Basílio, que nunca escondeu seu interesse por mim e Louison. A cena foi o escândalo de um dos casais que estava ali. Escutei um deles sussurrar ao garçom “Achei que fosse um ambiente familiar” antes de pedir a conta e deixar o estabelecimento.

“Não, não corres este risco, meu caro”, disse-lhe. “Mas há algo de estranho neste homem, e quero averiguar do que se trata antes de ignorá-lo totalmente. Além disso, precisamos educar o rebanho, não?”

“Mudando de assunto, agora que nosso clima de discussão estética foi interrompido e talvez prejudicado definitivamente, vocês viram as últimas notícias sobre o Matador de Cocotes?”, perguntou Basílio, tocando com a ponta dos dedos o exemplar do Hora Zero dobrado sobre a mesa.

Louison pegou o jornal e abriu na página que informava um novo desaparecimento. Depois de suspirar, disse que se tratava da quinta vítima em apenas dois meses.

“Do que sei”, disse eu, pois aquele caso muito me interessava, “são sempre jovens inexperientes, retiradas dos prostíbulos nos quais trabalham com atendimentos particulares. As carruagens de aluguel são interceptadas, os cocheiros sedados por uma misteriosa figura mascarada, e as mulheres são levadas para nunca mais retornar.”

“Alguns jornalistas estão associando os crimes ao que têm sido noticiado em Inglaterra”, disse Basílio.

“Sobre o Estripador?”, perguntou Louison.

“Sim, ele mesmo. E, obviamente, os pasquins descrevem esses desaparecimentos de forma ambígua, afinal… são mulheres e putas. Quem sentirá falta delas, não é mesmo?”, disse eu. Acendi mais um cigarro para acalmar meus nervos e aquiescer minha revolta.

A noite terminou alguns minutos depois, após pedirmos a conta e nos despedirmos de Basílio.

Tomamos uma carruagem mecanizada, uma das novas febres daqueles dias de modernosas novidades eletrostáticas, e informamos ao robótico o endereço do sobrado de Louison. Naquela noite, eu o faria companhia.

A tardinha de estimulantes conversas e provocações indiscretas nos deixou prontos um para o outro. Nossas roupas e nossos espíritos não ofereceram resistência após fecharmos sua porta. Ficamos em seu gabinete e nos amamos no tapete do recinto, em meio a pilhas de livros de medicina e poesia e de seus cadernos de desenho.

Depois de nos entregarmos ao corpo e ao prazer um do outro, famintos e sedentos como sempre, com nossas peles suadas ainda plenas do gosto do nosso desejo, fitei seu rosto na escuridão, enquanto o movimento das chamas das velas brincava com a luz dos seus olhos.

“Eu não consigo esquecer essas jovens desaparecidas”, disse eu.

“Nem eu, meu bem. Tenho conversado com Solfiere e Revocato sobre esse fato e tantos outros que têm atormentado a todos nós. Temos debatido seriamente sobre o que poderíamos fazer para confrontar esses crimes, que providências poderíamos tomar, que ações deveríamos empreender…”

“Por que não criam uma sociedade secreta, ou então um grupo de justiceiros mascarados, para proteger aqueles que não têm nem voz nem meios para se proteger?”, sugeri, quase como galhofa, tentando alterar o rumo daquela conversa para não findarmos a noite debatendo apenas a morbidez dos desaparecimentos.

“Eu gostei da ideia”, disse Louison, sorrindo. “Prometo que vou pensar nela com bastante cuidado. Mas agora, meu querido, acho que precisamos retornar ao principal assunto desta noite”, arrematou, acariciando meu pescoço e voltando a comunicar com os lábios que seu ardor ainda não estava satisfeito.

Depois de procurar por meu desejo e cuidadosamente despertá-lo, nos entregamos mais uma vez aos nossos corpos, dedicando o ardor dos lábios e a urgência das mãos à busca dos secretos territórios um do outro.

Somente depois da sinfonia dos nossos gemidos e pedidos silenciar de vez é que, vencidos, quedamos em definitivo, esgotados e extasiados, satisfeitos e exauridos, completos e repletos um no outro.

Louison caiu no sono, doce e profundamente, como costumava fazer depois dos nossos encontros.

Quanto a mim, o descanso não veio. Por mais que meu corpo estivesse exausto, meu espírito continuava inquieto com o mistério das mulheres desaparecidas.

Que sorte abjeta de homem poderia pôr fim àquelas vidas?

Na noite seguinte, sem eu saber, começaria a obter algumas respostas.

A imagem em preto e branco, com os traços do lápis nítido, mostra quatro pessoas em uma mesa: três são homens brancos, com aparência de serem de meia idade ou idosos. A quarta é a pessoa da capa, de pele negra clara, cabelo encaracolado, bigode e roupa social. Eles estão conversando enquanto bebem vinho.

III

Porto Alegre dos Amantes, 9 de setembro de 1892

Do Noitário de Dante D’Augustine

A noite acabara de cair no Clube de Cavalheiros do bairro Moinhos da Ventania, com casais ricos e grupos de jovens mancebos ocupando as ruas chiques e os prédios requintados. Matagal ficava ali perto, mas era uma cercania totalmente diferente. Pela cor de minha pele e condição social, evitava aquelas avenidas largas e seus grandes salões e discriminações.

Não demorei a encontrar o clube. Seu hall era em tudo sóbrio e requintado, com móveis europeus e atmosfera patriarcal, dos quadros que expunham nus femininos aos tapetes de pele de onça. Nas paredes, entre as telas, cabeças de feras empalhadas exemplificavam o brio exibicionista daqueles machos.

Quando deixei meu chapéu e sobretudo na recepção, pois fazia frio naquela noite, o serviçal olhou-me da cabeça aos pés, não acostumado a receber negros em seu estabelecimento, e apenas deu-me acesso ao recinto após ir checar duas vezes com Freitas se era eu mesmo quem esperavam para a reunião da noite.

“Não me entendas mal, caro Dante”, disse o homem que me convidara até ali, envolto na névoa fedorenta do charuto, “velhos hábitos demoram a morrer. Mas fique tranquilo, pois estás diante de homens modernos e esclarecidos, que sabem reconhecer seu valor, apesar de sua cor.”

“Apesar de minha cor, Senhor Freitas?” disse eu, sentando-me sem cerimônias entre os velhacos do clube, todos igualmente desconfortáveis por minha presença e ao mesmo tempo interessados em conhecer o escritor que “tomara Porto Alegre dos Amantes de assalto” com seus escritos.

“Deixe eu apresentar nossa confraria, antes de adentrarmos no assunto da noite, senhor Dante”, arrematou Freitas, ignorando o desconforto da minha pergunta e também a petulância da minha pose. Eu não era dado a arroubos de orgulho, mas entre aqueles anciãos, tornei-me outra coisa. Como talvez um dia venha a revelar ao mundo, tinha uma vasta experiência com homens daquela cepa: velhos cheios de dinheiro nos bolsos, banhas na cintura e erradas ideias na cachola.

Eram seis ao total. Além de Freitas, havia ali um positivista, dois comerciantes, um jornalista — o mais desajeitado do bando — e outros desocupados que advinham de famílias sem dúvida endinheiradas, do tipo “Sou dos Freitas de Lajeado”. Respirando fundo, supliquei aos deuses por paciência. No fundo do salão semivazio, três músicos de câmara tocavam, meio sonolentos, dois violinos e um piano desafinado.

Germano Ataíde, um magricela geriátrico que emparelhava de idade com Freitas e que tinha traços exagerados, disse que ganhara Crimes crassos de sua esposa.

“Ora, a criatura quase nunca fala… felizmente…”, sua voz macilenta e aguda era interrompida por risinhos ensebados, “mas numa noite em que me mostrei paciente com a bichinha, ela me deu seu livro, senhor Dante. Eu, que não sou homem de livros e sim de trabalho, dei uma chance a ele. Para a minha surpresa, que alta literatura tinha diante de mim… Que estilo belicoso… Que trama engenhosa… Que homem aquele inspetor, o Apolinário.”

Assenti, enquanto olhava os outros integrantes daquele grêmio. De todos eles, o único que parecia menos desinteressante era Joaquino Dutra, um comerciante de meia idade que, pelo corte do casaco e pelo porte elegante, me lembrava Louison.

“Fui eu que introduzi sua literatura ao nosso pequeno grupo. Podes me agradecer depois”, arrematou Ataíde, não escondendo o orgulho.

“Podes deixar, Senhor Germano. Haverá certamente um agradecimento posterior ao senhor. Mas senhores, podemos ir direto ao ponto? Por mais que tenham apreciado as aventuras de Apolinário, certamente não foi o simples interesse por elas que me trouxe à sua… nobre… presença”.

“Temos interesse em novos talentos”, respondeu Dutra, tomando a liderança da reunião. Sua voz era sombria e grave, pausada e bem articulada. Destoava daquele grupo de preguiçosos engomadinhos, apesar de até agora ele não ter demonstrado ser muito diferente deles quanto às ideias. “O Senhor insuflou em sua literatura uma profunda compreensão da mente e do comportamento humano. Nossa pequena camarilha é bem tradicional, tradicionalista até, para fazer jus às nossas opiniões e aos nossos hábitos. Também por isso, carecemos de mentes que possam nos introduzir na modernidade, e por isso pensamos em convidá-lo a integrar nossa agremiação: a Sociedade da Aurora Negra!”, disse ele, com postura de um retórico romano.

Ri espontaneamente do absurdo do convite. Eles queriam me matar de tédio aos vinte e poucos anos de idade? Seus olhares ofendidos me fizeram retroceder de minha empáfia e escolher bem as próximas palavras.

“Senhores, fico lisonjeado pelo interesse em mim e em minha obra, e também pelo generoso convite, mas acho que pouco contribuiria com seu sofisticado grupo. Não me entendam mal: não sou dado a falsas modéstias, mas não sou rico e nem pertenço, obviamente, à nobreza local. Ao contrário. Sou um escritor e esteta que mora num estúdio alugado. Não vejo de que modo poderia fazer parte deste grupo, nem o que ganharia com isso.”

“Como disse, Dante — posso chamá-lo pelo primeiro nome, não? —, sua perspicácia literária é o que prezamos,” afirmou Dutra. “Além disso, com sua entrada em nosso grupo, teríamos um cronista que registraria nossos feitos para a posteridade”. Um choque elétrico escalou minha espinha ao ouvi-lo. “E quanto ao que você ganharia com isso…? Justamente, meu jovem. Somos homens ricos e poderosos, de grande influência em Porto Alegre, e poderíamos garantir que seus dias de miséria fiquem no passado.”

Aquela patuscada era muito mais do que poderia suportar.

“Veja bem, Senhor Dutra,” respondi, ficando em pé no meio deles e apagando a cigarrilha com firmeza no cinzeiro prateado da mesa de centro. “Eu nunca disse que me ressentia de minha vida espartana ou de minhas origens. Bem longe disso. Não confunda um não apego ao ouro e aos títulos com miserabilidade. Ademais, minha arte não está à venda. Novamente, por mais que eu agradeça seu interesse, acho que não temos mais a tratar”.

Um dos homens sussurrou um “Negrinho orgulhoso esse, não?” ao comparsa sonolento e esfatiado ao lado. Antes que eu pulasse sobre ele, Freitas tomou a palavra, tentando salvar a situação.

“Senhor D’Augustine, pense bem na resposta. Não gostaríamos que o senhor se arrependesse futuramente dessa nada saudável recusa, nem dessa pouco sábia ofensa diante de leitores que estão aqui, suplicando por seu aceite.”

Respirei fundo e diminuí o ímpeto dentro de mim que ordenava um altissonante “Vão cagar no mato!” àqueles homens. Mas, se eu entendia bem, passavam do convite à ameaça. Sim, havia algo de bastante suspeito e intrigante naqueles calhordas.

“Ademais”, disse Dutra, dando dois passos em minha direção, “o que interessa a um escritor se não experiência? Há várias delas que podemos proporcionar ao senhor, entre elas a deliciosa sensação que o senhor tão bem descreve em seu conto ‘Do assassinato como bela arte e da tortura como banquete dos sentidos’”.

Quereria aquilo dizer o que eu achava que dizia?

Aquele conto era sobre um criminoso sádico que aprisionara, torturara e assassinara seis mulheres de sua família até ser encontrado e preso por Apolinário. E enquanto pensava naquilo, a revelação me impactou com grande violência: estaria o Matador de Cocotes se inspirando em Crimes crassos? E mais: estaria ele entre aqueles bem nascidos homens de família e renome?

Retirei minha máscara de escritor com personalidade e a substitui por outra, a do jovem artista que agora tinha sido tentado e que se encontrava seduzido pela oferta.

“Proposta atraente, Senhor Dutra”, afirmei.

“Joaquino, por favor. Já o consideramos um amigo, meu caro Dante.” O homem agora me oferecia um de seus cigarros finos, chamando o garçom e pedindo uma taça do mesmo conhaque que bebia. “Por favor, sente-se.”

Eu lhe dei um sorriso e assenti.

“Então me digam, caros senhores, o que devo fazer para prover aos senhores uma adequada voz literária aos seus feitos e conquistas?”

“Saberás na hora certa, meu caro”, disse Freitas. “Temos então seu aceite ao nosso convite?”

“Sim, podem ter a certeza de que o tem”, respondi, antes de me entregar à conversa tola e fútil das duas horas seguintes, exceto nos momentos em que Dutra me puxava para um canto para questionar-me sobre os mistérios da literatura e da minha ficção.

O que eu descobriria daquele misterioso cavalheiro e de seus mesquinhos companheiros? E ainda mais, quais seriam as “deliciosas sensações” que estariam eles dispostos a me proporcionar no transcurso daquele drama que acabara de ofertar seu estimulante e enigmático primeiro ato?

IV

Porto Alegre dos Amantes, 13 de setembro de 1892

Do Noitário de Dante D’Augustine

Para um escritor, personagens ficcionais são amigos imaginários.

Você acorda com eles. Você dorme com eles. Você conversa com eles. Questiona-os sobre a vida, a paixão e a morte. E caso você tenha boa imaginação ou simplesmente sorte, eles podem até responder. Mas tais heróis e heroínas são também caprichosos. Aparecem só quando querem e muitas vezes surgem sem avisar, nem sempre respondendo a qualquer convite. Sou um escritor de mistérios e horrores, e o porquê desse tipo de gênero captar minha atenção é ainda um enigma para mim mesmo.

Minhas primeiras experiências literárias foram aquelas da dor e do sofrimento, presentes nos nove círculos infernais criados pelo poeta de quem roubei a alcunha. Como minha biografia é ela mesma perpassada de agruras terríveis e funduras inominadas, foi natural que minhas histórias objetivassem o mesmo pano de fundo: se o medo é o sentimento mais primitivo e mais impactante, a onipresente sensação que nos acompanha do nascimento à finitude, por que não o usar para contar histórias? Ainda mais: por que não o usar para mapear o que há de mais selvagem na natureza humana?

Foi com esse intuito que eu criei meu herói, o detetive místico, o investigador criminalista, o filósofo humanista Apolinário Terra. Profundamente inspirado pelo soberbo delegado inglês da Scotland Yard, cuja biografia não autorizada está entre minhas leituras favoritas, Apolinário é um homem moderno e sofisticado, um cavalheiro admirável e inteligente vivendo entre monstros sociais, párias criminais e nobres decadentes.

Às vezes escuto Apolinário sussurrar segredos em meu ouvido, ou então os gritos das vítimas que fiz meus vilões abjetos assassinarem nas páginas dos meus escritos. Há um fascínio em cotejar a morte e, como um ser de imaginação, nunca deixo de aproveitá-lo, seja para minhas próprias perscrutações a respeito de meu passado obscuro, seja para criar histórias divertidas ou bizarras.

Mas por que estou fazendo este desvio da minha narrativa? A razão disso, querida leitora, é que tu precisas saber quem é o narrador desta aventura e também compreender o porquê de eu ter alterado meu objetivo quanto ao convite e à companhia dos biltres da Sociedade da Aurora Negra.

Havia algo de pérfido e fedorento entre aqueles senhores, e sua fascinação pelo aspecto sombrio das minhas estórias só intensificou minhas suspeitas. Ainda mais, se elas estivessem corretas — e eu raramente me engano quanto à ficção ou às pessoas —, haveria uma relação entre os hábitos noturnos daqueles homens e o Matador de Cocotes, o assassino que há meses estava atacando jovens prostitutas de Porto Alegre.

Nas semanas seguintes, continuei participando das reuniões da Sociedade, despendendo uma dose extra de paciência com seus assuntos entediantes, suas defasadas posições monárquicas e sua intragável misoginia paternalista. Quando não vilipendiavam suas mulheres, filhas ou amantes, lançavam reprimendas às feministas, a grande praga da modernidade, diziam eles.

Foi quando Joaquino Dutra informou-me, no final de uma noite regada a vinho, cigarro e rapé, que minha iniciação à sua secreta confraria começaria em alguns dias.

A partir dali, comecei a receber misteriosas cartas anônimas que ofertavam enigmas literários, questões esotéricas ambíguas e obscuras charadas cabalísticas. Nelas, não raro, desenhos de figuras femininas em posições de dominação e aprisionamento maculavam as margens do papel requintado, revirando meu estômago e fervendo meu espírito. Que tipo de ritual estariam pensando em executar?

Ao informar minhas suspeitas a Louison e a Solfieri de Azevedo, um dos amigos do meu parceiro e ele mesmo um investigador de assuntos arcanos, ambos concordaram que havia algo de suspeito em tudo aquilo.

Solfieri parecia ter dezesseis anos ou menos: era um mancebo magro, de pele pálida e macilenta, com cabelos negros e longos que brincavam com ressequidos olhos cinzentos. Vestia roupas fora de moda e falava num português de décadas atrás, revestindo sua personalidade e sua postura de modo a produzir igualmente atração e repúdio. Eu, que tinha por meta existencial viver entre homens e mulheres que mais pareciam personagens literários do que seres reais, adorei-o de imediato.

Louison o conhecia havia cinco anos, o que para mim já parecia um imenso absurdo, dada a pouca idade do sujeito. Porém, no ano anterior, numa noite de prazer e fervor, quando estávamos nus e entregues ao torpor do gozo e ao vinho argentino que ele escolhera para nosso aniversário amoroso, Louison contou-me que Solfieri dizia ter nascido há mais de sessenta anos, o que me fez rir alto no meio da madrugada.

Real ou imaginada, adorei a história, deixando as certezas materiais para outros contextos.

Agora, ele próprio ofertava ajuda com aquele caso. Como grande especialista em tavernas imundas, prostíbulos questionáveis e ruelas criminosas, em meio àquela cidade condenada, Solfieri havia tempos investigava os crimes contra as damas noturnas.

Agora, seu auxílio e suas áreas de especialidade — a magia, o crime e o Diabo — eram solicitados.

Depois de vários dias de intrincados jogos arcanos, finalmente eu recebera o convite para o ritual de iniciação, em lugar e hora a serem futuramente acordados. Haveria, porém, um preço: eu deveria providenciar uma vítima expiatória adequada. Ela deveria ser jovem, inexperiente e condenada aos prazeres noturnos.

“Uma fêmea da qual não sentirão falta”, dizia o imundo convite.

Minha resposta aos “Admiráveis Senhores” foi um cordial e enfático “Aceito, mal podendo aguardar a oportunidade de vos mostrar minha consideração por seus sacros rituais”.

Odiei o amargor em minha língua enquanto escrevia aquelas palavras.

O plano seria o seguinte: Solfieri iria indicar-me uma de suas amigas noturnas, Rebeca, uma jovem que seria capaz de proteger a si própria e não quedar diante da violência ou da força daqueles homens caso as coisas saíssem do controle. Solfieri, por sua vez, iria disfarçar-se de cocheiro e nos levaria ao lugar acordado. Apesar de sua experiência em assuntos daquela sorte e do próprio interesse em ajudar-nos, pedi a ele que não agisse além do seu disfarce.

“Indiferente dos riscos envolvidos, preciso resolver isso sozinho”, ordenei, não deixando espaço para debates ou discussões. Experiente como era e já ciente dos segredos que guardava preso ao meu peito, segredos relacionados também a outras partes de meu corpo, ele assentiu.

A mesma reação obtive de Louison, não esperando dele qualquer contrarreação.

Ele também se preocupava com o que aconteceria naquela noite, mas compreendia a minha necessidade de resolver aquele assunto com minhas próprias mãos. Tratava-se de uma questão de honra.

Seu auxílio nos preparativos, por outro lado, foi inestimável. Louison deu-me uma sofisticada fórmula química, depositada num discreto frasco de cristal, que levaria meus inimigos ao adormecimento instantâneo.

Eu e Rebeca deveríamos chegar à sede da Aurora Negra e convencer àqueles homens de que eu estava mais que disposto ao ritual de sangue que haviam exigido. Rebeca seria subjugada, não sem antes resistir e permitir-me poluir as bebidas dos homens com a fórmula entorpecente até que a polícia lá chegasse. Tudo correndo bem, deveríamos sair às escondidas, deixando os criminosos rodeados das evidências de seus crimes, fazendo com que até o mais corrupto policial tivesse a obrigação de indiciá-los.

Ao menos esse era o plano que eu tinha articulado com Louison e Solfieri — mas, se a verdade viesse à tona e eu encontrasse entre aqueles homens o assassino das prostitutas, aquele não seria exatamente o destino dele e dos seus eventuais cúmplices. Guardei esses desejos assassinos apenas para mim, porém, não os revelando nem aos meus amigos nem a Rebeca, que acompanhava a tudo profundamente interessada.

Não era uma dama educada, nem refinada, mas tratava-se de uma mulher forte e inteligente, que aprendera na noite o que muitos sabiam apenas dos livros e das salas de aula. Além disso, perdera duas amigas nas semanas anteriores — tinha assim, ainda mais do que eu, motivos pessoais para buscar vingança.

Ela entendia-me, e suspeitava que teria uma parceira adequada caso minha desconfiança fosse confirmada e eu encontrasse entre aqueles anciãos o responsável pela morte das damas noturnas.

Há bestas feras que não podem ser condenadas e aprisionadas, e eu aprendera isso do pior modo, em meio a pesadelos que escondiam e revelavam fragmentos esparsos das desgraças da minha infância.

Depois de seis dias de preparativos físicos e psicológicos, a grande noite chegou.

Desnecessário dizer, cara leitora, que ela transcorreu de um modo totalmente inesperado, com segredos infames de morte, sangue e sexo, colocando abaixo nossos heroicos planejamentos.

A imagem em preto e branco, com os traços do lápis nítido, mostra duas pessoas (as pessoas da capa) sentadas dentro de uma carruagem. A da esquerda é uma mulher branca, de vestido de gala e cabelos arrumados. A da direita veste camisa, um casaco de peles, gravata, e está com uma expressão meio desconfiada.

V

Porto Alegre dos Amantes, 19 de setembro de 1892

Do Noitário de Dante D’Augustine

Solfieri, praticamente irreconhecível como um carcomido cocheiro de enseada, nos levaria ao clube do Moinhos para uma noite que, aos olhos de todos, prometia ser um perverso festejo de sete homens e uma acompanhante num nada silencioso cômodo privado. O aluguel em prata garantiria discrição sepulcral.

Suspeitávamos que o ritual iniciativo e o sacrifício, caso ocorresse, não aconteceria ali, e sim num lugar distante. Assim, acordamos que Solfieri nos aguardaria e nos seguiria a uma distância segura caso qualquer inconveniente ocorresse. Tanto ele quanto Louison insistiram que eu deveria levar comigo um comunicador eletrostático para avisá-los de qualquer problema — mas eu, cegado por um orgulho que crescera em mim impetuoso e rude, sobretudo depois das semanas de convivência com os homens daquela camarilha desprezível, não queria que ninguém me salvasse ou auxiliasse. Eu mesmo queria dar conta daquela sociedade e descobrir se nela estava o Matador de Cocotes.

Além disso, Rebeca não era uma mocinha indefesa. Revelou-me, por exemplo, que tinha em seu suntuoso e negro vestido noturno dois suportes escondidos nos quais aguardavam lâminas finas e afiadas, bem como um pequenino compartimento em seu leque que continha pó de pimenta. Para finalizar, a carteira de rapé encerrava em dos lados um veneno mortífero para casos extremos, disfarçado da deliciosa poeira aromática, um agrado que os homens nunca recusavam, não antes do coito pago.

“Uma jovem dama noturna deve saber se cuidar, não?”, disse ela, enquanto ajustava o laço de seda avermelhada que marcava a bela cintura.

Eu olhava pra ela não disfarçando minha admiração e também meu desejo por seu cabelo negro e comprido e seus olhos de espanhola, misteriosos e imensos, emoldurados por cílios longos e pintados.

Eu e Louison, que não nos encaixávamos nos conceitos monológicos da sexualidade e do erotismo, quedamos fascinados por seu porte de falsa madame. Mas aquela noite de preparativos não terminaria em desejo saciado, e sim num diálogo triste senão taciturno entre eu e meu querido.

“Tu entendes o porquê de eu recusar tua ajuda?”, perguntei.

“Sim, entendo. Mesmo assim me ressinto, pois sabes que tais ponderações não deveriam ser importantes, não entre nós”, falou suavemente, para em seguida puxar com força minha gravata e beijar meus lábios.

“Tu uma vez contaste-me que em tua juventude, logo depois da partida do querido avô, precisavas testar teus limites e provardes a ti próprio, sozinho, com todos os perigos do mundo. Nesta noite, Antoine, é isso que eu preciso fazer”, respondi, devolvendo-lhe o beijo, seguido de uma pequena mordiscada em seu lábio inferior, algo que sempre o despertava para mim.

“Toma cuidado. São grandes os perigos da noite e do mundo, e eu não suportaria perder-te.”

“E tu não me perderás”, respondi, deixando-o sozinho em direção ao destino que me aguardava.

Ao meu lado, a bela cocote enlaçou meu magro braço e seguimos para o encontro fatal na companhia do cocheiro disfarçado que levaria nossa carruagem até o local do encontro.

Quando chegamos ao clube e fomos encaminhados ao salão particular, entendi de pronto que o auxílio de Solfieri seria inútil. Diferente do que imaginamos, aquele era o covil da pretensa Sociedade da Autora Negra.

No meio do cômodo, cujos tapete e mesa central tinham sido colocados ao lado, havia uma escadaria que dava acesso aos subterrâneos da terra.

Estaria eu enganado? Será que o assassino que buscávamos não estava entre aqueles homens? Ora, o criminoso tinha um modus operandi específico, raptando as jovens meretrizes após imobilizar os cocheiros. Ao menos era isso que os jornais noticiavam. A menos que… os jornais noticiassem o que eram pagos para noticiar!

Disfarçando minha reflexão com uma máscara de semelhante surpresa e fascínio, voltei minha atenção a Rebeca, dando-lhe um “Fique calma, querida, estes homens são verdadeiros cavalheiros”, seguido de uma leve carícia em seu queixo e de um beijo em seus lábios.

Ela, como havíamos combinado e ensaiado, fingiu surpresa e certo receio, mas logo deixou os biltres à vontade.

“Isso não foi o combinado. Terão de me pagar pelo número de homens que aqui estão.”

Meu estômago revirou com aquilo. Apesar do fingimento, fiquei me perguntando por quantas situações similares Rebeca passara. Como mulher experiente que era, ela sabia que nada excitava mais respeitáveis cavalheiros do que medo e fragilidade. Levar a situação mórbida para a seara das negociatas era a forma mais simples de manter a sobriedade e certo nível de dignidade.

“Ora essa, cara dama”, disse Freitas, com cinismo ao pronunciar o último termo, “prometo que receberás a compensação devida. Apenas venha conosco”, completou, indicando a escadaria secreta e descendo por ela.

Rebeca o seguiu e os outros homens também. Eu e Dutra ficamos por último.

“Estás pronto para realizar tuas fantasias, caro Dante?”

“De quais fantasias falas?”, perguntei.

“Ora, teus contos estão repletos de cenas de tortura, dominação e assassinato. Eis a razão da nossa grande admiração por tua obra. Certamente o que fizeste em tua ficção alude a desejos ainda não realizados, apenas concebidos no espaço da tua imaginação. Pois bem… nesta noite, nós te daremos a oportunidade de realizar cada um desses desejos e ainda outros.”

“Mal posso esperar”, falei.

E foi assim que descemos, com os passos ecoando na pedraria escura, em direção ao inferno.

VI

Porto Alegre dos Amantes, 20 de setembro de 1892

Do Noitário de Dante D’Augustine

Quando cheguei ao fim da escadaria pedregosa, encontrei o fétido cômodo iluminado por uma infinidade de velas. Os homens que lá se encontravam já cercavam Rebeca. Ela, em alerta e seguindo o script acordado, começava a fingir súplica e desespero.

Num átimo, meus olhos alcançaram as correntes reforçadas e os diferentes objetos pontiagudos, metálicas artesanias de dor e tortura. No chão úmido e frio, jogados ao lado, descartados como lixo ou restolho, jaziam farrapos de vestidos em meio à sujeira e outros detritos. E, como seria de se esperar, sangue.

Sangue entre as pedras que formavam o calabouço, sangue que se misturava à ferrugem das correntes, sangue ressequido tombado sobre os vestígios silenciosos da lasciva e da violência.

Demorei a perceber que a podridão que irritava minhas narinas vinha do sangue humano misturado a sêmen. O que acontecera ali? Que imagens hediondas minha mente de criador de horrores ficcionais poderia conceber entre os vestígios do que a perfídia humana ali empreendera?

Ecos de um semelhante terror passado brincavam com a minha memória, com gritos de vozes familiares que me chegavam aos ouvidos entrecortados de gargalhadas e vis cantorias.

Fechei a mente àquelas imagens, aprisionadas nas celas da minha memória imperfeita e infantil, e me concentrei nas dores e pavores produzidos entre as paredes do calabouço presente.

“Bem-vindos ao palácio da Aurora Negra!”, anunciou Dutra, atrás de mim.

Não haveria espaço para venenos ou poções, para delicadezas disfarçadas de requintadas carteiras de rapé ou mesmo para tramoias disfarçadas de falsas concordâncias. Todos eles eram os responsáveis por aquilo. Não havia inocentes ali, e eu bem sabia que o ódio crescendo em meu peito desejava levá-los à morte.

O voraz repúdio àquela imundície humana exigia ação imediata.

“Rebeca! Agora!”, gritei, avivando também os meus membros.

Em segundos, as lâminas que estavam escondidas no vestido de Rebeca estavam em suas mãos, e em seguida nos peitos de dois dos anciãos.

Empurrei Dutra contra a parede, estourando sua cabeça contra as pedras nuas.

Enquanto despencava, mesclando sangue fresco ao ressequido, corri em direção a Freitas e ao outro calhorda que estava ao lado dele, também dando conta de ambos.

Os velhos mal acreditavam naquilo, tendo os membros flácidos e a mente entorpecida de vinho. Caíram aos meus pés, semiconscientes.

Rebeca cuidou dos outros dois, empurrando o primeiro e sangrando seu pescoço com o salto fino da bota. O outro, que se levantava, foi empurrado para longe, despencando sobre a mesa onde praticavam seus crimes.

A vantagem daqueles varões sobre as vítimas estava em sua superioridade numérica e no medo de suas presas encurraladas. Ao tirar-lhes tal vantagem substituindo-a por ação e violência, nós saímos na frente.

Em segundos os prendemos às correntes. Enquanto recuperávamos o fôlego, debatemos o que iríamos fazer. O plano original era entregá-los à polícia, mas mesmo eu tinha dúvidas sobre isso.

“Polícia?”, expressou Rebeca, contrariada. “Pra quê? Para eles serem liberados depois de algumas horas? Para que possam voltar a celas sangrentas como esta, para matar mulheres como Mariana e Firmina?”

Ela tinha razão, e eu não conseguia pensar em nenhuma alternativa à resolução daquela história.

“Rebeca, nós não podemos,” falei, tentando encontrar qualquer solução que não incluísse assassinato. “Matar esses homens nos tornaria iguais a eles! Vamos chamar os jornais, vamos chamar outras pessoas, Louison e Solfieri, e então tornar estes crimes tão públicos que ninguém poderia ignorá-los, de modo que…”

Foi quando ouvimos o início de uma risada medonha, que cresceu pequena e discreta até estourar num riso aberto e esgaçado que saltava dos lábios de Dutra.

Seu ferimento não fora fatal. Sentado no chão, levava uma mão ao machucado que ainda sangrava, enquanto a outra, possivelmente inutilizada, jazia vencida sobre o chão de pedra. Acima dele, a mancha do próprio sangue criava o inquietante efeito de uma rubra forca que desaparecia como um espectro atrás de sua cabeça.

“Falaram o preto e a puta!”, disse. “Certamente, a boa família gaúcha e também a gente de bem de todo o Brasil vão prestar atenção ao que o escritorzinho negro e a vadia metida à dama têm a dizer!”. Entre soluços e tosses e cuspes de sangue e saliva, sua fala foi seguida de mais risadas.

Quem eu queria enganar com minhas frágeis esperanças de justiça e correta retribuição?

Rebeca pulou sobre ele e segurou seus cabelos com violência, prestes a terminar o serviço que eu havia começado, mas Dutra feriu seu flanco direito com uma lâmina que trazia escondida na manga do casaco.

“Quem matará quem, sua vagabunda!?”, disse, antes que eu puxasse Rebeca em minha direção. A lâmina ficara cravada em seu corpo. Eu me pus em pé diante dele e chutei-lhe o rosto, fazendo cuspir dentes e mais sangue. “Me mate, negro! Não vou gritar, nem gemer, nem urrar como as putas fizeram!”

“Por que fizeram isso?”, gritava Rebeca, enquanto as lágrimas escorriam pela face, a mão sobre a lâmina que tinha em seu corpo.

“Não mexa nela, Rebeca. Ela irá conter o sangramento…”, disse eu, sendo interrompido pelo biltre.

“Queres saber por que fizemos o que fizemos? Porque podíamos, porque queríamos, porque as tínhamos sob o nosso comando, sob o nosso controle, porque podíamos fazer com elas o que…”

Eu novamente explodi meu sapato em sua dentição, agora calando o desgraçado.

O homem tossiu mais sangue, dentes e vômito, afogando-se em bile.

Olhei para Rebeca e encarei seus belos e tristes olhos escuros.

“Chega disso, querida”, falei-lhe. “Nós não precisamos disso. Não precisamos de mais discursos exaltados e odientos, de mais palavras de escárnio e ódio. Não precisamos de mais descrições funestas do que eles fizeram com essas jovens. Do que eles fizeram conosco.”

Dutra olhou-me com desdém e conseguiu ainda pronunciar um mórbido “Conosco?”, antes de voltar ao seu tossir mesclado a riso e choro.

“Sim, conosco”. Eu me aproximei dele, ficando a centímetros de seu rosto esfacelado. “Não existe Dante D’Augustine, Senhor Dutra.”

Ele fitou-me sem entender o que aquelas palavras significavam.

Depois de tanto tempo, havia chegado a hora de revelar a verdade. A ele, a Rebeca e também a mim mesma.

Retirei o bigode postiço e a gravata fina, abrindo em seguida os três primeiros botões da camisa imunda.

“D’Augustine nunca existiu, exceto nas páginas da minha literatura e da ficção que era minha vida. A única que existiu foi uma mulher machucada e ferida demais. Uma mulher anônima que chegou a esta cidade sem família, sem passado, sem lembranças, mas que desejava muitas coisas da vida, da arte, das estórias… Uma mulher não disposta a se rebaixar a uma sociedade que não aceitava nem sua raça nem seu sexo.”

Para Rebeca, aquilo não foi uma completa surpresa.

Naquele momento, outros dois homens, entre eles Freitas, voltaram à consciência, ainda a tempo de assistirem ao drama que se desenrolava nas sombras daquele palco subterrâneo.

“E não, Dutra”, continuei, “não escrevi o que escrevi por ansiar pelos crimes que tanto detalhei. Ao contrário, eu os escrevi para expurgá-lo da mente, da memória, da imaginação!”

Olhei ao redor, atendo-me às lágrimas de Rebeca e desejando beijá-las, como se meu beijo pudesse sugar também sua dor, seu luto, seus gritos e seus gemidos nas várias noites passadas naquela cidade de amantes e putas, naquela capital de dor e gemidos.

Era chegado o momento de encerrar a cena.

Peguei uma das lâminas que Rebeca jogara contra um dos homens e me aproximei de Dutra, para em seguida cravar lentamente o metal afiado em seu coração, enviando-o para os braços da morte com uma rapidez que ele não merecia. Mas eu sim.

Freitas e o outro homem começaram a gritar por socorro. Silenciei o segundo como fizera com Dutra, deixando apenas o velho ancião para responder nossas últimas perguntas. Enquanto isso, Rebeca enxugava suas lágrimas e testemunhava a ficção de Dante D’Augustine transmutar-se.

“O Matador de Cocotes… eram vocês?”

“Sim, éramos”, disse o homem, desviando o olhar do comparsa que acabara de expirar. “Foi ideia deles, de todos eles, fui apenas uma vítima. Eu apenas assistia, eu apenas…”, disse o velho, para logo depois começar a chorar. Ordenei que parasse. Sua covardia apenas fervia meu sangue.

“Vocês compraram os jornalistas e os policiais para produzirem falsas matérias e mentirosos relatórios?”

“Sim… e depois nos reuníamos para ler as matérias sobre a zona portuária e outros falsos detalhes que nada tinham a ver com este lugar. Quem não era comprado com ouro, era comprado com ameaças. Foi Dutra quem pensou que Dante — que você! — poderia ser nosso escrivão, nosso memorialista… Foi ele…”

Findei-o, não me dando dessa vez ao trabalho de retirar a lâmina de seu peito. Voltei a Rebeca e juntas miramos aquela mórbida e justa chacina.

Abotoei minha camisa. Ajustei a gravata e coloquei o falso bigode, novamente travestindo-me de Dante D’Augustine. Ajudei Rebeca a levantar-se, instruindo-a segurar a lâmina com firmeza.

“É preciso que tu ignores o ferimento, querida. Eu sei que conseguirás”, disse a ela, deixando seu manto cair sobre o braço e o ferimento e ajudando-a a iniciar a caminhada que nos levaria para cima, para a noite, para longe dali. “Concentre-se em tua força e em dias melhores e não tenhas medo. Eu estou ao teu lado.”

Deixamos o ínfero buraco com a dignidade que aquelas pedras desconheciam. Antes de ascendermos, lembrei-lhe de que não poderíamos comunicar em nossa saída qualquer estranheza.

Assim, enxugamos as lágrimas, ajustamos a postura e deixamos o clube masculino que sediava a Sociedade da Aurora Negra. Éramos agora um digno casal noturno, um negro e uma cocote, párias chamados ali para o prazer de seus finos associados.

Mal sabiam os funcionários que nos observavam que haveríamos de sobrevier aos seus dignos mestres, senhores que jaziam mortos lá embaixo, sepultados com seus crimes.

Solfieri nos esperava, preocupado com a demora.

Fomos levadas por ele ao sobrado Louison, ignorando o movimento das ruas, o vai e vem dos passantes, as luzes dos lampiões ou mesmo o rangido dos robóticos militares que patrulhavam as esquinas suspeitas. Rebeca repousava a cabeça em meu colo, enquanto a mão firme segurava o metal assassino dentro de si.

Depois de entramos na casa, enquanto Louison tratava do ferimento de Rebeca, subi para o estúdio que ele providenciara para mim no segundo andar da residência. Sem atentar a roupas ou a qualquer outra coisa, sentei-me diante do birô e comecei a escrever a carta.

Depois de três horas, com Rebeca já devidamente sedada e adormecida, desci segurando seis cópias do escrito. Meus dois amigos estavam à mesa de jantar, dividindo um destilado e cigarros.

“Por favor, Solfieri, podes fazer-me um último favor?”

Sem outras palavras, ele pegou os papeis e deixou-nos.

“Uma drinque, meu caro?”, perguntou-me Louison, delicadamente.

Foi quando me dei conta de que ainda estava vestindo as roupas de meu companheiro de anos, do escritor negro que pegara a capital porto-alegrense de assalto dois anos antes.

Jogando bigode e gravata sobre a mesa, lhe disse que Dante não estava disposto, não depois de tudo aquilo, não naquele horário, quando a madrugada tardia já anunciava a aurora de um novo dia.

Mas lhe disse que eu iria adorar. E pela primeira vez desde que tínhamos nos conhecido, comuniquei-lhe que estava faminta.

A imagem em preto e branco, com os traços do lápis nítido, mostra uma pessoa vista por trás, encarando o espelho. Ela tem cabelo curto e crespo, pele negra clara e olhos amendoados. O espelho tem alguns recortes de jornais presos nele e é possível ver que a parede ao fundo tem um papel de parede todo adornado.

VII

Porto Alegre dos Amantes, 27 de setembro de 1892

Do Noitário de Dante D’Augustine

Seguindo minhas instruções anônimas, que Solfieri fizera a gentileza de entregar ainda naquela noite, os pasquins chegaram ao clube masculino antes dos jornais respeitáveis, e antes mesmo da polícia.

Aquela cena não poderia ser mascarada ou falseada. Era necessário que a Sociedade da Aurora Negra fosse exposta e que os crimes do Estripador de Cocotes findassem.

Os jornalistas baratos se aproveitariam daquele escândalo durante meses, noticiando tudo o que poderiam ou não sobre o caso, dissecando a vida diurna e noturna dos homens encontrados nos ínferos do clube, que agora estava fechado para “investigações e outras averiguações”.

Quanto ao mistério daquela noite, os atendentes nada disseram, sendo obviamente pagos por outros associados que desejavam manter suas identidades afastadas do escândalo.

A conclusão lógica dos pasquins? Que os assassinos tinham sido surpreendidos por uma “Confraria de Cocotes”, por uma “Liga de Bacantes Insanas” — essas foram as expressões que usaram —, por um grupo de prostitutas enlouquecidas que buscavam vingança. Agora a polícia estava atrás delas, busca que produziu uma caça às bruxas em muitos pardieiros da cidade. Por fim, duas mulheres foram presas e depois liberadas. Não conseguiram encontrar nada. Obviamente.

Semanas de imenso reboliço e protestos transcorreram. De um lado, as “famílias de bem”; de outro, as “damas da noite”. Aquelas queriam justiça aos seus “pobres homens”, enquanto estas queriam justiça pelas vítimas anteriores.

Enquanto eu e Louison acompanhávamos tudo aquilo pelos jornais, outra tempestade formava-se dentro de mim. A mixórdia daqueles eventos desestruturara muitas das minhas certezas.

Dante D’Augustine fora inicialmente uma necessidade, não uma escolha. Como encontrar uma carreira sendo pobre, negra e mulher? Mas agora haveria necessidade de uma mudança completa? Deveria eu me tornar ele ou ela para agradar a uma noção tradicional que não mais me servia? É claro que a liberdade, o ímpeto, a entrega que eu aprendera falando e agindo como um homem naquela sociedade machista me acompanhariam. Ademais, tinha por parceiro e amante um homem que entendia e adorava meus gostos nada usuais.

Mas e quanto aos leitores e leitoras que haviam se vinculado a Dante D’Augustine? Este é um tempo no qual mulheres ainda usam pseudônimos masculinos, vide o caso de George Sand. Estaria o público preparado para uma autora? E mais: estariam eles e elas preparados para uma heroína feminina e feminista que falasse, se vestisse e se portasse com a naturalidade de seus próprios desejos e cujos principais ímpetos não contemplavam o matrimônio e a maternidade? Uma ideia instigante estava se formando dentro de mim.

Se aquela cidade e seus habitantes não estivessem preparados, não importava mais.

Eu estava.

Três dias mais tarde, numa manhã chuvosa, acordei sabendo que não haveria como retornar à velha vida e ao velho nome. Meu estúdio bagunçado, com roupas e adereços masculinos espalhados em desordem, denunciava a vida de um homem e os gostos de um homem. Como reeducar quem eu seria doravante?

Abri o baú de roupas e nele encontrei uma peça mais que adequada. Era um terno de linho claro que eu apreciava e pelo qual já havia sido elogiado. Vesti o casaco sobre uma camisa de seda branca — em vez da fina gravata, transpassei a gola com um lenço claro, cujos detalhes bordados acompanhavam a elegância do tecido.

O bigode não tinha mais sentido, e o cabelo não seria mais preso ou alisado. Eram curtas as minhas madeixas até ali. Mas agora, não haveria mais razão para escondê-las. Um pequeno brilho nos lábios completaram a figura dândina: obviamente uma mulher vestida de forma nada óbvia como homem.

Ao deixar o prédio, vi que meu traje e postura chamaram a atenção de homens e mulheres.

Tomei uma carruagem à frente da Cervejaria Trama e ordenei que ela seguisse até a rua da Praia.

A sede do Crepúsculo, onde eu agendara um pronunciamento à elite gaúcha, ainda como Dante D’Augustine, estava lotado de jornalistas e resenhistas. Pereira Albuquerque, meu editor, estava à minha espera e demorou a ajustar seu olhar à minha nova presença. Sentando à frente, imóvel e sóbrio, elegante e atento, estava Louison. Depois de confirmar a Albuquerque de que estava certa de minha decisão, sentei-me ao seu lado.

“O clima aqui está tenso, não?”, disse Louison.

“Um pouco. E estou adorando,” confessei, tentando ignorar o meu nervosismo.

“Eu imagino, conhecendo-te como te conheço, fascinado pela nova pessoa que estava diante dele. Tive tanto medo de perder seu desejo, seu interesse, sua amizade…

“Isso será um escândalo, não?”, perguntei, já começando a apreciar seu veredito.

“Sim, será. Mas convenhamos, meu bem… esta cidade precisa urgentemente de um, não?”

Rimos um para outro e segurei minha vontade de beijá-lo. Teríamos tempo para isso. E para milhares de outras correspondências de palavras e gestos, toques e prazeres.

“Por favor! Por favor! Sua atenção, senhores!”, proclamou Albuquerque, em cima do pequeno palco e diante de todos, dando início ao evento da manhã. “Em nome da editora O Cubo, eu gostaria de agradecer a presença de todos vocês nesta coletiva de um dos nossos… autores mais importantes. Mas esta não será uma entrevista sobre nosso próximo lançamento ou sobre qualquer assunto ficcional ou literário. Sem mais delongas, deixo-vos com… uma pessoa bem importante. Por favor…”, falou ele, nitidamente sem jeito, dando-me a palavra.

Fiquei em pé e dirigi-me ao lugar em que Albuquerque esteve posicionado. Pedi-lhe com um olhar que tomasse o assento que eu deixara vago, ao lado de Louison. Não precisava de um homem ao meu lado naquele momento. Sobretudo naquele momento.

Diante de mim, os presentes pouco a pouco passaram a me reconhecer, notando que não se tratava de uma mulher que introduziria Dante D’Augustine ou de uma irmã ou parente distante. “O que está acontecendo aqui?”, perguntavam-se boquiabertos uns para os outros.

No fundo do salão, identifiquei o radialista a quem dera uma entrevista mais de um ano antes, e a quem encontraria em algumas semanas para uma nova exclusiva. Plínio Alphonsus mexia negativamente a cabeça, como se não acreditasse no que seus olhos viam.

Senti a boca seca, as palmas das mãos suadas e um leve e irritante tremor nas pernas. Meu peito arfava.

No fundo do salão, tomado por homens e profissionais vestindo monocromáticas roupas sociais, havia apenas outra mulher, que eu rapidamente reconheci. Rebeca estava linda, com um belo vestido de veludo verde escuro e um chapéu que era a seu próprio modo um espetáculo. Já recuperada do ferimento da noite terrível que nós duas dividíramos, ela recebeu de mim um convite especial, assinado de próprio punho.

Meus olhos grudaram-se aos seus, estabelecendo a conexão que eu precisava.

Dela e de mim tirei as forças que me seriam necessárias.

Respirando fundo e concentrando-me nas vítimas esquecidas dos homens que havíamos assassinado, além de todas as outras vozes silenciadas, interrompidas e ignoradas, comecei a falar, logo reencontrando minha voz grave, minha postura firme, meu gesticular imperioso e resoluto.

Enganada, percebia agora que aquelas não eram características de Dante D’Augustine, ou mesmo da Beatriz que eu fora antes dele e que agora voltava cheia de ímpeto e renovada determinação.

Aqueles eram os traços definidores do ser humano que eu era, que eu sempre fora, que eu sempre seria.

“Bom dia, caros senhores e querida senhora. É com prazer que estou aqui diante de vocês para fazer um importante esclarecimento. Por razões sociais, econômicas e também profissionais, escondi meu nome e minha verdadeira identidade por dois anos. Nesse período, publiquei ensaios, assinei resenhas e criei contos e novelas. Esses textos foram elogiados e comentados por suas ideias inovadoras, por suas opiniões relevantes, por seu estilo igualmente direto e refinado. Essa carreira culminou num celebrado livro de contos policiais que os senhores conhecem como Crimes crassos, um volume que ganhou vários prêmios e que a cada mês conquista novos leitores e leitoras”.

Minha visão foi desviada pelas luzes das câmeras photostáticas que registravam aquele momento, bem como pelos olhares de surpresa, incredulidade e repúdio de muitos dos jornalistas.

“Isso informado, está na hora de revelar à sociedade porto-alegrense que eu nunca me chamei Dante D’Augustine e que não nasci um homem. Está na hora de revelar a vocês que eu sou uma mulher, apesar deste gênero também não me definir, não por completo. Isso não significa desistirei de minha atividade profissional, tampouco. Gostaria de também deixar claro que eu não estou buscando casamento, estabilidade ou filhos. Não julgo ou critico as mulheres que o fazem, desde que o façam por vontade e desejo. Mas não compartilho desses anseios e não submeterei minha vontade a qualquer condição social, marital ou afetiva predeterminada. Antes de tudo, sou uma profissional que continuará dando aos seus leitores e leitoras aquilo que esses aprenderam a admirar e a desejar de mim. O que mudará em meus escritos? Nada. O que mudará em minha vida? Muita coisa, visto que a partir deste dia não mais me esconderei atrás de uma masculina alcunha e de uma exclusiva indumentária cinzenta. Como podem ver, isso também não significa que me tornarei uma dama amante de vestidos. O que serei doravante, ainda é incerto, como a vida e o desejo. Espero continuar contando com sua curiosidade”

As luzes e o falatório continuavam, agora mais alto, com pessoas emitindo, em suas posturas e gestos, seus preconceitos e suas notas de repúdio, reprimenda e desprezo. Mas no meio deles, notava também outros presentes que pediam atenção e respeito. Havia ainda uma última coisa a dizer.

Respirei fundo, sabendo que iria pronunciar em voz alta o que por muitos anos fui incapaz de falar em público, de enunciar aos poucos que amei, de comunicar a mim mesma diante do espelho, na solidão do meu claustro.

Com firmeza, solicitei silêncio e, depois de obtê-lo, falei sem pestanejar:

“Meu nome é Beatriz de Almeida & Souza, e sou escritora.”

*

REVELAÇÃO BOMBÁSTICA:

A FICÇÃO DE DANTE D’AUGUSTINE?

BEATRIZ DE ALMEIDA & SOUZA REVELA TUDO!

Rádio Atlântica AM

Programa Depois das Onze

Entrevista Posteriormente Publicada no Jornal

O Crepúsculo, de 18 de outubro de 1892

 Boa noite, caros ouvintes, aqui é Plínio Alphonsus, aquele que te conta tudo! Neste exclusivo Depois das Onze!, temos um assunto delicadíssimo a discutir! Para tanto, sugerimos que retirem as crianças e cardíacos da sala, pois se trata de um tema assaz impactante. Há dias, o premiado escritor gaúcho Dante D’Augustine revelou à mídia porto-alegrense que sua identidade não passava de uma ficção muito bem concatenada. O sujeito era na verdade Beatriz de Almeida & Souza, beldade negra que escondeu seu nome e também suas belas formas abaixo de sisudas vestes masculinas. Agora, escreve Solar ao entardecer, romance de mistério estrelado pela investigadora feminista Diadora Ribas. Nesta entrevista exclusiva, Almeida & Souza discute sua nova heroína, os direitos das mulheres e a polêmica relação entre literatura e gênero. Boa noite, senhora… senhorita… Beatriz. Desculpe-me, mas esta é a primeira vez em vinte anos que entrevisto uma mulher. Seja bem-vinda novamente ao nosso programa. Vamos à primeira pergunta.

 Há um ano, em entrevista de grande repercussão, discutimos tua obra. Agora, não podemos iniciar esta conversa ignorando tua identidade. O que te levaste a enganar tua audiência com uma persona masculina?

 Não gosto, Alphonsus, da palavra “enganar”, apesar de compreender sua utilização. O fato é que um ser humano pode e deve possuir total autonomia sobre seu corpo e sua identidade. No meu caso, primeiramente tratou-se de adentrar no concorrido mercado editorial gaúcho. Use tua imaginação. Sou mulher. Sou negra. Não tenho família. Quando cheguei a Porto Alegre, anos atrás, como poderia granjear a posição que granjeei tendo em vista o descrédito que o gênero feminino e a etnia negra ainda enfrentam em nossa dita sociedade moderna? Assim, tornei-me o que precisava me tornar para chegar onde queria chegar. Assumi o nome do meu poeta predileto e me eduquei com as heroínas de Shakespeare, em cuja obra homens e mulheres transcendem seus gêneros.

Qual foi o ponto de virada para a decisão de assumir publicamente essa farsa? Alguns de seus críticos encararam tal decisão como jogada de marketing para vender ainda mais livros.

 Dante D’Augustine vendeu mais livros no último ano do que nossos autores “sérios” em décadas. Ele não precisaria de qualquer “jogada de marketing”. Pelo contrário. Poderia continuar assinando meus escritos com essa alcunha e garantir uma riqueza com a qual nunca sonhei. Mas não se trata disso. Nunca escrevi por dinheiro ou para ganhar destaque pessoal. Desprezo aqueles que o fazem. Escrevo porque preciso escrever e porque desejo comunicar ao mundo muitas das coisas que me angustiam ou que me fascinam. Quanto à revelação da minha identidade, penso que vivemos a aurora de um novo século, e que não podemos mais subjugar o feminino aos cômodos familiares e domesticar sua voz de acordo com as opiniões de pais ou maridos. Sim, trata-se de um ato ideológico e de uma série de ações, sejam elas públicas ou ficcionais, que objetivam justamente confrontar essas e outras violências.

Obviamente, isso tem assustado muitos leitores e patrocinadores.

 É claro que sim. É confortável para muitos deles que suas mulheres continuem nos lares, dedicadas aos serviços da casa, submetidas às visões de mundo e às opiniões da sociedade patriarcal na qual cresceram. É confortável tratarem suas mulheres como animais de estimação que podem adestrar e domesticar. E o mais triste é que isso também se tornou aceitável para muitas mulheres, que educam suas filhas para serem reproduções de si próprias. É em razão disso que meu gesto é importante. Estou recuperando não apenas meu gênero e meu nome, como meu lugar no mundo. Estou me postando diante da sociedade atual e forçando-a a repensar como trata as mulheres. Estou propondo uma barricada, literal e simbólica, e espero ver outras mulheres fazendo o mesmo.

Alguém a apoiou nessa decisão? Obviamente, foi necessária certa discrição até o momento.

 Sim, várias pessoas. Destaco o meu editor, Pereira Albuquerque, que há tempos suspeitava de algo singular em minha escrita. Certa feita, disse-me que eu simpatizava em demasia com minhas personagens femininas, o que era raro. Além disso, e sei que isso chocará certos leitores, ele sempre ficou um pouco inquieto com o modo como eu olhava para homens que chamavam minha atenção. Também destaco o nome de Antoine Louison, um amigo por quem tenho especial afeto. Ele foi um dos primeiros a quem desvelei meu segredo, e desde então tem apoiado de forma delicada e enérgica a minha decisão. Trata-se de um homem que eu admiro justamente por achar nossos tempos adequados a um novo modo de pensar e por ignorar os estereótipos, não só os de gênero.

Falando um pouco sobre tua literatura, há uma energia de impetuosidade masculina nela que…

 Perdoe-me por interrompê-lo, Alphonsus, mas preciso corrigi-lo. Há uma energia de impetuosidade em minha escrita. Ponto. Penso que são justamente esses qualificadores adjetivos como “masculino” ou “feminino” que precisam ser revistos e até mesmo evitados. O que é “masculino” ou “feminino” nesses contextos? Ora, eles não passam de lugares comuns conceituais, caixas simplistas nas quais alocamos visões de mundo. Todavia, os seres humanos, homens e mulheres, são mais complexos que isso, não achas?

Hã… sim, sim. Tens razão. Reformulando então: há uma energia… de impetuosidade em tua literatura que fascina muitos leitores. Tu pretendes alterar esse elemento, agora que revelaste tua identidade? Minha pergunta é: isso significa que não escreverás mais histórias de mistério?

 E que daqui pra frente escreverei estórias românticas e sentimentais? Esta é a pergunta? De forma alguma. Sempre escrevi a literatura que desejei escrever e não pretendo mudá-la. Ao contrário. Desejo evidenciar com minha postura o quanto pouco importa o nome na capa do livro. Em outros termos, quero denunciar o quanto as molduras sociais como “masculino” e “feminino” devem importar cada vez menos. Pense em George Sand e George Eliot. Julgas que sua prosa poderia ser compreendida como “ficção cor-de-rosa”? Nada contra essa literatura, mas meu ponto é: precisamos pensar menos em escritores homens e escritoras mulheres e mais em escritores, indiferente de seus gêneros.

Mas em seu novo romance, Solar ao entardecer, temos uma heroína ao invés de um herói.

 Sim, mas trata-se mais de um exercício imaginativo do que de uma alteração substancial em minha escrita. Solar ao entardecer é direcionado ao mesmo público de Crimes crassos. A diferença é que agora, ao invés do sofisticado e perspicaz policial Apolinário Terra, temos a impetuosa e liberal detetive particular Diadora Ribas. O mundo no qual os dois vivem é o mesmo, e penso em futuramente escrever uma história na qual eles formem uma inusitada parceria, o que seria bem estimulante. Acho que minha paleta de cores, escrevendo como homem sobre homens, precisa agora de novos tons. Diadora é para mim uma personagem mais pessoal, uma vez que, como mulher, ela precisa enfrentar não apenas o preconceito social, como as grosserias masculinas disfarçadas de galanteios e também nossos desagradáveis períodos mensais. Ora, Apolinário nunca precisou lidar com essas dificuldades.

Para finalizar, tu terias algumas palavras finais aos nossos ouvintes… e às nossas ouvintes?

 Gostaria de pedir que ambos confrontassem e superassem seus preconceitos, sejam eles étnicos, sociais ou literários. Pela primeira vez podemos sonhar com uma sociedade na qual homens e mulheres podem, lado a lado, construir um futuro menos opressivo, menos falocêntrico. Assumi publicamente meu nome verdadeiro porque senti que esse era o meu dever, para comigo e para com tantos outros seres humanos silenciados e oprimidos, sejam eles homens ou mulheres, crianças ou idosos. Espero que meus leitores não me abandonem depois dessa revelação. Se o fizerem, é porque não merecem o que eu tenho a lhes dizer. Por outro lado, não tenho dúvida de que há um grande público leitor nesses dias, masculino e feminino, muito interessado no que tenho a propor.

Agradecemos à senhorita Beatriz de Almeida & Souza por sua presença no Depois das Onze!. Para os que desejarem ouvir a entrevista anterior de Beatriz… quer dizer… de Dante, disponibilizaremos a gravação em instantes. Depois dos comerciais, discutiremos a política republicana, os esportes nacionais e o escândalo sufragista em Inglaterra, onde mulheres querem votar! Imaginem isso, ouvintes?! Quer dizer… [tosse] Voltaremos em instantes. Continuem conosco!

[Escute a entrevista clicando abaixo]

“Qual de seus personagens tem mais a ver com você?”

Quando me fazem essa pergunta, a resposta é não raro um tanto genérica: “Todo autor vive em cada personagem que escreve. Assim, o magia de Sergio Pompeu, os pés descalços de Vitória Acauã, a paixão insana do Doutor Benignus, o pessimismo decadente de Solfieri de Azevedo, o vigor aventureiro de Bento Alves… em cada um desses personagens, estou lá, trabalhando uma parte da minha identidade.” Essa é a resposta convencional. E um tanto mentirosa, confesso. Assim, aqui, entre amigos, vou contar a verdade.

De todos os meus personagens, sou inteiramente Dante / Beatriz. Ele & ela são os que mais me definem. Não que o anteriormente dito seja totalmente falso. Não o é. Estou sim em cada um desses personagens e em tantos outros, como Giovanni, Rita Baiana, Pedro Britto Candido, Juca Pirama, Capitu Machado, Louison, Remy Rudá e tantos outros do universo de Brasiliana, A Todo Vapor! e de Guanabara Real. Entretanto, nenhum herói ou heroína dos que já escrevi me define tanto quanto Dante / Beatriz. E isso por razões que são tanto biográficas quanto ficcionais. Nele / nela, encontro força, energia, determinação, poesia, paixão e entrega, além de sua batalha por não confinar-se às convenções, por não adequar-se às expectativas alheias, por não desistir de seus sonhos, nunca.

Em 1890, Beatriz de Almeida & Souza chegou em Porto Alegre dos Amantes querendo ser uma escritora. Dante D’Augustine foi sua mais poderosa ficção para realizar esse sonho. Em 2009, eu fui morar em Porto Alegre com uma meta similar. Depois de alguns anos, Brasiliana Steampunk e especialmente Beatriz & Dante em Lição de anatomia, me ajudaram a concretizar aquele sonho e muito mais: me ensinaram a me olhar no espelho sem medo, vergonha ou receio, de nada ou ninguém.

Este conto/noveleta foi escrito em 2016, e desde então ficou guardado na gaveta esperando a publicação do Parthenon Místico, uma editoria sensível dada a delicadeza do tema e uma publicação que fizesse jus à paixão, poesia e força de Dante / Beatriz. Para minha alegria, cinco anos depois, a convergência de todos esses fatores encontrou neste número especial de Mafagafo a oportunidade ideal de finalmente termos publicada a história “Dante & a liga dos anciãos assassinos”. Deixo aqui um abraço de autor desejando que tenham apreciado essa aventura sobre identidade, violência e poesia. Uma aventura sobre a força que precisamos, ainda mais hoje, para fazer o que é certo.

Com carinho & saudades de todos,

Enéias Tavares

 

Santa da Bocarra do Monte, 24 de maio de 1892.

Ano Dois da Peste

A foto quadrada e preto e branca mostra um homem de pele branca, cabelos morenos alisados com brilhantina e cavanhaque também moreno. Ele olha sério para a lado, e diante dele é possível ver velas acessas e garrafas. O clima da foto é meio sombrio e antigo.

Enéias Tavares é professor de literatura na UFSM e escritor. De ficção publicou os romances A lição de anatomia do temível dr. Louison (Leya, 2014) e Juca Pirama marcado para morrer (Jambô, 2019) e de crítica o livro Fantástico Brasileiro (Arte & Letra, 2018), este em parceria com Bruno Matangrano. Em 2020, a série live action roteirizada por ele, A Todo Vapor!,  estreou na Amazon Prime Video, e sua graphic novel em parceria com Fred Rubim, O matrimônio do céu & inferno (AVEC, 2019), foi lançada nos EUA pela Behemoth Comics. O romance transmídia Parthenon Místico (publicado pela DarkSide Books em 2020) integra o universo expandido de Brasiliana Steampunk. Mais de sua produção em eneiastavares.com.br e de sua série retrofuturista e transmídia em brasilianasteampunk.com.br .

Jana Bianchi é escritora, tradutora, editora na revista Mafagafo e cohostess do Curta Ficção. Em português, além de Lobo de rua (2016), publicou diversos contos em revistas e coletâneas. Em  inglês, tem ou terá textos publicados nas revistas Strange Horizons,
Clarkesworld e Fireside. É aluna da turma de 2021 do workshop de escrita Clarion West. Jana mora no interior de São Paulo com os pais, duas cachorras e suas várias tatuagens animadas.

A foto quadrada mostra uma mulher branca, de cabelos morenos e cortados na altura do ombro, meio bagunçados. Ela está sorrindo levemente e tem a mão estendida na direção da câmera, com os olhos fechados. Ao fundo, que é bem desfocado, é possível ver as luzes urbanas de uma avenida.
A foto tem um efeito de envelhecida, com tons de sépia e uma borda de foto antiga e recortada. A imagem de Karl, uma foto editada para parecer um registro antigo, mostra um homem com cabelo ligeiramente comprido e óculos de aros finos e bem redondos. Ele olha para a câmera meio de lado.

Karl Felippe é artista plástico e ilustrador. Ele conversa exclusivamente via verbetes de enciclopédia e filtra informações através de uma grade de referência formada por ficção e histórias de gente que já morreu. Uma década atrás ele ajudou a criar o Conselho Steampunk, e até hoje se dedica ao projeto. Quando não está focado em seus desenhos, esculturas, escondendo o que escreve ou trabalhando em uma misteriosa empreitada envolvendo taxonomia feérica, sua existência neste plano existencial é incerta. Recomenda-se por razões de segurança que ele apenas seja alimentado após a meia-noite.

A imagem mostra a capa do Parthenon Místico no meio de duas caveiras douradas com engrenagens no fundo.