A ilustração da capa mostra um rapaz em uma floresta, com árvores que vão até o horizonte. Ele está diante do que parece um buraco na realidade que mostra um padrão preto de linhas amarelas, sugerindo um ambiente virtual (fazendo referência ao cenário de Tron, por exemplo). Ele é magro, negro, de cabelo preto crespo. Está usando calça e casaco verde, tênis e tem uma bolsa carteiro cruzada no peito e uma espada na mão. Em primeiro plano, há dois cães furiosos que parecem estar correndo na direção dele. No topo da capa, Mafagafo é escrito em uma fonte tremida, azul royal. O título “Uma Esfera para Cada Feitiço” vem abaixo, do lado direito. Do lado esquerdo, há o logo da Mafagafo com a informação “Temporada 003 - Fevereiro de 2020” e, abaixo, vêm as informações “Escrito por Waldson Souza” e “editado por Bárbara Prince”. Acima do título da Mafagafo, há as informações “Ilustração: Thiago Lacerda” e “Direção de Arte: Giovanna Cianelli”.

O dia em que Lúcio pediu demissão da fábrica de feitiços também foi o dia em que centenas de cães infernais saíram de uma rachadura no chão. Sem entender o motivo do surgimento das criaturas ou por que elas só atacam pessoas racializadas, Lúcio decide procurar um feitiço antigo para eliminar esse perigo. Entretanto, acaba encontrando uma parede invisível marcando os limites do seu mundo e da sua noção de realidade.

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Eu nunca imaginei que veria o fim do mundo duas vezes.

Naquele segundo momento, foi algo mais literal. A palma da minha mão erguida pressionava uma parede sólida como concreto e invisível como o vento que a atravessava. Não havia temperatura, era como se eu tocasse o nada. Logo concluí que só podia ser produto de algum feitiço poderoso demais para que eu o conhecesse. Era a única explicação lógica. Mas qual o objetivo daquilo? O mundo não deveria acabar assim tão de repente, com uma interrupção tão brusca. O planeta é esférico, não há borda, muito menos deveria haver paredes invisíveis.

Com as duas mãos na parede, comecei a andar para o lado na esperança de chegar a um ponto no qual ela acabasse, e assim eu poderia contorná-la e continuar avançando para o norte em busca de ajuda. Eu ainda esperava encontrar um feitiço que pudesse salvar a humanidade e acabar com o apocalipse. Outras pessoas tinham me avisado de que não havia nada ali exceto a floresta que eu cruzara e as Montanhas dos Centauros logo adiante. Mas a parede me impedia de avançar mais um passo sequer em direção à cordilheira. Não adiantava seguir sua extensão, ela parecia não ter fim.

Parei e olhei para cima, impossibilitado de saber até onde aquele campo de força se estendia. Pensei em dar meia-volta. Talvez a parede fosse obra dos próprios centauros para evitar contato com os humanos. Isso explicaria o fato de que ninguém vivo podia dizer que já vira pessoalmente algum desses seres — tudo o que tínhamos eram relatos.

Caio me observava em silêncio, tão quieto que eu quase esqueci que ele estava ali. Não analisava a parede comigo, limitando-se a olhar, distante o suficiente para demonstrar que só eu poderia tentar resolver a situação.

Então decidi parar de fazer suposições e testar a resistência da parede.

Da minha bolsa estilo carteiro, retirei uma pequena esfera contendo um tipo de fumaça meio alaranjada e preta. Eu já estava acostumado a retirar esferas de lá.

— Cuidado — eu disse para Caio.

Dei vários passos para trás, e ele me acompanhou. Ficamos a uma distância segura. Arremessei a esfera, que causou uma explosão ao quebrar-se pelo choque contra a parede. Levantei o braço para proteger os olhos e fiquei esperando o clarão e a fumaça passarem. Aproximei-me da parede, já detectando que, visualmente, nada mudara. Não parecia haver nem mesmo uma rachadura na superfície invisível. Toquei-a mais uma vez, apenas para me deparar com algo que no fundo eu já sabia: a parede continuava lá, inabalável, só um pouquinho quente.

Dessa vez, olhei dentro da bolsa com mais atenção, mexendo nas divisórias até encontrar uma esfera que eu costumava usar bastante. Era a minha última daquele tipo, por isso demorei para encontrá-la. Ela era um pouco menor que a anterior e continha um líquido metálico.

— Tem certeza? — perguntou Caio.

— Sim — eu disse com a voz baixa.

Naquele momento, pensei que, se a parede resistisse, eu estaria desperdiçando um feitiço importante demais para a nossa busca, mas o pior seria dar meia-volta e encarar os Ferais outra vez. Alguns dias antes, as criaturas de origem e natureza desconhecida haviam instaurado o horror em questão de minutos após o portal se abrir. Elas chegaram de forma repentina. Então, nós as tínhamos enfrentado e, ao mesmo tempo, buscado uma solução para o problema. Eu não queria voltar na direção delas sem que algo efetivo pudesse ser feito, seria muito perigoso.

Enquanto hesitava em usar o feitiço, lembrei-me dos últimos dias e dos fatos que me levaram até ali — sem imaginar que, quando a parede rachasse, haveria apenas escuridão e eletricidade do outro lado.

Começou quando eu estava no ônibus. E sinto a necessidade de relatar também essa parte, mesmo agora que todo mundo me diz que ela é falsa. Mas como pode ser falsa se vivi aquilo tudo? Eu vi Ferais arrancando pedaços de pessoas, quase fui atacado em diversas situações, senti o cheiro do caos. Preciso seguir uma linha cronológica para continuar acreditando que não estou louco. Tudo era tão real. A cidade, o meu trabalho, o amor de Caio, o tédio, o sol, os sentimentos, a comida. Tudo. Por isso não gosto de falar só da parte em que meu mundo começa a desmoronar.

Como eu ia dizendo, eu estava no ônibus quando o céu se abriu e um raio de luz desceu em direção ao chão, que não suportou o impacto e foi perfurado. Um raio de luz que não parecia normal. Era algo novo, algo ancestral. Vi tudo pela janela — eu olhava para o céu naquele momento. Para mim, a luz parecia um grito, preso na garganta do céu havia muito tempo. Ele precisou gritar e isso fez o chão se partir.

Se o chão foi aberto por uma luz que caiu do céu, de onde vieram as criaturas? Do Paraíso ou do Inferno?

Era uma tarde quente. Pelo menos eles não vieram à noite — seria muito mais difícil entender o que estava acontecendo. Mas notícias ruins correm rápido. Para minha sorte, eu estava relativamente longe do ponto em que a luz atingira o chão, então recebi os vídeos dos Ferais no meu celular antes de vê-los pessoalmente. Minha reação não foi continuar indo para casa, mas sim descer do ônibus e voltar para a fábrica onde eu trabalhava até poucas horas antes, quando finalmente tinha reunido coragem para pedir demissão. Semanas pensando no assunto para, após o almoço de um dia qualquer, simplesmente entrar na sala do chefe e dizer a ele que eu não queria passar o resto da vida colocando feitiços em esferas.

Antes de o céu gritar, minha preocupação era com o futuro. O que eu diria para Caio? Desculpe não ter conversado sobre isso com você antes, mas pedi demissão e agora você vai ter que sustentar a casa sozinho enquanto procuro outro emprego. Eu ensaiava, sabendo que Caio entenderia, mas parte de mim desejava que ele não entendesse. Talvez fosse um bom momento para iniciar uma briga e terminar com ele. Um bom dia para me afastar de tudo que já não me fazia feliz havia um tempo. Pensar em me separar de Caio era difícil, porque estar com ele só era ruim em momentos pontuais — aqueles nos quais machucávamos um ao outro sem intenção.

Quando cheguei à fábrica Feitiço Escarlate, todos estavam indo embora apressados, e ninguém prestou muita atenção em mim enquanto eu fazia o caminho oposto. Meus ex-colegas de trabalho corriam, ligavam para os parentes e verificavam os plantões de notícia enquanto tentavam entender o que acontecia.

Eu não precisava mais odiar aquele prédio, nunca mais teria de ficar ali das 8h às 17h. Entretanto, depois que eu enfrentasse meu primeiro Feral, desejaria ter de volta aquela normalidade entediante e não mortífera. Entrei na fábrica com o objetivo de pegar algumas esferas e um livro de feitiços que estava no meu armário — a empresa prometera entregar todos os meus pertences em três dias úteis, livros pesados em sua maioria, por isso eu havia inicialmente deixado a tarefa por conta deles. Na correria para voltar para casa, será que ninguém percebia que ali era um ótimo lugar para se preparar diante do que estava acontecendo?

Aquele livro era muito importante, fora meu principal auxílio durante a graduação em Feitiçaria. No armário, peguei o volume desgastado e cheio de anotações e o coloquei em minha bolsa. Depois, corri para o imenso estoque da fábrica, tão valioso e já abandonado. Nesse meio-tempo, Caio me ligou, mas não atendi. Andei entre as inúmeras prateleiras contendo caixas cheias de esferas, lendo as etiquetas para saber quais feitiços levar. Alguns de cura, outros explosivos, alguns que criavam armas e outros com habilidades defensivas. Enchi minha bolsa com aquelas esferas que eu não podia comprar, mas que tanto ajudei a fabricar nos últimos anos, e me preparei para ir embora.

Fora da fábrica, pude ouvir gritos desesperados e latidos roucos assustadores. Eu ainda não tinha visto nenhum Feral ou a destruição que eles vinham causando, mas podia senti-los aproximando-se da área onde eu estava como se o próprio terror andasse em minha direção.

Mas não esperei que ele me encontrasse.

Furei uma das esferas como se ela fosse um ovo e bebi o líquido que havia dentro. Enquanto engolia, comecei a imaginar o local aonde eu queria chegar: meu apartamento. O feitiço de teletransporte funciona melhor e com mais confiabilidade de acordo com a quantidade de detalhes que o usuário visualiza, então fechei os olhos para me concentrar e imaginar o quarto da forma mais fiel possível. Cada centímetro do meu corpo foi esquentando e começando a pinicar. Depois, foi como se o ar estivesse me comprimindo, transformando-me em nada para só então me levar até o apartamento e tornar-me algo novamente. Era uma sensação horrível. Eu havia usado aquele recurso uma única vez, na faculdade, quando aprendi a preparar o feitiço e precisei testá-lo. Não sei como era um dos feitiços mais vendidos. Na verdade, sei: as pessoas têm pressa.

Abri os olhos quando o calor e as outras sensações passaram. Eu estava no meu quarto, assim como imaginei. Enquanto recuperava o fôlego, procurei por Caio, mas ele ainda não estava em casa; também fora trabalhar. Entrou na sala quase vinte minutos depois, ofegante e com a camisa grudada no peito de tanto suor. Ele estava fugindo de dois Ferais. Desesperado, fechou a porta, mas os cães eram muito fortes e começaram a danificar a madeira com suas cabeçadas.

Precisei pensar rápido e pegar uma esfera. Caio manteve-se ao meu lado enquanto eu segurava o feitiço e esperava pelo momento certo. Quando os Ferais forçaram passagem pela porta, joguei a esfera contra eles antes que pudessem avançar. A explosão causada pelo feitiço jogou os dois animais contra a parede — boa parte dos nossos móveis foi destruída, e o chão ficou chamuscado. Mesmo assim, eles não morreram. Um deles se contorcia, talvez com os ossos quebrados, e o outro tentava se levantar. Eu não quis ficar por perto tempo suficiente para saber se ele iria conseguir. Só depois descobri que uma espada de metal era a melhor arma para matá-los.

— A gente precisa sair daqui — eu disse, olhando para Caio.

Deixamos o apartamento o mais rápido possível, parando apenas para pegar casacos, vestir roupas mais resistentes e colocar comida e água em duas mochilas. Eu não sabia para onde iríamos. As Forças Armadas já haviam sido chamadas, e o caos tomava proporções mais contidas, mas os Ferais estavam espalhados e ganhando os quatro cantos da cidade, já não apenas concentrados no centro. Ninguém tinha noção de quantas criaturas haviam saído da fenda, mas o padrão dos ataques era evidente. Logo foi confirmado em um dos plantões de notícias que os Ferais atacavam apenas pessoas racializadas — mais um motivo para Caio e eu nos afastarmos daquele caos. Ninguém tinha uma explicação para esse comportamento.

Enquanto Caio dirigia por uma rota alternativa, fugindo dos congestionamentos, pudemos observar o comportamento dos cães; a mesma atitude mostrada em vídeo pelo telejornal. Vimos dois Ferais correrem atrás de pessoas negras e ignorarem por completo as outras brancas pelas quais passavam. Era quase como se os brancos fossem invisíveis a seus olhos.

Troquei um olhar com Caio. Aquilo só nos deixou mais preocupados e com vontade de ir para o mais longe possível. Procurar um lugar seguro, mesmo que não soubéssemos onde ou o quão distante essa segurança estava.

Aproveitei a viagem para folhear meu livro, lendo principalmente as anotações que havia feito em cada receita. Era importante saber do que precisaríamos para preparar os feitiços e quais seriam mais fáceis de fazer; as esferas que peguei na fábrica não durariam para sempre.

Foi no livro que vi anotado o e-mail de um antigo professor. Eu não sabia onde encontrá-lo, mas Caio insistiu que deveríamos procurar. Ele tinha razão, talvez meu professor soubesse de algo que pudesse nos proteger dos Ferais.

— E quando você encontrou a parede, Lúcio? — pergunta a psicóloga. — Foi depois de conversar com seu professor?

Lúcio. Apenas meu nome continua o mesmo.

— É só sobre isso que você quer saber, né?

— Precisamos focar na sua readaptação.

Ela é mais paciente que a anterior, faz menos perguntas e deixa que eu fale sobre o que considero importante. Mesmo assim, direciona a conversa para minha chegada aqui. Eu insisto em falar do antes, ela insiste em falar do agora. Eu uso o termo “chegada” porque ainda acredito que vim de outro lugar; eles fazem questão de reforçar que eu sempre estive aqui e que só “despertei”.

— Sim, foi depois — acabo dizendo.

— E o que você fez para destruir a parede?

— Eu usei uma espada — respondo. — Feita do metal mais forte do mundo.

Meu ex-professor morava em uma cidade vizinha. Não tínhamos noção de qual era a situação dos Ferais por lá, então fomos cautelosos. Eu não sabia até quando os feitiços iriam durar, e, sem esferas ou outros recipientes para concentrá-los, seria impossível fabricar novos. Isso sem mencionar a dificuldade de encontrar alguns dos materiais necessários. Mas eu esperava obter respostas, ou pelo menos uma indicação sobre o que fazer.

Encontrei meu professor bebendo, com uma garrafa de vodca pela metade. Ele abriu a porta e quase não olhou para mim ou me cumprimentou, já foi voltando para a pilha de livros que estava em cima de sua mesa. Livros antigos, grossos e de capa dura.

— Me ajude, Lúcio. Sei que já li sobre essas criaturas em algum lugar.

Caio ficou assistindo televisão enquanto eu ajudava o professor. O noticiário mostrava a destruição espalhada por todo o país — algumas cidades estavam sendo mais felizes na contenção dos Ferais, enquanto outras logo perderam o controle. Quanto mais eu via aquelas imagens, mais sentia vontade de fugir.

— Achei! — gritou meu professor.

Ele me mostrou o trecho de um livro com páginas amareladas.

Chegará o dia em que o céu se abrirá para partir a terra, trazendo de outra dimensão criaturas capazes de causar imensa destruição. Tais criaturas servirão somente aos desejos daquele ou daquela capaz de abrir o portal.

— A lenda se cumpriu — concluiu meu professor, interrompendo a leitura.

— Aí fala alguma coisa sobre como destruí-los?

— Só é possível fechar o portal derrotando quem fez o feitiço.

— Como vamos descobrir isso? — perguntou Caio, aproximando-se.

— O livro não entra em detalhes, apenas menciona um feitiço ancestral — disse o professor. — Mas conheço alguém que pode ajudá-los, ela vive ao norte.

— Você não percebe que foi tudo orquestrado para que você continuasse jogando? — pergunta a psicóloga. — As pessoas à sua volta eram personagens garantindo que você seguisse o roteiro.

— Mas eu não fui obrigado a fazer nada, fiz porque quis.

— Existia certa liberdade, e isso tornava o jogo mais real.

— Vocês questionam meu livre arbítrio como se todas as escolhas que fizessem fossem conscientes. Já observei o estilo de vida de vocês, todo o consumo, as propagandas, os produtos criados para gerar satisfação.

Às vezes falo no plural sem perceber, mas sei que me refiro a todos aqueles que questionam minha sanidade. Todo mundo que insiste em dizer que eu estava em uma simulação. Os profissionais que tentaram, os que desistiram de tentar, a psicóloga que me olha agora, a minha suposta família, os estranhos que afirmam ser meus amigos.

Quando saímos da casa do professor, fomos atacados por um grupo de Ferais. Conseguimos nos defender mais uma vez graças às minhas esferas, mas as pessoas próximas que estavam na rua foram devoradas. Uma carnificina, não gosto de lembrar. Ainda conseguimos ajudar duas pessoas que entraram em nosso carro. Com esse pequeno grupo, decidimos sair da cidade e acampar em um lugar isolado onde houvesse menos alimento para os cães. Não sabíamos ao certo o que fazer, mas esperávamos que dessa forma eles não fossem atraídos e que ficássemos seguros.

Caio não parava de dizer que deveríamos seguir para o norte e buscar a ajuda que meu professor sugerira. Eu respondia várias vezes que estávamos bem e que por enquanto não fazia sentido deixar o acampamento. Ele só conseguiu me convencer quando nosso acampamento foi atacado, e fomos obrigados a sair correndo de lá. Estar em movimento de novo era uma forma de salvar minha própria pele, mas, com o tempo e o empenho de Caio, percebi a importância de tentar fazer algo para acabar com aquele caos em vez de salvar apenas nós dois. Seria a única forma de ficarmos tranquilos de verdade. Então, enquanto buscávamos uma ajuda efetiva, passei a verificar meu livro todas as noites na esperança de encontrar um feitiço que pelo menos nos desse alguma vantagem contra os Ferais.

Com minhas esferas cada vez mais próximas do fim, seguimos nossa jornada para procurar a tal feiticeira que me ensinaria o feitiço ancestral. Buscar ajuda tão longe mostrou-se, afinal, uma forma de continuar em movimento, acreditando que era possível fazer algo. O longo caminho em direção ao norte me obrigou a quebrar mais esferas, e isso diminuiu o meu estoque. Quase não sobrevivemos à luta com um feiticeiro ilegal que vivia isolado próximo à floresta que atravessamos. Ele se recusou a nos deixar passar e ainda queria roubar meu livro — o confronto foi inevitável.

Nos perdemos, e acabei encontrando a parede. Caio ainda tentou me avisar; ficou dizendo que estávamos indo para o lado errado, mas eu já estava cansado das instruções dele, por isso decidi seguir pelo caminho que julguei ser o certo. Nunca chegamos a completar nossa viagem em busca da feiticeira; o mundo acabou antes disso.

Diante da parede, após tentar tantas outras esferas, olhei dentro da bolsa, mexendo nas divisórias até encontrar um feitiço que eu havia usado bastante contra os Ferais. Apertei a esfera na palma da mão e a quebrei com facilidade; o líquido metálico escorreu e foi ficando rígido, longo e pontudo, aos poucos tomando a forma de uma espada. Segurei-a com as duas mãos e perfurei a parede com toda a minha força.

Surgiu um pequeno furo, como o de um pássaro rompendo a casca do ovo pelo qual precisa nascer. Um pequeno furo, que foi se expandindo como se a parede fosse feita de vidro apesar da tenacidade anterior. A única prova visual de sua existência era a escuridão que a parede guardava. A superfície não se partiu para que eu visse a continuidade de meu mundo, mas sim para revelar uma escuridão densa. E, uma vez que a parede estava danificada, o resto do mundo começou a tremer e a desmoronar como se também fosse parte dela, como se também fosse de vidro. Em questão de segundos, tudo à minha volta se transformou em cacos. Eu passei a ser a única coisa sólida no meio da escuridão.

Comecei a ouvir vozes conversando, e foi quando me ocorreu o pensamento de que nada daquilo podia ser normal. Mas eu não duvidava de mim ou da minha sanidade, estava tão consciente que percebi o momento em que minhas pernas fraquejaram e comecei a adormecer. Tudo aconteceu muito rápido, não lembro se caí no chão ou se dormi em pé. Só sei que eu também me tornei parte da escuridão.

E tudo para acordar em um quarto cheio de luz. Uma luminosidade tão forte que inicialmente me fez considerar estar morto ou sonhando — conclusões precipitadas que logo abandonei, pois morrer ou sonhar não deveria envolver aquela quantidade de sensações. Eu me lembrava de tudo o que acontecera, de quem eu era, da minha vida, da fábrica, dos feitiços, de Caio, dos Ferais e da parede. Mas então aquelas pessoas me viram acordando e aproximaram seus rostos, prontas para anular minha vida inteira.

Quando tentei sentar na cama, percebi que não era uma cama, mas uma espécie de cápsula na qual meu corpo se encaixava perfeitamente. Tinha algumas partes de metal e outras de vidro, era completamente branca e repleta de fios saindo por todos os lados. Olhei ao redor do quarto pequeno e notei que os fios se conectavam com telas finíssimas e com computadores muito diferentes dos que eu conhecia. E aqueles três rostos ansiosos, duas mulheres e um homem, observavam minha confusão, dando-me um tempo antes da interação.

— Onde estou?

— Você finalmente acordou, Lúcio — respondeu uma das mulheres. — Voltou para a realidade.

Ela me deixou mais confuso. Abaixei a cabeça, procurando me concentrar. Eu não sabia onde estava, mas muito tempo devia ter se passado; eu não estava mais com as roupas que usava quando desmaiei. Eu nunca tinha visto aquele estilo de roupa antes, nem em outras pessoas, muito menos em mim. Mas, quando questionados, eles alegaram que eram as peças que eu usava ao entrar na máquina.

Meia hora depois, eu estava deitado em uma maca. Minhas pernas estavam fracas por causa da falta de uso — eles me disseram que fiquei no sistema durante cinco anos. Nada daquilo fazia sentido. Onde estava Caio? Os três cientistas me enchiam de informações, de perguntas e respostas confusas. Explicavam o funcionamento do sistema que criaram e as complicações que eu tive ao usá-lo. Logo demonstraram preocupação pela minha confusão, e queriam que eu recordasse de coisas que para mim não faziam o menor sentido. O entra e sai de pessoas vestindo jaleco era constante. A maioria delas usava um modelo avançado de celular que eu jamais vira: fino demais, todo transparente, como se feito somente em vidro. Tinha um visor colorido que, quando ativado, expandia-se em uma espécie de holograma. Eu ficava cada vez mais nervoso, desesperado e desorientado, apesar de não deixar que isso transparecesse tanto.

— Tem certeza de que não lembra de nada? — perguntou uma daquelas pessoas.

— Me lembro de tudo. Da minha vida, da faculdade na qual me formei, do meu emprego, dos feitiços que sei preparar, dos ataques dos Ferais, do meu namorado fugindo comigo. Não esqueci nada.

— Eu falo daqui, deste mundo, de Oceanïc, do projeto de realidade virtual do qual você concordou em participar cinco anos atrás.

Minha cabeça estava doendo. Eles continuavam insistindo que eu estivera dentro de alguma espécie de videogame ultrarrealista. Tão realista, e por tanto tempo, que havia esquecido a vida que um dia tivera aqui.

— Vocês estão mentindo — falei. — Todos vocês.

— Você esteve adormecido por cinco anos, é normal que esteja confuso. Nossa tecnologia causou uma perturbação em seu cérebro, e lamentamos muito por isso. Mas foi graças à sua ajuda que pudemos entender o que fazer com o sistema… ou melhor, o que não fazer. Seu sacrifício tornou possível a existência de vários outros títulos e a consolidação de nossa empresa no mercado de jogos eletrônicos imersivos. Graças a nós, jogos de realidade virtual se tornaram obsoletos.

— Cinco anos dentro de um jogo? — Dei risada. — Não sei o que está acontecendo, mas tenho certeza de que aquela parede era um feitiço antigo e poderoso.

— Magia não existe, Lúcio.

— Não? Então o que é aquilo? — perguntei, apontando com a cabeça para a janela.

Eu conseguia enxergar pouca coisa lá fora, mas a janela de vidro era grande o suficiente para mostrar uma noite repleta de carros voadores, os veículos passando por vias aéreas entre os prédios altos e cheios de luz. No meu mundo, todos os carros eram movidos a combustível e andavam em estradas no chão. Eu desconhecia a existência de um feitiço que pudesse transformá-los em pequenos aviões, mas não conseguia imaginar outra explicação.

— É tecnologia, obra da inteligência humana. Você já conhece tudo isso, você nasceu aqui, só não se lembra. Mas temos esperanças de que lembrará. Sua família está chegando, talvez isso te ajude um pouco. Agora, vamos deixá-lo descansar.

Família? Fiquei parado, pensando. Eu não tinha família. Na verdade, era estranho, aquela foi a primeira vez em muito tempo que pensei na minha família. E eu não consegui lembrar deles, de nenhum deles. Uma mãe ou um pai, irmãos ou parentes distantes com quem eu pudesse ter convivido. E, mesmo assim, eu também não lembrava se era órfão. Eu não sabia como preencher qualquer espaço na minha árvore genealógica.

Fui deixado em paz por um tempo, acompanhado apenas por um enfermeiro que não saía do quarto e pelas amarras que eles haviam prendido em volta dos meus braços. Temiam que eu pudesse encontrar um jeito de fugir e desfazer o feitiço. O pior é que eu não tinha nenhuma esfera por perto, e não sabia onde estava minha bolsa.

Eu já imaginava o que estava acontecendo, mas precisava disfarçar para ganhar tempo. A destruição da parede devia ter liberado outro feitiço, tão forte quanto o anterior, e isso havia me prendido a uma realidade falsa. Um cenário inventado que se afirmava como verdadeiro e anterior ao meu mundo, para que assim eu não pudesse questioná-lo. Um feitiço perverso, do qual não consegui escapar até hoje.

Em alguns momentos, quase acreditei. Um dos mais difíceis de duvidar foi quando uma mulher de meia-idade — minha mãe, segundo todos — entrou quase correndo no quarto e me abraçou chorando. O homem que a acompanhava também estava visivelmente emocionado e me abraçou com ternura. Dois desconhecidos dizendo ter sentido muito minha falta e ter rezado por mim todos os dias. Estavam felizes por eu ter acordado, mas preocupados com minha falta de memória. Agradecidos, de qualquer forma, pela minha recuperação parcial.

Não pude negar a semelhança entre nós, pois percebi que tenho o mesmo cabelo crespo dela, o nariz idêntico ao dele e uma pele negra de tom intermediário ao dos dois. Talvez tenham me gerado de fato. Ou talvez essa realidade fictícia seja detalhista demais.

 No segundo dia de visita, eles trouxeram fotos. Os médicos disseram que isso poderia me ajudar. Usaram um tablet fino e com projeção holográfica para passar as imagens de vários momentos da minha vida. Recém-nascido, o primeiro dia na escola, a noite da formatura, dezenas de aniversários, vários familiares e amigos que eu não reconhecia. Lembranças que eles insistiam serem minhas. Imagens me fazendo considerar a existência de outra vida.

Meu suposto melhor amigo também me visitou. Ele parecia nervoso. Tentou fazer uma piada afirmando ter me alertado sobre o risco de participar do projeto ainda na fase beta. Falava como se me conhecesse, e como se eu precisasse saber das notícias que ele contava. Quais colegas do trabalho casaram, famosos que haviam morrido, o que de importante tinha sido lançado no cinema, como meus pais ficaram devastados, como o dinheiro da indenização pelos danos era ótimo e estava longe de acabar, como a empresa fabricante do jogo conseguiu abafar o caso, como ele acabou ficando com meu cachorro.

Eu tentava ser simpático e ouvir o que ele falava, mas, ao mesmo tempo, só queria que ele desaparecesse da minha frente. Eu queria que tudo ao meu redor desaparecesse da mesma forma que surgira, através de uma rachadura no ar e da ausência de luz. Caio era a única pessoa que eu gostaria de ver naquele momento, o único que possuía uma voz e um abraço capazes de me confortar. Ele representava pertencimento e anos de convivência, uma família da qual eu me lembrava.

Na segunda semana, enquanto esse mundo seguia tão concreto quanto antes e eu continuava em observação, recebi uma visita que eles definiram como importante. Não era algum familiar ou amigo, mas sim o criador do projeto do qual participei. Ele usava terno e não aparentava ser muito mais velho do que eu.

— É muito bom finalmente poder falar com você de novo, Lúcio — disse ele após se apresentar. — Trabalho na MakingDreams há muito tempo, e o nosso projeto de jogos imersivos foi um marco na indústria dos jogos eletrônicos. Imaginamos uma forma de jogar sem controles, sem telas, sem óculos, sem corpo. Apenas com a mente do usuário e a sensação de estar em outro mundo como se fôssemos parte dele. É muito triste você não conseguir lembrar agora o quanto estava empolgado por ser um dos primeiros a testar a nova tecnologia.

Fiquei em silêncio, perguntando-me qual era a necessidade de o colocarem para falar comigo. Um homem com aquela roupa não deveria se preocupar com um desmemoriado que nem eu. Eu não conseguia acreditar que ele se importava comigo.

— Fiz questão de conversar com os selecionados, lembro de explicar a vocês sobre o universo que criamos, a ambientação, o avatar idêntico ao jogador, as mecânicas envolvendo os feitiços nas esferas, os Ferais, a crítica racial que criei no enredo cheio de reviravoltas e missões secundárias. E toda a liberdade. O mapa gigantesco com todas aquelas opções e atividades extras para fazer. Mesmo depois de tantos títulos lançados, muitos jogadores ainda continuam ativos em A Última Esfera.

— Por que só deu erro comigo? — perguntei, lembrando o que já haviam me falado.

— Uma falha boba no código. O jogo rodou apenas as primeiras missões. Você fez o início ainda com consciência. Fez o tutorial na faculdade de feitiçaria, cujo objetivo é ensinar os jogadores a manipular as esferas. Mas quando começou a trabalhar na fábrica, o jogo não avançou. Algumas missões secundárias apareceram, como a de achar um par romântico e a de montar uma casa para vocês. Mas o enredo só avançava caso a missão da fábrica terminasse. Ela também é uma missão mais introdutória, em que há duas formas de concluir. O certo é que o jogador peça demissão por não aguentar mais trabalhar naquele contexto, mas, caso isso não aconteça, os Ferais aparecem cedo ou tarde dependendo do tanto de missões secundárias realizadas. Mas o seu jogo não avançou, os Ferais não chegavam nunca. Demorou anos, você foi jogando, esqueceu que estava jogando e então se acomodou na fábrica. Sua mente se tornou parte do jogo, e a falha nos impediu de te acordar aqui de fora; se fizéssemos isso, poderíamos fritar seu cérebro, danificá-lo de forma permanente. Na versão de teste, ainda não havia o modo online, então estávamos impossibilitados de usar outro jogador para te avisar sobre o que estava acontecendo. Você era o único que podia se libertar de forma segura, acessando o menu e fechando o jogo, mas não conseguia lembrar disso.

— Então quer dizer que o jogo voltou a funcionar quando pedi demissão?

— Exato. Quando tudo voltou a funcionar, achamos que você se lembraria sozinho. O que, obviamente, não aconteceu. Mas já havíamos atualizado o jogo para instalar uma espécie de truque. Deixamos as paredes que delimitam o fim do mapa mais próximas de você, assim seria mais fácil encontrá-las. Esperamos, e você fez o que precisávamos: percebeu que algo estava errado e interagiu com a parede. Ao quebrá-la, você desestabilizou o sistema, causando uma reinicialização, como se apertasse um botão solicitando sua saída de lá.

Era uma história impressionante, e ele esperava que eu acreditasse.

— Tem outros detalhes mais técnicos envolvendo o funcionamento da máquina de imersão, mas você não precisa se preocupar com isso. O importante é que agora está livre para viver sua vida.

— Eu tinha uma vida lá — eu disse.

— Você tem uma vida aqui. E nós da MakingDreams daremos todo o suporte para você recuperá-la.

— Suporte acompanhado pela proibição de falar publicamente sobre tudo isso — comento com a psicóloga.

A terapeuta não parece incomodada com meu tom, mas com certeza é mais um material para ela me analisar.

— Não conseguiu lembrar de nada? — ela pergunta. — Uma sensação de déjà-vu? Um rosto que pareça familiar?

— Às vezes, eu até penso que lembrar seria mais fácil, ou pelo menos fingir que lembrei.

— Fingindo, você não resolveria o problema.

— Mas pelo menos vocês me deixariam em paz, mesmo que eu não estivesse em paz.

— Você não precisa se enganar. Mas acreditar na veracidade deste mundo é ainda mais importante do que lembrar da vida que você já teve aqui.

— Acho que nossa sessão acabou — digo, olhando as horas no meu celular.

— Você saiu da máquina há quase um ano, Lúcio — lembra a psicóloga, ignorando meu aviso. — Por que acha que é tão difícil se acostumar com este mundo?

— Porque eu ainda tenho vontade de voltar pro outro — confesso. — Vocês me disseram que fiquei lá dentro por cinco anos. Como espera que eu mude minha percepção tão rápido?

— Não espero, só quero que melhore. Você ainda duvida que tudo isto é real?

— Eu sinto, vejo, provo, toco. Aqui é real o suficiente para mim, mas lá também parecia ser.

Saio da terapia muito pensativo e, ao mesmo tempo, cansado por ficar revivendo e remoendo tanta coisa. Estou cansado de não lembrar o que eles querem e de tentar práticas que prometem estimular meu cérebro. Sequer sei se acredito neles, mas muitas vezes desejo que estejam certos só para eu não precisar lutar pela minha verdade. Uma resposta definitiva é o que preciso. Mas continuo nessa espécie de limbo entre o não lembrar e o não acreditar.

Deixo o prédio da MakingDreams, localizado no centro da cidade, e lembro de quando saí dele pela primeira vez. Eles só foram me liberar algumas semanas após eu ter acordado da máquina de imersão, quando tiveram certeza sobre a minha integridade física. Mas meus problemas não acabaram. Eles quiseram me acompanhar, trabalhar para que eu lembrasse, garantir que eu aceitasse e me adaptasse. Os primeiros dias de liberdade foram marcados por estranhamentos e choques constantes, novidades e descobertas que eu precisei assimilar. Não só os carros voando ou os prédios tão altos a ponto de eu não conseguir contar os andares. Aqui é outro mundo, com suas práticas, costumes, normas, objetos, cheiros e gostos que jamais imaginei — mas que, segundo eles, já fizeram parte da minha vida.

O chip já estava no meu pulso. Sempre esteve, eles disseram. É assim que se paga por produtos e serviços em qualquer estabelecimento de Oceanïc. Aprendi a posicionar meu braço nos locais indicados para ter o pulso lido e o dinheiro descontado da minha conta, um sistema totalmente integrado à minha identidade. Um chip que permite identificação e acesso. Sem ele, é impossível existir e viver aqui. Com ele, comprei livros digitais para iniciar minha pesquisa e procurar uma forma de voltar para meu mundo. Mas não obtive resultados; as únicas menções que encontrei sobre magia estavam em obras de ficção.

Ando pela avenida movimentada. Já estou familiarizado com as ruas da região, mas só porque elas fazem parte da minha nova rotina. O cotidiano grita em minha mente todos os dias, dizendo que estou aqui e que preciso continuar vivendo. Por isso estou pensando em procurar emprego. Não que eu precise; a indenização que me pagaram é suficiente para viver bem por muitos anos. Mas para ter alguma ocupação que faça eu me sentir responsável por algo. Um trabalho que me deixe cansado, que me force a pensar em outra coisa.

Algo que me tire do meu refúgio clandestino.

Se eles souberem o que ando fazendo à noite, no meu quarto, talvez voltem a considerar me colocar em uma clínica. Com certeza serei internado, mas é o meu refúgio. Eu seria declarado louco por estar fazendo algo que me mantém são, que me faz suportar esta realidade a qual não pertenço.

Tudo aqui parece ter saído de esferas, de feitiços mais consistentes e poderosos do que aqueles ensinados durante a minha graduação. Esta cidade parece uma grande esfera de feitiços misturados. Enquanto caminho por ela e tento aceitar sua veracidade, desejo encontrar outra parede invisível. Desejo chegar ao limite para destruí-lo, mesmo que seja com minhas próprias mãos.

Eu sinto falta da magia. Sinto falta de ter uma esfera para cada feitiço e de poder usá-las nos mais variados contextos, resolvendo o que eu quiser de maneira fácil e rápida. Sinto falta de estar no controle, de não me sentir tão manipulado e de não precisar mentir dizendo que estou bem.

Minha caminhada é curta. Chego ao Silver Burger mais próximo do consultório. É a rede de fast-food mais frequentada de toda a cidade. No início, achei desnecessária aquela ideia de pão prateado, mas foi só mais um elemento da cidade que estranhei. Acabei me rendendo e sendo conquistado pelo sabor. Sempre venho aqui após a terapia, apenas para adiar o momento de voltar para casa. Espero a tarde avançar e o sol se pôr para só então continuar meu caminho.

Gosto de caminhar pela noite e do efeito dos faróis dos carros no céu. Há coisas boas aqui, admito, momentos e lugares em que quase esqueço meus problemas. Há algumas vantagens, eu reconheço. Não sinto falta, por exemplo, dos Ferais que surgiram no meu mundo. Aqui não há destruição, é tudo muito próspero. Minha mente é o que conheço de mais fragilizado e destruído.

Faço o pedido de sempre no Silver Burger e me sento em um ponto intermediário entre a janela e a televisão que há no salão. Gosto de assistir ao telejornal que passa nesse horário enquanto dou uma espiada no movimento lá fora. Quando estou na metade do lanche, o âncora do jornal anuncia o lançamento de um novo jogo imersivo. Inicialmente, não reparo muito na notícia, porque estou cansado de ouvir falar sobre jogos eletrônicos e realidades artificiais, mas logo um dos atores entrevistados chama minha atenção. Conheço esse rosto. A tela mostra Caio um pouco mais velho, contando como foi participar do projeto.

Enquanto ele fala, outro nome aparece na legenda.

— Tive minha imagem capturada em outros jogos, mas sempre para a criação de papéis menores. No meu primeiro trabalho, A Última Esfera, eu era uma das opções de romance, mas havia tantas que nem sei se alguém me escolheu como namorado. — Ele e o entrevistador riem. — Agora eu estou guiando o protagonista durante a aventura, sou um coadjuvante obrigatório na jornada de todos. Já gravei a maior parte das minhas cenas e posso dizer que o enredo está incrível, cheio de surpresas.

— E quando o jogo será lançado? — pergunta o entrevistador.

— Ah, isso eu não posso revelar. Na verdade, nem eu mesmo sei. Só posso dizer que está sendo ótimo trabalhar mais uma vez com a MakingDreams.

A imagem é trocada para dar lugar ao trailer do jogo. A câmera com perspectiva em primeira pessoa mostra uma invasão alienígena. Durante o ataque, Caio (que não se chama Caio) ajuda o protagonista a escapar, a se esconder e a fazer planos para roubar uma nave e fugir do planeta. As legendas prometem um jogo de exploração em inúmeros planetas diferentes. Vejo Caio pilotando aquela nave e me lembro dele dirigindo o nosso carro. As roupas e o cabelo o transformam mais do que a passagem dos anos. Só eu sei o quanto o amei e como foi morar com ele durante todo aquele tempo. Todos os dias que passamos juntos foram reais o bastante para mim. Eu daria tudo para voltar e poder estar com ele de novo, mesmo nos momentos difíceis nos quais pensei em desistir. Eu daria tudo, pois aqui não tenho nada. Nada nesta cidade parece meu ou feito para mim.

Pela primeira vez em muito tempo, sinto vontade de chorar, e não apenas por causa de Caio; sua imagem foi catalisadora para aumentar a falta que sinto de todo o resto. Mas não farei isso em público. Decido me levantar e ir embora, percorrendo o caminho até a estação de metrô mais próxima. Entro no metrô, que é muito diferente do que havia no meu mundo. Este não anda apenas em túneis, mas também serpenteia por entre os prédios como se fosse um carrinho gigante de montanha-russa sustentado por trilhos finos.

Uso meu pulso para pagar a passagem na catraca e espero o trem na estação, preparando-me para a viagem. O trem que pego está lotado; fico me perguntando quantas pessoas se sentem deslocadas aqui, indo e vindo, contribuindo para a movimentação cotidiana.

Meus familiares e amigos insistem em tentar fazer com que eu me sinta parte de Oceanïc. Eles possuem provas de que minha história começou aqui: fotos, vídeos, documentos, relatos. Um passado repleto de inadequações e ausência de sentido. Eu evito todos. Não saio, não interajo, não gosto de ficar muito tempo fora de casa. Mantenho distância até dos meus pais. Evito tudo que é suposto, e então evito tudo.

Entro em casa e tento ir direto para o quarto, mas hoje minha mãe insiste para que eu jante com ela e com meu pai, mesmo eu argumentando que não estou com fome.

— Você precisa parar de comer na rua. Não é saudável, e não vou mais permitir que faça isso para nos evitar.

Penso em discutir ou simplesmente me retirar como fiz outras vezes, mas estou cansado demais para tomar qualquer atitude combativa. Acho que o pior de estar com os dois é ela me tratar como criança. Deve ter sido difícil perder o único filho para uma espécie de coma, mas não consigo corresponder ao afeto deles. Nem mesmo ter compaixão. Eu nego tudo, e serei resistente a tudo enquanto eu não lembrar. E eu quero me lembrar de algo. Qualquer coisa, um gesto bobo ou uma sensação, o sabor da comida que meu pai prepara, os livros na estante do meu quarto que sequer sei se cheguei a ler.

Eles servem a comida, e fico remexendo no conteúdo do prato com o garfo, pegando pequenas porções só para não ficar imóvel. É constrangedor tanto para mim quanto para eles. Respondo às tentativas de estabelecer um diálogo com respostas curtas que impedem a continuação dos assuntos. Não quero conversar com eles.

Olho pouco para os dois, mas, quando arrisco um breve olhar, percebo que meu pai está à beira das lágrimas e que minha mãe está prestes a gritar. Eu estou apático, sem me importar com o que há aqui. Nem mesmo com eles, que deveriam significar amor e cuidado, ainda que eu precise de cura e restituição. Às vezes, sinto pena deles; meu retorno não reestruturou a família que tinham. Fui devolvido a eles apenas em corpo e presença. Somos estranhos.

Quando o momento constrangedor se encerra, minha mãe retira os pratos, levando o meu ainda com mais da metade da comida. Levanto-me, mas, antes que eu consiga sair, meu pai me segura pelo pulso, sem colocar força, apenas pedindo para que eu espere e ouça o que ele tem a dizer.

— Você podia tentar mais, ou pelo menos agir como se isso importasse.

Quero dizer que eu não consigo me importar com algo que desconheço e que sinto ser falso. Em vez disso, apenas solto o braço e caminho até meu quarto.

Eu sempre fecho a porta antes de destrancar meu armário, não sei o que eles fariam se encontrassem os óculos de realidade virtual que guardo ali. É como se eu estivesse fazendo algo errado, como se eu fosse um adolescente escondendo pornografia. Mas o que faço não é excitante: é reconfortante. Os poucos momentos de paz que encontro nos meus dias.

Abro o aplicativo no celular, ligo os óculos e o controle. O feitiço no qual estou preso construiu uma realidade tão enganosa que ela até me permite acessar a realidade que conheço. Ou talvez eu esteja de fato no mundo real. Só sei que estou confuso demais. É ruim ficar assim por tanto tempo, sem saber em qual história acreditar, sem confiar em mim mesmo para definir qual dos dois mundos é verdadeiro.

Não tenho uma máquina de imersão, estou me virando com a versão do jogo em realidade virtual. É estranho usar os controles enquanto meus olhos observam toda a movimentação, mas meu corpo se mantém parado. Imagens realistas, mas com uma sensação artificial. Eu interajo, eu faço, eu decido; mas ainda são ações mediadas por objetos perceptíveis. Desejo algo mais próximo de um sonho. Eu quero voltar a dormir dentro da máquina, fazer parte dos fios e da eletricidade como se ela estivesse em minhas veias, como se meu corpo também fosse sintético.

Sento em um canto do quarto, em silêncio, e me preparo. A imagem nos óculos exibe o título do jogo, A Última Esfera. Seleciono o arquivo que deixei salvo. Eu já pensei em entrar na Justiça com um pedido de estadia permanente, mas tenho medo de ser considerado um caso perdido e ser afastado do jogo de forma definitiva. Eu ficaria mais tranquilo jogando para sempre, mesmo que isso envolvesse o risco de esquecer o mundo aqui fora. Se eu não esquecesse, poderia pelo menos agir como se apenas a realidade reconfortante existisse.

O jogo carrega, e me vejo no ponto em que parei da última vez, perto da fábrica de feitiços. Visualmente, é como estar de volta ao meu mundo, mas, ao mesmo tempo, ainda preciso usar os controles para andar e interagir com tudo; não é uma experiência imersiva completa. Eu me movimento pela cidade familiar, meus olhos e minha mente acompanhando tudo, porém meu corpo está parado e ainda preso a um lugar no qual não acredito e do qual não me lembro.

Quase tudo está em seu devido local. As esferas estão na bolsa que levo ao lado do corpo, meu trabalho é o mesmo e os procedimentos para fabricar poções são iguais, assim como toda a geografia e as construções. Só não consegui comprar a mesma casa de antes, então estou em outra. E não reconquistei Caio, então estou sozinho. Em uma das vezes que joguei, eu até o encontrei, e pudemos conversar por um período, mas não consegui fazê-lo se apaixonar por mim. Sou um completo estranho para ele.

Sim, joguei diversas vezes. Sempre que os Ferais aparecem, eu desligo e reinicio tudo. Recomeço do zero, mas permaneço na parte boa. Não quero reviver a destruição, não quero o momento que remete ao fim do mundo e ao despertar. Acordei para o desfecho. Acordei para não ter as devidas memórias e para permanecer revivendo o mundo indevido. E eu jogo porque não consigo me lembrar de uma realidade e nem esquecer da outra. Eu jogo porque é o que me mantém a salvo, mesmo me destruindo. É como estar em duas realidades ao mesmo tempo, ambas falsas e verídicas. Mundos paralelos que não sei mais diferenciar.

A foto quadrada mostra uma homem negro de pele clara e cabelos pretos e crespos, ligeiramente compridos. Ele está sentado com uma das pernas cruzadas, olhando para sempre e sorrindo. Está vestido com calças jeans, sapatênis e uma camisa polo preta. Ao fundo, é possível ver uma estrutura arquitetônica branca em formato de oca (provavelmente a Oca do Ibirapuera).

Waldson Souza é brasiliense, formado em Letras e mestre em literatura pela UnB. No mestrado escreveu dissertação intitulada “Afrofuturismo: o futuro ancestral na literatura brasileira contemporânea”. Seus trabalhos acadêmicos abordam questões
sobre afrofuturismo, ficção especulativa e autoria negra. Já tentou dividir pesquisa acadêmica e escrita ficcional, mas logo aprendeu que os dois trabalhos, querendo ou não, influenciam um ao outro. Hoje essas duas partes coexistem e convivem pacificamente — na maior parte do tempo. É autor de Oceanïc (Dame Blanche) e do
conto “Eletricidade em suas veias”, presente na coletânea Vislumbres de um futuro amargo (Agência Magh).

Bárbara Prince é editora, revisora e preparadora de textos, além de ministrar palestras e cursos sobre produção de livros. Trabalha no mercado editorial há 10 anos e, durante seu período como editora da Aleph, editou mais de 40 títulos de ficção científica. Hoje em dia atua como freelancer, além de escrever resenhas e gravar vídeos sobre suas leituras no blog literário Sem Serifa.

A foto quadrada mostra uma mulher branca de cabelos castanhos claros, lisos e bem curtos. Ela está olhando para frente, com os braços cruzados na frente do corpo, sorrindo sem mostrar os dentes. Usa óculos de grau com armação clássica de Ray-Ban e uma camisa amarela com pequenos robozinhos coloridos. Usa também uma correntinha com um pingente de R2-D2 do Star Wars.
A foto quadrada mostra um homem branco de lado, curvado sobre o que parece um desenho em uma mesa. Tem o que parece uma caneta na mão. Tem cabelos e barda de comprimento médio, castanho escuro. Está vestido com uma camiseta preta.

Tiago Elcerdo Lacerda, nasceu em Volta Redonda em 1979. Desistiu dos estudos de Física para se tornar um ilustrador e quadrinista.
Em 2005 se formou em design e começou a trabalhar com o cartunista Allan Sieber fazendo animações para TV e cinema. Hoje, editor e autor da Revista Beleléu, que começou com uma revista em quadrinhos em 2009 e se tornou um dos importantes selos de quadrinhos da cena independente do Rio de Janeiro, se divide entre o mercado editorial, ilustrando para os principais jornais e revista em circulação, publicação de histórias em quadrinhos e ilustração de livros infantis.