A ilustração da capa mostra uma pessoa de costas. Ela tem um quadril largo, cabelos curtos e castanhos e uma mão e uma perna com próteses mecânicas. Está à porta, recebendo um homem alto, magro e de cabelos castanhos. Ele veste calças marrons, suspensório, camisa de manga comprida mostarda, gravata escura e óculos de lentes redondas. Tem tatuagens nas mãos e no pescoço e traz um guarda-chuva na mão. Há um gatinho se esfregando no pé do recém-chegado. O fundo da capa é majoritariamente cor de vinho. No topo da capa, Mafagafo é escrito em uma fonte tremida, vermelho forte. O título “Cabaré em Chamas” vem abaixo, do lado direito. Do lado esquerdo, há o logo da Mafagafo com a informação “Temporada 003 - Janeiro de 2020” e, abaixo, vêm as informações “Escrito por H. Pueyo” e “editado por Flavia Lago”. Acima do título da Mafagafo, há as informações “Ilustração: Dante Luiz” e “Direção de Arte: Giovanna Cianelli”.

Ariadne é uma das únicas médicas humanas no Brasil especializadas em tratar gūls, criaturas carnívoras de rápida regeneração que se alimentam de gente. Apesar de jovem, ela foi criada por um imigrante soviético chamado Erik Yurkov, que desapareceu anos atrás sem deixar nenhuma explicação. Ariadne não quer ouvir falar dele nem pintado de ouro, mas um misterioso gūl chinês chamado Quaint bate em sua porta, insistindo que Erik foi sequestrado. Juntos, os dois precisam navegar pelo submundo da elite gūl brasileira para encontrá-lo e para descobrir a verdade por trás da conspiração política que sumiu com seu mentor.

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I. FIO DE ARIADNE

Fogos de artifício estouravam do lado de fora quando ele apareceu em sua porta. Os vizinhos tinham o costume de soltar rojões durante jogos de futebol ou na hora do telejornal, mas o barulho parecia ainda mais alto naquela noite, trovejando acima dos prédios como balas em um tiroteio. O visitante insistiu que não tinha sobrenome, tal qual a tradição de sua gente, e que preferia se apresentar como Quaint. Era seu sobriquet desde mil e oitocentos, ou assim disse, presente de sua já falecida esposa, que o achava tão excêntrico.

Sua verdadeira idade, porém, aparentava ser um limbo nebuloso entre os trinta e os cinquenta anos, mas certamente era mais, muito mais.

— Olá, doutor gūl — disse Quaint, mostrando apenas o queixo anguloso e o guarda-chuva preto na tela do vídeo-porteiro. — Quanto tempo.

Ariadne não queria abrir a porta depois do toque de recolher, muito menos deixar um homem entrar quando estava sozinha, mas assim o fez. Talvez pela certeza na voz de Quaint, indicando uma intimidade que os dois não tinham, ou mesmo pela curiosidade em saber o que um espécime macho, adulto e saudável poderia querer com ela. Seus pacientes costumavam ser idosos e debilitados, inofensivos na maior parte do tempo, e a presença de um gūl maduro a intrigava.

Arrependeu-se assim que o viu, e um arrepio desagradável desceu por cada vértebra de sua coluna. Quaint estava parado na escadaria, apenas o contorno de um homem alto e robusto no corredor escuro.

— Você é a Sra. Yurkov, por acaso? — Quaint sacudiu o guarda-chuva, e suas palavras ecoaram pelo corredor: acaso, acaso, acaso.

Era uma pergunta estranha. Ariadne encarou a placa da porta que anunciava “Erik Yurkov, médico geral” logo abaixo do número 201.

— De certa maneira — respondeu, sua voz quase um sussurro. Vê-lo ali era como ver um tigre na penumbra, quieto, farejando e atento.

Quaint subiu um degrau, e sua sombra esticou-se pelo chão até a porta do apartamento.

— Nunca pensei que Erik moraria com outra pessoa — comentou, secando as mãos nas calças. — Você é esposa dele? Filha, talvez?

Ariadne deu um passo para o lado a fim de deixá-lo entrar na casa. Não sou mais nada dele, quis dizer, mas acabou respondendo:

— Aprendiz.

— Ah! Outra doutora gūl?

Sob a luz, Quaint era outra pessoa: o cabelo preto penteado para trás e raspado embaixo, a pele cor de ocre-dourado, o nariz largo e os óculos redondos e escuros que a impediam de ver os olhos por trás das lentes, apesar de senti-los sobre si. Ele vestia uma camisa mostarda, suspensórios e calças pretas, e os sapatos ainda estavam molhados pela chuva. Seus dedos estavam cobertos de anéis pesados, mas o que chamou a atenção de Ariadne não foi a roupa extravagante, e sim as tatuagens que cobriam suas mãos, pescoço e o pouco de peito que aparecia sob o colarinho.

— Espera. — Ariadne sentiu-se ouriçar como um bicho acuado, apertando a maçaneta com força. — Você é humano?

— Por que a pergunta? — As pontas das presas pontiagudas apareceram em meio ao sorriso, acabando com a possibilidade de Quaint ser uma pessoa comum. Gūls maduros podiam ter até dez pares de dentes afiados, espelhando molares, pré-molares e caninos humanos.

— É a primeira vez que vejo um gūl tatuado. Como…?

Ariadne olhou de soslaio para a tesoura no aparador. Quaint era o dobro de seu tamanho, e a ideia de ficar sozinha com ele no apartamento agora parecia ridícula. Se ele fizer alguma coisa, eu pego a tesoura, pensou, mas não precisou ir tão longe. Depois de um momento de silêncio, ele caiu na gargalhada.

— Uma visão incomum, eu sei — disse em meio à risada, uma das mãos cobrindo os dentes que teimavam em aparecer. — É por isso que estou aqui. Minhas tatuagens estão desbotando mais rápido que o normal.

— Você é masoquista?

— Nem um pouco. — Quaint ergueu duas sobrancelhas esfumaçadas, e ela se encolheu como se o mero gesto pudesse machucá-la. — Mas não é nada demais, tenho certeza. Erik vai saber o que fazer. Pode chamá-lo, senhorita…?

— Ariadne. E não, não posso.

Outro rojão estourou no céu, seguido de gritos e assobios. Escapar não era uma alternativa, a não ser que conseguisse passar por ele.

— Veja bem, senhorita Ariadne, sei que cheguei sem aviso prévio e que você tem um temperamento e tanto — começou Quaint. — Mas Erik e eu somos amigos há muitas vidas. Preciso falar com ele o mais rápido possível.

— Em primeiro lugar, senhor Quaint… — Ariadne respondeu com calma. Suas pernas doíam, e a fronteira entre a prótese e a coxa já começava a ficar desconfortável. — Você não sabe como é meu temperamento. Segundo, eu não posso chamar Erik porque ele não está aqui. Ou em lugar algum. Pode até estar morto, no que depender de mim.

Quaint abriu a boca para retorquir, mas, como um balão desinflando, desistiu imediatamente. Seus ombros caíram, uma dobra profunda de pele apareceu em sua testa e ele apertou o dedo anelar, pressionando um dos anéis.

— O quê…?

— Ele foi embora, senhor Quaint. Desapareceu cinco anos atrás e nunca explicou o porquê.

— Apenas Quaint, por favor.

— Deduzo que não seja daqui pelo seu nome, suas roupas, e pelo fato de nunca ter visitado a clínica, apesar de dizer ser amigo dele…

— Dedução correta. Eu morei muito tempo no Brasil, mas voltei para o meu país em 2009. O tempo…

— …Passa diferente para gūls. Eu sei. Bom, sinto muito ser a portadora das más notícias, mas não vai achar nada do Erik aqui. — Ariadne mexeu no chaveiro pendurado na porta, ouvindo miados vindos do andar de cima. — O senhor agora tem a opção de ir embora e procurar ajuda em outro lugar, ou de me explicar seu problema.

Quaint sorriu de lado, mas sem a força da risada anterior.

— Rá! Agora eu entendo por que Erik escolheu você como aprendiz. Tem ousadia pelos dois. — Enfiando as mãos nos bolsos, Quaint virou-se em direção à sala de atendimento. — Peço perdão pela verborragia, senhorita Ariadne, eu não esperava ouvir uma notícia dessas.

— Quer entrar?

— Por favor.

Anos depois, Ariadne continuaria se perguntando se Quaint sabia que entraria naquela clínica para ficar, como sempre pareceu saber mais do que os outros à sua volta. Se sabia, nunca disse a verdade, e parecia tão sincero quanto ela havia sido. Ele a seguiu até o consultório e desabotoou a camisa, mostrando a tatuagem central em seu peito, já desbotada. Dois corvos frente a frente, um em cada ombro, as asas se encontrando no peito. O desenho preto já estava azulado, ao contrário do leão de guarda no pescoço, recém-feito.

— Posso tentar misturar um metal mais pesado à tinta. — Ariadne tocou de leve a tatuagem no interior do braço dele, um ramo de guaraná cujos frutos pareciam olhos abertos e implicantes. — O problema é sua velocidade regenerativa, evidentemente, apesar de eu não ter certeza sobre o que fez isso mudar de uma hora para outra. Vou ter que pesquisar.

— Obrigado, Ariadne, e peço perdão por ter vindo tão tarde. — Quaint fez um gesto discreto com a cabeça e pegou o celular do bolso. Um berro do lado de fora interrompeu sua pausa, mas Ariadne sacudiu a cabeça, consentindo que ele saísse. — Antes de ir…

— Sim?

— Nada, nada. Ligarei em breve para marcar nossa próxima consulta.

Dias depois, um número desconhecido, código +86, contatou a clínica sem parar. No começo, Ariadne pensou em não atender; seus pacientes costumavam aparecer sem marcar horário, e as poucas ligações que recebia eram trotes de prisões em São Paulo e no Rio de Janeiro. O toque insistiu do começo da manhã ao fim da tarde, até ela pegar o fone e ouvir as mesmas palavras da semana anterior.

— Olá, doutora gūl.

— Quaint. — Ariadne prendeu a respiração. — Você de novo.

— Se perdoar minha insolência… — começou, a voz misturada às buzinas dos carros do outro lado da linha. — Eu gostaria de ir à clínica. É sobre Erik. Acha que seria possível?

Ela queria que o assunto Erik continuasse esquecido e intocado, como estivera até então, mas se sentiu obrigada a aceitar.

— Preciso ver uma paciente em dez minutos. Depois disso, tudo bem.

Combinaram de se encontrar às 16h30. A Rua da Encruzilhada era um beco residencial tranquilo em Vitória, Espírito Santo, e tinha apenas três negócios pequenos: a farmácia de manipulação de Dona Terebê, uma gūl pequenina e encarquilhada que morava na América do Sul desde antes da invasão portuguesa, a clínica de Erik no andar de cima e o café de Boniface na esquina. O último era outro de seus pacientes, um imigrante italiano cuja presença atraía uma clientela regular de gūls anciões que precisavam de cuidados.

Ariadne se sentia mais segura com os dois por perto, apesar de saber que a dieta deles consistia em carne, sangue e ossos de gente como ela.

Com um suspiro, trocou a calça de pijama por um moletom cinza, cobrindo a pele pálida e acastanhada, botou uma camiseta de manga comprida para esconder a pele sintética das próteses dos braços e uma curta por cima, que fazia o volume dos seios parecer menor. Ao menos não teria que sair de casa — odiava ser vista por outras pessoas e, se pudesse, fundiria-se à rua como um camaleão, tomando para si a cor dos postes e do asfalto.

É sobre Erik, Quaint tinha dito, e ela precisou estapear as próprias bochechas de leve. O reflexo a encarou de volta: a cabeça raspada, a boca grossa e estreita, as olheiras escuras sob os olhos pretos e afiados. Depois disso, não penso mais nele.

Quaint chegou às 16h28. O terno bordô de três peças a fez se sentir horrivelmente malvestida, mesmo estando em casa.

— Algo errado? — Quaint perguntou quando ela abriu a porta. — Você parece ansiosa.

Ariadne fez um sinal para que ele a acompanhasse até a sala de estar.

— Nada.

— Deixa eu adivinhar — continuou, andando atrás dela. — Erik nunca falou de mim antes, não é mesmo? É a cara dele não ter dito nada.

— Não, nunca.

Quaint se sentou no sofá, tocando de leve em um dos vários anéis memento mori espalhados por seus dedos compridos. A gata angorá branca que Ariadne achara na rua se esfregou nas pernas dele, miando, e ele coçou as orelhas dela.

— Típico. Teria sido de bom tom se ele tivesse me contado a respeito de você também, já que você herdou a clínica e eu herdei a chave do depósito. Se algo acontecesse, seria lógico um contatar o outro.

— Depósito? — Ariadne se sentou na poltrona à frente. Tinha passado um bom tempo olhando para os anéis do gūl: um deles era uma caveira sobre ossos cruzados, decorada com rubis, e outro era um anel de ouro com o que parecia ser uma mecha de cabelo humano trançada dentro de uma caixinha de cristal.

Quaint tirou uma chave do bolso interno de seu paletó e a girou no indicador.

— A única cópia. Nunca perguntei o que ele guarda lá, e ele nunca me contou.

— Onde fica esse depósito? — Ariadne se levantou para pegar a chave e olhou para o rótulo de plástico do objeto. Estava escrito em mandarim, mas ela não entendeu o significado.

— No escritório, é claro.

— Não tem nada no escritório.

Erik tinha levado tudo. Só sobraram os móveis esvaziados, carcaças de madeira no escritório abandonado.

Quaint sorriu.

— Posso dar uma olhada?

Ariadne deu de ombros. Deixou que ele subisse a escada que levava ao andar de cima e o seguiu, com a gata atrás dos dois. Quaint não a assustava mais, não muito, mas ela queria que o gūl ficasse dentro de seu campo de visão. Ele parou na última porta fechada com naturalidade, como se já tivesse visitado aquela casa muitas vezes, a casa que deveria ser dela.

— Quaint — Ariadne chamou logo atrás dele. — Onde vocês se conheceram?

— Que pergunta complicada. — Quaint abriu a porta, revelando o escritório com cheiro de guardado. Dentro estava a escrivaninha, a cadeira, as estantes e um gabinete enorme, com tantas gavetas, compartimentos e fechaduras que foram necessárias semanas até Ariadne acabar de checar tudo.

— Complicada demais para responder?

Quaint tocou em um dos painéis de intársia do gabinete, traçando a madrepérola. Ela odiava aquele móvel em especial, e havia tentado tirá-lo de lá várias vezes, mas era tão pesado, antiquado e escuro que parecia uma sombra incrustada na parede.

— Quando nos conhecemos, Erik era um garoto de vinte e três anos, sagaz como só ele, que descobriu o que eu era. Na época, achei que ele era gentil, curioso e inteligente, e pensei que não haveria mal em apresentá-lo ao meu mundo. Digamos que desde então ele envelheceu como uma fruta podre.

— Podre — repetiu Ariadne. — Não é assim que lembro dele.

— Nem é como eu quero lembrar. — Quaint tirou o paletó e o deixou dobrado sobre a cadeira. — Erik pode ter várias qualidades, mas seria mentira se eu dissesse que não discordo da maior parte das “curiosidades científicas” dele.

O fio, Ariadne ainda conseguia ouvir a voz de Erik, plácida e constante, o único estímulo no que parecia ser uma eternidade. Você precisa seguir o fio. Quaint a tirou de seu devaneio, estalando os ombros e o pescoço.

— E você? É raro Erik manter uma relação com outro ser humano.

— Eu tinha catorze anos. Tinha um problema de saúde, e ele me ajudou na recuperação — Ariadne comentou, surpresa com a frieza em sua voz. — Tudo o que tenho devo a ele. Minha casa. Meu trabalho. Meu corpo. Meu conhecimento. Até a proteção dos gūls da rua… Eu não estaria viva se não fosse por ele.

— Entendo.

Dito isso, Quaint apoiou as mãos na lateral do gabinete, erguendo o móvel como se fosse um brinquedo. Atrás, na parede empoeirada e com marcas de mofo, havia uma porta que não era aberta há anos.

— Ariadne — disse Quaint, de costas para ela. Ele espanou o pó da roupa e pegou a chave mais uma vez. — Como falei, não sei o que ele guarda aqui. Mas pode ter coisas…

— Sim?

— Coisas que podem impressionar você.

Quaint colocou a chave na fechadura, sem girá-la, e Ariadne assentiu com a cabeça.

O depósito nada mais era do que uma sala minúscula, pouco maior do que um banheiro. O chão estava coberto por uma camada grossa de pó, e dentro havia malas empilhadas, um baú, um gaveteiro pequeno, uma arara com roupas penduradas e vários protótipos de braços e pernas. Quaint acendeu a luz, e a gata os observou do escritório, as orelhas em pé.

— Tudo isso estava na minha casa e eu não sabia — Ariadne murmurou, mais para si mesma do que para ele. Antes de continuar, seus olhos pararam em uma bolsa esfarrapada com uma cruz vermelha. — Quaint?

Ao lado da bolsa, havia um uniforme militar esverdeado e antigo, complementado por um bibico com uma estrela na frente. Ariadne segurou a jaqueta no ar, a manga mais comprida que seu braço, uma única medalha no peito.

— Exército Vermelho — respondeu Quaint, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo. — Deve ter sido por volta de 1945. Deixa eu ver se acho algo aqui…

Ele tirou uma pilha de papéis do baú, e um punhado de fotos em preto e branco caiu no chão. Ariadne ajoelhou-se para pegar uma delas. Na fotografia, um jovem loiro usando óculos tartaruga sorria ao lado de uma mulher mais velha, cujo cabelo chanel aparecia por baixo do chapéu clochê e dava a ela um ar anacrônico. Atrás, estava escrito:

Para meu queridinho Erik

Com Amor, Genebra

Stalingrado, Verão de 1953

— Genebra e eu morávamos em Paris durante a guerra — começou Quaint, esticando o pescoço para olhar a foto. — Não me lembro muito dessa época. Suponho que as piores memórias que tenho de Erik afetem a recordação das melhores.

— Não tem como… — Ariadne continuou a olhar para o homem na foto. Ele parecia com Erik, sim, o mesmo sorriso, o nariz reto e comprido, a boca fina, os olhos caídos. — Erik não tem mais do que quarenta ou cinquenta anos.

— Ele nasceu em 1926.

— Ridículo. — Ela queria rir, mas tudo o que pôde fazer foi uma careta de desgosto. — Ele teria praticamente cem…

Quaint a encarou. Ariadne tentou imaginar o que se passava por trás daquelas lentes pretas e redondas — será que ele via uma lebre feia, sozinha e assustada? Uma mulher humana incapaz de ser gentil? Comida garantida? Uma criança, ingênua e inexperiente, prestes a entrar na boca do lobo?

— Erik não é um gūl — disse ele, recolhendo as outras fotos. — Se é isso o que você está se perguntando.

— Então como…?

— Podemos deixar essa história para outro dia? — Quaint perguntou com um sorriso críptico. Parou em uma das fotos que mostrava um homem de perfil fumando em uma sacada. Fumaça escapava de seus lábios, e tatuagens apareciam pelo colarinho da camisa fechada.

— Você não mudou nada.

— Muito gentil da sua parte.

— Quaint.

— Eu devia ter te avisado. Achei que você sabia que Erik é muito mais velho do que parece.

— Não, ele nunca…

— Sinto muito. Foi insensível da minha parte não ter pensado nisso.

Ariadne balançou a cabeça. O depósito agora parecia pequeno demais para os dois. Tentando não pensar nisso, engatinhou até o gaveteiro para ver o que havia dentro.

— Achou alguma coisa?

— Cadernos — Ariadne respondeu, pegando um com capa de couro. — Muitos cadernos.

— Ah! — Isso pareceu interessar Quaint, que se aproximou para espiar a gaveta. — Os diários. Isso pode ajudar.

Ariadne folheou o diário. Páginas e páginas escritas em russo, desenhos realistas feitos a lápis acompanhados por anotações diminutas, artigos de jornal guardados, embalagens de balas de caramelo toffee e frangalhos de plantas secas. Parou em um desenho em particular por ter reconhecido o rosto de Quaint: os mesmos óculos, as mesmas tatuagens, o mesmo sorriso. Ariadne conseguia ler o alfabeto cirílico, mas não era fluente em russo; Erik tinha lhe ensinado apenas o suficiente para ler uma coisa ou outra com dificuldade.

— Você nasceu na dinastia Ming?

Quaint se virou imediatamente, e Ariadne se permitiu um raro sorriso. Havia duas coisas que a maior parte dos gūls considerava privada: revelar a própria idade e comer na frente dos outros.

— É você. — Ela apontou para a página, tocando em um garrancho ao lado do desenho. — “Quaint é um gūl chinês, nascido na dinastia Ming. Um diplomata.” Tem algo mais, mas não entendi.

— Eu mesmo.

— Quaint não pode ser seu nome de verdade.

Quaint riu um pouco e pegou o diário para ver o que estava escrito.

— Não é. Nós, gūls, temos esse hábito impertinente de trocar de nome de tempos em tempos. Minha esposa costumava me chamar assim e acabou pegando… — explicou, cobrindo alguns dos anéis com a mão. — Talvez eu conte para você algum dia.

— Você é casado? — Ariadne levantou uma sobrancelha. Não conseguia imaginar de que tipo de mulher um homem assim gostaria.

— Viúvo. Mas já fui casado, sim, mais de uma vez. — Quaint pegou todos os volumes dos diários de Erik, passando os dedos pelas datas. — Aqui! Fevereiro de 2018. É a última página escrita. “Vou para a casa de Genebra amanhã, mas vou deixar meu diário no depósito antes disso. Não consigo parar de pensar no convite deles. O que mais preciso dizer para que me deixem em paz? Não quero isso de novo. Já fiz mal demais…”

— Espera aí. 2018… Erik foi embora em 2015.

— É o que está escrito. Tem mais: “Ainda não tive coragem de falar com Ariadne, mas amanhã não vou mais fugir. Me sinto mal de vir até a clínica e não falar com ela, mas é o melhor a fazer. Envolvê-la nesse caos é a última coisa que quero.”

Ariadne puxou o diário das mãos de Quaint, sentindo o coração bater mais rápido. Como ele ousava? Como Erik ousava entrar na casa escondido, enquanto ela dormia, sem nem olhar para a cara dela? Como descansar tranquila sabendo que alguém estivera ali e que ela nem tinha notado? Virou a página e percebeu algo escrito a lápis:

Quaint, se você chegar aqui, é porque preciso de sua ajuda.

Há pessoas que sabem o que eu fiz em 1975. Prometo ficar quieto. Vou pedir ajuda no Cabaré.

E.

Ariadne o espiou com o canto do olho. Quaint estava pálido, repetindo as palavras uma e outra vez sem fazer som algum.

— O que isso significa?

— Que a situação é pior do que eu imaginava — respondeu Quaint.

Você precisa seguir o fio, alguém sussurrava, tocando o cabelo preto e grosso que cobria sua testa. Você precisa seguir o fio. Ariadne acordou, ou achou ter acordado; sua mente estava desperta, mas o corpo parecia acorrentado ao colchão. Você precisa seguir o fio, Ariadne, a voz continuou, e ela sentiu como se alguém a sufocasse.

Ariadne moveu um dedo. Parte sua temia que ele se quebrasse, enquanto outra lembrava que qualquer pedaço de corpo abaixo dos joelhos e cotovelos podia ser consertado. Quando conseguiu abrir e fechar a mão, jogou o lençol para longe, exausta.

Filetes de luz entravam pelas persianas semifechadas, e o tablet ao seu lado dizia que eram onze da manhã. Quanto tempo fazia que não tinha esse sonho? Ariadne se sentou no colchão, massageando as próprias coxas e observando a interseção da carne com a fibra de carbono. A invenção de Erik era quase perfeita: braços e pernas robóticos que permitiam mobilidade plena, pele sintética removível, cálida e elástica, um implante neural e sensores delicados que permitiam que experimentasse tato, temperatura, pressão e até mesmo dor, tudo à prova d’água.

Tudo isso feito apenas para ela. Primeiro para seu corpo adolescente, depois para a mulher adulta. Eu quero que a sua vida seja o mais confortável possível, Erik havia dito, afagando o cabelo curto dela. Se eu puder ajudar ao menos um pouquinho nisso, eu serei o homem mais feliz da Terra.

Ariadne tocou na própria cabeça como Erik costumava tocá-la, sentindo a aspereza do cabelo raspado. Até a franja preta e suada tinha sido parte do sonho… Ao seu lado, o tablet mostrou uma notificação logo abaixo do horário, sob o nome de Quaint:

Tentei falar com Genebra, mas ela não atende.

Um conhecido disse que não a vê há mais de um ano.

Posso levar almoço para conversarmos?

Respondeu com um “sim” insosso e foi até o banheiro. O banho quente ajudou, mas não afastou o pensamento que a perseguia tal qual a voz fantasma de seu sonho: você deixou um gūl entrar em casa. De novo, de novo e de novo, desde a primeira vez em que abriu a porta para Quaint: um gūl em casa, um gūl em casa. Ariadne colocou a calça e saiu com a toalha ao redor dos ombros, indo até o escritório. E daí que tinha um gūl em casa? Qual era a pior coisa que podia acontecer?

Olha só pra você, Erik mais uma vez, o tom cheio de pena. Olha só pra você, agora era ela mesma, espiando as articulações robóticas expostas sem a pele. Isso não tem nada a ver com gūls, Ariadne respondeu a própria dúvida, furiosa. Para de inventar besteira.

Quase conseguiu ver Erik ao abrir a porta, mesmo que o escritório estivesse exatamente como o haviam deixado no dia anterior: o gabinete afastado, a porta do depósito destrancada, os papéis separados. Não era o Erik das fotos, mas o de suas memórias: o cabelo claro salpicado de grisalho caindo em seus olhos enquanto ele trabalhava, a pele branca manchada pelo sol, o nariz fino, levemente para baixo, a boca estreita de sorrisos fáceis.

Mas Erik não estava lá. Havia estado, enquanto ela dormia, ou nas raras ocasiões em que saía de casa. Tinha entrado escondido, falado com Dona Terebê, afastado um móvel imenso e antigo e deixado seus pertences no depósito. Ariadne suspirou. Quaint havia mandado mais uma mensagem avisando que estava para chegar, então ela voltou ao quarto, colocou a pele, o sutiã e a camiseta, e foi ao andar de baixo.

Ele apareceu dez minutos depois, carregando uma sacola com cheiro de moqueca.

— Espero ter escolhido bem — foi a primeira coisa que Quaint disse, deixando a sacola na mesa da sala de estar. — Como não posso provar, tenho a tendência de escolher pelo que acho que cheira bem e parece mais bonito.

Ariadne espiou a sacola. Era um absurdo de comida para uma única pessoa: salada, arroz, pirão e moqueca capixaba, além de vários bombons de sobremesa.

— Eu pareço comer tanto assim? — Arrumou a mesa para dois, mesmo sabendo que ele não comeria. Quaint ajustou os óculos com o dedo, o canto dos lábios virando para cima.

— Admito que sempre fui um pouco exagerado.

— Você já comeu? — Ariadne perguntou como quem não queria nada. Quaint sorriu ainda mais.

— Semana passada. Preocupada com minha dieta?

— Só pra saber se eu também tenho cheiro de comida pra você. — Ela se serviu de uma porção generosa do pirão. Se Quaint havia comido na semana anterior, logo ele precisaria se alimentar novamente. — Quantas presas você tem?

Quaint jogou a cabeça para trás, gargalhando, o pomo de adão movendo-se para cima e para baixo. Prestando atenção, ela conseguia ver claramente os caninos maciços.

— Dez pares, doutora. É preocupante?

— Pra mim é. Pra você, é excelente. Só conheci gūls com no máximo quatro pares até agora. Erik dizia que a média é seis. — Ariadne mastigou, olhando para o prato. — O dano deve ser grotesco.

— É de família. Minha mãe também tinha dez no seu auge, mas meu pai tinha sete. Você precisava ver o estrago que aquela criatura minúscula conseguia fazer. — Quaint coçou o queixo, os anéis brilhando na luz. — Eu morria de medo quando criança. Não que ela seja nem um pouco menos aterrorizante com oito pares.

— Você está tentando me assustar? — Apertando os olhos, Ariadne tentou imaginar como seria a mãe de Quaint, sem sucesso. — Espera, ela continua viva?

— Vivíssima — Quaint sorriu, abafando outra risada. — Às vezes acho que ela não vai morrer nunca. Ano passado, prometeu que eu morreria primeiro, então você imagine…

— Deve ser um caso fascinante.

— Mas pode ficar tranquila, Ariadne. Eu não sinto nenhum prazer em assustar humanos inocentes, nem em maltratá-los. Só como quem eu acho que merece.

— Isso significa que eu preciso cuidar para não te irritar?

— Não, você pode me desrespeitar ou me detestar o quanto quiser. — Quaint apertou os lábios em uma linha dura. — Ainda assim prefiro que sejam pessoas violentas, desprezíveis de alguma maneira. Se nunca passou pela minha cabeça tornar Erik uma refeição, duvido que você consiga. Você parece mais agradável que ele.

— Sobre o Erik…

— Sim?

— Achei que ia me contar algo a respeito dele.

Quaint juntou as mãos, parecendo refletir antes de dar uma resposta.

— Você já ouviu falar do Cabaré? — perguntou, a expressão tensa. — É o clube gūl mais tradicional do Brasil. Foi construído no Rio de Janeiro ainda no período colonial, apesar de ter mudado de endereço mais de uma vez. É nossa última pista sobre para onde Erik e Genebra foram.

— Você está pensando em ir até lá?

— Não estou pensando — respondeu. — Eu vou até lá. Comprei uma passagem para amanhã.

Ariadne olhou para ele. Quaint havia chegado sem aviso prévio, tão diferente do restante de sua vida, dos pacientes, de Erik, dela mesma. Parte sua queria cair na gargalhada e agradecer aos céus por poder voltar à rotina, onde se escondia dentro de casa e fingia que o tempo não estava passando, presa em um ciclo constante de dias iguais. Sem nenhuma daquelas pessoas horríveis que conhecera em sua vida, mas também sem estímulo ou empolgação.

— Ah — murmurou, fechando os pacotes para guardar o que sobrara da comida na geladeira. — Claro. E as tatuagens?

— Deve ser só estresse. Eu penso nisso outra hora.

Quaint abriu a boca como se tivesse algo mais para falar, mas desistiu antes de começar. Levantou-se atrás dela, ajudando a recolher o prato sujo e os talheres.

— Eu aviso você se tiver notícias. Certo?

— Certo.

O dia se arrastou depois que Quaint foi embora. Em menos de 24 horas, sua vida voltaria ao casulo de sempre, onde Erik tinha desaparecido e, caso estivesse em perigo, Quaint resolveria tudo sozinho. Ariadne atendeu Boniface à tarde, alimentou os gatos da rua e, à noite, ligou a televisão para assistir ao telejornal após o toque de recolher. O apito tocava religiosamente às nove em todos os bairros, e ela preferia manter-se distraída para não pensar no que acontecia do lado de fora naquele horário. A luz da sala havia queimado meses atrás, mas algo a impedia de comprar uma lâmpada nova, preferindo deixar a televisão ligada como se aquilo fosse luz suficiente.

— … A Casa Civil divulgou nota dizendo que o presidente repudia qualquer conexão com esquadrões da morte e que está focado em sua recuperação… — Ariadne destravou o tablet, abrindo a mensagem de Quaint. Começou a digitar, mas apagou tudo de novo. — … O presidente continua afastado após quebrar o quadril. Quem assume agora é o vice-presidente, que

Tomada por um ímpeto incompreensível, Ariadne digitou de novo e tocou no botão de enviar.

Quaint. Você me levaria junto para o Cabaré?

Erik me ajudou quando precisei. Quero ajudar também. Por favor.

Houve uma pequena pausa, onde ela conseguia ver que ele estava digitando. O telejornal deu espaço para as propagandas. Finalmente, Quaint respondeu:

Duas cabeças pensam melhor do que uma.

II. CABARÉ

Algo mexia dentro dela. Começou de leve, apenas roçando, e Ariadne sabia que outras pessoas não teriam se importado com a sensação, mas ela se contorceu em agonia. O desconforto transformou-se em dor, puxando, torcendo, fazendo com que ela quisesse vomitar. Depois veio um estalo, como uma bolha estourando. Sai, pensou, agoniada, olhando para baixo.

Só naquele momento notou que havia em seu abdômen um volume que não deveria existir. A barriga estava redonda e protuberante, o peito inchado e pesado, os joelhos doloridos. Não, pensou, horrorizada, arranhando a pele do torso, tentando tirar o que quer que fosse aquilo. Sai, sai, sai, gritou, ou pensou gritar, linhas vermelhas formando-se ao redor do umbigo.

Não pode estar acontecendo. Ariadne socou a própria cabeça. Não comigo, e as palavras viraram lágrimas enquanto ela puxava, batia, arranhava. Não conseguia suportar a sensação de ser tocada o tempo todo, de não poder controlar o que estava dentro de si. Queria ser pequena, invisível, intangível, queria…

— Ariadne?

Ariadne abriu os olhos. Seu corpo inteiro doía, e sua respiração estava ofegante. Quaint estava do lado de fora do táxi, segurando a porta para ela.

— Cochilei — murmurou, aceitando a mão dele para sair do carro. Ele levava a própria maleta em um braço e a mochila de Ariadne no outro. — Desculpa.

— Não tem problema — disse Quaint, andando a passos largos pelo Aeroporto de Vitória. Ele a buscara na clínica depois de Ariadne deixar a gata com dona Terebê. — A viagem é curta, mas você pode dormir um pouco no avião.

— Onde nós vamos ficar no Rio?

— Eu tomei a liberdade de reservar um hotel em Copacabana.

— Deve ter custado o olho da cara — comentou, tentando acompanhar o ritmo dele. O fluxo de pessoas era insuportável, gente indo e voltando em tudo que era canto, empurrando carrinhos e andando depressa em direção às filas.

— Dinheiro não é problema — Quaint respondeu, guiando-a até o embarque. — Deixa que eu me preocupo com isso.

Era invejável como ele se movia com facilidade naquele ambiente hostil, driblando corpos com destreza, tirando o passaporte e as passagens do bolso interno do paletó, atento para não a perder no caminho. Ariadne, por outro lado, nem sabia se já tinha viajado antes. Imaginava que sim, pelas perguntas que Erik havia feito quando ela acordara em sua casa, machucada e desorientada. Qual é o seu nome? Onde estão seus pais? Qualquer coisa ajuda: endereço, cidade, telefone…

Ariadne passou pelo detector de metais. Não tenho nome, mentira. Não tenho família. Não sei onde nasci. Mentiu muitas vezes, até que as memórias começaram a se misturar, e ela não se lembrava de mais nada mesmo. Esse não é meu nome, ela repetia como um mantra a cada vez que o antigo voltava à sua cabeça. Não sou mais essa pessoa.

— Ariadne? — A voz de Quaint a distraiu dos pensamentos. Ela olhou para cima para encará-lo, sentindo o pescoço doer. — Você está nervosa?

— Não — murmurou, segurando a própria identidade. A Ariadne da foto era a mesma Ariadne que enganara Erik: jovem, exausta, de cabelos escuros e olhos desfocados. — É que nunca viajei de avião.

— Entendo. — Quaint começou a andar mais devagar e estendeu o braço para ela. — Segura meu braço.

— Quaint?

— Permita-me essa pequena indulgência.

Ariadne segurou a manga da camisa mostarda, e Quaint cobriu a mão com a sua, fazendo com que ela abraçasse seu braço. Por um momento, conseguiu desfocar do trânsito humano entre um portão e outro, escondendo o rosto contra ele, sentindo o cheiro da colônia, a textura do tecido, a calidez não humana, mas viva, tão viva… Só notou que já estavam no avião quando ouviu as vozes das aeromoças — Bom dia, senhor, bom dia, senhorita, bom dia, bom dia — e Quaint tocou de leve em seus dedos.

— Você quer sentar na janela? — ele perguntou, parado diante dos dois bancos da primeira fileira. — Assim você pode apreciar a vista quando chegarmos ao Rio.

Ela sacudiu a cabeça, inquieta. Quaint se agachou para deixar a mala embaixo do assento, e Ariadne fechou os olhos mais uma vez, consumida pela sensação horrível de que insetos subiam dos seus ombros até seu pescoço, das suas coxas até a virilha, como dedos roçando em sua pele.

Dedos que agarravam, segurando, batendo, esganando; dedos de uma mão que a mantinha imóvel, de um corpo que respirava sobre si, ofegando o nome que teimara em esquecer até ela começar a odiar aquela palavra feia e a implorar para ser chamada por outro nome, qualquer nome…

— Pode segurar de novo — Quaint disse ao seu lado em voz baixa, trazendo-a de volta para a realidade. Ariadne tocou na camisa, olhando as mangas recém-arregaçadas, e seus olhos pararam fixamente em uma das tatuagens. Parecia o grampo de cabelo de uma mulher, decorado cuidadosamente com flores e folhas delicadas.

Tocou de leve na tatuagem, e Quaint sorriu.

— O que é?

— O grampo do meu primeiro amor — ele murmurou, olhando para a tela apagada da televisão à sua frente. — Ela o quebrou ao meio e deixou uma das partes comigo para que pudéssemos estar juntos para sempre. Nem lembro mais quantas vezes refiz essa tatuagem.

Não soube o que responder. Quase conseguia visualizar o grampo do jeito que deveria ter sido na vida real: fino e dourado, com pérolas em cada pétala e um rubi centralizado.

— Você está se torturando com isso — disse Ariadne. — Com tantas tatuagens.

— Todo mundo tem uma forma diferente de lidar com as próprias memórias. — Quaint deu de ombros. — Mas talvez você tenha razão.

Ariadne passou os trinta minutos seguintes de olhos fechados, tentando imaginar como seria viver por séculos como um gūl. Sabia que eles acreditavam que todos, humanos e não humanos, eram parte de um ciclo de reencarnações que envolvia corpos, épocas e lugares diferentes. Erik havia dito que ele mesmo começara a acreditar depois de ter contato com a cultura gūl, e que achava ter feito os mesmos amigos em muitas vidas: na União Soviética, na Inglaterra, no Marrocos, na China.

Perguntou-se se Quaint havia casado com a mesma pessoa uma e outra vez. Será que ele sabia no momento em que a via? Será que não fazia ideia? Ou será que nunca reencontrara a moça do grampo de cabelo?

— Estamos quase lá.

No Galeão, foram direto para a fila de táxis amarelos, e Ariadne ficou grata por Quaint sentar-se no banco da frente depois de ajudar o taxista a colocar as bagagens no porta-malas. Queria focar em ver a paisagem de uma cidade que não conhecia, mas o rádio estava ligado, e ela conseguiu entender alguns trechos das notícias:

… Rastros de sangue na avenida, a polícia está investigando… O número de moradores de rua desaparecidos em grandes capitais aumenta mais uma vez…

— Pode abaixar o rádio, por favor? — Quaint pediu, puxando o quebra-sol. Ariadne teve a impressão de que ele a olhava pelo reflexo, mas não tinha como saber pelos óculos escuros. O taxista deixou o volume no mínimo. — Obrigado.

O hotel que Quaint havia reservado ficava perto da praia, uma construção enorme e exuberante cuja fachada branca ela só apreciaria no dia seguinte. Às 19h40, as luzes das janelas estavam quase todas acesas, e as palmeiras eram apenas sombras na calçada.

— Vamos, vamos — Ariadne chamou, olhando o horário no relógio do pulso dele. — Antes do toque de recolher.

— Gūls não têm toque de recolher — ele respondeu com um sorriso estranho no rosto. — Falando nisso…

— As notícias?

— Como você sabia?

— Talvez você seja fácil de ler. — Ariadne deu de ombros. — Foi a cara que você fez no carro.

— Ah! Acho que sou mesmo, então — comentou, acenando com a cabeça para o valete. — Ou então perdi o jeito. Falo durante a janta.

Os dois passaram pela porta giratória, e Ariadne arregalou os olhos ao ver o chão de mármore reluzente e o tapete descendo pela escadaria. Era difícil não se sentir desconfortável em um local tão deslumbrante, mas tentou não demonstrar. Já Quaint combinava com o ambiente, ou o ambiente combinava com Quaint: os sapatos brogue sobre os losangos caramelo, o cabelo preto brilhando sob o lustre, o terno sob medida e os empregados uniformizados.

— Quaint — falou baixo enquanto ele chamava um dos recepcionistas com o dedo. — Quanto dinheiro você está gastando nisso?

— Já te falei que sou um pouco exagerado — ele riu, pegando os cartões do quarto. — O que vamos fazer nos próximos dias não é nada fácil, então por que não aproveitar enquanto estamos aqui?

Tenho conhecidos no hotel, ele explicou no elevador, depois de acabarem o check-in. Conhecidos gūl, ela sabia, pelo jeito que ele havia evitado olhar para ela. O quarto era quase uma casa: duas suítes e uma sala de estar com direito a sofás e mesa, caso quisessem comer ali. Quaint insistiu para que fossem a um dos restaurantes do hotel.

O local estava praticamente vazio, talvez porque os outros hóspedes preferissem sair à noite, talvez porque fosse um restaurante mais tranquilo. O garçom entregou o cardápio para Quaint como se Ariadne não estivesse ali, mas ele fez um sinal para que o entregasse a ela.

 — Então — começou assim que ficaram sozinhos de novo, desabotoando o colarinho. — Sobre as notícias. Fiquei interessado em saber um pouco mais sobre esses “esquadrões da morte” e decidi que vou investigar hoje à noite.

— O toque…

— O toque, o toque, eu sei — Quaint sorriu, depois espiou por cima do cardápio aberto. — Não quer experimentar o menu degustação? Estou morrendo de curiosidade para ver como são os pratos.

— Acho bom você não aparecer morto amanhã. Não tenho dinheiro pra pagar o resto da estadia. — Ariadne o olhou por cima do menu. — Já que você quer gastar tanto assim, vou pedir o menu degustação com sobremesa.

— Dinheiro é fácil de acumular quando você vive tanto quanto nós — respondeu, dando de ombros. O leão de guarda no pescoço dele já tinha perdido parte da cor preta vívida do primeiro dia. — Mas não se preocupe comigo. Não tenho medo de humanos.

— E de outros gūls? Você tem?

O sorriso de Quaint aumentou. Ela queria arrancar os óculos escuros da cara dele, como se a peça fosse a única chave para entender as intenções por trás de sua expressão. Quaint pediu a comida antes de responder, e ela continuou a encará-lo, esperando algum tipo de resposta.

 — Seria imprudente da minha parte não ter medo, mas, além de exagerado, sou insolente…

— Isso eu já notei.

— Você nem me deixa acabar! — ele riu. — Tenho amigos no Cabaré, Ariadne, e sei como convencer quem não é meu amigo a manter distância.

— Talvez quem tenha um problema de temperamento seja você, não eu — Ariadne sorriu de volta.

Touché.

Sozinha no apartamento, Ariadne abriu as torneiras da banheira da suíte, tirou os sapatos e as calças e sentou-se na privada fechada, ouvindo o som da água corrente. Com cuidado, tirou a pele que ia do começo da coxa até o pé para lavá-la na pia. Os sensores das próteses estavam conectados ao implante neural para que pudesse mover os membros com liberdade, resultado da reabilitação agressiva que Erik tinha arquitetado para ela. Agora, um pensamento a perturbava: ele não podia ter feito tudo aquilo sozinho. Quem mais estivera lá?

Ariadne só conhecia um casal humano, amigo de Erik, que ajudara no processo. João Paulo era ginecologista, e Irene psiquiatra, ambos gentis e atenciosos, mas uma lembrança a perseguia agora que conhecera Quaint: É raro Erik manter uma relação com outro ser humano, ele tinha dito no depósito. A ideia de que algum gūl pudesse ter se envolvido em seu tratamento fazia seu estômago revirar. Ele não teria me traído assim, pensou. Mas então lembrou que Erik havia entrado no apartamento sem dar justificativas, só para deixar os diários no depósito…

Quando percebeu, estava no quarto, pegando o diário de 2008 e 2009. Ariadne tirou o resto da roupa, jogou a espuma na água e entrou na banheira. Começou a ler, apoiada no mármore.

O progresso da menina é excelente, ao menos no que se refere à parte física. Ela está tomando os remédios apropriados para as dores fantasmas, e parece achar as sessões de fisioterapia agradáveis!

Também começou a aceitar comida, ainda que de forma relutante. João Paulo veio ontem com o resultado dos exames. O resultado para DSTs foi negativo (que alívio!). As lesões genitais e anais, os hematomas etc. estão curados, mas uma leve candidíase me preocupa, já que ela pode achar o tratamento invasivo demais…

Ariadne fechou o caderno. Não era isso que queria ler.

A menina acordou!!!, dizia uma entrada mais antiga, e ela lembrava de acordar em mais uma sala que não conhecia, com dores insuportáveis, sem conseguir se mexer. Bom dia, Erik dissera, a voz calma e baixa e um sorriso brilhante estampado no rosto. Não, não, não tenha medo, por favor! Ninguém vai machucar você de novo.

Ela se recusa a dizer o nome. Irene também tentou, sem resultados, Erik havia escrito. Ela diz não se lembrar, mas sinto que pode estar mentindo…

Virou a página e traçou a tinta azul com o dedo, deixando uma mancha úmida no papel.

Incrível! Apesar de M. (de Menina! Hehe) ter esquecido de tanta coisa, ela lembra do que eu dizia enquanto estava desacordada.

Siga o fio, Ariadne… Quem teria pensado que, de todas as coisas que fiz, uma referência inofensiva dessas seria armazenada? Confesso que é um alívio que ela não precise pensar nas coisas terríveis que foram feitas contra ela.

A maior parte do diário tinha informações a respeito de sua recuperação e ideias de como adaptar as próteses para ela, mas havia desenhos também, assim como o de Quaint. O primeiro era dela lendo um livro no sofá, o cabelo preto curto, o rosto redondo, os cotos das coxas visíveis sem as próteses. Ele tinha escrito “Ariadne, 14 anos” abaixo do desenho, além de uma nota adicional no canto da página: (A amputação é quádrupla, os braços são protótipos. Ela os achou ‘estranhos’. Vou resolver isso).

Outra página, meses depois, chamou sua atenção.

Às vezes tenho pesadelos com as crianças que não conseguimos salvar. Quando isso acontece, retomo o antigo hábito de rezar antes de dormir, hábito que achava ter perdido…

Gūls acreditam que reencarnamos em grupo, e que voltamos a ver nossos entes queridos vida após vida. Espero que estejam corretos, e que os que morreram possam voltar como tábulas rasas, um dia, um dia…

Ariadne bocejou e enrolou-se na toalha, trocando de roupa enquanto lia. Foi até o sofá da sala para continuar lendo, mas palavras e rascunhos se misturavam em sua cabeça, criando quimeras de fatos. Erik enrolando o cobertor ao seu redor em uma noite de frio, os livros de medicina que encontrou no escritório e passou semanas lendo, o dia em que Erik começou a dar aulas para ela, já que Ariadne parecia gostar tanto.

Irene, você não vai acreditar quem eu achei escondendo meus livros debaixo do travesseiro, ele tinha dito ao telefone enquanto achava que ela dormia. Ariadne espiara do lado de fora, tentando descobrir o que ele falava com a terapeuta. A bichinha é esperta mesmo!

Siga o fio, Ariadne, dito com carinho, e um livro ilustrado sobre o mito de Teseu em seu aniversário de quinze anos, quando ela decidiu ficar com esse nome. A memória de assistir à Copa de 2014, chorando pela primeira vez desde que chegara ao apartamento quando o Brasil levou o terceiro gol da Alemanha. Não, não, não, Erik havia desligado a televisão, apesar de ter brincado que torceria para o time europeu antes do jogo começar. Vem aqui, deixa eu te dar um abraço.

Queria tanto a atenção de Erik, mas queria odiá-lo por dar a ela uma vida que não pedira para ter. Uma vida onde não era desejada — antes eu era —, onde não era tocada — por que ele não me toca? —, onde era apenas uma criança — por que agora eu sou uma criança, por que eu não era antes? Uma vida onde ele era o único homem que valia a pena amar e o único que não queria nada com ela. A vida não era assim antes — eu só servia para dar, e agora nem isso, por que você tirou isso de mim?

Mas eu não quero viver, não quero ser feliz! Era ela gritando, jogando um copo no chão, arranhando-se? Os olhos tristes eram de Erik, mas a voz era dela: Eu não quis… Não foi minha intenção… Desculpa…

Ariadne acordou com o som de passos. Não sabia que horas eram. A tela do tablet estava preta, e sua bochecha tinha ficado marcada contra a textura do sofá. Por um instante, achou que as próteses haviam parado de funcionar, mas logo notou que era só dor e cansaço.

— Quaint? — perguntou, tentando ficar de pé. Seu corpo estava pesado e lerdo, mas ela conseguiu se sentar. — Desculpa, comecei a ler o diário e acabei pegando no sono.

Parou de falar. O homem diante da porta era o mesmo que Ariadne conhecera na clínica, mas algo não estava certo. Seu cabelo, geralmente penteado para trás, estava desarrumado, e o paletó e a camisa tinham desaparecido. Das roupas de sempre só haviam sobrado a calça e a regata branca que usava embaixo, ambas manchadas de sangue.

— Eu não queria que você me visse assim. — Quaint empurrou o cabelo para trás com os dedos sujos. Ela notou que ele só estava usando o anel dourado com a caixinha de cristal guardando a mecha de cabelo. — Achei que você já estaria na cama.

Ariadne congelou. Tentou se convencer de que ainda era Quaint, de que nada havia mudado, mas o sangue seco grudado aos fios de cabelo que caíam na testa dele faziam seu corpo vibrar em alarme.

— Você está com medo.

— Não estou — Ariadne respondeu depressa. Parte dela, a que não queria se encolher e fingir que não estava ali, tinha curiosidade em saber quem ele havia comido, e se isso causaria algum efeito em sua saúde. Dona Terebê ficou diabética depois de anos comendo aquelas velhinhas, pensou, como se ainda estivesse sonhando. — Não estou.

— Posso chegar mais perto?

Ela acenou com a cabeça. O cheiro dele estava diferente, uma mistura de perfume e suor e algo metálico, quase doce. Ariadne manteve os olhos fixos no cinto desafivelado enquanto ele andava em sua direção, nas tatuagens que iam dos dedos até os ombros, na mancha escura na região da barriga, como se alguém tivesse tentado segurá-lo. Era estranho vê-lo assim, tão descoberto, mas também era um lembrete importante de que ele era mais forte do que ela podia imaginar.

— Ninguém viu?

— Só quem já sabia. — Quaint ergueu seu queixo, e o toque fez com que notasse que ele tinha sangue debaixo das unhas também. — Achei que você não estivesse com medo.

— Só vou ter medo se você me der motivo. — Ariadne encostou a mão na dele, cravando a ponta dos dedos na peônia tatuada no dorso. Parte dela queria arrancar a tatuagem, mostrar para aquelas criaturas que elas não eram as únicas capazes de machucar os outros, mas o pensamento foi embora tão rápido quanto veio. — Se fizer isso, eu não vou perdoar você.

Quaint sorriu.

— Promessa é dívida.

Sonhou que estava de volta ao escritório de Erik, mas que todas as coisas dele ainda estavam lá. Tudo menos ele, notou, ao sentar-se na cadeira e pegar um dos livros em russo para ler. Parou apenas quando sentiu alguém atrás de si, a respiração quente contra sua nuca exposta. Ariadne virou para trás, e Quaint estava lá, agarrando-a pelo pescoço para forçá-la a ficar de pé. Quaint, tentou dizer, e ele abriu a boca cheia de dentes, um tigre prestes a devorá-la. Qianyi.

Mas Quaint não a ouviu. Movia-se de forma precisa, cheirando seu pescoço, rasgando as roupas como se fossem feitas de papel. Ele roçou as presas em sua pele antes de mordê-la, forçando-se entre suas pernas, sangue morno escorrendo pelos seios. Qianyi, Ariadne chamou de novo em uma voz que era sua e também não era, em uma língua que desconhecia mas que também entendia. Quaint afundou os dentes em seu ombro, mas ela não sentiu dor; queria tê-lo dentro dela, de novo, de novo, o corpo batendo contra a mesa, a respiração em seu ouvido. Qianyi, e o abraçou com as pernas, não as próteses, as pernas que não via há tanto tempo.

Ariadne pulou da cama, o coração prestes a sair do peito. Correu para baixo do chuveiro, as imagens da noite anterior ainda nítidas em sua mente. Água gelada pingava de sua cabeça raspada até os cílios compridos, correndo pelo queixo pequeno e descendo pelo colo, onde não havia nada. Nenhuma mordida, nenhum machucado. Com um suspiro, pegou a toalha e voltou para o quarto, ignorando o rosto pálido e cansado que a olhava de volta no espelho.

Checou as baterias dos membros e puxou a roupa que havia separado para ir ao Cabaré. O clube era frequentado por gūls havia séculos, e estava localizado na área nobre do Flamengo. Ariadne não sabia que tipo de roupa eles usavam, nem se importava; vestiu a legging preta, um vestido de malha cinza de gola alta e um cardigã, deixando apenas o rosto e as mãos à vista. Ainda assim, sentia-se exposta pelo sonho, por nunca saber para onde ele estava olhando, por querer que alguém a percebesse pela primeira vez na vida.

Quando saiu do quarto, Quaint já estava na sala, as pernas esticadas e cruzadas sobre a mesa de centro enquanto lia um dos cadernos com capa de couro. Felizmente, não era o mesmo que ela havia lido na noite anterior, e sim um dos mais antigos.

Quaint ficou de pé ao vê-la.

— Pronta? — perguntou, deixando o diário de Erik no sofá.

Ariadne deu de ombros.

— Mais ou menos. Tem algo que eu precise saber antes de irmos?

— O Cabaré é uma casa de três andares — ele disse, pedindo um táxi pelo aplicativo do celular. — Nós vamos ficar no andar de baixo, onde os acompanhantes humanos podem circular. Nos andares de cima, você só pode ir se estiver comigo o tempo todo.

— Tudo bem.

— Não precisa fazer essa cara. — Quaint fechou a porta e guardou o cartão magnético no bolso do paletó. — Não tem nada de estranho no primeiro andar. Vai ter até almoço para vocês.

— São os outros andares que me preocupam.

— Vamos focar apenas em tentar encontrar Genebra ou descobrir informações sobre Erik.

Quando o táxi chegou, os dois ficaram no banco de trás, onde a televisão passava as notícias: … O presidente não é visto em público há dois meses, desde que começou o tratamento… A Casa Civil volta a ser alvo de críticas em redes sociais após outro assessor ter os membros amputados depois de um acidente de…

— Quaint — Ariadne chamou em voz baixa, sem olhá-lo. — Se algo acontecer…

— Eu protejo você. Dez presas, lembra?

— Dez presas — ela repetiu, sem emoção. Seus olhos pretos estavam perdidos no ipê na calçada, cujas flores rosa sacudiam com o vento. — Você leu algum outro diário além daquele?

— Só o mais antigo. Você leu?

— Só os mais recentes.

— Isso é um alívio… — Quaint deu risada. Ele havia voltado ao seu eu habitual, com um terno vinho, os anéis em todos os dedos e o cabelo perfeitamente alinhado. — Tem coisas a meu respeito que eu prefiro revelar por conta própria.

— Somos dois, então.

O carro parou diante de um palacete escondido por palmeiras, os portões de ferro forjado fazendo pouco para cobrir a arquitetura eclética e imponente dos andares superiores. Os muros estavam pintados de branco, e seguranças esperavam na porta. Quaint falou primeiro com eles, e depois a chamou com o dedo quando os homens destrancaram a fechadura.

Ao chegarem à escadaria principal, ele parou no último degrau e olhou para ela.

— Tem uma expressão brasileira que eu acho fascinante — comentou, tamborilando a maçaneta dourada. — Ouvi dizer que começou muito tempo atrás, depois de um incêndio consumir um bordel frequentado por homens da alta sociedade. Enquanto as mulheres corriam para controlar as chamas, as esposas dos clientes saíam às ruas e gritavam: “Pega fogo, cabaré!”. Não importa se é verdade ou não; o fato é que cada vez que as coisas saem do controle, tem alguém para dizer isso de novo, como se quisesse alimentar as chamas, não acha?

— O que você está tentando dizer?

— Estou tentando dizer que muita gente aqui é assim, Ariadne — falou Quaint. — Existem dois tipos de gūl. O primeiro tipo encontra formas de atenuar o dano causado pela nossa alimentação. O resto se diverte em causar dor.

Quaint ofereceu o braço direito, e Ariadne aceitou.

— Não me importo — disse. — Tenho certeza de que já conheci gente pior.

O Cabaré era tão ostensivo por dentro quanto por fora, e Ariadne teve certeza de que o local era mantido igual desde a fundação. Quaint a levara até o salão de festas no primeiro andar, onde o almoço estava sendo servido para os poucos convidados humanos. Uma banda tocava “Trem das onze” no andar de cima, mas a música estava abafada pelas portas, tetos e paredes, e tudo que ela conseguia ouvir era o fantasma da melodia misturado às risadas e conversas.

Antes que pudessem se sentar, uma voz retumbante fez com que virassem para trás.

— Ora se não é o Quaint! — Um homem baixo e corpulento sorriu de forma aberta, o cabelo crespo rente ao couro cabeludo, a pele retinta, a barba escura e cheia. — Quanto tempo, homem!

O recém-chegado puxou Quaint para um meio abraço, dando tapinhas amigáveis em suas costas.

— Exatamente quem eu queria ver. — Quaint sorriu de volta, fazendo um gesto educado com a cabeça. — Ariadne, este é Augusto, um amigo de longa data. Ele é do primeiro tipo que falei para você.

Augusto beijou sua mão.

— É um prazer — ele disse, e depois virou para Quaint, franzindo o cenho. — Primeiro tipo? O que você anda falando de mim para os outros?

— Foi um elogio — Quaint riu. — Augusto veio de Moçambique para comer escravagistas e acabou ficando.

— E você foi pra França comer nazistas. — Augusto alisou a própria camisa, amassando a estampa laranja, amarela, marrom e branca. — Farinha do mesmo saco.

Era difícil acompanhar a conversa deles. Por um lado, Ariadne achava fascinante estar cercada por gūls em idade de caça, e ficava mais confortável em saber que tipo de pessoa Quaint preferia como alimento; por outro, sentia-se dolorosamente fraca e humana naquele ambiente, sem entender como Erik poderia gostar de interagir com eles.

Passou os olhos pelo salão. Havia no máximo quinze pessoas presentes, e podia discernir os humanos pelos pratos de comida: quatro homens de meia-idade conversando com um gūl e duas senhoras idosas rindo com uma gūl igualmente anciã. Um casal conversava em um divã perto do piano, e alguém fumava na janela, olhando o lado de fora.

— Quer que eu pegue algo para você comer? — Quaint perguntou, interrompendo a conversa. Ela tinha parado de prestar atenção quando eles começaram a trocar novidades, mas balançou a cabeça positivamente.

— O menu é vegetariano — Augusto disse, puxando uma cadeira da mesa mais próxima. — Ou os humanos ficam desconfiados.

Ariadne se sentou diante dele, observando Augusto em silêncio. Assim como Quaint, todos ali estavam à vontade e bem vestidos, fazendo com que ela se sentisse uma aberração, por mais que tentasse se convencer de que tudo estava certo.

— Augusto — chamou, erguendo o rosto de repente. Precisava focar no motivo de estarem ali. — Você conhece Erik Yurkov?

— Erik? — ele perguntou de volta, coçando a barba. Augusto olhava para ela, olhos grandes e castanhos analisando sua reação, mas Ariadne se manteve impassível. Depois, ele fitou Quaint por cima do ombro, vendo-o falar com um dos garçons. — Já tava na hora do Quaint trazer o assunto à tona.

— Não foi ele que trouxe — Ariadne rebateu. — Fui eu.

Augusto sorriu de lado.

— E você conhece o Erik de onde?

— Eu também cuido de gūls. Erik foi meu professor — explicou, tocando no guardanapo de tecido enrolado como uma flor. — Acho estranho ele ter sumido depois de vir aqui.

— Médica gūl, interessante, interessante… — Augusto riu, apoiando o queixo largo na mão. — Desculpa por rir. Eu concordo com o que disse, é estranho mesmo. É só que vocês são tão diferentes!

— Eu e quem?

— Você e Erik. Você e Quaint não tanto — ele disse, gesticulando com o outro braço. — Sempre achei Erik um sujeito estranho. Falei isso pro Quaint, mas de que adianta? Ele tem coração mole. Sempre teve. Especialmente quando ele se apaixona por um humano.

— Estranho por quê? — Ariadne insistiu, tentando não focar no que ele havia dito. Quaint ainda estava pedindo a comida, e ela queria a resposta antes dele voltar. — O Erik.

— Ah, se vocês são próximos, você sabe. Aquele jeito dele, sorrindo o tempo todo. Nunca fala o que pensa. Sempre parece nervoso. Sem olhar nos olhos dos outros. A última vez que nos vimos, o coitado tremia mais que um pinscher estressado. Veio me perguntar da Genebra, você conhece?

— Conheço — Ariadne mentiu. Conhecia de rosto, de certa maneira.

— Ele disse que ia pedir pra se esconder na casa dela. E aí sumiu.

— A Genebra também sumiu. Não?

— Acho bom ter sumido! — Augusto cruzou os braços, resmungando. — Parou de aparecer aqui e de atender meus telefonemas, e, vou te contar, minha querida, não é fácil lidar com esses desgra…

— Perdi alguma coisa? — Quaint voltou com uma bandeja na mão, deixando a comida na frente de Ariadne.

— Contei minha vida inteira pra ela, só isso — brincou Augusto, ficando de pé. — Foi um prazer, Ariadne. Conhecendo esse aqui, nós provavelmente vamos nos ver de novo.

— Já vai? Nem perguntei…

— Do Erik? Ela já perguntou. Agora preciso voltar lá pra cima, tenho compromisso. Aparece amanhã e nos falamos melhor.

Ficaram no salão de festas por duas horas, e, enquanto Ariadne almoçava, Quaint contava sobre as pessoas que conhecia no local. Começou com Lena e Friedrich, um casal de gūls alemães que se mudou para o Rio Grande do Sul no começo do século XX e que colaborou com o regime militar. Friedrich era quieto e ordinário, mas a presença de Lena na mesa mais próxima a desagradava, como um lobo velho e grisalho esperando pela chance de atacar.

Depois havia Ubirajara na janela, trajando um longo vestido creme que fazia com que ele parecesse uma estrela dos anos quarenta. Ele canta à noite, quando o grupo de choro não vem, Quaint explicou em voz baixa. Ubirajara acenou preguiçosamente para eles, segurando uma piteira. É pacífico, eu acho.

Teve também uma criança que Quaint não conhecia, um menino rechonchudo de cabelo escuro, correndo e brincando do lado de fora. Para um humano, parecia ter seis anos, mas vestia uma camisa social com bermuda e seus dedos estavam cheios de anéis de turmalina.

— Você já tinha visto uma das nossas crianças? — Quaint sorriu quando o menino escalou a janela para entrar no salão, roubar alguns utensílios e correr para fora de novo.

— Só bebês, mas sei que ele é mais velho do que eu.

— Idade é relativa. — Quaint continuou observando o garoto pela janela, tocando no próprio anel sem perceber. — Nós nos desenvolvemos devagar, sim, mas pra ele a vida passa tão rápido quanto pra uma criança humana.

— Quanto tempo você sente que passou? — Ariadne perguntou. — É uma pergunta honesta.

— Eu sei quanto tempo passou, mas não me sinto tão velho quanto devo ser para vocês. Quando eu era criança, fiz meu primeiro amigo humano e disse a ele que voltaria logo. Quando nos encontramos mais uma vez, eu era adolescente, e ele tinha uma neta da minha idade. Pra mim, parecia que só alguns anos haviam passado.

— Não é ruim viver conosco? Nós morremos tão rápido.

— Não quando você aprende a sentir o tempo de outra maneira. Depois disso, comecei a prestar atenção e aproveitar os momentos que tenho com os humanos aos quais me apego. Quando morrem, eu os mantenho comigo. — Ele traçou o braço por cima da camisa, onde ela sabia que estaria a tatuagem do grampo de cabelo. — Também hiberno por uma década, o que ajuda um pouco.

Ariadne queria perguntar mais sobre o período de hibernação, no qual um gūl podia passar anos em estado letárgico após uma grande refeição, mas um barulho a distraiu. Alguém havia levantado da mesa dos empresários para chamar o garçom, e ver quem era foi como levar um tapa na cara. Esquálido e de pele branca acinzentada, o homem trajava um terno antiquado e tocava em seu bigode lápis, olhando para a conta que tinha em mãos.

Quaint, ela quis chamá-lo, mas a voz se recusava a sair da garganta. A imagem em sua cabeça não era nítida, mas ela sabia que aqueles traços formavam um rascunho interno em algum canto já esquecido da memória; um homem que passava, a aparência estranha, a novela das seis tocando ao fundo. Parece um personagem de época, pensou, ingênua, apenas os olhos se mexendo, acompanhando os movimentos dos dois à distância. Outro homem, muito maior, muito mais forte, quase inumano. Não quase. Inumano.

— Ariadne?

— Ah — foi tudo o que conseguiu dizer, ouvindo a própria voz rouca. Seus dedos tremiam, e lá estava ela de novo: presa como um bicho, a própria imagem de uma boneca quebrada, sem braços, sem pernas, sem nada. Quem é ele? Qual é o nome dele? Queria que Quaint entendesse. Queria que ele pudesse ler seus pensamentos e dizer tudo o que ela precisava saber. Queria que ele a tirasse de lá. Queria até pegar aquele gūl pelo pescoço e apertar, apertar, como já haviam feito com ela… — Qu

— Quaint e seus humanos! — Uma voz feminina os interrompeu, e Ariadne perdeu o homem de vista ao se virar para o lado. — Tinha torcido pra você não aparecer mais por aqui, mas vejo que não é o caso.

Uma mulher jovem havia parado ao lado da mesa. Se fosse humana, teria uns vinte e tantos anos, assim como Ariadne; mas como não o era, chutava que estava entre os trezentos. Era alta e muito magra, o que ressaltava a barriga protuberante sob o vestido verde, e seu cabelo cacheado estava solto sobre os ombros igualmente castanhos. Achou que ela combinava com Quaint, linda e tão confortável naquele lugar, não fosse pelo desgosto evidente no rosto de ambos.

— Entendi, não vai falar comigo. — Ela deu de ombros. — Só estou aqui porque o Augusto pediu pra eu chamar você lá em cima. Ele precisa de ajuda e eu não posso fazer esforço. Um cavalheiro como você não faria isso com uma grávida, não é?

Não vai, pensou, procurando de novo o homem de suas lembranças com o olhar. Não vai, não vai.

— Pode ir — Ariadne falou, tentando soar calma. — Eu espero.

A mulher abriu um sorriso enorme em sua boca cheia e larga.

— Viu só? Eu fico de olho nela.

Quaint respirou fundo, as narinas infladas e o maxilar entesado. Ariadne acenou com a cabeça, tentando mostrar que estava bem, mesmo que sentisse o contrário.

— Eu já volto. — Quaint ficou de pé de supetão, empurrando a cadeira bruscamente. — Não sai daqui, por favor.

A mulher se sentou ao seu lado, esperando até Quaint sair do salão. Depois, tomou seu braço como se fossem amigas de longa data, encostando o rosto em seu ombro.

— Aquele ali que você não para de olhar é meu marido — ela disse, a voz baixa, melodiosa e suave. — Perdeu algo nele?

— Coitada — Ariadne murmurou, sem tentar se soltar. Era melhor não ser agressiva com eles.

— O que você disse?

— Coitada de você — Ariadne falou mais alto, olhando para ela. — Não deu pra arranjar algo melhor? Foi isso o que eu falei.

A mulher a soltou imediatamente, franzindo o cenho. Ariadne cruzou os braços e afastou um pouco a cadeira para poder encará-la de frente.

— Não é bom se estressar na sua condição — continuou, saboreando a sensação de ter calado a boca de um gūl. Ponderou se a mulher sabia o que o marido fazia e quem ele conhecia, e se isso importava. Depois sorriu, mas não havia nada de bom ou de contente em seu gesto. — Pelo tamanho de sua barriga, você deve estar grávida há uns dois anos e meio, talvez três.

A mulher crispou os lábios. As presas despontaram na boca, e um grunhido gutural e desagradável fez com que seu corpo inteiro palpitasse. Ariadne olhou para o afresco no teto.

— Ele te contou, não contou? Sobre o Damião.

— Damião?

— Não se faz de sonsa agora. — Ela agarrou Ariadne pelo rosto, fincando as unhas compridas em suas bochechas. — É óbvio que Quaint iria contar; foi ele quem matou o Minotauro. Você se acha tão superior a mim, mas o seu homem não é tão bom assim. Ele te contou o que a mãe dele fazia com os humanos? Ou só nós é que somos ruins?

Minotauro. O nome fez com que seu corpo sacolejasse, levando-a de volta para um mundo onde não havia nada além do Minotauro. Quaint o conhecia? As palavras se embaralhavam em sua cabeça: Erik, Quaint, ela, Minotauro. Foi ele quem matou o Minotauro, a acusação se repetia, e ela sabia que tinha de sair dali, mas seu sangue fervia, agitado. Quaint havia ajudado Erik a salvá-la? Ele não sabe quem eu sou, pensou, perplexa. Ele não sabia que Erik tinha me levado.

— Rafaela! — Damião chamou da porta, e a mulher largou seu rosto de forma grosseira. — Vamos lá!

Rafaela ficou de pé, tentando manter a compostura. Ela segurava a barriga com as duas mãos, e Ariadne se levantou ao mesmo tempo, puxando-a pelo pulso fino.

— Espera — disse, suas emoções ainda presas em um pesadelo deprimente. — Eu preciso saber…

— Tenho que ir embora. — Rafaela se desvencilhou e empinou o queixo. — Seja o que for, por que não pergunta ao Quaint?

Após um tempo em silêncio, Quaint e Ariadne se sentaram na sala do apartamento do hotel, um de frente para o outro. Ele esperava por uma resposta depois de encontrá-la com o rosto cheio de marcas vermelhas, como se tivesse sido arranhada por uma gata. Ela havia apenas erguido a mão, pedindo que ele parasse de perguntar, e o acompanhado até o lado de fora, irrequieta. Tudo o que disse foi para conversarem no hotel, e ficaram assim até chegarem lá.

Quaint inspirou, o peito subindo sob o paletó, os ombros enrijecidos.

— Ariadne — começou, a voz contida —, se algo aconteceu enquanto eu estava no andar de cima, preciso saber…

— Eu posso te contar. — Ariadne pegou um dos cadernos que estavam no sofá, olhando a data. — Mas envolve você também, e eu não tenho certeza de como lidar com isso.

— Não sei o que aquela mulher te falou, mas ela e o marido se envolveram com um gūl muito perigoso anos atrás, o tipo de coisa que é inaceitável sob qualquer ponto de vista.

— O Minotauro?

Ariadne sentiu o queixo tremer. Queria manter-se firme, séria, indiferente, mas seu corpo ingrato reagiu primeiro, como sempre.

— O que ela…?

— Ela não disse nada. Eu sei. Eu só quero saber se é verdade que você matou ele.

Quaint fez uma pequena pausa, os lábios entreabertos, os óculos escorregando pelo nariz achatado antes dele empurrá-los para cima.

— Você se importa se eu fumar? — Ele enfiou a mão no bolso interno do paletó, encarando o tapete.

— Se você me responder, pode fazer o que quiser.

Ele tirou o maço do casaco, deixando o cigarro preso entre dois caninos protuberantes, e empurrou a tampa do isqueiro com o polegar.

— Eu devia ter parado trinta anos atrás — disse ele, mais para si mesmo do que para ela. — Deixa eu ver. O que você sabe?

— Responde e eu te digo. Matou ou não matou?

Ariadne quis levantar para tirar os óculos dele, só para ver o que haveria em seus olhos quando ele dissesse sim ou não. Será que ele sentia culpa? Vergonha? Mais que nada, queria a confissão e o motivo, jurando que, talvez, a resposta certa acalmaria seu coração…

Quaint deixou escapar fumaça pelo canto da boca fechada.

— Matei.

— Por quê?

— Eu não vou fazer nada com você, isso não…

— Por quê?

— Porque eu não conseguia aceitar que ele pudesse fazer o que fez com mais ninguém. O que você sabe?

Eu sei mais que todos vocês, ela quis dizer, mas as palavras não saíam. Em vez disso, ficou de pé, andando devagar na direção dele.

— Foi o Erik, não foi? — Quaint massageou a testa, o rosto coberto pela mão. — Ele não concordava comigo, se você quer saber, mas também não me parou. Fechou a porta e fingiu que não ouviu nada.

Ariadne olhou para ele como se o visse pela primeira vez. O cabelo escuro havia desandado, as sobrancelhas criavam linhas na testa, os ombros largos estavam duros e tensos, e a boca estava projetada à frente para manter o cigarro na mesma posição. Quando continuou sem resposta, Quaint ergueu o rosto, e ela conseguiu ver os olhos dele pela primeira vez, estreitos e completamente pretos, assim como os seus.

— Acho que Augusto tinha razão quando disse que eu e Erik somos pessoas muito diferentes, mas eu e você não tanto — ela murmurou, puxando o cardigã dos ombros e deixando que caísse no chão. — Era isso que eu queria saber.

— Ariadne?

— Pode me ajudar? — Ariadne estendeu o braço para ele e colocou uma das mãos por baixo da gola do vestido, tentando encontrar a fronteira entre a pele sintética e a natural. Começou a desenrolar a pele cuidadosamente, expondo o braço biônico por baixo. — Tem que tirar com cuidado para não arrebentar os sensores.

Os olhos de Quaint estavam fixos nos seus, mas ele não parecia mais um predador, e sim uma pessoa como ela. Vulnerável, confuso, incerto. Ariadne não sentiu vergonha de tremer quando ele segurou sua mão, ajudando a puxar a camada mole que cobria os membros, nem quando ele traçou as linhas escuras das próteses com os dedos.

Ariadne se agachou para tirar a legging e repetiu o processo, descamando a roupa e a pele sintética das pernas. Quando acabou, estava só com o vestido que ia do pescoço até a metade das coxas, braços e pernas robóticos expostos para alguém que não era médico pela primeira vez em vinte e oito anos de vida. Puxou os óculos de Quaint pela ponte e dobrou as hastes, deixando-os sobre o diário.

— Se a gente encontrar o Erik, você descobriria uma hora ou outra — murmurou. — Não tem por que esconder.

Parte sua queria reagir mal ao que acabara de fazer, mas não conseguia; havia sido tomada por um conforto quase etéreo, como se já tivesse feito aquilo muitas vezes e reconhecesse aquela expressão, aquela pessoa, aquele momento. Se fechasse os olhos, poderia ver Quaint quando ele ainda não era Quaint, e sim um garoto sorridente com outro nome, o cabelo comprido preso em um coque no alto da cabeça e os óculos de quartzo enfumaçado, jurando que estaria ao seu lado para sempre.

Se os abrisse de novo, ele continuaria lá, o Quaint de agora, tão parecido e tão diferente.

— Eu não sei o que dizer — ele confessou, e Ariadne sorriu.

— Estou começando a gostar de deixar vocês gūls sem resposta. Vou tornar isso um hábito.

Quaint sorriu de volta e tocou em seu rosto.

Ariadne esfregou a bochecha na mão dele, sentindo as linhas da palma, o metal gelado dos anéis, a peônia tatuada no dorso. Beijou a ponta dos dedos, as unhas, os nós, a cicatriz ao redor do mindinho. Quando não encontrou rejeição, cobriu o indicador e o médio com a boca.

— Você tem nojo de mim?

Você tem nojo de mim? A mesma pergunta em uma época diferente. Erik havia segurado seus ombros para afastá-la depois de uma tentativa desajeitada de beijo. Nunca sentira tanta vergonha quanto naquele momento, vergonha por ter lido a gentileza dele como algo além, vergonha por ser tão insignificante, tão feia. Ninguém vai me querer de novo. Não com aquele corpo, não com aquele passado. Você não deveria tentar se machucar desse jeito, Erik dissera, colocando o próprio casaco sobre os ombros dela. Eu sou muito mais velho do que você.

— Nada em você me dá nojo. — Quaint a enlaçou pela cintura, enterrando o rosto em sua barriga. — Eu só preciso saber se você não está fazendo isso para se machucar.

— Eu estaria me machucando se fingisse que não quero sentar no seu colo agora mesmo. — Ariadne passou os dedos no cabelo dele, desfazendo o que tinha sobrado do penteado. Vergonha voltou a espalhar-se em suas veias como uma doença, mas dessa vez era muito mais difícil de se afastar do que da última. — Eu achei…

— Você achou certo. — Quaint a ergueu do chão como ela se não pesasse nada, e Ariadne ficou de joelhos no sofá. — Não estou te negando de forma alguma, mas também não quero me aproveitar de um momento delicado.

Seu corpo inteiro pulsou em antecipação, sentindo o vestido subir sozinho até o quadril. Eu quero, eu quero, eu quero, e o resto do mundo desapareceu enquanto ele a tocava. Não havia mais Minotauro, nem Erik, nem os pensamentos que a assombravam todos os dias, nem memórias avassaladoras em momentos inapropriados; só havia ele e ela.

III. ERIK YURKOV

O sol entrava por frestas nas cortinas, iluminando parte do quarto escuro. Ariadne piscou duas vezes, encolhida na cama. Conseguia sentir Quaint atrás de si, o corpo inteiro colado ao dela, um dos braços enroscado ao seu redor para segurar o seio, o maxilar largo na curva de seu pescoço. Tocou de leve nos dedos dele, procurando o único anel que havia sobrado. Era de ouro, com uma película de cristal cobrindo a trança de cabelo castanho-escuro, e tinha os seguintes dizeres: “DIED 12 OCT 1912”.

— Acordada? — Quaint perguntou, e Ariadne girou o corpo para encará-lo.

— Estava olhando o anel. É da esposa que morreu?

— Não. — Ele se esticou para alcançar a outra mesa de cabeceira e mostrou um dos vários anéis que tinha deixado lá. O segundo era mais discreto, ouro decorado com esmalte preto, uma pequena caveira no centro, e o nome Fanny escrito junto de outra data, janeiro de 1917. — Esse é o dela.

Ariadne apoiou-se no peito dele. A tatuagem dos corvos parecia mais opaca quando vista de perto.

— Eu queria voltar ao Cabaré — comentou, tentando memorizar as linhas da clavícula dele, a proeminência do pescoço, as imagens que cobriam grande parte da pele. — Preciso falar com Rafaela.

— Não sei se é boa ideia. — Quaint a puxou para perto pela nuca, encostando os lábios nos seus. — Augusto acha que eles têm algo a ver com o desaparecimento do Erik.

— Melhor ainda.

— Ariadne…

— Eu me pergunto quem vai fazer o parto dela agora que Erik sumiu. — Ariadne escondeu o sorriso contra o ombro dele. — Por favor, Quaint.

— Você me deixa fraco — ele riu, derrotado. — Como faz isso?

Ariadne se ergueu para sentar na barriga dele. Não lembrava de jamais ter sido tão ousada, e tinha medo de que aquela Ariadne confiante desaparecesse rápido demais.

— Você já conheceu algum híbrido?

— Que pergunta — Quaint achou graça, os dedos traçando a dobra entre o quadril e a coxa. — Se você está preocupada…

— É uma curiosidade óbvia.

— Eu conheci uma menina muito tempo atrás que precisava de carne humana, mas que não conseguia processá-la. O pai tinha de alimentá-la, mas ela morreu poucos anos depois do que hoje se conhece como kuru.

A voz dele parecia querer dizer não, deixa esse assunto para depois, e assim ela o fez. Só saíram do hotel no meio da tarde, quando Augusto mandou uma mensagem confirmando que Rafaela e Damião estavam no Cabaré. Ajudo, claro, ele havia dito ao telefone algumas horas antes. Também quero saber onde a Genebra se meteu. Quando chegaram, a biblioteca estava vazia, a não ser por Rafaela, que lia em uma poltrona perto da janela.

— Fica de olho na porta — Ariadne pediu, e Quaint acenou com a cabeça. — O outro pode chegar a qualquer momento.

Dito isso, foi até a gūl, que levantou os olhos do livro ao perceber que alguém se aproximava. Cachos escuros cobriam seu rosto oval, e Rafaela marcou a página onde tinha parado, deixando o tomo sobre o vestido.

— Eu perguntei pra ele, como você sugeriu ontem — Ariadne disse, tirando o casaco e observando como os olhos dela ficavam maiores ao ver seus braços. Sentou-se na poltrona ao lado dela e sorriu. — Agora é a sua vez. Você conheceu o Minotauro?

O diário de Erik se repetia em sua mente: O que encontramos lá era um verdadeiro pesadelo — sete crianças, algumas delas com menos de seis anos, a mais velha, treze ou catorze; usadas, os corpos devorados —, tudo o que quero é esquecer. Ariadne ergueu as sobrancelhas, esperando uma resposta.

— Ele comeu? — Rafaela perguntou em voz baixa, apontando para as próteses. Notou com satisfação que ela tinha se encolhido na poltrona, como se a visão a enojasse.

A menina pré-adolescente sem braços nem pernas deve ser a favorita, Erik havia escrito. Apesar das amputações, está saudável e bem alimentada, além de ser consideravelmente mais velha que os outros.

— Não comeu — Ariadne replicou, calma. — Cortou para eu não fugir. Pode responder?

Rafaela estreitou os olhos. Achou fascinante vê-la tão desconfortável em comparação ao dia anterior.

— Conheci, mas não muito. Ele e Damião eram amigos. — Após uma pequena pausa, ela correu para esclarecer: — Mas Damião não se envolvia nas coisas dele! Eram amigos, só isso.

— Você pode me contar um pouco sobre ele? — Ariadne admirou a capa costurada do livro que Rafaela estava lendo. — Aí paro de incomodar você.

— Eu não sei muito — Rafaela suspirou, tocando no lábio inferior, mais claro que o superior. — Damião disse que ele trabalhou como cirurgião por muito tempo, e que não sabe de onde ele veio. Nós o chamávamos de Minotauro pelo tamanho e pela índole.

Ariadne concordou com a cabeça. Tinha poucas memórias do rosto dele, mas lembrava de achar que parecia um touro: parrudo, peludo e pesado, as presas inferiores tão desenvolvidas que causavam prognatismo.

— Sei. E você está feliz? — Apontou para a barriga dela. — Seu marido deve adorar crianças.

Rafaela ficou de pé, e Ariadne achou que receberia um tapa na cara.

— Eu já disse que ele não…!

— Relaxa. — Ariadne ergueu as duas mãos em sinal de paz. — Eu ia fazer uma proposta.

— Proposta?

— Pensa nesse bebê, se vale a pena criar alguém com um pai que pode ficar amigo de gente assim. Pensa também se você ia gostar de passar os últimos anos da sua vida grávida, só pra lembrar o que eu acabei de te contar e começar a ficar nervosa. Sua pressão pode até subir, e quem sabe o que pode acontecer?

— Isso não é uma proposta, é uma ameaça.

— Me promete que o imprestável do seu marido não vai colocar mais ninguém em risco, e que você vai nos levar até onde o Erik está. — Ariadne estendeu a mão para ela, sorrindo de canto de boca. — Em troca, eu vou ficar ao seu lado, cuidar da sua saúde e fazer o seu parto.

Rafaela arregalou os olhos, e as duas se encararam por alguns instantes. Partos de gūls eram propensos a complicações, Erik tinha dito, pela demora e pela fome da criança, e havia poucos médicos a quem recorrer. A mulher grávida caiu sentada na poltrona de novo, a boca semiaberta, o queixo trêmulo. Ariadne achou que seria recusada, mas a outra apertou sua mão com força e não voltou a soltá-la.

— Isso é uma loucura.

— Mais do que você ter continuado casada com ele? Duvido. Agora desembucha.

— O Damião conhece alguns humanos do governo que queriam encontrar Yurkov — Rafaela disse, cruzando os braços. — Ele não me falou muito, mas parece que o presidente tinha interesse na gulificação.

— Gulificação?

Rafaela franziu o cenho e virou-se para Quaint, que continuava na porta, alheio à conversa.

— Gulificação. Algo que ele inventou. Parece que dá certas qualidades nossas para um ser humano.

— Eu não…

— Quaint! — Rafaela o chamou de longe, fazendo sinal para ele se aproximar com a mão livre. O gūl foi até elas e tocou no ombro de Ariadne, desconfiado. — Você não contou?

— Contei o quê?

— Agora ele decide falar comigo! Sobre o que Erik inventou, é claro. — Depois, virou-se para Ariadne. — Como você acha que ele viveu até agora?

Rafaela havia dito que Erik estava em uma fazenda em Petrópolis, e que o melhor dia para encontrarem o lugar vazio, ou quase, seria na metade da semana seguinte. Eles não quiseram esperar até lá. Mas pode ter visitas, ela tinha argumentado, ansiosa. Pessoas que não queremos encontrar. Nem Ariadne nem Quaint se importaram. Mas você pode resolver isso com o seu marido, não?, Ariadne perguntara, mas não tinha interesse na resposta. Lembre-se do nosso trato. Decidiram então sair à noite, mesmo com o toque de recolher: gūls estavam acima do toque, afinal, e ela estava com eles.

Olhou pela janela do carro alugado, vendo a chuva bater contra o vidro. Estava escuro, e era a primeira vez que ela conseguia ver a rua de perto àquela hora. Pegou vislumbres de criaturas movendo-se em becos, caçando, e esquadrões marchando ao lado delas. Sempre que os paravam, Rafaela mostrava a identidade, e os policiais deixavam que continuassem sem perguntas.

Ariadne suspirou. Não tiveram tempo de conversar depois de Quaint pedir ajuda para Augusto e de Rafaela inventar uma desculpa para Damião. A grávida estava no banco da frente, parecendo terrivelmente entediada, e Augusto cantarolava a música do rádio enquanto dirigia.

Ao seu lado, Quaint procurou sua mão, entrelaçando os dedos aos dela.

— Quando chegarmos lá, preciso que você prometa que vai ficar perto de mim o tempo todo.

— Por mim, tudo bem — Ariadne respondeu, vendo as árvores escurecidas do lado de fora.

— Eu também posso te proteger — argumentou Rafaela, olhando para eles pelo espelho. Tocou na própria barriga por cima do vestido amarelo e listrado, mais moderno do que o que usava antes. — Vocês não sabem a fome que essa garota dá.

— Minha mãe costuma dizer que é a mesma coisa que conviver com um parasita. — Quaint acariciou as costas de sua mão com o polegar de forma distraída, mas Ariadne sabia que ele estava ansioso desde que saíram do Cabaré.

— A minha falava que foram os melhores três anos da vida dela — Augusto opinou, sem tirar os olhos do volante. — Mas cada um, cada um.

— É um pouco dos dois! — disse Rafaela, gesticulando. — Eu até espero que tenha gente lá. Sabe que não é bobagem quando dizem que grávidas comem até outros gūls…

— Esse é o tipo de coisa que a gente não precisa saber quando está preso em um carro com você, Rafaela.

— A questão é que eu tenho muita energia! — Ela virou para trás e piscou para Ariadne, os dentes brancos combinando com a pele marrom clara. — Pode deixar que eu protejo você.

— Você não deveria se esforçar demais — Ariadne rebateu. — Assim não tem como fazer milagre.

O carro parou diante de um terreno enorme e afastado. Havia uma fazenda ao fundo e um casebre ao lado, com uma guarita de segurança na frente. A chuva tinha parado, mas o lado de fora estava um breu, a lua cheia e as luzes distantes da fazenda sendo a única iluminação do local.

— Augusto, vem comigo — Rafaela o chamou, destrancando a porta. Ela tirou as sandálias de salto e saiu de pés descalços, prendendo o cabelo em um coque baixo. — Vamos ver se tem guardas.

— Enquanto você comer eles e não eu…

Quando ficaram sozinhos, Quaint se virou para ela. Trazia uma expressão séria no rosto, e parecia ter considerado as palavras seguintes com cuidado:

— Ontem você se abriu comigo. É a minha vez de retribuir o favor. Não quero que isso seja outra surpresa.

Ariadne piscou várias vezes. Espiou a dupla do lado de fora com o canto do olho, vendo-os desaparecer na mata.

— Pode falar.

Quaint massageou a testa como se o assunto lhe trouxesse dor de cabeça.

— Erik e eu nos relacionamos por alguns anos entre as décadas de cinquenta e sessenta. — Ele deu uma risada frustrada e sem energia, torcendo os lábios em seguida. — Em retrospectiva, foi uma péssima ideia porque somos incompatíveis de todas as maneiras possíveis e imagináveis.

— Ah — Ariadne respondeu, traçando as últimas gotas que escorriam pela janela do carro com a ponta do dedo. — Isso explica bastante coisa, mas eu já sabia.

— Sabia?

— Augusto deu com a língua nos dentes. Disse que você tem coração mole com os humanos pelos quais se apaixona. — Ariadne fez uma pequena pausa, coçando o queixo. — Apaixonou. No passado, espero.

Quaint riu.

— No passado, absolutamente. A verdade é que, em 1972, quando ele já morava aqui, Erik fez uma coisa que… — Ele apertou sua mão com mais força. — Quando você me perguntou sobre um híbrido, eu te contei uma história, mas não era completamente verdade. Aquela menina era minha filha, e Erik sabia o que tinha acontecido. Ele ficou interessado em extrapolar os limites entre gūls e humanos, e sabia que eu não concordaria em participar.

— A gulificação?

Quaint ergueu a mão para mostrar a cicatriz no mindinho.

— Ele precisava do material genético de um gūl para continuar os estudos. Nós discutimos, eu fiquei com raiva, e ele me deu um tranquilizante. Esse foi o dedo que perdi na brincadeira de ele entender como nosso processo regenerativo funciona — Quaint suspirou, cansado. — Ele fez a gulificação em si mesmo, e o resultado é que ele é um humano com longevidade maior e que precisa comer uma quantidade grande de carne vermelha. Só.

Ariadne fez que sim com a cabeça. Lembrava de Erik pedir comida para os dois e comer o dobro que ela, mas, em sua inocência, achava que era porque ele era um homem adulto, e ela, uma adolescente. Isso tá quase cru, dissera muitas vezes, e Erik ria como uma criança que aprontou. Assim você vai ficar doente…

— Mas vocês continuaram se falando depois disso.

— Nós nos afastamos muito, mas continuamos amigos. Eu o perdoei, talvez porque uma parte minha se sentiu vingada ao ver que a regeneração dele não foi suficiente para recuperar o pé que ele perdeu testando a gulificação. — Quaint apertou a mão dela com mais força, os anéis fincados na pele artificial. — O fato de termos problemas um com o outro é compreensível. Somos pessoas diferentes, mas o motivo que levou à briga final poderia ter sido evitado. Erik não é uma pessoa que consegue conviver com os outros por muito tempo, mas ao menos isso o levou a desenvolver as próteses que ajudaram você.

Ariadne o puxou para um abraço, beijando sua cabeça e deixando-o descansar em seu peito.

— Sinto muito — sussurrou, mas, se Quaint iria responder, não soube, porque um berro fez com que tivesse um sobressalto.

Quaint a segurou firme, tapando seu rosto e suas orelhas. Ariadne fechou os olhos, e tudo o que conseguia ouvir era a música ao fundo, a respiração dele, as cigarras do lado de fora. O silêncio foi substituído rapidamente por um bramido animal, como uma cobra ameaçada, e Quaint a segurou com mais força. Ariadne jurou ter escutado um urro junto, a voz de uma pessoa, mas tentou focar na razão de estarem ali: Erik precisa de ajuda.

— Vamos? — Quaint perguntou, soltando-a com delicadeza. Ariadne sacudiu a cabeça, aceitando o apoio dele para sair do carro. Augusto abriu o portão da frente e fez um sinal para eles passarem pelo outro lado.

Para eu não ver os corpos, Ariadne percebeu, sentindo seus membros se moverem de forma automática. Quando chegaram ao terreno da fazenda, Quaint retirou os óculos e os guardou no bolso do paletó.

— Fui privilegiado com uma excelente visão noturna, mas a luz me incomoda — ele disse, curvando-se para frente. — Fica atrás de mim.

A metros dali, a porta se abriu, revelando uma pessoa. Quaint rosnou, mostrando as presas, e Ariadne se escondeu atrás dele, encostando o rosto nas costas de Quaint. O corpo inteiro dele vibrava, e o mesmo rugido que ouvira antes agora vinha do fundo de sua garganta.

— Eu não estou armado — o desconhecido gaguejou, soando desesperado. — Por favor.

Ariadne espiou por trás de Quaint e notou que o homem assustado não tinha um braço. Ele havia se agachado, escondendo o rosto com a única mão. Eles aceitaram isso, ela pensou com horror, lembrando das notícias. Eles aceitaram virar comida.

Andaram até a porta, e Quaint ergueu o homem com facilidade pela gola da camisa social. Seus olhos, geralmente tão pretos, refletiam a luz que vinha de dentro da casa, brilhando no escuro.

— Quem mais está aí dentro?

— Só a gente, só a gente, os outros já foram embora — ele jurou, tentando não olhar para Quaint. — Só os médicos.

— Erik Yurkov? — Ariadne perguntou, agarrando a manga do paletó de Quaint para que ele não exagerasse. O homem concordou com a cabeça, um soluço escapando de sua boca.

— Com o presidente — ele choramingou, apontando para dentro. — O russo está no andar de cima com o presidente.

Quaint o colocou de volta no chão.

— Se eu fosse você, ficaria aí e ficaria quieto — avisou, frio. — Os outros estão com fome.

A fazenda parecia deserta. Dentro, todas as luzes estavam acesas e a televisão da sala estava ligada, passando um filme estrangeiro, mas não havia ninguém nos sofás, cadeiras e poltronas, nem na cozinha, cujo cheiro estéril de produto de limpeza a enojava. Quaint andou a passos rápidos até as escadas e fez um sinal com a cabeça para que ela o seguisse.

No andar de cima, a situação era a mesma: um longo corredor vazio e o silêncio perturbador e contínuo. Quaint fez um sinal com o dedo para ela ficar quieta e abriu a primeira porta. Nada. Obtiveram o mesmo resultado com três outras portas, até chegarem na quarta, que estava trancada. Quaint apoiou a mão na madeira e empurrou, fazendo-a cair com facilidade.

Dentro, havia uma mulher de meia-idade emaciada, o cabelo castanho e grisalho em um chanel curto, as rugas ao redor dos olhos fundos, o nariz médio e adunco. Ariadne a reconheceu como Genebra, a gūl portuguesa das fotos, e sua dedução foi confirmada quando ela ficou de pé e abriu um sorriso enorme ao ver um rosto familiar.

— Quaint, querido, você veio — disse ela, mas, assim que falou, começou a chorar. Quaint deu um passo à frente e a abraçou, tocando em seu cabelo com cuidado. — Eu não aguento mais.

— Shhh — ele murmurou. — Eles te machucaram?

— Não, não, eu sou só a cobaia… O Erik…

As palavras pareceram fazer sentido para Quaint, que segurou Genebra pelos ombros, o olhar furioso fixo no dela

— Ele te usou para a gulificação?

— Quaint — ela tentou dizer, a voz pastosa, como se tivesse sido medicada. — Não é culpa dele, eu juro, nós…

Ariadne olhou para os lados. Não havia nada para desconfiar no quarto, que parecia comum, com a cama desarrumada, a penteadeira e alguns vestidos dobrados sobre o lençol. Nada além da longa corrente que ia da parede até um dos tornozelos de Genebra. Quaint quebrou o ferro com uma pisada e virou-se de novo para a amiga.

— Nós já voltamos — ele assegurou, mas Ariadne já estava na porta, caminhando até a última sala do corredor.

Tinha certeza de que havia escutado algo vindo de lá, algo distante, como um gemido longo e desesperador. Tremendo, Ariadne colocou a mão na maçaneta e a empurrou, abrindo o último quarto.

Não, ela queria fechar os olhos, queria vomitar, queria estar em qualquer lugar que não fosse ali. Um homem idoso estava amarrado a uma maca, o corpo retorcido, a boca tapada com uma amarra ensanguentada. Pelo ângulo, havia se sacudido até quebrar os braços, e agora estava irreconhecível, mas Ariadne tinha a impressão de saber quem ele era, por já tê-lo visto no telejornal…

— Ariadne? — alguém a chamou, mas não era Quaint. A voz era mais suave, o sotaque mais pesado, o jeito de falar seu nome, diferente. Não era Quaint, mas ele a segurou mesmo assim, puxando-a contra seu peito, tapando seus olhos como se ela fosse uma criança estúpida mais uma vez.

Ariadne se debateu nas mãos de Erik, mas ele era maior e mais forte. Erik a manteve firme em seu abraço, mesmo sob os sons dos passos de Quaint correndo até a última sala.

— Me solta… — Ela mordeu a mão de Erik, os pés chutando o ar. Os dentes afundaram na pele clara, prontos para rasgá-la. — Me solta, me solta…!

— Você não precisa ver esse tipo de coisa — Erik disse, tentando arrastá-la de volta para a porta. Ariadne não conseguia alcançar o chão, mas queria machucá-lo de alguma forma, queria empurrá-lo e decidir o que veria ou não.

Solta ela.

Os dois pararam de se mover. Dessa vez era Quaint, e não havia diferença entre seu tom e o jeito que falara com o médico amputado no andar de baixo. Erik não a soltou; ele continuou com uma mão sobre seus olhos, mas Ariadne aproveitou a chance para escapar de seus braços e correr para o lado de Quaint.

— Eu sabia que você viria! — Erik sorriu um pouco por trás da barba por fazer. Depois, andou até o corpo para tapá-lo com um lençol. — Mas não precisava ter trazido ela. Ariadne, isso não é bom pra você.

— O que não é bom pra mim é você sumir sem me avisar! Não deixar nada para trás! — Ariadne gritou, sentindo o rosto queimar. Erik estava de costas e alisava a cabeça por baixo do tecido. — Você entrar na clínica sem dizer nada! Você fazer… esse tipo de coisa…!

Erik olhou para as próprias mãos. O jaleco que usava estava sujo, seu cabelo estava mais grisalho, e sua boca estava seca e rachada.

— Tem razão. Eu sinto muito por isso, de verdade. — Depois, sorriu do jeito gentil do qual Ariadne se lembrava, coçando a própria nuca. — Eu sou mesmo um desastrado.

— Você não tem vergonha na cara, isso sim — Quaint rosnou e avançou nele.

— Quaint! — Ariadne chamou quando ele apanhou Erik pela gola da camisa. Não sabia o que deveria pensar e nem sentir, mas correu para abraçá-lo por trás, segurando seus braços antes que ele pudesse bater em Erik. — Por favor, por favor, se acalma…

— Não consigo — ele grunhiu, dividido entre atacá-lo e não a machucar. O mesmo som gutural vinha do fundo de sua garganta, e ela o segurou com mais firmeza. — Não depois do que ele fez.

— Suponho que eu precise pedir desculpas pra você também — Erik admitiu, sem tentar se defender. — Eu sempre acabo largando meus problemas na sua cabeça.

— Você prometeu que não faria de novo. — Quaint tentou mais uma vez, e Ariadne prendeu seus braços contra o torso, tentando pará-lo. — Eu confiei em você.

Quaint parou de se mexer ao senti-la tremer. Ficou quieto por alguns instantes, cabisbaixo e cansado, e desfez o agarre de Ariadne cortesmente, como se cada dedo biônico pudesse quebrar se não a tocasse com cuidado. Obrigado, ele moveu a boca sem dizer nada, olhando-a por cima do próprio ombro.

— Quaint — Genebra chamou da porta, apoiando-se na parede para conseguir andar. — Ele não teve escolha.

— Eu sei que traí sua confiança no passado. — Erik tentou sorrir, dando tapinhas desajeitados no ombro de Quaint. — Eu sei que não tinha esse direito. Não com o que aconteceu à sua filha. Mas eu juro…

— O presidente nos manteve aqui durante o último ano para isso — Genebra explicou. — Não deu certo. Ele vai morrer a qualquer momento.

— No começo, eram apenas convites… Tentativas de me convencer a fazer a gulificação voluntariamente. Quando notaram que só conversar não surtiria efeito, me trouxeram pra cá. — Erik sacudiu a cabeça. — Estava na casa dela quando me encontraram, mas veio a calhar porque preciso de um gūl vivo para…

— Podem jurar o que quiserem. Nada vai mudar o fato de que você começou com tudo isso só pra ter mais anos de vida pra estudar! — Quaint deu uma risada amarga e cruzou os braços. — Nenhum dos dois estaria aqui agora se Erik tivesse feito a coisa certa. Você ao menos se arrepende?

Erik olhou para o homem coberto, cujos gemidos ainda se ouviam de tempos em tempos.

— Me arrependo do que aconteceu aqui. Me arrependo de ter te usado como base para os meus estudos sem a sua autorização. — Depois de falar, olhou para Ariadne, comprimindo os lábios em um sorriso. — Não me arrependo do que pude fazer com as décadas que ganhei.

Quaint rosnou, exasperado, saindo de perto dele e andando em direção à porta. Ele segurava o anel do cabelo, esfregando o cristal com o polegar enquanto fitava a porta aberta.

— Erik — Ariadne disse, exausta pelos últimos dias e por todos os anos desde que ele havia partido. — Vamos embora.

— Eu não sei se… O esquadrão pode voltar.

— Nós já resolvemos tudo. O Augusto e a Rafaela cuidaram dos guardas. Você pode voltar.

Erik tocou em seu rosto, a ponta dos dedos calejados fazendo círculos em sua bochecha. Ainda doía olhar para ele, mas menos, muito menos.

— Você cresceu.

— O tempo passa pra todo o mundo. — Ariadne deu de ombros, puxando-o pelo braço. — Vamos pra casa.

 Quando saíram do quarto, Rafaela já estava lá, esperando no corredor iluminado. Tinha os pés sujos de lama, os cachos desalinhados e manchas vermelhas no vestido claro.

— Dá pra sentir o cheiro de sangue lá de baixo — ela disse, abrindo um sorriso largo e satisfeito ao passar por Ariadne. — Me esperem no carro.

Em Vitória, em um prédio de três andares na Rua da Encruzilhada, havia uma clínica inconspícua, frequentada apenas por um grupo discreto de clientes longevos. Gūls de todo o Brasil apareciam por lá procurando os dois únicos médicos humanos que poderiam atendê-los, fosse qual fosse o motivo. Ariadne sentira falta de sua casa; não era luxuosa como o hotel, nem refinada como o Cabaré, mas a calma e o conforto não podiam ser substituídos.

Espreguiçou-se e colocou o sutiã, a camiseta, a calça de moletom e os chinelos, trocou as baterias das próteses e lavou o rosto, sonolenta. Quaint ainda estava na cama, lendo as notícias no celular.

— Seu Boniface deve chegar daqui a pouco — ela disse, puxando o lençol de cima dele para forçá-lo a levantar. — Ele não entende que eu almoço todo dia.

— É um problema muito grave — Quaint deu uma risadinha. Procurou por uma camisa em meio às roupas que tinham deixado na cadeira na noite anterior. — Mas eu posso ficar olhando você comer depois que a consulta acabar, se quiser.

— Eu gostaria, se os outros não encherem o saco.

Saiu do quarto e olhou para o fim do corredor, onde ficava o escritório de Erik. Ele estava lá nas últimas semanas, aparecendo às vezes para comer ou para conversar com ela. Na maior parte do tempo, ficava trancado no escritório, e Ariadne podia ouvi-lo mover os móveis, tirar coisas da prateleira, guardar e desguardar os pertences que havia deixado lá. Quaint, que tinha adiado sua volta para Pequim por tempo indeterminado, negava-se a falar com ele ou com Rafaela, hospedada no andar de baixo. Erik também não tentava insistir em vê-los; talvez sentisse vergonha do que fizera e preferisse deixá-los em paz. Talvez fosse o mesmo de sempre, e estivesse absorto demais em seu mundo de pesquisas e ideias, incapaz de abrir espaço para outras pessoas.

Ariadne bateu à porta.

Após alguns segundos, Erik colocou a cabeça para fora, o cabelo desarrumado e a camisa mal abotoada. Ela tentou esconder um sorriso ao vê-lo assim, falhando em manter o local em ordem. Erik pareceu notar o que se passava em sua cabeça, porque olhou para baixo, uma meia preta e uma branca, e começou a rir também.

— Eu sou mesmo um tolo atrapalhado — ele disse, abrindo a porta para ela entrar e puxando uma cadeira em meio às pilhas e pilhas de livros no chão. — Peço desculpas pelo caos. Eu estava tentando ver o que ainda prestava aqui.

— À vontade, é tudo seu — Ariadne falou, olhando para o escritório. Havia duas malas fechadas em um canto, e a mesa estava um desastre ainda maior. — Isso é uma prótese?

— Ah! Sim, sim, espera um pouco… — Erik correu para alcançar a escrivaninha, as pernas compridas passando por entre tudo que tinha deixado no chão. Ele pegou um braço esquerdo e o levou até Ariadne. — Os que eu fiz já estão antigos, então…

Ariadne esticou um braço para ele, e Erik a segurou pela mão com cuidado, olhando de perto para o membro que ele mesmo havia construído. As juntas e articulações, a estrutura delicadamente planejada para imitar a forma humana, o material leve e os pontos dos sensores. Erik colocou a outra prótese perto para compará-la, esticando o braço de Ariadne para ver o comprimento de ambos.

— Acho que você cresceu um pouco.

— Não muito. Não perto de você.

— Você não pode se comparar comigo nesse quesito — Erik gargalhou, puxando um banquinho para se sentar ao lado dela. Tinha uma postura terrível, do jeito que ela lembrava, curvado para frente para que ficassem na mesma altura. — A altura média na Rússia é diferente da altura média no Brasil, e se considerarmos as diferenças de sexo e…

— Vocês três que são gigantes. Ao menos a Dona Terebê é menor que eu — disse Ariadne. Sentiu os ombros pesarem de repente, como se toda a força de seu corpo tivesse se esvaído. — Você está indo embora?

Erik deixou a prótese no próprio colo e olhou para as malas.

— Ah… Bom, eu…

— Sim ou não? Eu não vou tentar te impedir.

— Acho que é a melhor coisa a se fazer. — Erik tentou sorrir, mas falhou ao ver a expressão gélida no rosto de Ariadne. — Não quero atrapalhar nenhum de vocês. E ver que você está bem, apesar de tudo, que não está sozinha…

— Você não está me atrapalhando.

— Eu tenho vergonha de olhar para você e para Quaint, Ariadne — ele confessou, mexendo no próprio cabelo com os dedos. Só agora ela notava que ele havia envelhecido nos últimos anos, não tanto quanto um humano normal, mas o suficiente para os fios prateados terem substituído grande parte dos loiros, e para as linhas em seu rosto terem aumentado. — Eu só faço uma besteira atrás da outra. Não consigo manter relacionamentos.

— Não consegue, mas você precisa admitir que não gosta de ficar parado. — Ariadne ergueu uma sobrancelha, apontando para si mesma. — Depois que você acabou esse projeto, foi procurar outro. Só parou quando te encontraram.

— É só o que eu sei fazer, estudar e inventar — Erik suspirou. — Nunca tive jeito com pessoas. Se tivesse, não teria feito o que fiz com você. Ido embora sem nem avisar.

— Você poderia ter me levado junto. Eu teria ido.

Erik a olhou nos olhos por alguns instantes, não com pena, como fizera tantas vezes, mas de uma forma que Ariadne ainda não conseguia compreender.

— Eu sei, eu sei… — Erik voltou a encarar o chão. — Quem é bom com pessoas é o Quaint. Ele sabe falar, sabe entender o que os outros dizem nas entrelinhas, todas essas coisas.

— Não o culpe por você priorizar sua curiosidade. — Ariadne deu um peteleco na ponta do nariz dele, franzindo o cenho. — Mas, bom… Isso é problema seu, não meu.

— Quaint é uma boa pessoa — Erik disse, brincando com os dedos pequenos da prótese. — Tenho certeza de que vai cuidar de você. Pode confiar nele.

— Eu sei. Você acha que eu teria deixado ele ficar se não confiasse?

— Verdade. Sempre foi desconfiada.

— Sem contar que isso é problema meu, não seu. — Ariadne pegou a prótese nova do colo dele e ficou de pé. — Achei leve demais.

— Você achou? — Erik puxou o braço de novo para medi-lo. — Eu posso arrumar isso.

— Depois de comer. Seu Boniface está quase chegando — ela disse, e segurou Erik pela gola da camisa para guiá-lo até o corredor. — É sua vez de preparar o almoço. Não aguento mais pedir as comidas que Rafaela tem curiosidade de saber como são.

Erik riu, e os dois foram até o andar de baixo. Quaint já estava lá, seguido pela gata angorá cujo nome ainda não havia escolhido, e Rafaela assistia televisão no sofá. Órgãos do governo se pronunciam após a morte do presidente ser confirmada, a chamada dizia. A Polícia Federal continua investigando as ligações de milícias conhecidas como “esquadrões da morte”… Ariadne foi até a porta ao ouvir o interfone e apertou o botão que destrancava a entrada.

Não sabia o que aconteceria dali pra frente. Se Quaint continuaria lá, se Rafaela cumpriria sua promessa, se a gata teria nome, se Erik partiria em uma semana ou se ficaria na clínica para sempre. Mas não importava; estava feliz pela primeira vez, talvez pela única vez, e eles também.

A ilustração, em tons pasteis de vermelho e verde, mostra um cenário meio desértico, com alguns cacos e suculentas. A imagem está virada noventa graus no sentido horário, de forma que o chão está virado para o lado esquerdo.

H. Pueyo escreve, traduz e se esconde, só saindo da toca para colocar histórias no mundo de vez em quando. Seus contos já apareceram em publicações em inglês, português e italiano, e podem ser lidos em revistas como Clarkesworld, Strange Horizons e Trasgo, entre outros.

Flavia Lago é editora, tradutora e professora. Formada em Letras pela UNESP, especialista em língua e literatura francesas pela Université Paris-Sorbonne e mestre em Teoria Literária pela USP, possui 10 anos de experiência no mercado editorial. Iniciou seu caminho pelo universo dos livros na Cosac Naify, onde trabalhou como assistente editorial por 4 anos. Hoje, atua como editora de livros infantojuvenis na FTD Educação. Entre seus últimos trabalhos, destaca-se a criação da Plataforma21, o selo jovem da V&R Editoras.

A foto quadrada mostra uma mulher branca de cabelos loiros e presos. Ela está olhando para frente, tem óculos escuros acomodados em cima da cabeça, usa uma camiseta branca com um adesivo redondo onde se lê “Ele Não” e está usando uma mochila amarela na frente do corpo.
A ilustração quadrada, desenhada no mesmo estilo da capa, mostra uma homem branco de cabelos castanhos curtos e arrepiados para cima. Ele está olhando para frente, mas com os olhos meio desviados. Ele veste uma camisa de um cor-de-rosa queimado, meio pastel, com um padrão vegetal verde, e óculos de grau com armação clássica estilo Ray Ban. O fundo é de um verde queimado, meio pastel, com um padrão vegetal rosa.

Dante Luiz é ilustrador, quadrinista e escreve nas horas vagas, além de trabalhar como diretor de arte da revista anglófona Strange Horizons. Já ilustrou capas da Trasgo, Mafagafo e a coletânea nacional Cantigas no Escuro, e seu trabalho com quadrinhos apareceu em diversas antologias gringas. Mora em uma casa que mais parece um antiquário com sua esposa e pilhas intermináveis de trabalho por fazer.