A ilustração no centro da capa mostra uma personagem negra, de cabelos morenos e cacheado preso por uma faixa verde, sentada em uma cadeira diante de uma mesa cheia de telas. Ela veste um macacão verde claro, e está séria olhando uma das telas, onde uma mulher de feições indígenas está pintando o rosto. A personagem central tem uma paleta de maquiagem na mão As outras telas mostram telas pretas com códigos e algumas imagens do que parece ser a cidade de São Paulo. Ao lado das telas, há várias caixinhas de delivery de comida chinesa empilhadas. O título “Suor e silício na Terra da Garoa” vem abaixo, à direita, em lilás claro. Do lado esquerdo, em cima, há o logo da Mafagafo com a informação “Temporada 003 - Julho de 2020”. À direita, logo abaixo da logo da Mafagafo, que é do mesmo tom de lilás do título, vêm as informações “Escrito por Vanessa Guedes” e “editado por Giovana Bomentre” em roxo escuro. Acima do título da Mafagafo, há as informações “Ilustração: Debbie Garcia” e “Direção de Arte: Giovanna Cianelli”.

No ano de 2070, Lyna grava vídeos ensinando a burlar o software de reconhecimento facial que monitora a grande São Paulo. Seus vídeos ameaçam o trabalho de Jéssika, a programadora por trás da eficácia do sistema governamental. Quando manifestações eclodem, Jéssika se vê obrigada a sair da zona de conforto — por seus próprios motivos.

17.400 palavras | Aproximadamente  1h15min de leitura 

1. O FIM

O teto sobre minha cama tinha cor de nuvens carregadas de chuva, em uma decoração meio Chernobyl minimalista e cheiro de bolor. Parecia impacto sensorial de cinema, efeito especial da umidade na cela. Eu estava cansada das luzes apagadas. Dizem que maus espíritos são sempre atraídos para lugares escuros, de poucas janelas e paredes cinza. Nunca acreditei nessas coisas, mas me benzia. Vai que.

— HORA DO BANHO!

Todo dia um berro abafado nos alto-falantes. Era sempre a mesma guarda, a de cabelo verde-neon. Do outro lado do vidro transparente, o seu rosto azedo se abria em um sorriso de deboche. Então eu recebia um jato de água gelada na bunda. Nunca recebi uma toalha para me secar. Eu rezava para minha pele não apodrecer pelo sufoco fedorento. Na real, acho que nunca secava totalmente. E a guarda sempre ficava para contemplar a minha miséria. Do vidro temperado da “janela”, perto do teto, ela me fitava, curiosa. Então, os olhos brilhantes se transmutavam em uma chacota muda — mas eloquente.

Os braços mecânicos dela acionavam mais jatos. Ela se divertia. O buraco por onde a água vinha se fechava minutos depois, e a parede ficava perfeitamente lisa. A sala da guarda se apagava, a janela escurecia e eu não conseguia mais distinguir o vidro escuro da parede. Num canto do teto, uma única protuberância: um ponto de LED azul e piscante.

Tudo isso porque um promotor sugeriu que dormir quatro horas por dia em um colchonete fino e mofado no chão, por trinta e cinco anos, restauraria meu caráter. E me transformaria em um ser humano novamente apto a conviver em sociedade. Os advogados comeram o pão que o diabo amassou com a papelada infinita enquanto eu aguardava o julgamento. Ainda que os mesmos promotores do caso tenham em seus logs de geolocalização inúmeras visitas a locais de atividade ilícita, proibidos de existir pela mesma lei utilizada para me socar neste muquifo. Talvez eu ainda mantenha esses arquivos guardados em máquinas espalhadas pelo mundo, talvez. Quem planta, sempre colhe.

Antes de ser presa, eu tinha tanta coisa passando pela cabeça que dificilmente poderia transcrever tudo em palavras compreensíveis. O bite jogava meus pensamentos tão rápido à frente que era impossível segui-los com os dedos. Os pensamentos vazavam para o nada, todo o sistema nervoso pulsando. Era nessa onda que eu entrava em loop, codando por horas sem parar. Uma máquina interpretando minha mente regulada no velho rebite. Ver longos trechos do que se passava na minha cabeça em strings organizadas, como imagens encriptadas em uma abstração de luz e elétrons. Bytes suspensos.

Quando presa sob acusações de sequestro de dados, uma programadora é impedida de tocar em qualquer dispositivo de silício enquanto aguarda a sentença. Imaginei que não lembraria de nada: eu tenho a memória fraca e foram muitas as temporadas de solitária, pedido especial do prefeito. Fodeu minha cabeça. Não guardo rancor, mas preciso contar o que me aconteceu. Por toda vez que olho pela janela, ao sentir a água quentinha do chuveiro tocando a minha pele, pelo cheiro do bolo de milho no forno, pelo arrepio que sinto quando beijo a boca da mulher mais linda da face da Terra. Eu lembro. Meu nome é Jéssika e eu lembro de tudo. Tudo. 

2. MAQUIA E FALA: O QUE É O LUC

Vou ser sincera com vocês. Eu faço muitos vídeos explicando como aplicar os produtos no rosto para burlar o sistema, mas não costumo conversar, né? Fiquei pensando se seria o momento de fazer uma maquiagem mais simples, mais à paisana. Como vocês sabem, eu tô tapando o rótulo dos produtos para o YouTube não captar e ficar poluindo com balãozinho de oferta até vocês completarem a compra sem querer com algum gesto. Se não fosse o alcance que o YouTube ainda tem, eu nem estaria aqui. Principalmente desde que anunciaram que usuários com menos de dez mil assinantes só podem postar cinco minutos de tela por semana. Se a gente quiser mais, tem que pagar. E eu é que não vou pagar.

Mas preciso levar a voz dos Ativistas pelo Anonimato a todos os lugares, então deixa assim. Ok, eu vou fazer uma make básica mesmo. Enquanto isso, vou explicando para vocês as origens do LUC. Para quem não sabe, o LUC surgiu em 2035, como uma maneira de unificar a identificação de todos os cidadãos sul-americanos. Uma espécie de carteira de identidade do antigo Mercosul. Mas óbvio que os hermanos não entraram nessa, alinhados do jeito que estavam com os cubanos naquela época. No final, nem sei quem começou a treta — ok, vou passar esse primer especial para a área do queixo, muito bom para fechar os poros, que aqui geralmente são mais abertos do que no resto do rosto. Talvez eu use o mesmo para a testa, vamos economizar porque eu não sei quando um Louca’Real Paris vai cair na minha mão de novo. Putamerda, falei o nome. Minha cara vai ficar dez segundos tapada com o logo da Louca’Real no vídeo. Putamerda! Vinte segundos agora.

Mas antes de continuar a falar do LUC, eu tenho que falar do RUC, né? Vamos por partes. Isso, RUC com R mesmo. ÉRRE. O RUC é uma abreviação. Ele significa — presta atenção aqui no letreiro — REGISTRO. ÚNICO. DO. CIDADÃO. É o número de identificação individual e social de qualquer pessoa brasileira. Antigamente, eu sei que tinham dois identificadores, o tal do CPF e o RG. Por que dois? Não faço ideia. Mas não importa mais. O RUC é único e — será que passei primer demais aqui no cantinho? — intransferível, usado em todo o território da República Federativa do Brasil. Sim, esse é o nome oficial do Brasil. O RUC é simplesmente o seu número de identificação civil. Está atrelado ao registro do seu rosto, das suas digitais e ao mapeamento da sua íris. Mas, na prática, o único desses aí que funciona hoje é o reconhecimento facial — e agora eu vou passar a primeira camada de base, preparando a pele para o que vem depois. Vou pegar um tom um pouco mais intenso que o meu tom natural para poder brincar mais com blush e contorno no acabamento. Não é todo mundo que faz isso, eu sei, mas quem tem a pele morena-avermelhada consegue um brilho acetinado com esse truque —, porque o reconhecimento facial é mais simples de rodar em um grupo maior de pessoas. Aglomerados tipo o metrô, sabe? Ele também tem uma renderização mais precisa para um curto intervalo de tempo.

Em geral, o mapeamento de íris seria mais preciso, mas ele demora mais para rodar a leitura e ninguém quer ficar parado na fila do caixa automático esperando o software rodar para dar o checkout e sair, né? Então. Mas o RUC sozinho é só um monte de números e listas. O que faz a mágica acontecer — agora sim vou passar para a base, gente, vou pegar essa aqui no tom da minha pele mesmo — é o LUC, que é sobre o que eu vim falar aqui nesse vídeo. Que basicamente significa — presta atenção! — LOGIN. ÚNICO. DO. CIDADÃO.

O LUC é todo o sistema que acessa os dados guardados no RUC. O LUC é tanto os algoritmos de reconhecimento de padrões como o software, o hardware, a porra toda. Então, quando você passa pela porta de qualquer estação da Linha de Trens Metropolitanos, é uma câmera do LUC que registra o seu rosto com uma precisão absurda. E, no intervalo de dois milésimos de segundo — ok, agora eu vou começar a fazer o contorno dos olhos, que eu acho mais fácil do que o das bochechas, e o da boca vou deixar nude mesmo, que já tem menos de 1 minuto de vídeo agora —, o LUC manda um código, como se tivesse traduzindo a sua cara para um monte de código binário, zero um zero um zero zero zero um zero um até perder de vista. E com esse código ele dá baixa nos seus créditos de transporte público, dando match nos dados. Deu para entender?

Antes fosse só isso, claro. O LUC também fornece ao Governo um registro preciso sobre para onde vai e para onde vem TODO MUNDO. Pois é… — Merda! Borrei o contorno.

Ok, meu tempo esgotou. Espero que vocês tenham gostado! Não esqueçam de levantar o dedinho pra cam — eu sei, a make ficou pela metade, sorry! Mas — não esqueçam MESMO de levantar o dedinho pra cam pra dar aquele like gostoso. E de me mandar um tchauzinho com a mão direita, para assinar o canal dos Ativistas pelo Anonimato e nos ajudar a fazer vídeos com mais de cinco minutos! Espero que tenham — PIIII!!!

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Você pode clicar em “pular” após 5 segundos…

3. O COMEÇO

Não existe esperança sem medo. E a ilusão que nutriu minha infância era a de passar por essa fase ilesa, sem me meter em confusão com autoridade. Isso seria a pior coisa que poderia me acontecer. Pior que a morte. De alguma forma, ser presa foi como voltar a ter oito anos de idade — pega pelo guardinha do prédio por bloquear o sinal do drone de vigilância para jogar bola no corredor com o filho do vizinho depois do toque de recolher. “Senhora Katarina Santos, sua filha Jéssika se encontra na Unidade 9 de punição a menores infratores”. Essas palavras brotavam aterrorizantes na minha mente tal qual o filme do Babadook que meus pais assistiam no Tele Vintage.

Eu ralei muito a bunda no asfalto para juntar dinheiro consertando aspirador de pó embutido de carro elétrico, tomando choque o dia inteiro sem a proteção de estática. Quando eu era pequena, pouca gente chegava nas beiradas de metal dos prédios ou mesmo no andar térreo, quem dirá descer até a cidade. A vida da galera sempre foi suspensa pelas vigas de metal dos arranha-céus, onde muita gente nascia e morria sem nunca pisar no chão lá fora. Os vigilantes faziam vista grossa para mim quando eu saía, deixando que eu passasse sorrateira, contornando o scanner do LUC da entrada; em troca, eles não precisavam me pagar com fordcoins para consertar o hardware autolimpante dos seus carros. Eu também aceitava uns tubos de comida doce em troca do serviço. Era assim no complexo da iFord. Minha mãe era operária biorremovedora de resíduos, a gente morava no andar 151 quando eu era pequena. Isso mesmo, aquele famoso pela chacina dos Rumba, quando o pessoal da quebrada de cima hackeou os drones dos vigilantes e matou todo mundo naquele apartamento fedorento — e os aspiradores de sujeira Rumba limparam toda a cena do crime, atrasando a investigação.

Cresci escutando as histórias de assombração daquele apartamento, que nunca mais foi ocupado. Uma vez eu passei pela frente dele e escutei alguma coisa batendo lá dentro. Dizem que nunca tiraram os Rumba da sala e que ainda tem pedaços de corpos dentro deles. Eu queria entrar ali para ver como era, então comecei a ler sobre como hackear os drones, entendendo como passar pelo LUC do prédio para abrir a porta sem ser notada ou localizada. Mas eu não tinha um computador apropriado para hackear o protocolo de rede. Os fantasmas teriam que esperar.

Então, eu comprei meu primeiro Penteum da sétima geração, usado, aos quinze anos. O interesse pelo apartamento mal-assombrado tinha passado e deu lugar a outras coisas. Eu queria saber como que aquele trambolho fazia para mandar uma mensagem daqui para China em um segundo. Como que os chineses recebiam meu pedido de compra de duas camisetas brancas, descontavam meus fordcoins do LUC-bank e confirmavam a compra em apenas um clique. Um segundo! Trouxa eu; era um MILÉSIMO de segundo. No final das contas, não conheci nenhum chinês, mas acabei trombando com umas pessoas esquisitas na internet. Foram os primeiros humanos simpáticos que conheci na vida. Tirando o cara que comia minha mãe no final de semana e que me trazia sempre um pote de sorvete meio derretido debaixo do braço — comprando meu silêncio para eu não entregar o segredo para o meu pai, que tinha sido gamer profissional quando jovem, mas acabou fazendo bico de piloto de guarda-robô de balada no sábado à noite. Depois, o sorvete virou uma grana para pagar a taxa de inscrição do ENET, exame nacional do ensino tédio, como a gente falava na época. Uns meses depois, para espanto de toda a comunidade da iFord, eu estava na mesma sala de aula que todos os lambidinhos lá de baixo da cidade. Eu estava descendo para a rua! Consegui o direito de passar pela porta de entrada de cabeça erguida, dar checkout no LUC do prédio sem precisar trocar favor com nenhum vigilante.

São Paulo era colorida e misteriosa, retalhos cintilantes que mostravam e escondiam todos os detalhes de uma só vez. Os prédios de vidro furta-cor e toda a população de letreiros brilhavam em contraste com os hologramas projetados em todos os ângulos, que sumiam e surgiam de novo exibindo os mesmos memes, anúncios e promoções relâmpago. As pessoas da cidade compravam em lojas físicas, tal qual nossas avós. E muito cedo entendi como o ritual de pegar os produtos na mão, sentir, avaliar, comparar e então pagar funcionava. Eu atravessava a cidade de metrô-bala para o Butantã todos os dias antes do sol nascer, mas pouco o notava até que estivesse alto no céu, na hora de ir para o restaurante universitário e ver umas árvores centenárias pelo caminho. Foi ali, pelos laboratórios de desenvolvimento técnico do curso que me formaria cientista da programação, que eu percebi que poderia ter muita grana se continuasse boa naquele negócio de escrever código. Nem era incomum o pessoal da minha idade sonhar que ia ser o novo pica das galáxias nas empresas de tecnologia. Na época da minha avó já era assim. Só não era comum na quebrada onde eu nasci, mas aí eu já estava ficando cada dia mais e mais distante daquele void. E a vida andou muito rápido depois que eu me mudei de vez para a cidade.

Foi lá que me tornei engenheira de identificação simultânea e proprietária de um flat bacanudo no centro. Funcionária da maior empresa de fabricação e venda de dispositivos de comunicação e processamento de dados do mundo: a Circo. E profissional em atropelar sem dó qualquer coisa ou pessoa que tentasse se opor à minha vontade interminável de trabalhar dezesseis horas por dia (ainda que a lei limitasse a jornada a dez horas). A vista grossa da chefia ainda não era possível de ser trackeada pelo sistema que eu mesma desenvolvia. Quase não andava na rua, mesmo que morasse no bairro mais caro e bem localizado do centro paulistano. Os painéis de LED cobrindo os prédios machucavam meus olhos, a fumaça dos vapes baratos fazia arder minhas narinas, a atmosfera mal filtrada de oxigênio queimava meus pulmões. Eu era só mais uma moradora da maior sucursal do inferno da América Latina, São Paulo Capital.

4. INFOVÍDEO: ZONA-ARCO

E aí, povo!? O vídeo de hoje é no estilo miniexplaining, ou: o famoso INFOVÍDEO! Na semana passada, ficou difícil explicar tudo enquanto eu me maquiava, então hoje eu vou só contar para vocês bem rapidinho sobre a história das Zonas-Arco no Brasil. Como elas começaram e como essa ideia se desenrolou durante o nosso processo de pós-democratização.

Então, basicamente: ZONA-ARCO (escreve como tá aqui embaixo no vídeo, com o tracinho no meio) é o termo usado para chamar as arcologias construídas no Brasil na década de 2040. São complexos de condomínios formados por poucos prédios, todos muito altos, geralmente com mais de cem andares. Esses prédios foram inicialmente construídos por grandes conglomerados de empreiteiras da construção civil, que concordaram em vender os apartamentos diretamente aos cidadãos de baixa renda em troca de mão de obra como pagamento. Isso mesmo. Em vez de dinheiro, as pessoas se comprometeram a trabalhar como pagamento pelo direito de moradia. E, assim, as empreiteiras venderam as zonas-arco e a mão de obra de seus moradores para empresas do mundo todo. As zonas-arco geralmente se localizam de 30 a 200km do centro de grandes cidades, e hoje abrigam uma média de quinhentas mil pessoas cada uma. A maior delas é o complexo Volkz Motors, que foge dessa regra e fica na zona do Vale do Paraíba, no estado de São Paulo (olhem o mapa aí na tela auxiliar), abrigando cerca de um milhão e trezentos mil moradores em um complexo que ocupa uma área geográfica de aproximadamente 100km². É gente para caralho!

O sistema de organização das zonas-arco consiste em sua criptomoeda local própria, comércio local, autonomia em energia e agricultura, empresas de transporte público próprias e sistema educacional independente. Uma das criptomoedas mais famosas é a do complexo da iFord, a fordcoin. Atualmente, uma das moedas com a cotação de conversão mais alta. Mas nem tudo são flores nas zonas-arco.

Por conta do uso de criptomoeda local, com o Ato de Desconexão das Transações de 2049, os seus moradores têm uma lista de direitos e deveres diferente da pessoa-cidadã brasileira comum. É, isso mesmo. Semana que vem vou fazer um vídeo para vocês só para contar mais detalhes.

Então, levanta a mão aí e faz o joinha se você curtiu o minivídeo! Fiquem ligados nos Ativistas pelo Anonimato; estamos começando a transmitir ao vivo às quintas!

5. O PANTERA

Eu costumava ir ao foodtruck da esquina do prédio às sextas-feiras e sempre repetia o mesmo diálogo, como se fosse o refrão de uma música nova que a gente não gosta, mas que repete no automático porque toca em todas as lojas de conveniência, academias e Há-bibis. “Me vê um bite sem MD e duas doses de coca, por favor”. Não era que eu estivesse usando aquelas coisas à toa, era só que meu cérebro precisava de um estímulo brusco para continuar funcionando aos finais de semana; alta disposição para todos os projetos paralelos que eu precisava manter. Jéssika Santos seria um nome conhecido.

É, eu era bem ambiciosa. Também gostava dos meus desnecessários óculos de aros grossos, com lentes de acrílico neon que impediam a identificação imediata do meu rosto pelas câmeras do LUC. Na verdade, todo o processo de compra no foodtruck precisava levar no máximo noventa segundos, o tempo que a lente de acrílico segurava a anonimidade do usuário frente a uma câmera externa. As câmeras do LUC captavam imagens de locais públicos. O foodtruck ficava na rua. Eu pagava a conta mirando o focal de pagamento do balcão imundo e grudento, de óculos, de maneira que o sistema de cobrança universal escaneava minha cara e descontava a quantia do meu bite direto do LUC-bank, sob a alcunha de “Hambúrguer plant-based de quinoa e broto de araucária”, levando aproximadamente 0,003 segundos para escanear, identificar, descontar, transferir, confirmar e salvar a transação inteira. Eu era estagiária da Circo quando essa API para pagamentos foi lançada — API: Application Program Interface. Foi a primeira e única vez que tomei champagne na vida. Na festa, banhei os sapatos lustrosos de um funcionário com a comida cara que estava sendo digerida no meu estômago depois do jantar. Ossos do ofício 🤷🏾‍♀

Eu tinha então 25 anos de idade, um metro e setenta de petulância e o meu nome escrito na lista de autoria pela criação do mais inteligente software de reconhecimento facial disponível no mundo. A Circo investia pesado nas pesquisas, mas mais ainda em seu maior tesouro: os programadores. Eu podia estar trabalhando dezesseis horas diárias, mas embaixo da minha mesa havia sempre uma massoterapeuta apertando a sola do meu pé enquanto eu codava uma média de duas features novas por semana, sem falhar. Eu poderia sair da Circo a qualquer momento e entrar em outra empresa milionária do ramo de desenvolvimento de software de identificação. Mas a Circo me garantia o que nenhuma outra podia: acesso livre à informação, a qualquer hora do dia ou da noite.

A Circo detinha o monopólio sobre as licitações do governo federal. Ainda na época da transição de simples programadora do baixo calão, ao lado do chão de fábrica importado da Colômbia e do Haiti, juntei a presença de espírito necessária para implementar, sozinha, o primeiro backdoor para um produto de lançamento em escala nacional. Backdoor, a porta dos fundos: uma parte secreta ou escondida em um programa, que pode vazar informações específicas para quem o criou, ou conceder acessos a essa pessoa. A partir daquele dia, eu fui sofisticando meus backdoors; acessando remotamente informações confidenciais de transações bancárias, logs de GPS de rotas utilizadas por qualquer cidadão com RUC registrado e toda sorte de informações sensíveis. Eu nunca estive exatamente interessada em stalkear o que o cidadão comum estava comendo, com quem estava trepando ou onde estava estacionando seu carro compacto de duas portas com painel solar. Meu esporte favorito era encontrar os pontos cegos de monitoramento e testá-los pessoalmente depois de adequar o código. Muitas vezes tentei eu mesma burlar o sistema. E consegui. Para então me sentar em frente ao computador e consertar a falha. Melhorias constantes.

Não é difícil perceber minha pouca vida social, nada incomum para funcionários da Circo. “Olha, nossa anja caiu do céu” era a mensagem que eu frequentemente lia no chat do time depois que eu caminhava por entre as mesas com a minha xícara de café adoçada com coca-cola, meu bump de cafeína. Meu chefe não tinha nenhuma cerimônia em ironizar a minha existência naquele lugar, como se eu fosse a grande piada do time. Ou como se eu ainda usasse as roupas de gola puída e o cabelo black power descolorido no banheiro de casa pela minha mãe — num contraste bonito com a minha pele retinta, quase cor de terminal de linha de comando. Eu não era mais a mocinha deslumbrada de seis anos antes, mas a notícia ainda não chegara nos miolos protegidos por aquele crânio de pele rosada e translúcida. Um nariz suíno que só perdia em antipatia para a barba amarela e rala que ele tentava cobrir com maquiagem de sobrancelha. Mas nenhuma tinta artificial esconderia o que estava podre em meu chefe, Enzo Muller. Não bastasse tudo, ainda tinha nome de gente velha.

Uma vez, logo que fui promovida de estagiária a funcionária, eu excedi a meta de entregas do mês e ainda estávamos no dia dez. Comemorei. Enzo, na época apenas meu colega, chegou pelo lado esquerdo da minha cadeira, colocou a mão no meu ombro e falou para os homens no outro canto da sala:

 — Ela realmente é mais esforçada que a gente. — Ele deu tapinhas no meu ombro e virou para o resto da equipe. — Se ela é tão boa assim, acho que deveríamos dobrar a meta dela mês que vem. Que tal?

Todos riram. Eu ri com eles também. Um pouco nervosa, um pouco sem querer realmente entender o que eles queriam dizer. Mas eu descobri rápido. Porque no mês seguinte realmente aumentaram minha meta mínima. Só a minha. E Enzo virou meu chefe logo depois.

Um dia, ali pelos idos de maio de 2070, queimaram uma loja de roupas “étnicas” que mudavam de cor quando estavam sujas. “Tecnologia têxtil de última geração”, dizia a propaganda do site deles. Uns militantes de tapa-olho e pintura geométrica no rosto mandaram todo mundo para fora da loja. Então derrubaram os manequins, tiraram o estoque e tacaram gasolina em tudo. Dizem que alguém fumou um bolado de ganja e jogou a bituca no meio da loja. O fogo lambeu o letreiro de luz laranja que piscava sobre o fundo marrom. O nome da loja: Senzala. A imagem de um homem alto de pele negra pulando entre os prédios foi divulgada pouco depois nos telejornais sérios. E, no plantão jornalístico, eles o chamaram de Pantera. Bem criativos, claro. Em volta do prédio tomado pelo fogo, os painéis de anúncios dos prédios adjacentes interromperam a costumeira exibição de propagandas de cerveja e lixo eletrônico para exibir a mensagem “CHEGA DE SILÊNCIO”.

Pantera tinha instalado uma placa de microcomputador na central de displays eletrônicos do quarteirão e detido o domínio do seu conteúdo. O “CHEGA DE SILÊNCIO”, letras brancas em fundo negro, populou as ruas da cidade por horas.

Minha mãe comentou sobre aquilo durante uma chamada de vídeo no meu intervalo de almoço, no dia seguinte. Ela ainda trabalhava na iFord, com os resíduos, mesmo depois que meu pai se foi. Ele morreu sem terminar de pagar a parte dele nas horas pelo apartamento de zona-arco, então mamãe teria que fazer hora extra até completar 85 anos. Eu dificilmente ia visitá-la, pois precisava submeter um longo protocolo de visitação semanas antes no app da iFord, e havia um limite anual de visitações. Os moradores das arco precisavam de autorização para sair delas, e a cada ano estava mais difícil e demorado conseguir uma. Nossas conversas eram exclusivamente feitas por chamada de vídeo.

Naquele dia, ela estava um pouco estranha, e me disse que estava chegando o tempo da reparação histórica e que o sofrimento ia acabar. Mas que a gente ainda tinha de lutar muito. Eu disse que não estava mais acompanhando política, pois nunca me interessou de fato; muito menos aqueles movimentos rebeldes que apareciam vez ou outra, geralmente quando tentavam aumentar a passagem do trem-bala Rio-SP. Mas, na verdade, eu não estava cem por cento desinteressada. As formas geométricas desenhadas com tinta de cor viva na cara daqueles que tocaram fogo na loja Senzala me chamaram a atenção — fomos notificados na Circo de que os agentes federais não conseguiram identificar os indivíduos devido à pintura em seus rostos. Na juventude, mamãe pertenceu ao movimento popular das arco-comunidades: pequenos grupos que lutavam pelos direitos dos cidadãos das zonas-arco. Dizem que a chamavam de Katarina Fogo-nas-Ventas, porque ela não deixava barato quando ia negociar com os chefões de produção. Mas ela disse não conhecer o pessoal jovem que apareceu naquele vídeo do Pantera.

6. INFOVÍDEO: O PROBLEMA DAS ZONAS-ARCO HOJE

E aí, galera animada! Gostaram do último tutorial de make anônima? Lembrem de assinar o canal para acompanhar os Ativistas pelo Anonimato ao vivo às quintas, 24 horas online. E hoje vamos retomar o papo sobre as zonas-arco e o que anda rolando dentro delas nas últimas semanas. Eu sei que vocês têm acompanhado a agitação nas cidades também. Precisamos falar sobre isso!

Todo cidadão brasileiro nascido em uma zona-arco precisa de visto de trabalho para morar fora dela. Isso significa que populações de cem a quinhentas mil pessoas estariam sujeitas a trabalhar até morrer dentro das condições oferecidas pela empresa dona da zona-arco. O que rolou nos últimos dias na arco da Monstranto, multinacional de agricultura — parceira da Mayer, de medicamentos, que é conhecida por conduzir pesquisas de larga escala com testes em humanos desde 2035, quando a prática se tornou legal —, foi uma estratégia controversa para todos os envolvidos. Com a quebra de várias zonas-arco menores, cujo valor das criptomoedas despencou após muitos trabalhadores terem sucumbido a doenças e falta de assistência médica interna, a Monstranto quis usar o momento para expandir. A intenção da companhia era fechar acordos de compra das arco quebradas de grande parte das regiões Sudeste e Nordeste. Nada poderia impedir o processo de venda das arco, pois poucas instituições de fora podem intervir nelas. Como, por exemplo, a polícia. O Estado nunca abriu mão de participar da cobertura da segurança do território nacional em sua totalidade, e isso nunca foi negociável com as arco-comunidades. Mas elas conquistaram um direito importante há cerca de vinte anos atrás: o direito ao voto.

Nada disso é grande novidade. As grandes multinacionais do agronegócio e dos medicamentos sempre estiveram de olho nas arco paulistanas. Mas, para que o acordo de venda das arco seja fechado, os moradores têm direito a eleger, em um sistema de eleição pública e anônima, a corporação que será a nova dona do complexo. Enquanto eles não votarem, nenhuma empresa é escolhida. E a arco permanece sob o comando da empresa atual. No momento, a Monstranto não tem nenhuma outra adversária à altura ou com tanto dinheiro.

E sabe o que acontece se as pessoas continuarem sem votar?

Em teoria, nada. Mas é claro que começaram a fazer pressão interna para que elas votem. E as arco-comunidades começaram a se comunicar sobre isso. Criaram arco-sindicatos da noite para o dia, e exigiram uma lista de acordos. E a exigência é manter os acordos após a venda para uma nova companhia. Eles não são idiotas, a Monstranto vai trazer a Mayer com ela, pronta para testar novos superantibióticos. Eles já estão fazendo isso em metade das arco da Argentina à Venezuela, mas não é o suficiente para toda a meta de rendimento global que eles querem alcançar. Eles vão comer a América Latina toda de colherinha. E, esse ano, a polícia começou a invadir as arco em missões de pacificação. Para criminalizar os arco-sindicatos.

Vamos falar mais sobre isso na quinta, com a transmissão ao vivo dos Ativistas pelo Anonimato. Até lá, like pros nossos vídeos! Mais tarde devemos lançar mais um tutorial de maquiagem que causa delay na leitura do LUC! Valeu, galera.

7. O ROSTO DE LYNA

Os blogs de moda diziam que a nova tendência era se manter anônimo e evitar fazer check-in nos restaurantes e casas noturnas. Quanto menos soubessem onde você estava, mais importante você parecia. Depois da ação do Pantera e dos manifestantes, varri a internet em busca de informações e descobri que havia um canal no YouTube, com dois milhões de assinantes, chamado The Make-Up Hacker. Passei correndo pelo food truck e peguei uma dose tripla de bite. As pupilas dilatadas como bolas de tênis. Foda-se. Cheguei em casa furiosa, sapatos voando pelo hall. Me joguei no sofá.

— Oi, casa. Liga o cast. — E o painel projetor foi ativado à minha frente. — Casa, acessa o canal do YouTube The Make-Up Hacker.

O projetor exibiu o ícone vermelho do serviço de streaming e carregou uma lista de vídeos. O vídeo do topo foi ampliado e arrastado por cima dos outros, entrando em modo full screen. Então a Terra parou de girar, e ficamos só eu e ela a nos contemplar com a luz do projetor entre nós.

Eu estava vendo pela primeira vez a face estranha daquela que seria o pivô da minha estadia em uma instituição governamental de punição. Mas também estava conhecendo a minha hacker preferida. Seu nome era Lyna, e ela era a mais popular youtuber de maquiagem de anonimato do país.

Lyna. Farol do meu destino, fogo na minha lenha. Novo vício, minha heresia. Ly-na. Um único movimento na língua entre os dentes e o som que sopra uma sílaba suave, repousando na boca levemente aberta a relaxar no segundo final, um som em aberto. Lyna.

Lyna falava com a voz macia e firme, pronunciando as palavras claramente, uma após a outra, apresentando seus vídeos informativos. Lyna tinha dedos longos de pianista, pele oliva e olhos puxados de onça. Com suavidade pousava o pincel molhado de tinta vermelha e fresca por sobre a bochecha esquerda, desenhando um arco perfeito. E falava. E como falava. Tão articulada. Com um movimento rápido e elegante, cruzava as duas pontas do arco com um único risco fino. Do outro lado do rosto, desenhava outros dois traços idênticos, e, no queixo, um minúsculo círculo azul. Sua franja caía em uma cascata desnivelada por sobre as sobrancelhas; a irregularidade dos ângulos na testa dificultava a parte do firmware das câmeras que reconheciam o rosto humano no primeiro nível do programa. Os desenhos geométricos sobre a pele bronzeada, aplicados com tintas veganas cruelty free da loja Luxo, serviam como blockers de interceptação de traços para o software mais sofisticado, que rodava nos servidores que liam as filmagens em tempo real em um data center na Escandinávia.

No vídeo “Por que você deveria se preocupar com anonimato?”, ela explicava sobre como as empresas de marketing se utilizavam de big data para vender cada vez mais e mais mercadorias, eficientes em seu advertising, acertando um número absurdo de sugestões de produtos e novidades, elevando a taxa de conversão aceitável de 10 para 52% de sucesso. Em um primeiro momento, achei engraçado. Lembrei da iFord, onde não havia alertas de promoção da Everlasting21 invadindo os espertofones de tela sensível ao toque porque não tinha nada lá para você comprar sem autorização além de drogas, armas e coxinhas com café pingado (comida fora de tubos sempre foi uma iguaria em qualquer zona-arco). Não há necessidade de marketing direcionado e inteligência artificial quando os consumidores sabem exatamente do que precisam. No vídeo “Maquiagem para quem usa óculos”, ela demonstrava como fazer os seus próprios óculos de acrílico que provocavam um delay na identificação da face pelo software. Exatamente como eu mesma fazia. A técnica era simples, mas eficiente. O vídeo mais popular era o “Minha maquiagem diária”, onde ela se maquiava sem a geometria e as tintas fortes, usando apenas itens comuns de maquiagem, aplicando base, corretivo, blush, sombra, batom e rímel. O tipo de maquiagem que ela fazia para a série “Maquia e Fala”. Ela usava uma técnica de contorno com um pó mais claro em pontos-chave do rosto, explorando mais uma falha desconhecida no software. Os vídeos tinham centenas de comentários, a maioria agradecendo o serviço que ela prestava à sociedade, outros falando que nunca haviam pensado naquilo antes e uns poucos chamando-a de louca. Ou a acusando de desrespeitar os hackers de verdade ao se apropriar do termo para usar com algo tão fútil e banal quanto maquiagem. The Make-up Hacker. Genial.

Demorei algumas horas naquele transe. A voz de Lyna, os lábios de Lyna se movendo, os poros do seu rosto em zoom e ela toda emoldurada pelo brilho frio do projetor na parede branca perolada da minha sala. Quando a playlist acabou e a vinheta dos seus vídeos não tocou outra vez, voltei à realidade. Passei um café em uma daquelas máquinas horrendas de microcápsulas de cafeína, artificialmente aromatizado de caramelo e baunilha. Vintage, a opção que o apartamento novíssimo e mobiliado oferecia. Fiz mais um porque precisei de cinco cápsulas de americano duplo para preencher uma xícara que mais parecia um balde. Puxei a estação de trabalho até a escuridão da sala de estar, dei play nos vídeos mais uma vez e comecei a trabalhar no editor de código com acesso completo remoto ao ambiente de trabalho da Circo. Implementei vários novos ajustes e registrei um novo branch no sistema, que mais tarde seria adicionado ao projeto principal. Uma série de aperfeiçoamentos para driblar as técnicas de hackeamento de imagens que eu tinha acabado de aprender com Lyna. Eu conhecia algumas delas, como a dos óculos de acrílico que eu usava para comprar bite. Mas não esperava que outras pessoas tivessem percebido. Eu precisava reverter aquele quadro.

8. O DIA D

Não vi o dia amanhecer pela janela, mas percebi que já era o meio da manhã quando lembrei de enviar uma mensagem para o pessoal no escritório, avisando que eu trabalharia de casa durante o dia. No chat coletivo do time, meu chefe enviou uma imagem animada de um cachorro caindo de sono no chão, cambaleando enquanto tentava ficar de pé. “Pequenas cachaças, grandes ressacas”, sent by @EnzoMuller. Foi respondido com vários “hahahahaha” e “hehehehe”, e eu senti um formigamento estranho no rosto. Uma humilhação injusta. Respirei fundo.

Não demoraria muito para que todas as atualizações que fiz no sistema durante a noite aparecessem para todos eles, com as notificações de rotina, assim que eu fizesse o update e o deploy no servidor de teste. Porém, eu precisava me certificar do sucesso do novo branch para ter certeza de que aquilo realmente funcionava. Eu não era especialista em testes e não queria pedir ajuda. Queria todos os louros da jogada. Queria pisar em cima do Muller sem precisar ter de descer ao nível dele. Fazer piadinhas sobre sua aparência era muito fácil, muito barato. Eu queria dar o troco com elegância.

Salvei os arquivos no meu terminal e diminuí a luminosidade da tela do computador. Abri as janelas e deixei o fraco brilho do sol entrar no apartamento, vindo de uma nesga no céu coberto por nuvens. Parecia que ia garoar. Busquei um espelho redondo do tamanho da minha mão e um kit barato de maquiagem colorida ainda lacrado, que eu comprara dois anos antes para uma festa de lançamento da Circo, mas que nunca tinha conseguido usar. Eu usava apenas tons de terra e lápis preto, pouco conhecia o uso das maquiagens coloridas. Aliás, maquiagem policromática fazia eu me sentir como se fosse uma palhaça. Sempre tentei ficar longe, ainda que seja uma das melhores maneiras de alcançar o visual andrógino vibrante, super popular nos últimos anos. Escolhi o vídeo de Lyna sobre a maquiagem discreta com sombreamento, mas o sombreamento que ela usava dava um efeito acinzentado no meu rosto. Eu precisaria de pigmentos mais quentes, em tons naturais profundos, para alcançar aquele efeito.

Então escolhi um dos tutoriais com os símbolos geométricos. Na terceira tentativa, acertei o traçado fino e colorido no formato mais anguloso do meu rosto, em uma paleta de cores tropicais, intensas. Soltei o turbante que cobria meus cabelos. Os cachos castanho-escuros caíram sobre os ombros, curvando-se em voltas fechadas, formando grandes mechas macias. Passei uma fita de cetim da nuca ao alto da cabeça, atando um laço elegante no topo. A fita era de um azul-turquesa que contrastava com o calor das cores dos grafismos geométricos na minha face. Com o pente-garfo, puxei uma mecha mais encaracolada do cabelo para que cobrisse um pedaço da minha testa, despontando um pega-rapaz para fora da faixa num arremedo infantil das recomendações de Lyna sobre o alinhamento dos traços — e a confusão que o cabelo irregular sobre o rosto provocaria no leitor de face.

Era hora de fazer um teste.

Deixei um script de rastreamento de câmera filtrando as imagens de um recorte geográfico na região onde ficava o meu prédio e saí. Caminhei pelo bairro, fingindo olhar atenta para todas as vitrines e displays digitais das lojas, como se tivesse um súbito interesse por perucas, plásticas last-minute, inserções de botox, estúdios de body modification inspirados em desenhos japoneses, macacões esportivos com elementos de alfaiataria e centros de manicure que implantavam semigarras de metal retráteis em suas mãos (“Sinta-se mais segura com Garras Express contra furtos, sequestros-relâmpago e tentativas de estupro”, dizia a gravação para os transeuntes. Ah, a velha e boa poluição sonora). Parei em uma banca de sucos e comprei um juice funcional low carb detox com gosto de metal. Provável que a intenção fosse reproduzir o sabor de açaí. Seria simplesmente mais fácil se eles não tivessem acabado com toda a produção natural e substituído pelas sementes alteradas. Parece que existem mais coisas irreversíveis no mundo além da morte.

O cheiro acre de fumaça diluída em metais pesados do ar golpeou meus pulmões, mas eu continuei andando e olhando para todas as vitrines que consegui. Depois de meia hora, voltei ao apartamento. Verifiquei os reports. Dei uma segunda volta pela rua, pisando no chão fofo de camadas e camadas de papéis úmidos pela garoa que descia ácida, desviando de buracos nas calçadas e crianças que andavam descuidadas em segways de propensão semijato. Voltei para o apartamento com uma caixa de papel contendo um noodles de shimeji. Enquanto comia, fui checando o log das imagens depois das últimas alterações e… voilá! Eu havia conseguido contornar as técnicas de maquiagem de Lyna. Realizei os updates nos servidores da empresa e fui para a cama pensando na voz de Lyna e em sua pele sedosa.

Adormeci sem ativar o carregador indutivo, meu espertofone estava completamente descarregado. Fui acordada pelo alarme de backup do apartamento. Nos alto-falantes, uma música bem antiga, que meus pais costumavam escutar juntos nas manhãs de domingo quando eu era pequena. Hakuna Matata, que significa “não há problemas” em suaíle, língua falada no Quênia. Meus pais nunca estiveram no Quênia, mas eles assistiam a um antigo desenho animado em que cantavam essa música. Ativei o carregamento wi-fi do espertofone e fui pro banho. Deixei o circuito de áudio ligado para escutar as notícias do dia.

Ao sair do banho, recebi uma notificação da gerência da Circo, comunicando que naquele dia a corporação inteira estaria em regime home office. No painel da minha sala, eram projetadas imagens das primeiras manifestações que estavam tomando as ruas encardidas e quebrando as primeiras vitrines. O sistema de transporte público fora interrompido. Ou melhor, corrompido, por um grupo que atacou o sistema mudando a rota dos ônibus autômatos e mandando todos eles para um único ponto no extremo da zona leste da cidade. O país inteiro havia sido tomado pelo mesmo ataque, e os trens não se moviam nos trilhos. Os carros com painel de direção por comando de voz não obedeciam às rotas de GPS inseridas pelos usuários, e carregavam seus donos na mesma direção dos ônibus. Manifestantes nas ruas usavam maquiagens geométricas. O Pantera parecia ter se tornado milhares de pessoas, e não era só mais um cara fazendo parkour em prédios com lojas de display racista. A orientação do governo à população era: fiquem em casa. As ruas estavam cheias.

Uma notificação apareceu na tela do espertofone. “Aceitar chamada de vídeo com Katarina Santos”. Aceitei. O rosto da minha mãe preencheu a tela do espertofone.

— Jéssika, o que você está fazendo em casa?

Ao fundo, atrás dela, crianças brincavam em uma sala circular e mamãe tentava equilibrar o espertofone em um drone de suspensão para chamada de vídeo, daqueles que mantêm a câmera do aparelho na altura dos olhos.

— Estava me arrumando para ir pro trabalho, mãe. Mas nos mandaram fazer homeoffice. O que está acontecendo aí? Onde você está?

— Hoje é dia de manifestação contra o aumento da jornada de trabalho. — Ela estava irritada. — Eu não acredito que você não está acompanhando! A chamada está em todas as redes. Procura pela hashtag “Não São Só 2 Horas”. Eles vão aumentar a carga horária de trabalho de 10 para 12 horas. É dia de descer para a cidade!

— E como que você vai participar? Conseguiu autorização para sair da iFord?

— Não. — Ela finalmente conseguiu ajustar o drone. — Estou na organização dentro da iFord, não vou descer pra cidade. Estou cuidando das crianças do pessoal do sindicato.

— O sindicato está descendo para a cidade? — Eu estava incrédula. — Como?

— Um pessoal ajudou a gente a burlar o LUC. Mas não posso comentar muito.

Eu nem sabia que minha mãe tinha voltado à ativa na arco-comunidade. Desliguei a chamada por medo de interceptação quando notei que poderia colocá-la em risco com aquela conversa. Deletei o registro da chamada de todos os servidores a que eu tinha acesso. Por mensagem de texto criptografada, eu a instruí sobre como proceder para se comunicar com seus vizinhos e amigos em segurança.

Pela primeira vez em anos, eu tinha uma chamada em espera de um grupo de estudantes da universidade que frequentei. Antes de aceitar a próxima videocall, abri o chat de texto e li, incrédula, inúmeras mensagens de ódio contra mim e contra “a gente do buraco” de onde eu saí. Fechei o request e bloqueei todos os contatos daquela lista. No canto da projeção da parede da sala, havia uma notificação vermelha no meio de todos os portais de notícia. Era um upload novo no YouTube que tinha quase um milhão de views apenas três minutos após ter sido carregado.

— Casa, abre o novo vídeo.

Alguém com um filtro de imagem sobre o rosto em formato de máscara laranja surgiu na tela. Uma voz mecânica ecoou, convocando todas as pessoas insatisfeitas com a nova lei a saírem de suas casas e tomarem as ruas. Não havia instruções claras sobre o que ele esperava que as pessoas fizessem, mas, pela gritaria que passava pelas paredes grossas do meu apartamento, eu podia jurar que absolutamente todo mundo já estava lá fora, menos eu. Parecia que o vídeo estava rodando em cópias, como se tivessem invadido todos os canais de YouTube e feito um broadcast. Aquilo era grande. Muito grande.

Mas o que era aquilo?

Trabalhei de casa o resto do dia, com uma das paredes da sala dedicada a acompanhar, por streaming, o que se passava pela cidade. Parecia um filme. Não fosse a conversa com minha mãe, eu duvidaria da realidade. À noite, um request de chat secreto pipocou na minha frente. Eu não recebia esse tipo de request desde a época da faculdade, quando a diversão era invadir sistemas de banco e bagunçar as finanças alheias. Aceitei.

 

Mary X: alo alo amada

Jéssika (Me): oi sumida

 

Um chat secreto com criptografia de ponta a ponta. Só ela tomava esses cuidados.

Conheci Mary na faculdade. Éramos as únicas duas pessoas não macho-cis-hetero numa turma de trinta estudantes. Ela tinha cabelos tingidos de rosa, longuíssimos, lisos, um contraste com a pele sempre bronzeada; uma surfista longe do mar. Tudo parecia meio fora do lugar perto de Mary. A voz grave, um quê de cantora de jazz, dava uma imperatividade sedutora às suas opiniões sempre certeiras. Demoramos muitas semanas para trocar as primeiras palavras, mas nossos olhos se comunicavam. Os outros colegas da turma de computação de tocaia, esperando o menor deslize para provar que nós não deveríamos estar ali. Passamos a andar juntas pelos corredores. Falávamos pouco, estudávamos muito. Precisávamos estar sempre muito acima da média. Século XXI, duzentos anos de feminismo. Nossas avós revirariam os olhos. Backslash é uma merda. Apesar das adversidades da área, Mary virou especialista em segurança. Em IoT, Internet of Things. Ou, como ela gostava de falar, especialista em segurança de geladeiras que respondem quando você fala. E apesar de ser uma das pessoas mais sociáveis que conheço, depois da faculdade ela mudou para um sítio. Se escondeu no mato com seu clã de gadgets.

 

Mary X: tô na cidade. preciso te ver o quanto antes

Jéssika (Me): meu bichinho do mato voltou? logo hoje..

Mary X: por pouco tempo 😔

Jéssika (Me): 😟

Mary X: vc consegue colar na Vila Madalouca daqui a pouco? tá tenso ir pra rua, mas preciso falar com vc ao vivo em um lugar seguro

[mapa anexado à mensagem]

 

Eu conhecia o lugar mais de nome do que de presença. Estivera lá uma única vez depois de uma festa corporativa, a convite de um cara da Circo que nunca falava com ninguém quando estava sóbrio. A festa da Circo tinha acabado e nós queríamos continuar bêbados. Fomos para esse clube fetichista de velhos hackers, que se reuniam para falar de filtrar endereços IP de Windows98 e beber uísque importado com coca cola e gelo. Eca. Mas, se Mary estava na cidade, o assunto era importante.

 

Jéssika (Me): chego lá em 20m

Mary X: ótimo. inté

9. O MATRIX

Levei o espertofone e uma bateria extra, precaução que eu não costumava ter. Aquilo mexeu comigo. Eu não sou de ter pressentimentos, isso é a área da minha mãe e seu axé. E de Mary. Aliás, eu sempre achei que Mary ia parar bem longe da gente, mais longe do que o sítio. Tipo na próxima missão para Marte. Mas me senti grata por ela ainda estar na Terra naquele dia. Apesar da situação insólita, senti um certo conforto na ideia de ver um rosto conhecido de perto.

Vesti um casaco corta-vento e desci para a rua. A noite estava turva de poluição e fumaça na ausência da luz dos letreiros. Alguns painéis de neon distantes emitiam um brilho fantasmagórico no horizonte. Meu destino era um clube que ficava na Vila Madalouca, uma vizinhança próxima à minha. A intenção era ir até lá a pé. Nas poucas calçadas do centro, montes de tralhas disformes pelo chão. Algumas lojas tinham sido obviamente invadidas, as pessoas retiravam produtos e jogavam no chão da rua. Algumas coletavam as coisas e guardavam na caçamba de eletrofuscas populares, outras usavam pedaços de pau para quebrar tudo o que viam pela frente. Avistei alguns picos flamejantes de produtos pegando fogo aqui e ali, fogueiras. As pontas dos fios enroscados de dois postes de luz se remexiam sozinhas e alegres no chão, emitindo faíscas, como se estivessem dançando ao som dos gritos e palavras de ordem dos grupos de manifestantes. O food truck que eu sempre passava na volta do trabalho estava vazio e em chamas. Eu esperava que estivesse vazio. Andar até o clube seria perigoso. Imaginei que os trens estivessem um caos, então desci para uma rua próxima e pedi um serviço de eletrocarro autopilotado, o jUbber. Demorou um pouco mais do que o normal, mas o carro apareceu.

As ruas da Vila Madalouca não estavam tão caóticas. Os bordéizinhos 24h funcionavam normalmente com seus letreiros apelativos. O lugar ficava ao lado da Putaria da Vila. Quando eu era pequena, minha mãe me contava muitas histórias sobre a minha avó, que trabalhava de diarista na região quando jovem. Sobre como todos os patrões dela eram artistas, DJs e poetas. Todo mundo tentando ser vegano e comprando verdura de uma kombi, um carro desses velhos e bem grandes à gasolina, que passava por lá todo sábado e competia com a feira local. Vi muitos vídeos que a vó postou na época, mas daria tudo para sentir o cheiro das coisas. O pastel fritando, os tomates frescos. Desci do jUbber quando cheguei ao meu destino.

O clube Matrix é uma casa noturna com ar de templo. O lugar de adoração de um deus não binário que aceita MD como oferenda. Ou i-doses. A fachada da construção tem um quê de pagoda budista em suas inúmeras camadas de laje e tijolos coloridos. Uma cor diferente a cada meio metro de parede, intercalando entre todas as cores do arco-íris, numa tinta neon que brilha sob a luz negra. Naquela noite, performers dançavam em pequenas sacadas nas fachadas laterais, ao som das batidas que vibravam de dentro para fora do clube. No entorno do casarão-templo, havia lâmpadas de luz negra sustentadas por drones baratos, daqueles que emitem um zumbido irritante típico, em descompasso com a música vazando pelas paredes. A dança das mariposas gigantes na luz, ruído branco entre uma batida e outra. Na frente do clube, pessoas se organizavam em fila, fumando vapes vintage, aguardando sua vez de entrar. Ao lado da porta, um leitor de digitais modelo anos 40. À direita, um leitor de face, mais atual. Ambos acoplados a braços mecânicos que se estendiam para baixo ou para cima, ajustando-se à altura do usuário. Embaixo de cada um, outro braço de aço cromado operava recolhendo os espertofones de todo mundo que entrava. No batente da porta, um scanner para detecção de armas brancas e câmeras escondidas.

Sem o espertofone, tive que procurar por Mary à moda antiga, olhos nus no meio da galera dançando e se drogando. Eu me perguntava o que caralhos a Mary queria me chamando para falar em um lugar desse. Eu não conhecia ninguém lá dentro, e comecei a perceber que ia demorar para vasculhar o lugar todo. Foda. Decidi dar um rolê até o bar e pegar uma cerveja. Provavelmente arranjar bite era fácil ali, mas desisti porque não queria correr o risco de dilatar a pupila demais e depois não conseguir pegar o espertofone de volta na saída. Melhor ficar só na cerveja.

Era impressionante o contraste entre o clima do Matrix e as ruas do The Gardens, meu bairro. Enquanto lá o caos provavelmente seguia rolando, no Matrix todo mundo estava alheio a qualquer coisa que se passava do lado de fora. Ao mesmo tempo, eu ouvia as pessoas comentando sobre a manifestação. Eu me perguntava como estariam minha mãe e as pessoas que tinham ido às ruas. Ainda não havia entendido por que elas estavam quebrando tudo, parecia uma onda de histeria coletiva da qual eu devia ter passado imune. Sorte. Ou trabalho em demasia.

Dentro do Matrix, alguns pequenos hubs de sofás confortáveis ficavam em volta de mesinhas de centro, com aquários servindo de apoio aos tampos de vidro onde as pessoas depositavam garrafas, drinks, montinhos de pó e caixinhas de pílulas. Em um desses cantos escuros, eu me espantei por reconhecer um rosto. Fui pega totalmente de surpresa, aquele tipo de coisa que parece fazer o tempo parar no espaço entre você e a outra pessoa, enquanto o resto do mundo segue acontecendo fora daquele túnel imediato de conexão.

Lyna, a própria. A franja desnivelada caindo por sobre o rosto quase sem maquiagem. Eu conseguia distinguir a linha sutil que desenhava os olhos de onça e a boca fina como um arco. Em um vestido preto, largo e simples, sem mangas. Seu rosto estava sereno. Podia ser só vitamina K, ou weed. Todos em volta dela pareciam um pouco apreensivos com alguma coisa, mas podia ser só bala. Difícil de saber olhando de longe.

— Jéka! — uma voz conhecida soou atrás de mim e uma mão pousou no meu ombro. — Long time no see.

Virei para trás e dei de cara com Mary X. Abri meus braços e deixei ela me envolver no calor de seu corpo morno. Ela usava um maiô dourado e um colete longo de tule preto até os tornozelos. Pelo tecido transparente, vislumbrei novas tatuagens. Muitas delas, bio-tattoos. No pulso, uma nova scarification que emitia uma luz discreta, números brilhantes sob a pele. Era um espertológio por implante. Ela estava ficando malandra.

— Cara, o que tá pegando? Por que tu me chamou aqui? — Eu estava muito nervosa para ter uma conversa amena sem descobrir antes o que eu estava fazendo no Matrix enquanto uma espécie de revolta estourava no resto da cidade.

Ela me abraçou de novo e agradeceu por eu ter vindo.

— Sabia que podia contar com você. Vem aqui, quero que você conheça umas pessoas primeiro.

E, para meu total espanto, ela me conduziu até o grupinho onde estava Lyna. Acabamos nos sentando no sofá em forma de U, e fiquei exatamente de frente para aqueles olhos puxados, que me olhavam com discreta curiosidade.

— Galera, essa é a Jéssika. Jéka, para os íntimos. — O grupo assentiu. Eram só três outras pessoas além de Lyna. — Esse aqui é o Carlos. — Um cara branco, mais velho que todos nós, careca e magro, balançou a cabeça para mim. — E essa aqui é a Lyna. Talvez você já conheça ela e nem se ligou…

Eu a interrompi:

— Não. Não conheço. Deveria… Deveria conhecer de onde? — Quando eu fico nervosa, eu minto. Mas não minto de qualquer jeito, eu minto mal para caralho.

— Dos vídeos. Mas não importa, depois eu te mando o link. — Mary claramente não queria se alongar mais do que o necessário. — Essa é Agnes. — Apontou para uma moça loira que lambia um pirulito rosa maior que a boca. — Ela é alemã, mas já aprendeu a falar um pouco de português. E esse aqui é o Zé. Os jornalistas estão chamando ele de Pantera faz uns dias, e agora a gente chama ele de Pan. — Ela se permitiu um sorrisinho debochado. Ao lado de Agnes, um homem negro de olhos grandes e rosto liso, vestindo uma calça larga de lutador de arte marcial e uma camiseta preta simples, olhava para mim com seriedade. Ele tinha uma faixa de tecido dourado amarrada na cabeça, no meio da testa.

— Gente, a Jéka era minha colega na faculdade. Ela trabalha desenvolvendo software. A mãe dela é dos ALN também.

— ALN? — eu a interrompi outra vez. ALN? Do que ela estava falando? E o que a minha mãe tinha a ver com aquilo? — Não sei do que tu tá falando, Mary.

— Sério? — Ela parecia genuinamente surpresa. — Mas como assim?

Todo mundo ficou meio desconfortável. Pan e Lyna olharam Mary muito feio. Ela vacilou um pouco quando começou a me explicar as coisas, mas logo depois pareceu se sentir confortável de novo. Como se a gente estivesse voltando aos tempos de faculdade, nas vezes em que ela me parava no meio do corredor para contar uma ideia nova que havia tido fumando maconha no diretório acadêmico.

Parecia que a Monstranto, multinacional de biotecnologia parceira da Circo há décadas, tentava comprar o direito à administração das áreas das maiores zonas-arco paulistas.

— E o que a gente tem a ver com isso? — perguntei.

— Jé? Oi? — Ela diminuía ainda mais o meu apelido quando ficava nervosa. — A gente não pode deixar as pessoas das arco sozinhas à própria sorte. Temos que ajudá-las! Elas são gente como a gente. Porra, sua mãe mora numa arco. Acorda.

— Ela não se meteria com politicagem de novo — eu respondi no modo automático, desviando do olhar dela.

Pan começou a rir. Agnes não parecia ter entendido muito bem o que estava acontecendo, mas, vendo o outro rir, riu também. Carlos se manteve impassível, talvez até um pouco mais sério. Lyna continuava observando com uma aparência calma. Quase fria. Senti um arrepio.

— Minha irmã, os robocops estão matando todo mundo que pisa no calo deles de Embu-Guaçu à Mogi — Pan interrompeu. — Imagina o quanto de propina que a Monstranto paga para eles e o tanto que ainda vai pagar se conseguir comprar as arco. Quem eles não matam, jogam no xilindró por qualquer coisa que inventam na hora.

— Exato — concordou Mary. — E a gente precisa de ajuda das cidades para poder fazer alguma coisa contra isso. É por isso que chamei você aqui hoje, Jéka.

— Ah, é. — Comecei a sentir um desdém profundo por aquele grupo de pessoas adultas agindo como o pessoal do movimento estudantil. — E o que vocês pretendem fazer? Bater de frente com a polícia? Com a Monstranto? Vocês acham que vocês vão salvar o povo das arco sozinhos?

Mary sorriu. Seus olhos marrom-claros brilharam, aquele brilho que fazia parecer que eram meio verdes, meio cinzas, meio amarelos, meio tudo, meio nada. Um brilho sem nome.

— Mais ou menos isso, sim. — Ela pegou minha mão direita e botou entre as dela, olhando bem nos meus olhos. Ela estava entrando no modo militância. — Nós formamos um grupo de resistência fora das arco, um apoio. Agimos em várias frentes, não apenas na guerra contra a Monstranto. Isso é só uma pequena batalha no meio de muita coisa pela qual a gente acredita. Imagina as arco operando de modo igualitário, sem empresas mandando e desmandando em tudo. Imagina todo mundo plantando a comida com as próprias mãos de novo, jardins suspensos em ecocomunidades. As ruas de São Paulo sem os drones de vigilância e as lentes de reconhecimento facial. Imagina o SUS gratuito de novo! Como era na época dos nossos avós… — Ela passou a mão no meu rosto, um gesto de carinho. Eu me assustei. Fazia meses que ninguém me tocava no rosto. Então suas feições se fecharam em uma expressão séria. — Nós estamos bravos, Jéka. Trabalhar 12 horas de segunda a sábado para se aposentar aos 78 anos não é vida. Nós já estamos nascendo mortos. Para eles, somos máquinas. Pararam de fabricar pílula anticoncepcional quando? Em 2030 e poucos? Além de tudo nos obrigam a reproduzir! Enfiando antibiótico à força pela água, pela comida. Nosso tempo dedicado a aumentar o lucro desfrutado por cinco por cento da população. Cinco! E os outros 95 se fodendo 24h por dia. Não é possível que a gente continue aceitando isso, Jéka.

— A gente aceita porque eles têm mais grana que a gente. — Eu tentei fazer pontes de raciocínio lógico. — E eles têm os drones, os satélites. Eles podem nos liquidar a qualquer momento.

— E quem vai trabalhar para eles depois? — Lyna falou pela primeira vez desde a minha chegada. Ela me olhava fundo nos olhos. Esperava uma resposta.

— Os robôs? — Foi a única resposta que eu consegui articular.

— Custa muito dinheiro fazer robôs, Jéssika — ela falou calmamente, como se explicasse para uma criança de quatro anos. — Se você somar o valor que eles pagam pelas horas de uma pessoa que trabalha no agrolabs, ou em troca de teto e comida enlatada nas arco, não dá um quinto do custo de um robô. Um robô cuja vida útil tem apenas 10 anos. Um robô que não come. Não toma remédio. Não bebe água. Para quem eles vão vender todas essas coisas? Nós não somos só explorados. Somos consumidores.

Silêncio. Todos olhavam para mim agora. Silêncio é uma maneira engraçada de lembrar do momento, visto que ainda estávamos dentro do Matrix e centenas de corpos se balançavam ao nosso lado.

— Por isso estamos movendo ações — Carlos cortou o silêncio abruptamente — nos principais pontos da cidade. E alguns pequenos protestos. Hoje conseguimos mover o maior deles.

— Aquela confusão na rua? O que é aquilo? Vocês fizeram aquilo?

— Aquilo são as pessoas das arco descendo para a cidade — respondeu Mary. — E a galera da cidade descendo para rua com eles. Ninguém quer trabalhar mais doze horas por dia. O Bozo Neto deveria saber, mas ele gosta de testar os limites. Hoje o bicho não tá pegando só em São Paulo. Floripa, BH, Vitória. Vi vídeo de protesto até em Manaus. Fomos longe. Vamos arrancar o Neto da cadeira dele em Brasília à força. — Ela estava falando rápido demais e teve que parar um pouco para respirar. — Nós somos a ALN, Jéka. A Ação Libertadora Nacional.

— E vocês querem um impeachment? — eu indaguei, sem esconder o sarcasmo. Cinco impeachments em menos de cem anos. A ONU deveria nos congratular por uma espécie de recorde. Eles sorriram.

— Mais ou menos — disse Mary. — Nós precisamos da sua ajuda.

— Minha ajuda? — Eu estava incrédula de novo. — Para quê?

— Nós precisamos que… — Mary foi interrompida por um estouro vindo da porta do Matrix.

10. O ROBOCOP

BUM. A porta do clube abriu de repente. Nós estávamos no térreo e conseguimos ver que algo arrebentou a porta, arrancando-a da parede pelo batente. A porta caiu pro lado de dentro, esmagando uma garota que passava equilibrando uma bandeja de drinks nas mãos. Durou um respiro. Sangue escorria sob a porta, como um close de filme. Poeira subia, turvando o que quer que fosse que estava do lado de fora. Eu fiquei horrorizada. Uma pequena legião de dezenas de drones minúsculos entrou pelo vão aberto. Eles foram seguidos de outros quatro bem maiores e mais pesados, do tamanho de bolas de basquete. Só gente com muita grana tem esse tipo de drone. Ou o governo. Eles eram usados para serviços de limpeza ou para artilharia.

Escutei o barulho de um passo pesado. A música parou repentinamente. Foram apenas três segundos entre a porta esmagar a garota e aqueles trambolhos entrarem voando pelo vão, mas pareceram horas. As pessoas começaram a correr para o banheiro e para baixo de bancos e mesas. Ninguém sabia muito bem o que fazer. A única saída estava ocupada pelos invasores. No nosso canto, nós estávamos em silêncio. Pan segurava uma pistola na mão, tirada sabe-se lá de onde. Ele apontava para a porta.

Os drones pequenos faziam obviamente uma varredura de reconhecimento facial, escaneando todos os cantos onde tivesse gente pelo clube. Eu sabia porque eu me envolvi na implementação da primeira remessa daquele modelo, que rodava o meu software. Sim, o equipamento era da Circo. Mas eu não tinha ideia do que fazia as paredes e os drinks em cima das mesas tremerem. Minha imaginação não foi capaz de prever o que vinha caminhando atrás dos drones.

Um corpo humanoide gigante, virado em ligas de titânio e metais cromados, refletindo as luzes coloridas que ainda giravam na pista de dança vazia. Fazia muito tempo, eu havia esquecido o impacto visual e sonoro. O trambolho de quase 3 metros de altura ficou parado na porta, os braços segurando um dispositivo de carga humana vazio. Ele deu dois passos para dentro do Matrix. Um compartimento circular se abriu do lado direito de seu peito, e um pequeno alto-falante rolou para fora. Uma voz grave, masculina, soou num volume anormalmente alto (mesmo para uma casa noturna):

— Saudações, cidadãos. Comandante Armando da Polícia Militar, Batalhão de Intervenção, à mando de cumprimento da lei. Viemos em missão de recolhimento de indivíduos envolvidos em ações terroristas. Não vamos machucar ninguém, a menos que reajam.

Lembro com precisão daquelas palavras. Batalhão de Intervenção. O novo nome do Batalhão de Choque. Fazia sentido terem aparecido naquele dia. Só não fazia sentido estarem ali, quando as manifestações aconteciam fora do Matrix. E bem longe da Vila Madalouca.

— Fiquem calmos que não vamos machucar ninguém.

Claro. Imagino que a menina esmagada debaixo da porta onde ele estava parado não consegue escutar. Fui tomada por um ódio profundo. Fazia anos que eu não via um Agente Especial de Choque Controlado à Distância. Em algum lugar nos escritórios da força militar, havia um filhodaputa chamado Armando mandando naquele trambolho. Equipamento de inteligência fornecido pela Circo, claro. Permanecemos parados enquanto grande parte dos drones rapidamente se dirigia para os pisos superiores através das escadas. Observei, sem mexer um músculo, eles se aproximarem de todos nós.

Mary X trocava olhares significativos com os outros membros do grupo, e pude pescar que alguma coisa se passava por ali. Um tipo de comunicação que eu não era capaz de traduzir. Algo que eles sabiam e eu não. Mas observei seus olhares e resolvi acompanhar o que eles fariam em seguida. Lyna deslizou devagar os braços nus para dentro da roupa. Seus dedos finos se moviam rapidamente por baixo do tecido. De repente, ela parou. Os minidrones se aproximavam da nossa mesa. Lyna olhou para Pan e levantou as sobrancelhas. Ele assentiu com um pequeno movimento da cabeça.

Por baixo do vestido de Lyna, rolou um pequeno objeto, parecido com um pião. Ele deu um pequeno estalo metálico ao pousar no chão e começou a girar depressa. Uma nuvem amarela subiu e começou a preencher o ar à nossa volta. Em alguns segundos, era impossível distinguir qualquer coisa que acontecia à frente, mas notei uma movimentação rápida ao meu redor e uma mão me puxou pra baixo pelo pulso. Eu vi os minidrones se agitando sobre nossas cabeças, sem nos encontrar. Eles começaram a piscar luzinhas alaranjadas e escutei o barulho ensurdecedor dos passos do robocop se aproximando. Meu corpo já estava colado ao chão e a mão ainda não soltara meu pulso. As pessoas gritavam. Parecia que a fumaça amarela estava se espalhando mais e mais. Me puxaram com força para a esquerda e eu fui me agachando rente ao chão, arrastada. Achei que meu pulso ia quebrar.

O barulho de tiros cortou o som da gritaria no Matrix. Eu não conseguia enxergar mais do que meus próprios braços e o chão embaixo de mim. De repente, caí. Um buraco na pista. Tão rápido quanto perceber que eu havia caído sobre um chão duro foi entender que algo se fechou no teto por cima da minha cabeça. Meu pulso finalmente foi solto.

— Carlos e Agnes, vocês avisem o grupo que eles acharam nosso spot de hoje. — A voz de Lyna, no escuro, totalmente identificável depois de assistir a todos os vídeos do canal dela. A madeira à direita vibrava com os passos de pessoas correndo. — Gente, precisamos sair daqui agora. Segurem um na mão do outro. Eu vou na frente.

Usei o outro braço para tatear à minha frente e encontrar algum corpo no qual me segurar. Achei a cintura de alguém, uma textura lisa, provavelmente o maiô de Mary. Senti outra mão se fechando sobre meu ombro, por trás. Começamos a andar rápido no escuro.

Barulho de trinco abrindo. Luz. Fui cegada por alguns instantes até perceber que estávamos entrando em uma sala. As paredes cobertas de compartimentos de acrílico, parecidos com caixas de sapato, do chão ao teto. Um teto alto. Uma luz branca meio fraca iluminava as caixas contendo espertofones, provavelmente onde os guardavam após recolhê-los das pessoas que entravam na festa. Lyna alcançou um painel leitor de retina em algum canto perto da porta e o puxou, o braço mecânico esticando, em direção ao rosto. O dispositivo emitiu um bip e um compartimento das paredes, logo acima de sua cabeça, se abriu. Ela enfiou a mão e recolheu o espertofone e mais umas pequenas parafernálias ali de dentro. Logo em seguida, Mary e Pan fizeram o mesmo, seguidos por mim.

Telefones recuperados, saímos da sala agarrados uns aos outros novamente. Lá atrás, um estrondo mais alto. Provavelmente haviam descoberto o alçapão. Merda. Luzes fantasmagóricas vinham de algum ponto bem lá atrás. Corríamos sem dar um pio. No fim do corredor, uma outra porta. Abrimos e fechamos tentando não fazer barulho. A sala não tinha luz. Lyna tateou pelos cantos e encontrou uma escada. Apoiou-a no canto de uma parede e abriu um outro alçapão no teto, por onde seu corpo esguio desapareceu. Pan foi o próximo. Depois eu.

De algum modo, saímos nos fundos da Putaria da Vila, em um pátio que servia de depósito para cadeiras quebradas. Os gritos continuavam pela rua e o som de tiros ali fora era mais intenso. Com certeza o Comandante Armando não tinha vindo sozinho para varrer a área. Mary surgiu do buraco e fechou a portinha do chão. Arrastamos alguns entulhos para cima do alçapão. Depois, pulamos o muro para a rua de trás e caímos nos fundos de um prédio qualquer. Devia ter algum acionamento de segurança por infravermelho, porque assim que caímos no pátio, um alarme alto começou a soar. Pan segurava a arma na mão e a apontou para cima, para todos os lados, como que procurando alguma coisa. De repente ele disparou. E o alarme parou de tocar.

— Esses cretinos não têm um puto para pagar uma empresa de segurança. Isso é alarme fake. Vamo embora! — Ele apontou para uma passagem aberta, de arcos de concreto, que levava até a frente do prédio. Algumas luzes se acenderam nas janelas, mas não tive tempo de olhar para conferir se alguém tinha visto a gente.

Pulamos o portão e caímos na rua. Continuamos correndo em direção ao cemitério do Cardeal, na parte mais alta da vila, quase caindo em outra vizinhança.

Paramos de correr quando chegamos em um ponto que parecia um pouco menos movimentado. Era uma esquina onde antes tinha uma praça, mas que agora era um amontoado de lixo e caçambas de entulho. Notei que Mary não estava mais conosco.

— Cadê a Mary? — Eu estava sem fôlego, fazia muito tempo que eu não corria daquele jeito, não sabia se tinham me entendido.

— Ela foi para o outro lado. Nós não podemos ficar todos juntos — disse Pan. — Eu vou subir para Pompéia. Vocês duas, desçam para lá. Os drones vão chegar a qualquer momento.

A última frase foi dita ao longe, pois ele já corria em direção ao ponto que precisava ir. Lyna me deu um puxão pela blusa e disparamos correndo novamente. Corremos por cerca de uns três minutos. Já estávamos dentro de um conglomerado de ruelas pichadas chamado Beco do Batman. Fugindo de um robocop. Que momento.

— Podemos dar um tempo aqui — disse ela, ofegante, colando as costas na parede e descendo devagar até se sentar na calçada imunda. Me sentei ao lado dela, respirando fundo. Ficamos assim por longos minutos. A confusão parecia ter passado longe dali. Ela puxou um vape novíssimo do bolso do vestido. Deu uma tragada e passou para mim.

— Vai ajudar você a recuperar o fôlego.

Traguei a fumaça doce e não senti vontade de tossir. Pareceu que meus músculos relaxaram. Passei o vape de volta para ela e fui observando a movimentação na rua. O Beco era conhecido por ser a parte da baixa vila, onde se cobrava menos pelo programa. Também era um antro de encontro dos phages, o pessoal viciado em biodroga. Tive impulsos de me levantar do chão, mas lembrei que estava com a vacina atualizada. Os phages são, na verdade, os vírus que os viciados ingerem para combater as bactérias que tomaram momentos antes para chapar o coco. As biodrogas são velhas conhecidas. Alucinógenos visuais poderosíssimos. Proibidas, como todas as drogas, mas fáceis de encontrar em lugares como aquele. Havia algumas pessoas por ali na rua mal iluminada, os olhares contemplando um mundo do qual não fazíamos parte. Um ou outro se comunicava por gestos e alguém estendia uma pílula branca.

Se você ficar muito tempo com a biodroga no organismo, ela se torna outra coisa. E você fica preso em um sonho muito ruim. Demora dias para passar. Os phages agem matando as bactérias e se multiplicando, adaptando, se espalhando rápido. Eles cortam o efeito da bactéria e impedem que ela te leve para o estado catatônico do sonho ruim. Foi nas quebradas das zonas-arco que começaram a chamar os viciados de phage. Com o uso contínuo, a pessoa fica bem vulnerável a qualquer bactéria. Sempre me senti sortuda por meu lance ser só o bite. Tá louco.

Peguei o espertofone do bolso, pronta para verificar notícias sobre o ataque ao Matrix. Lyna fez sinal para eu não ligar o fone, não devia ser seguro ainda. Guardei-o de volta no bolso. Respirei fundo.

— Então… É seguro conversar aqui? — Eu estava melhor e a noite voltava a ser calma. Resolvi continuar o assunto do Matrix. Lyna assentiu com a cabeça. — Ok. Então me diz. Por que vocês precisam de mim?

Ela virou o rosto para me encarar. Sentadas ali, nossos corpos estavam muito próximos. Os rostos também. Ela me olhou com atenção. Meu pulso doía um pouco ainda. Ela passou um dedo na minha bochecha, esfregando a pele de leve.

11. MUITO ORIGINAL

— Você tá com uma sujeira no rosto… Agora sim. — Ela deu um meio sorriso e então me contemplou, mais séria. — Eu sei quem você é. Mary me contou. Você trabalha para a Circo.

Engoli em seco. Ela continuou:

— Não tem problema, eu entendo. Por isso mesmo precisamos de você. Sua mãe tem trabalhado como agente de contato. Ela é ótima. Ajuda no apoio logístico interno dentro da iFord. — Olhei para ela surpresa. — Pois é. E nós imaginamos que você seria um ótimo asset para a próxima missão.

— Asset?

— Sim. Parece que você tem muitas habilidades úteis. — Ela pousou uma mão sobre minha perna cruzada. Senti uma coisa estranha no estômago. — Dados, Jéssika. Nós precisamos de dados. — Ela passou a ponta do dedo indicador de leve perto do meu joelho. A unha curta, pintada de preto. Eu estremeci com o arrepio. Ela nem piscou. — Sei que você tem acesso aos dados.

Apesar da voz calma e serena, senti um levíssimo tom de ameaça. Foi uma sensação esquisita. Eu ainda queria saber onde aquelas mãos iam parar.

— Que dados, Lyna? — Olhei para ela tentando parecer séria. Foi difícil me concentrar. Ela abriu um pouco mais a boca além do meio sorriso que tinha dado até aquele momento. O tom da sua voz baixou um pouco.

— Credenciais e permissões de acesso. De tudo. De todos. Queremos revogar os acessos do governo e das empresas nos dispositivos fornecidos pela Circo.

— Você quer revogar tudo? — As palavras dela me trouxeram de volta à Terra. Eu estava incrédula. — Do continente inteiro?

— Não, só daqui. Do Brasil. — Eu levantei uma sobrancelha, e ela continuou falando: — Para negociar uma espécie de sequestro de dados. A gente já planejou tudo. Se você aceitar, vai ajudar a gente a finalizar as negociações das demandas das arco. — Ela deu uma risadinha, olhando pra baixo. — E mais uma coisinha ou outra sobre os direitos trabalhistas de todos nós, claro. — Ela voltou àquele meio sorriso e me passou o vape para mais uma tragada. Eu olhei para os lados, para ver se não tinha ninguém, ou alguma coisa, nos ouvindo. Mas os phages estavam focados em seus próprios mundos e não parecia haver nenhuma lente de vigilância naquele buraco. A prefeitura não se daria ao trabalho.

— Mas o que exatamente vocês querem de mim? Quais são os riscos? Eu não sei se consigo.

— Você consegue — insistiu Lyna. — Eu não posso te contar mais do que isso enquanto você não entrar oficialmente para a ALN.

— Por quê?

— Você vai descobrir. — Ela deu uma piscadela e pousou a mão na minha perna de novo. — Não precisa responder hoje.

Alguma coisa na minha barriga deu um solavanco; talvez fosse apenas fome. Senti o sangue do rosto esquentar quando ela continuou:

— Aliás, eu diria que já deve estar seguro o bastante para a gente sair daqui. Podemos caminhar até a avenida, ligar os espertofones e chamar um jUbber.

Ela se levantou. Eu me levantei também, batendo as mãos contra minha bunda para tirar qualquer coisa que pudesse ter ficado daquele chão imundo.

— E como você vai para casa? — eu perguntei. Ela virou os olhos para mim, me encarando de cima a baixo, atenta como uma gata olhando a presa.

— Posso ir com você, Jéssika?

Se antes eu estava com dificuldade de parecer séria, naquela hora desmontei. Não consegui responder de imediato, precisava de um segundo para me recompor. Lyna? Sozinha comigo? No meu apartamento? A coisa parecia estar rolando mais rápido do que eu conseguia processar. Mas restaurei a compostura.

— Claro — respondi, com toda a naturalidade que consegui emular. — Vamos lá chamar esse jUbber. A gente pede para ele trazer uma pizza junto.

O jUbber chegou rápido e nós atacamos a pizza de abobrinha ali dentro mesmo. Tentei não pensar no que poderia acontecer depois que chegássemos ao meu apartamento, mas o nervosismo foi inevitável depois que cruzamos a porta do prédio. Na pressa de comer a pizza, não fizemos mais do que finalmente acessar as redes com os espertofones e conferir se havia sinais de que os outros estavam bem. E eles estavam, cada um em seu porto seguro.

Dentro do apartamento, ativei os painéis de notícia.

— Oi, casa. Liga o cast. Mostra a timeline de streamings, por favor.

A tela se projetou na parede branca, iluminando o rosto de Lyna, que estava em pé no meio da sala, observando como quem mede a área. Na web, nenhuma menção ao que aconteceu no Matrix. Nem nos perfis sociais das pessoas. Nenhuma surpresa, eles haviam abafado o caso. Mas as manifestações do Dia das Duas Horas pipocavam por tudo. Parecia ter acontecido uma guerra.

— Apartamento bacana esse seu, hein? — Lyna olhava para mim com genuína admiração.

— Obrigada.

Eu não costumava receber visitas ali. Apenas Mary X, uma vez por ano. Repassei mentalmente tudo o que aprendi sobre receber visitas.

— Lyna, você quer alguma coisa para beber?

— Você tem cerveja?

— Acho que sim.

A geladeira contém cinco garrafas de cerveja da marca Muito Original… — a voz mecânica do sistema doméstico soou nos alto-falantes da sala de repente. Rimos.

— Casa, o jogo acabou — eu anunciei em voz alta. Vários LEDs espalhados aqui e ali se apagaram. O projetor na parede também. De repente, estávamos à meia-luz, sozinhas na minha sala silenciosa.

— O jogo acabou? — perguntou Lyna, rindo e se encaminhando para a geladeira — Essa é sua safe word?

— Sim. Por quê?

— Nada… Só achei diferente. Vai querer cerveja também?

— Sim.

Senti uma mistura de entusiasmo e pavor por ter alguém no apartamento. Eu continuava de pé, observando Lyna se movimentando pelo meu lar com naturalidade. Na volta da cozinha, ela pousou a garrafa de cerveja na mesa de centro, tirou um canivete do bolso do vestido e abriu a garrafa com uma manobra rápida. Serviu dois copos, sentou-se no sofá e me olhou.

— Você vai ficar aí parada a noite inteira?

Sentei no sofá ao lado dela e peguei um copo para mim. Brindamos. O barulho do vidro se chocando foi mais alto do que eu esperava. Estremeci. Ela sorriu e tomou um gole longo, quase acabando com o conteúdo do copo.

— Há quanto tempo você tem acompanhado o meu canal, Jéssika? — Ela me pegou desprevenida. — Eu vi no canto da tela, na lista de recém-visualizados.

— Eu preciso cuidar mais da minha privacidade — comentei, apoiando as costas no encosto do sofá e contemplando meu copo, mais cheio do que vazio. Virei o restante em apenas um gole. Evitei olhar para Lyna. Mais uma vez naquela noite, senti meu rosto em chamas.

— É a sua casa. Relaxa.

Senti que ela se aproximava. Com um dedo, tocou minha orelha, da ponta até o lóbulo, onde uma argola fazia seu caminho pelo buraco na pele. Meu corpo inteiro respondeu em um movimento, como um abalo sísmico suave, uma onda na terra. Eu sabia que era minha deixa. Respirei fundo. E encarei os olhos de Lyna. O risco de jaguar pelas pálpebras e a franja displicente. Pousei o copo de cerveja na mesinha sem tirar os olhos dela. Contemplei ela inteira, tão perto, tão completa.

Aquele vestido cor de noite sem estrelas e os botões fechados. Com urgência, tomei seu rosto em minhas mãos e me aproximei. Fechei os olhos e nossos narizes se encostaram suavemente, meio de lado, meio se procurando. Os lábios de Lyna roçaram nos meus, encaixando-se, abrindo espaço na minha boca. Como se fosse dela. Senti a maciez de sua pele contra a minha e a língua de Lyna navegou na minha boca. Minhas mãos fizeram caminho pelo vestido de tecido leve, sentindo seu toque frio, o contraste da fervura do meu sangue por aquele corpo. Ela afundou os dedos no meu cabelo, afagando com gentileza, e eu a tomei nos braços como fogo de labareda lambendo lenha.

Deitei o corpo sobre ela no sofá, nossas pernas entrelaçadas, as coxas se apertando de encontro uma à outra, a barra do vestido dela enroscando na minha calça jeans.

— Tira essa calça, Jéssika — ela sussurrou no meu ouvido, as mãos abrindo o meu zíper. Mordisquei de leve seu pescoço enquanto ela descia minha roupa com destreza. — Morde direito — ela ordenou. Mordi. E mordi. E, como quem assopra um ferimento leve, passei a língua onde meus dentes a marcaram. Suguei a pele exposta do seu pescoço como se fosse engolir um pedaço de Lyna. Um gosto salgado de mar revolto e erva-doce. Com o sistema interno da casa desligado, o calor era intenso. Lyna suava. Eu suava. Primeiro foi minha calça, depois, os botões do vestido dela. Minha blusa escorregou.

— O que é isso? — Ela apontou para uma série de pontinhos marcando a pele do meu seio esquerdo. — É uma constelação?

— Sim. Globus aerostaticus. — Eram raros os momentos em que alguém vislumbrava as marcas no meu corpo. — O Sol estava ali quando eu nasci.

— Não imaginava que você gostasse de astrologia.

— Mas eu não gosto.

Eu ri. Era a primeira vez que eu confundia Lyna de propósito.

— Você tem outras tatuagens? — ela indagou, curiosa. Eu assenti com a cabeça e me sentei no colo dela, deixando que ela observasse meu peito e braços nus. — Uau.

— Você gosta? — perguntei.

Ela me contemplou por um longo momento.

— Eu quero lamber todas as suas tatuagens, Jéssika.

12. E-GUERRILHA

— Estava te ligando a noite inteira! — Era minha mãe, a videocall no display do meu espertofone. — Posso falar com você agora?

— Não sei se é o melhor jeito da gente se comunicar, mãe. Depois de tudo o que aconteceu ontem…

— Mas você sabe apagar os logs, não?

Eu hesitei.

— Só se for uma ligação de menos de um minuto.

— Tá, filha, vou ser rápida. — Ela deu uma olhada por trás do ombro. Respirou fundo. Uma lágrima desceu pelo canto do olho. — Eles atiraram aqui dentro ontem.

— O quê?

— Três. — Ela tremia, os lábios mal conseguindo formar as palavras ordenadamente. — Eles entraram com três robôs e drones, falaram pra gente ficar calmo e passar as informações. A gente disse que não sabia de nada. As crianças choraram, os drones atiraram. Falaram que foi automático, que não tinham como impedir. Achei que iam matar todo mundo. Mas no fim foi para dar um susto mesmo.

Eu estava em choque. Foquei em ser racional.

— Você tem vídeo disso?

— Tinha. Eles apagam quando a gente posta.

— Eles quem?

— As plataformas de vídeo. Todas. Mas escuta, filha — ela acelerou. — Eles querem que a gente vote para mudar a dona da arco. Eles não têm como fraudar a eleição, senão já tinham feito. Ou… você acha que eles podem? — Seus olhos estavam arregalados.

— Não, eles não têm como fraudar a eleição — respondi rápido, o tempo ia esgotar. — Eu preciso desligar, mãe. Já deu o tempo.

— Te amo, filha.

— Eu também.

Desconectei e loguei no servidor de dados para apagar o arquivo da conversa.

Lyna apareceu na sala com um copo de café em cada mão. Limpei meus olhos úmidos.

— Bom dia. — Ela deu a volta pela cadeira onde eu estava sentada e me abraçou por trás, encaixando a boca no meu pescoço. — Como você está?

— Quando eu acho que vou ficar bem, o mundo me dá uma rasteira. Estou cansada — murmurei.

— Cansada do papo da ALN, do que aconteceu no Matrix ou de mim? — Ela me apertou forte no abraço.

— De tudo, eu acho — respondi, virando a cabeça para ver o rosto dela. — Menos de você. Minha mãe me ligou e não tinha coisas boas para contar. Não estão exibindo nem metade das atrocidades de ontem nos streamings. Os Ativistas Pelo Anonimato deveriam criar um canal de mídia independente.

Tomamos café e Lyna foi embora. Os canais principais de notícia faziam resumos sobre o Dia D. As votações sobre o aumento da jornada de trabalho foram adiadas. Algumas pessoas comemoravam nas redes, mas não parecia que o clima geral era de vitória. Não havia informação do levantamento de vítimas dos confrontos com o Batalhão de Intervenção.

Tomei um banho revigorante e fui para a Circo. No escritório, comentários jocosos sobre a ação dos manifestantes. Programadores desdenhando movimentos populares — zero surpresa. Fora isso, estava convicta de que teria uma semana normal de trabalho. Fui atualizando os scripts de otimização do projeto novo e inserindo meus costumeiros backdoors. Era uma atualização do sistema central de tarifas de transporte, que usava reconhecimento facial para controlar as transferências de pessoa física para pessoa jurídica no movimento de passageiros.

Parei de digitar por um momento e fiquei olhando para a tela. E se eu inserisse um script para revogar os acessos aos dados? E se eu rodasse um script para simplesmente parar de debitar as tarifas dos passageiros, ao mesmo tempo que aplicasse uma interface que fizesse o componente do software receber dados de transações falsas? Contemplei as ideias por um momento.

— O que você tá fazendo parada aí, Jéssika?! — uma voz masculina estridente interrompeu meus pensamentos. Enzo Muller.

— Pensando.

— Nossa, você pensa? Hahaha. — Ele abriu a boquinha de gilete para rir e pousou a mão no peito, achando graça no que ele mesmo tinha dito. — Pensei que estivesse aqui só para preencher cota.

Respirei fundo e coloquei o headphone nas orelhas. Racista de merda. Escutei uma ou outra risadinha pela sala, acompanhando a risada estridente do Muller. Olhei de relance um por um. Imperdoável e inesquecível. Espumei de ódio. Anotei nomes.

Naquele dia, pela primeira vez em muitos anos, usei meu horário de almoço completo. Fui comer um lámen num restaurante perto. Pensei muito sobre o que aconteceria comigo se fosse demitida da Circo. Pesquisei sobre a Ação Libertadora Nacional. Ser demitida da Circo era a coisa mais ok que poderia acontecer comigo caso me pegassem participando das ações da ALN. O grupo tinha mais de cem anos. Sobreviveram a duas ditaduras. Tinham até um Manual do Hacktivista Urbano.

No fim dia, fui pegar o bite e dei de cara com um novo food truck. O anterior havia sido removido — talvez totalmente queimado pelos manifestantes. Olhei com atenção para o veículo novo estacionado. O antigo era amarelo, meio enferrujado, velho. Esse outro era novíssimo e rosa. Com letreiro neon em verde. Olhei com atenção para dentro e fiquei satisfeita de ver o mesmo cara de sempre trabalhando ali. Ótimo. Um bite, uma coca sabor açaí e um hambúrguer. Eu recuperaria o bom humor.

Naquela noite, não implementei melhorias com base nos vídeos de Lyna. Mandei uma mensagem criptografada para Mary.

 

Jéssika (Me): É nóis.

Mary X: certeza?

Jéssika (Me): 100%

 

E foi assim que entrei para a ALN.

Próximo passo foi escutar o audiobook do manual de hacktivismo. Enquanto ouvia o livro, abri o computador e comecei a fazer um levantamento mais preciso de todos os acessos que eu tinha aos dispositivos em produção da Circo. E eu tinha mais informação do que eu imaginava.

Lyna apareceu com um balde de Incredible KFC mais tarde. Era seu presente de comemoração por eu ter entrado na ALN.

— É isso que você chama de romântico?

— Não reclama, Jé. — Ela empurrou o balde de proteína vegetal frita. — Você acredita que eu tive que sorrir pro caixa lá hoje?

— Por quê?

— Porque para finalizar a compra pagando menos, o leitor de face espera que você confirme sorrindo. Você nunca escutou o anúncio nos serviços de streaming? “Um sorriso qualquer pode valer mais que mil palavras, mas o SEU sorriso vale 10% de desconto na loja mais próxima”.

Gargalhei.

— Brega, mas efetivo.

Nas semanas que se seguiram, participei das minhas primeiras conferências da ALN. Eles usavam o protocolo IRC com xSSL. Muitos davam suporte para os Ativistas Pelo Anonimato, o canal de vídeos de Lyna, desenvolvendo novas técnicas para burlar os sistemas de segurança e coordenando os roteiros com outros canais sobre privacidade.

Alguns eram freelancers que produziam vistos falsos para os moradores das zonas-arco. Muita gente precisava de atendimento médico e não tinha dinheiro para pagá-lo dentro das zonas, então eles vinham na benzedeira na cidade, que sempre tinha uma receitinha boa de biohack para ajudar com qualquer probleminha. Também havia um grupo de praticantes de parkour, cujo líder era o próprio Pantera. Fiquei sabendo que Agnes tinha encontrado com eles através de Carlos, que havia estudado um tempo na Alemanha. Ela era o contato da ALN no norte da Europa, mantendo conexões com grupos similares por lá — em uma espécie de backup de organizações que lutavam contra a soberania das multinacionais que abalavam os ecossistemas locais. A clássica ecoterrorista orgulhosa. Eu estava bem acompanhada.

Em um dia especialmente ruim de trabalho, precisei combinar a minha primeira ação da ALN com o Pantera. Mas minha cabeça estava longe demais.

 

Z.Pantera: como é trabalhar pra Circo por tanto tempo?

Jéssika (me): desgastante.

Z.Pantera: só isso?

Jéssika (me): sei lá. eu vim de um lugar diferente. as coisas são mais óbvias para vcs q nasceram na cidade

Z.Pantera: eu não nasci na cidade não

Jéssika (me): ué. de onde vc é?

Z.Pantera: da iford

Jéssika (me): não! sério? qual andar?

Z.Pantera: 151. mas minha família foi movida de lá quando eu era bebê

Jéssika (me): o andar do rumba. q loucura. vc já era nascido quando rolou aquele xabu com os drones?

Z.Pantera: sim. foi por isso q fomos embora. meus tios estavam lá

Jéssika (me): 😨😥

Z.Pantera: já passou, faz muito tempo. mas por causa daquilo, a gente desceu pra cidade. foi assim q eu vim parar do lado de fora. e eu vi meus pais passando uns maus bocados com o pessoal da cidade… a gente não tem descanso

Jéssika (me): tem dias q eu só queria ser invisível

Z.Pantera: mas vc é melhor do que isso. vc merece brilhar

Jéssika (me): eu só não queria ser obrigada a sentir raiva. as pessoas não me dão opção

Z.Pantera: então não aceita mais as coisas que vc não pode mudar. mude as coisas que não pode aceitar. como diz a velha Angela.

Jéssika (me): quem?

Z.Pantera: Angela Davis. dos panteras… vc nunca leu nada dela?

Jéssika (me): não

Z.Pantera: hummm… então vou te mandar um presente.

[arquivos de ebooks anexados com sucesso]

 

13. OPERAÇÃO

Em uma manhã de sexta, fui cedo ao RH da Circo. Não lembro exatamente o que eu estava pensando na hora, mas lembro da sensação de firmeza. De estar fazendo a coisa certa. Se mané achava que estava tudo bem ficar me assediando no trabalho, ele ia entender que estava completamente enganado. Como sempre, eu guardava um backup de absolutamente tudo relacionado ao trabalho. Dessa vez, usei dois backups que nunca imaginei que usaria: o chat interno e alguns vídeos curtos com áudio. Cenas de assédio moral e comentários racistas, em pleno século XXI.

Se vocês não fizerem algo a respeito, vou chamar meus advogados — eu sempre quis dizer isso, mas nunca achei que seria capaz de fazer algo que me fizesse precisar disso de verdade. O RH acolheu minhas denúncias. Achava que ia rolar uma espécie de resistência, mas eles foram muito eficientes e precisos em recolher os dados apresentados e encaminhá-los internamente para discussão. Embora não tenham explicado, eles deixaram claro que alguma providência seria tomada para que, no mínimo, aquilo não acontecesse mais.

Mais tarde, o Muller me chamou na sala dele. Eu me perguntava se ele ia me dar trabalho extra para o final de semana e o quanto aquilo seria péssimo para a ALN, porque eu precisava revisar todo o roteiro de ação coordenada que executaríamos dali a três dias com o sequestro dos acessos dos sistemas e roteadores da Circo. Metade da cidade de São Paulo ficaria offline por mais de uma hora.

— Foi você. — Ele estava com o olhar impassível.

— Fui eu o quê?

— Que fez um report de assédio no RH.

— Eu não sei do que você está falando. — Eu estava impaciente.

— Confessa, vai. — Ele se levantou da mesa. — Sabe o que eu acho que gente como você deveria fazer? Se esconder nas arco até apodrecer nos porões de coleta sanitária!

Não respondi. Saí fechando a porta e dando stop no gravador do espertofone. Eu precisava atualizar o relatório do RH com mais um arquivo de áudio.

Agnes me ouvia com atenção enquanto eu descrevia os triggers de bloqueio das conexões públicas dos telecentros urbanos, que proviam o acesso dos principais órgãos municipais à rede mundial de computadores. Tais quais as linhas ferroviárias municipais, o cabeamento de fibra ótica era centenário, com poucas atualizações desde o final do século anterior. Estávamos reunidos em um hacker clube, na zona oeste, uma casa amarela antiga, bem old school. Por sorte, o Carlos era da comunidade de software livre e conseguiu uma sala no hacker clube para a gente se encontrar uma vez por semana.

Faltavam dois dias para executarmos a missão. Pantera entrou na sala de repente, fechando a porta atrás de si. Pousou um drone de rastreamento na mesa entre mim e Agnes.

— A Mary X sumiu.

— O quê? — foi a única coisa que consegui falar.

— Um dos drones de segurança do sítio voou até São Bernardo para enviar um sinal de rádio da sua localização para mim. — Ele apontou pro drone na mesa. — Eu o recuperei sem bateria, caído no chão. Na memória interna tinha um texto criptografado. Um alerta do espertofone da Mary, que tem um gatilho de broadcast para os contatos de emergência caso fique por mais de duas horas a mais de 10 metros de distância do espertológio. Tentei falar com ela e não há resposta. Ela sumiu.

Segurei a respiração. Minha garganta apertou em um nó. Pensei em tudo que poderia ser feito, todas as pessoas com quem eu poderia falar. Comecei a passar uma lista mental dos familiares de Mary que eu conhecia, como contactá-los. Mas e se eles não soubessem dela também? O que aconteceria? Eles chamariam a polícia. É claro. E a polícia estava atrás de Mary há muito tempo. Procurei a versão impressa em papel do guia do hacktivista urbano. Deveria ter alguma coisa lá.

Não. Nada além de “use seus próprios recursos” para rastrear seus camaradas. Ótimo. Muito útil. Que recursos, caralho? O que a gente ia fazer? Como se lesse minha mente, Agnes falou:

— Mary sabe se virar sozinha. Ela vai resistir. Vamos atrás dela, investigar no sítio quando terminarmos a missão.

— Quando ela estiver morta? — Eu não conseguia ser educada naquele momento.

— Morta? — Pantera me respondeu. — Se é para ela estar morta, ela já morreu, cara. Vamos fazer como Agnes disse. Não tem como saber. Pode ser que o Choque realmente pegou ela para fazer perguntas. E aí a única coisa que podemos fazer é esperar que ela saia dessa.

Eu não gostei nada daquilo. Não dormi por dois dias.

A missão começava pontualmente às 7 da manhã de quinta. Agnes, Pan e Carlos já estavam na porta dos fundos da prefeitura. Entrada de funcionários. Eu estava na Circo, sentada em minha mesa. Eu teria pedido para trabalhar de casa naquele fatídico dia, mas resolvi reforçar a narrativa para um possível álibi e fui para o escritório. Evidentemente, organizei os displays da minha mesa entre coisas de trabalho e coisas da missão — que rodavam em um computador na Índia enquanto eu o acessava remotamente.

Incluí o RUC dos três no receptor da porta da prefeitura. Mandei o sinal. Eles entraram — recebi uma notificação do dispositivo imprimindo uma mensagem de sucesso. Estávamos oficialmente começando. Eu joguei com pouco bite naquele dia, senti que precisava reforçar a dose, mas logo a adrenalina me ligou. Acessei os receptores internos e desativei a função de salvar das lentes de monitoramento indoor. Eles estavam dentro. No comunicador intra-auricular da equipe de segurança, emiti o chamado de reunião urgente na sala de treinamento. Mandei o ok para eles. Nosso pequeno grupo teria uma janela de 2 minutos para completar aquela parte da ação.

14. SEM PERDER A TERNURA

Por acesso remoto, tranquei as portas à prova de balas da equipe de segurança da prefeitura e tranquei-os na sala. Cortei a rede de comunicação do prédio, a prefeitura estava offline – exceto pelo nosso grupo infiltrado. Lyna mandou a mensagem “Já chegou o disco voador”, o código de sucesso. Me segurei para não comemorar. O gritinho de emoção foi mudo.

Os funcionários da prefeitura também estavam offline a essa altura. Meu próximo passo era disparar o broadcast anônimo para as embaixadas, outras secretarias externas e o gabinete do próprio presidente da república. Depois, para os streamings de jornais. Estava checando o script de disparo quando escutei uma voz desagradável atrás de mim.

— Jéssika. — Com certeza era Muller. — Eu sei o que você está fazendo.

Eu virei devagar e o encarei. Ele estava sorrindo. Não respondi, mas continuei olhando.

— Faz dias que eu venho observando, Jéssika — ele continuou falando, sem se importar que eu o encarasse calada. — Tudo o que você tem feito por aqui. Você acha que é cuidadosa, mas isso é porque ninguém nunca se importou em ficar na sua cola antes. Mas eu não sou besta, garota. Eu sei que você está envolvida com aquele grupo terrorista que estão mencionando na mídia o tempo inteiro. Eu sei que você é da ALN.

Engoli em seco. Eu esperava que ele fosse fazer alguma outra acusação sobre eu o ter denunciado por assédio moral para o RH. Eu não sei que cara fiz na hora, mas ele quase deu um uivo de satisfação.

— Eu poderia te entregar para a polícia agora, Jéssika. Agora! E olha, tô morrendo de vontade de fazer isso. Mas você, apesar de ser ingrata, nunca deixou de bater uma meta nesses anos todos. Vou te dar uma colher de chá, como dizia minha mãe lá do sul.

— O que você quer? — Eu estava sem paciência. E sem tempo.

— A queixa. Eu quero que você retire a sua queixa com o RH e nunca mais toque nesse assunto.

— Não posso fazer isso. Você sabe que fez tudo aquilo comigo.

— Fiz? Mesmo? Eu acho que não. E eu acho que você vai concordar comigo, ou eu vazo todas as suas ações acessando dados fechados dos servidores de produção para a diretora da Circo e para a polícia. Assim que eu sair dessa sala.

Hesitei. Se ele me entregasse para a polícia, eles fariam uma auditoria e seria preciso um hard delete em todos os meus environments e backups para não correr o risco de incriminar qualquer pessoa conectada a mim. Pensei em Mary desaparecida. Pensei no grupo fazendo a sua parte da missão. Talvez eu não fosse tão boa quanto eles achavam. Falhei. Mas tomei uma decisão rápida. Perigosa. Mas rápida. Muito rápida.

— Ok, Muller. Você venceu essa. Eu vou retirar a queixa do RH se você mantiver esse bico fechado. Mas, se qualquer coisa acontecer comigo, se você vazar as informações para qualquer pessoa, eu tenho como voltar atrás.

Ele sorriu.

— Eu sabia que você iria repensar e tomar a atitude certa. — Ele estendeu a mão para mim. Não me movi. Ele botou a mão no bolso. — Ok, espero que cumpra o combinado. Te vejo por aí, Jéssika.

Ele saiu da sala batendo a porta com força. Eu dei de ombros. Não retiraria a queixa. Ele que me denunciasse. Talvez depois da missão eu não quisesse mais trabalhar para a Circo de qualquer forma.

15. A QUEDA

Rodei o script de aviso. Meio minuto depois, os jornais de todos os lugares do país começaram a postar notas sobre o que estava acontecendo na prefeitura de São Paulo. Havíamos sequestrado o prefeito e tomado o prédio. Os representantes da ALN estavam junto aos arco-sindicatos, a postos. As negociações deveriam iniciar a qualquer momento.

Um alerta surgiu por cima das builds dos scripts. Um erro não especificado, como se algum dado não estivesse sendo parseado corretamente para o controle das portas do prédio tomado. Eu estava prestes a pegar minha mochila e me encaminhar pessoalmente para um dos pontos de encontro, mas parei no meio do ato. Abri outra aba do terminal e comecei a investigar. Um debug que eu não esperava ter de fazer no meio da ação. Eu havia checado tudo antes, todos os testes rodaram sem problemas. Tive um pressentimento ruim. O que seria aquilo?

Comecei a suar. Parecia que algum serviço estava sobrescrevendo os triggers das placas de monitoramento. Ele foi ativado depois, por algum script que eu desconhecia. Parecia que eu não era a única a manter backdoors nos softwares do governo. Quem quer que os tenha inserido, fez um ótimo trabalho. Passou batido por várias auditorias da segurança.

Acontece que parecia ser a própria segurança. Chequei os IPs, comparei com a blocklist que eu tinha, e voilá. Eu havia sido interceptada pela ABIN, Agência Brasileira de Inteligência. E eles provavelmente estavam fazendo cópias dos dados dos logs aos quais tinham acesso pela brecha. A única chance de me pegarem era fazendo download do sistema desde uma data dez anos antes, porque o backup da prefeitura não estava versionado. Demoraria alguns minutos — dois, talvez dois e meio — para eles chegarem ao download do último ano. E não havia nada que eu pudesse fazer.

Apagar os dados demoraria cerca de 3 minutos, pois meus scripts precisavam rodar em todas as camadas de segurança da rede e alterar um servidor de cada vez. Meu cérebro ia longe. A pena máxima para terrorismo era prisão perpétua. Eles rapidamente descobririam que Lyna era uma das líderes da ALN. E Pantera.

Eu tinha pouco tempo para agir. Fiz um cálculo apressado de cabeça. Mais um chute mesmo. A única chance que eu tinha era rodar um comando rápido que substituiria todos os RUCs dos camaradas da missão por um único RUC válido. E precisava ser um de verdade, o sistema não aceitaria nada fake. Pensei em colocar o RUC do prefeito, mas eu não sabia de cabeça. Demoraria para achá-lo. Pensei em usar o de Muller. Pensei em usar o da esposa do prefeito. De algum funcionário da Monstranto. Mas a merda era que eu não sabia o RUC de ninguém de cabeça. Apenas o meu.

Rodei o comando. Ele começou a substituir os RUCs. Em quatro segundos, o download da ABIN foi ativado e começou a baixar aquele último arquivo de log do sistema com os RUCs recém-substituídos. Eu me permiti uma risada de desespero e mandei o sinal que avisava a equipe que deu merda do meu lado. Eles sabiam que teriam apenas uma hora para sair do prédio em segurança nesse caso. Mas os sindicatos das zona-arco teriam sua janela para a negociação, e eu rezei para que eles conseguissem obter o melhor desse curto período. Eu não conseguiria nem sair do prédio da Circo.

Eles me pegaram antes de eu sequer começar a desligar o computador.

16. JÉSSIKA SANTOS

“Jéssika de Oliveira Santos (São Paulo, 9 de fevereiro de 2045), também conhecida pelo pseudônimo de Jezz nas redes sociais, é uma programadora de softwares e ativista socialista libertária. Ela foi presa no primeiro dia que marca a Data Revolution de 2070, tendo aguardado seu julgamento em cárcere por quase três anos. Membro da Ação Libertária Nacional, foi pivô das primeiras manifestações do grupo na segunda metade do século XXI.

Ela é conhecida por ter fugido da prisão em uma ação da ALN coordenada por Lyna Fernandes, que mais tarde se tornaria sua esposa. Jezz nunca foi pega, mas sabe-se que morou no exterior por algumas décadas, na maior parte do tempo na Alemanha, de onde liderou o movimento de resistência latino-americana durante a Data Revolution.

Jezz aparece na pele de Diana Rodriguez na adaptação cinematográfica do livro “Onde está Mary X?”, sobre a vida da hacker desaparecida durante ações da polícia no governo de Bozo Neto, conhecido por perseguir militantes que lutavam para estabelecer a criação oficial dos sindicatos nas zonas-arco de regiões das grandes capitais.”

 

Trecho de artigo da: Uiquepedia, a enciclopédia única.

A foto quadrada mostra uma mulher branca, de cabelos ruivos atados em duas tranças sobre os ombros, escapando por baixo da touca cinza. Está vestindo uma camisa escura. O fundo é todo ocupado por flores amarelas.

Vanessa Guedes é brasileira, fala duas, meia e meia línguas, mora em Estocolmo, está tentando vender seu coração usado e escreve pequenos contos esquisitos sobre lugares inexistentes ou velhos demais para alguém lembrá-los com precisão. Escreve em inglês, português e algumas linguagens de programação. Ela adora contar que nasceu no ano em que o Hubble foi lançado, pois, logo, ela e o telescópio tem a mesma idade. Nas ruas de SP, Vanessa aprendeu a falar palavrão com gosto. Mas ela nasceu e se criou em Porto Alegre, RS, onde a ensinaram a ser aguerrida e comprar as brigas certas. Também escreve sobre ela mesma na terceira pessoa, um momento sempre muito louco.

Giovana Bomentre gosta de viajar para o passado com roupas e para o futuro com leituras. Edita ficção na Morro Branco, faz curadoria de poesia na newsletter Ponto sem Nó e escreve resenhas no Sem Serifa. Traduz quando a vida permite e dança pra equilibrar o resto.

A foto quadrada mostra uma mulher branca com os cabelos castanhos cortados no ombro. Ela está com uma cara meio torcida, como se estivesse confusa. Está vestida com um vestido preto de renda e meio transparente, e sentada sobre uma cadeira antiga de estofado amarelo com as pernas cruzadas sobre o assento. Sobre a cabeça, tem um livro aberto, com as páginas pousadas sobre a cabeça.
A foto quadrada e em preto e branco mostra uma mulher branca, de cabelos morenos e curtos. Dá para ver que ela usa um batom bem forte. Ela está olhando para a foto, sem sorrir, e usa uma camisa.

Debbie Garcia nasceu em 23 de maio de 1996, em Campinas, e desenha desde que se entende por gente. Graduada em Artes Visuais pela Unicamp em 2018, cultiva desde criança uma paixão profunda por todas as formas de arte existentes, tendo construído seu repertório visual tanto a partir de idas aos museus paulistas de arte com seus pais, quanto assistindo a desenhos japoneses na televisão. Além de arte, ela gosta de astronomia (que não é astrologia!), animais, pedras, moda e da estética do grotesco.