A ilustração no centro da capa mostra seis personagens: um que parece um pequeno ovo com braços e pernas, uma garota de pele negra clara, cabelos encaracolados usando botas, uma calça marrom, uma camisa branca aberta sobre uma blusinha rosa e um cinto, uma espécie de lobo, um humanoide robusto feito de pedra, um outro humanoide cuja cabeça é no torso e um terceiro humanoide com patas e asas de pássaro. Ao fundo, no céu, há a silhueta de um navio com múltiplas velas. O céu está tomado por uma fumaça, e um raio luminoso do que parece uma explosão também se vê ao fundo. O título “Hei, hou, Borunga chegou” vem abaixo, à esquerda, em azul. Do lado esquerdo, em cima, há o logo da Mafagafo com a informação “Temporada 003 - Junho de 2020”. À direita, vêm as informações “Escrito por Santiago Santos” e “editado por Rodrigo van Kampen”. Acima do título da Mafagafo, há as informações “Ilustração: Mário Neves” e “Direção de Arte: Giovanna Cianelli”.

Ribu, uma garota humana, é salva da destruição da Terra pela tripulação alienígena do navio Borunga. Aos sete anos, descobre que o Borunga é uma embarcação que atravessa o multiverso buscando planetas e mundos prestes a morrer e salva deles um único espécime inteligente. Depois de cinco anos na embarcação, Ribu se torna uma de suas mais confiáveis marujas, titular nas missões de resgate. É quando é escalada para salvar Kérrera, uma menina-ovo, que logo se torna sua amiga — e também estopim de muitas mudanças no navio.

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O primeiro café da manhã de uma maruja era um programão.

A tripulação acordava cedo e sentava atenta à mesa, deixando uma única vaga no meio. Quem chegava primeiro ficava no lado oposto, de frente, o melhor lugar do espetáculo. Nesse dia eu cravei os dentes ali. O título do meu filme biográfico, àquela altura: Ribu e sua grande conquista em cinco anos de Borunga: o melhor lugar na mesa. Grande bosta.

A nova iguaria veio equilibrada na mão de uma das auxiliares do navio e pousou na minha frente. Parecia algodão-doce. Ou clara de ovo batida com gosto, as bolhas molengas, ocupando toda uma tigela enorme.

Kérrera, a novata, apareceu pra ocupar o espaço apertado no banco. A melhor descrição pra ela seria: um ovo cozido. Grande. Com braços e pernas, quando precisa. Ela se equilibrou sobre a tábua e projetou um braço, apanhou a tigela e a derramou por cima de si. A emulsificação caiu na cabeça (cabeça é uma aproximação, vai) e grudou.

Eu dei risada.

Todas me encararam. Ninguém entendia por que eu achava engraçado um ovo com cabelo. Tinha que ter nascido na Terra pra sacar essa.

Aos poucos aquela substância foi sugada, como se inalada por poros. Quando não se via mais rastro da comida, Kérrera levantou.

— Obrigada — ela disse (na verdade, projetou por telepatia, mas soava como uma voz) e saiu, levemente amarelada na parte inferior. Era o jeito dela ficar envergonhada, descobri mais tarde.

Só depois desse show é que todas tomamos o café. Chá de erva cidreira e pão com queijo pra mim. Ainda bem que não foi ovo, eu nunca me sentiria bem comendo ovo cozido perto de Kérrera. E, de fato, nunca precisei. Era o jeito sutil do navio manter o equilíbrio, nos surpreendendo com esse tipo de detalhe.

Eu gostava de cortar o pão, enfiar o queijo no meio e comer como um sanduíche. Por essa e outras manias eu tinha uma faca, e também uma colher e um garfo, que ficavam com uma multitude de utensílios estranhos no armário de canto. Se eu soubesse o que vinha pela frente, teria jogado a faca fora ali mesmo. Mas quem podia saber?

Parecia uma manhã normal, aquela. Não suspeitava que a menina-ovo ia pegar a minha — a nossa — vidinha de sempre e dar uma chacoalhada das boas, de remexer os ossos (no meu caso). É a vida, né. Sempre aparece alguém pra bagunçar tudo.

Era tarde da noite anterior quando ouvimos o barulho. O prenúncio da chegada de mais tripulantes. A ducentésima sétima noite do meu quinto ano a bordo do Borunga e ainda não tinha me acostumado. Eu chutava um cruzamento de rugido de leão com os respingos depois que você taca uma pedra na água. Pra mim. Cada uma dizia uma coisa. Sem falha, aquele barulho me acordava. Acordava todo mundo.

Pulamos das redes ou camas de juta e subimos a escadaria pro convés na fila anárquica de costume, a paciência pra aguentar umas pancadinhas e desferir outras sem saber quem era ou de onde vinha. E lá em cima, o desenho das costas e das pernas na roupa de tecido amarrotado, as botas encardidas, os braços apoiados na amurada, os olhos grudados lá fora: Jinja, nossa capitã.

— Muito bem, marujas. Pontuais como sempre — ela disse, encarando o vazio.

Que não era bem um vazio. Quando o preto da Passagem se rompia, vinha um festival de luzes que me lembrava os fogos de artifício dos anos-novos passados no clube. Era o mais próximo daquilo que eu já tinha visto, mas na real, nem chegava perto. As luzes quebravam e se metamorfoseavam numa dança, como se a passagem fosse uma serpente que trocava de pele enquanto descia um tobogã, mas descamava pra dentro, e as cascas caíam feito cortinas explosivas, se abrindo pra trás, pra cima, pros lados.

No fim da troca, a pelagem refeita, a serpente abria a boca e o navio embicava pra fora, no ponto exato do espaço-tempo onde um planeta morria. Que a gente vinha pra salvar. Ou melhor, pra salvar uma, só uma criatura que ali vivia, com suas antecedentes, amigas e conhecidas já enterradas, soterradas ou despedaçadas. Ou então vivas, o que era terrível, porque por um curtíssimo tempo seriam testemunhas inevitáveis do fim, nos assistindo içar as velas e partir pra próxima.

Foi assim que eu virei tripulante do Borunga. Que Jinja me salvou. Dois dias antes do meu sétimo aniversário. Minutos antes da Terra virar uma bola de fogo e se consumir em sua própria pira, levando embora tudo — e todas — que eu conhecia.

Logo nos espalhamos sem qualquer ordem de Jinja, cada uma pro seu posto. Eu nunca tinha muito o que fazer nessa hora, então caçava desculpa pra encher o saco do Kuato.

— Deixa eu te ajudar — eu disse, puxando junto com ele a adriça que recolhia as velas do mastro da proa.

— Não, aí não! — Ele me deu um empurrão. — Enrola aqui depois da cunha, pra não ficar atrapalhando no corredor.

Kuato foi meu primeiro — e, por muito tempo, único — amigo no navio. Nossa tripulação era de vinte e sete marujas, em breve vinte e oito, de todos os cantos do multiverso, das espécies mais diferentes possíveis, e Kuato também era humanoide, o que ajudava. Demora pra acostumar a falar com quem não tem boca.

— Quem você acha que a capitã vai mandar pro resgate? — Apontei o planeta logo adiante quando terminei de enrodilhar a adriça, e fomos repetir o processo no mastro real. Do lado que a gente se aproximava, dava pra ver pouca terra na superfície, a maior parte água.

— Espero que ela me escolha. Já tem três paradas que não desço.

— E eu não aguento mais descer.

— Sortuda.

Apontei pro meu peito.

— Nada. Responsa. — Dei uma risada. — Só que cansa, viu.

Com uma careta de esforço, Kuato parou de falar pra continuar o trabalho. Adorava pagar de coitado. Seu corpo era rochoso, e a força necessária praquele serviço era quase nada pra ele, mas um martírio pra maioria. Normalmente era quem folgava ou recolhia as velas, ou pelo menos quem fazia mais rápido. Nessa época, eu pensava que ele era invencível. Não demoraria muito pra descobrir da pior forma que não.

Ao nosso redor, marujas de um lado a outro checavam e preparavam o resto do navio, o bote, os suprimentos, ou pelo menos tentavam parecer ocupadas. Nessas horas, quando a embarcação já tinha sido capturada pelo empuxo gravitacional do planeta e seguia vagarosa até onde o leme fantasma guiava, a capitã passava entre as tripulantes, distribuindo as tarefas.

Na porta da cabine, ela encostou no ombro de Chopphpin e eu estremeci. Chopphpin era atrapalhado demais, com seus quinze braços, ainda que sempre fosse útil. Ela continuou, olhando ao redor, e quando chegou ao meu lado se abaixou e pôs as mãos no joelho.

— Animada, Ribu?

— Sim, senhora — eu disse, pensando o contrário.

— Ótimo. — Ela encostou os dedos gelados no meu ombro (era uma temperatura próxima do gelo, mesmo) e se virou pra continuar a seleção.

Eu quis gritar. Em vez disso, arrisquei um castigo por insubordinação.

— Capitã, se me permite. Podemos levar o Kuato dessa vez? Ele já não foi nas três últimas.

Ela virou primeiro o rosto, depois o corpo, e voltou franzindo as duas bocas. Olhou de mim pro Kuato, que já tinha terminado com as adriças e agora só encarava o chão como se uma corrente tivesse prendido seus olhos ao tablado, e pra mim de novo.

— Você sabe que eu escolho o grupo com base nas condições do planeta, não sabe?

— Sim, senhora.

— E sabe que há um motivo pra eu não perguntar quem quer e quem não quer ir.

— Sim, senhora.

— E sabe que a estrutura biológica do seu amigo é diferente da sua, que a água é um veneno pra ele, e que estamos adentrando a atmosfera de um planeta praticamente oceânico.

— Sim, senhora. — Eu já mordia a língua tão forte que sangrava.

— Que bom ver que você sabe, Ribu. Imagino que também conheça as regras a essa altura, Kuato?

— Sim, senhora — ele disse, a corrente agora fisgando, querendo pregar sua cara no convés.

Quando a capitã se afastou, Kuato deu três passadas e me largou um cascudo no ombro. Um cascudo dele era uma senhora porrada. Ia ficar roxo, certeza.

— Pra você aprender, espertalhona.

— Eu prometo que trago algo de lá pra você, tá?

Descemos em seis. Eu, Chopphpin, Mino e P², Lohta e nossa superiora imediata, Goola. Mino parecia uma raposa gigante e quase não falava nada. P² era de uma raça simbionte e, por algum motivo, tinha escolhido Mino como hospedeiro e até agora Mino não tinha reclamado. Lohta era do tamanho de um amendoim, viajava no bolso da frente da minha camisa. Só Goola era mais parecida comigo, também humanoide, ainda que nada nos membros roliços dela lembrasse os meus. Fora isso, seu rosto ficava no torso, onde ficava também o cérebro. Ela não tinha cabeça, pelo menos não a minha ideia de cabeça.

Pegamos o bote e saímos do ancoradouro numa das nuvens do planeta, na direção de um istmo. Havia um trecho da costa com alguns barcos atracados, mas não era praquele lado que a gente descia.

Todos os meus resgates tinham sido comandados pela subcapitã Goola. Jinja não descia desde que havia conquistado o cargo mais alto do navio. A hierarquia era bem rígida no Borunga. Era das poucas coisas que dava pra ter certeza: quem obedecia quem. Porque o resto, todo o resto… Quem criou o navio, quem criou essa história de uma tripulação que salva um espécime de cada mundo prestes a morrer, qual o objetivo disso. Nada era claro.

Como não era claro como a gente estacionava o navio em nuvens, como viajava pelo espaço feito um barco na correnteza da água, como era possível eu respirar sem qualquer aparato dentro do navio. Às vezes a capitã deixava os tragos afrouxarem a língua e soltava alguma coisa. Que era uma esfera de troca elementar que fazia com que o ambiente fosse bom pra todos. Que a nossa comida era produzida nos andares inferiores a que as marujas não tinham acesso. Nada que já não fosse, até certo grau, presumível. Os bons mistérios se mantinham.

A principal dúvida, pra mim, era como escolhiam o espécime a ser salvo. Também como era possível saber que um planeta tava prestes a implodir ou ser atingido por um meteoro ou ser varrido por um desastre tecnológico ou natural imprevisível. Aliás, previsível, pelo jeito. Eu queria saber por que tinha sido escolhida, afinal. Por que eu tinha vindo parar aqui e não minhas mães ou meu avô ou Marinho, meu irmão mais velho, ou Gaby, minha maninha.

Aos de baixo, restava seguir ordens.

Goola pousou o bote na parte mais alta do terreno. Dali, era possível ver água dos dois lados. Paramos próximas a uma casa feita de blocos úmidos, mais ou menos como os iglus que eu via nos desenhos, mas esses pareciam meio derretidos e feitos de lama. Lá de dentro saíram quatro criaturas, Kérrera e outras três menores. Tento não me preocupar em entender a fisiologia de imediato, é mais fácil deixar o convívio ensinar, mas não imaginei que a criança fosse a maior.

Goola se abaixou e ofereceu as cápsulas que encubavam as brilhantes estrelas marinhas que traduziam todas as linguagens conhecidas do cosmo. E foi só o tempo de entenderem que havia um único espaço no bote, e que esse espaço era de Kérrera, antes de se virarem pra ver a tsunami que se erguia no horizonte e que devastaria qualquer traço de vida inteligente no planeta.

Kérrera ficou encostada na pontinha do bote enquanto a gente ganhava altitude, olhando pra baixo, pra quem ficava. Eu não sabia se as tlobianes choravam, mas eu sempre chorava quando rolava isso, quando a família concordava, sabendo que era a melhor escolha, e depois ficava cada vez menor, olhando pra cima, sabendo que a morte logo se abateria, mas que a filha tinha uma chance. Que família escolheria outra coisa?

— Para com isso, Ribu — disse Lohta, me cutucando de dentro do bolso. — Na última vez que caiu essa água do seu órgão visual em mim, eu passei uma semana salgado.

Mino e P² também me olhavam, e eu sabia que sentiam o que eu sentia, mas Goola cantarolava feliz, porque Goola… bem, basta dizer que ela não achou ruim não ter sobrado nada do seu passado. Chopphpin tinha os tentáculos meio que posicionados ao lado de Kérrera, pro caso dela querer se atirar do bote. Eu queria odiar Chopphpin, mas ele tinha as melhores ideias. Talvez por isso.

Quando voltamos pro navio, a capitã Jinja parecia satisfeita com a extração suave. Antes fosse sempre assim. Recebeu Kérrera e foi com ela pra cabine, onde serviria uma variante intoxicante pra sua espécie (no meu caso, rum com mel), nossa iniciação tribal — ou pelo menos assim foi a minha, mesmo com sete anos —, e contaria pra ela o que o futuro reservava. Eu ainda sentia pena quando Kuato parou do meu lado.

— E aí, quem ficou pra trás?

— Três parentes, pelo que entendi.

— Coitada. E o que você trouxe?

Tirei do bolso uma pedrinha roxa, esburacada e torta.

— Achei a sua cara.

Depois de capotar pelo resto da noite e do café da manhã espetaculoso em que descobrimos como a nova tripulante renovava as energias — eu já tinha desistido do verbo “comer” depois de ver algumas coisas bem bizarras —, fui andar pelo convés e achei Kérrera sentada sozinha perto da proa.

— Sozinha? — Eu, uma expert em puxar assunto.

— Não — respondeu Lohta, do outro lado. — Não é porque sou desse tamanho que não tô aqui.

— Desculpa, Lohta, não te vi.

— Novidade. Eu tava aqui falando pra Kérrera da nossa vida empolgante a bordo do Borunga.

— O que vocês fazem pra passar o tempo? — disse ela, telepaticamente. Se falou no plural, então tava falando comigo e com Lohta, certo? Demora pra entender as particularidades de cada espécie.

— A gente deixa o navio limpo e funfando — eu disse. — Tem muita manutenção. A gente inventa um monte de jogos. Pescamos as cascas, que caem das paredes da Passagem. E sempre que chegamos num planeta, descemos numa missão de resgate.

— Tá, mas e depois? Ninguém sai do navio? Ninguém desembarca pra morar em outro lugar? São só crianças que vivem a bordo?

— A capitã é a mais velha, ou a Goola — eu disse. — Mas é verdade, elas não são tão velhas assim.

— Eu sou relativamente velho, vai, mas ninguém se importa — disse Lohta. — Olha, Kérrera, eu sei que é difícil no começo, mas você vai se acostumar. Ninguém sai daqui, não tem pra onde ir. E era isso ou ter ficado lá pra ser engolida pela água.

— E vocês não acham que teria sido melhor?

Quando ouvi isso, me toquei de que ela não era mosca morta igual a gente, todo mundo, que estranhava no começo, mas logo se enquadrava. E quis ficar amiga dela.

— Qual o seu nome? — ela disse.

— O meu? — Olhei pra ela. Seu corpo tava inclinado, mas será que tava me olhando?

— É, só falei com você.

— E como eu ia saber? Aliás, tô falando em voz alta, você ouve? Ou escuta o que eu tô pensando?

— Eu te ouço sim. Só não consigo falar. Você vai se acostumar, dá pra entender quando tô falando só com você ou com mais gente. E não consigo ler pensamento de ninguém, é só o jeito que a gente se comunica. Aliás, que eu me comunico. Só sobrou eu.

— É assim, Kérrera. Todo mundo aqui é a última sobrevivente do seu planeta. Eu também. E é Ribu.

— O que é ribu?

— O meu nome.

— Ah, sim. O que você tá fazendo? — Ela apontou pro meu braço estendido e pra minha mão fechada na ponta. Era coisa dos humanos, claro, mas eu tinha ensinado o Kuato a cumprimentar desse jeito e tava acostumada.

— Desculpa, é como a gente se cumprimenta de onde eu vim, a Terra. Encostando as mãos. A gente aperta e sacode as mãos, ou dá um soquinho.

— Que ideia anti-higiênica. Ainda mais pruma espécie com tantos buracos, de superfície tão frágil.

— Sabe, eu vivo falando isso pra ela — disse Lohta.

Mesmo assim, Kérrera projetou o braço do corpo ovoide, com uma mão fechada na ponta. Na hora eu pensei que parecia a mãozinha do Mickey, aquela luva branca gorda. Até os dedos. Mas de manhã, quando ela pegou a tigela, não tinha dedos. Ela deu um soquinho na minha mão.

— Tá, vou ter que fazer isso com todo mundo no navio?

— Se essa for a ideia, recomendo passar longe dos quinze tentáculos do Chopphpin — disse Lohta. — Aliás, Ribu, por que você fica chamando a Kérrera de “ela” e eu e o Kuato de “ele”? Quando vai desistir dessa coisa ultrapassada de gênero?

— Kérrera parece menina, vocês dois, meninos.

— Menina? — disse Kérrera.

— É que temos gêneros feminino e masculino de onde eu vim, tipos diferentes da mesma espécie. Ou não-binário, que não é nenhum dos dois. Pelo menos é assim que aprendemos a denominar tudo.

— E de onde Kérrera e Kuato vêm só tem um gênero — disse Lohta. — Pra que criar confusão? Tinha um total de dezessete gêneros no meu planeta. Imagina. Por isso reduzi tudo pra um só, porque não faz mais sentido.

— Você faz do seu jeito, eu faço do meu — eu disse.

Ficamos olhando a Passagem. Os canhões de casca ainda tavam vazios, mas o ar já se enchia de expectativa.

— Ninguém tentou se jogar daqui? — disse Kérrera, apontando pro negrume espiralado da Passagem.

— No meu tempo, não — eu disse.

— Já, sim — disse Lohta. — Deve ser uma morte horrível. Por favor, novata, não inventa moda.

— No primeiro dia? — Kuato brotou do meu lado com sua voz cavernosa. — Deve ser um recorde. Normalmente ninguém quer se matar tão rápido.

Eu percebi que Kérrera virou pra ver Kuato e percebeu o nosso soquinho, minha mão de carne contra a mão de pedra dele, e fez um muxoxo ovístico, se é que era possível, inclinando um pouco a cabeça pra trás. Acho — mas só acho — que ouvi um gemidinho telepático que lembrava aquele que meu pai fazia quando chegava na cozinha e via a montanha de louça suja na pia.

— Isso nunca foi um problema pra minha espécie — disse Lohta. — Por isso que eu acho todo mundo aqui molenga demais. No meu planeta, ninguém morria. Só expirava. Você nasce, tem um tempo de vida que é seu. E pronto. Não adiantava se resignar, se jogar no fogo, se afogar. A gente não fica doente, não morre. Corpo fechado. Claro que tinha sempre um que resolvia abdicar das coisas. Pelo que a Ribu fala, é como os monges dela. Vão pra longe e ficam o dia inteiro de olho fechado, pensando, meditando. Mas a hora do vamos ver só vem mesmo na hora do vamos ver.

— Amendoim durão — Kuato disse.

— Brigado, pedroco — continuou Lohta. — Então. Se eu me jogo daqui, e se o navio se afasta e qualquer proteção que ele me dá desaparece, dane-se! Ainda vou viver cada dia que tenho pra viver, só que boiando no vazio. Imagina. Sei lá, viu, acho que vocês que ficam doentes e morrem antes do que acham que é a hora de vocês ficam moles demais. Essa possibilidade de escolher acabar com a vida eu só descobri no Borunga.

— Nós ficamos doentes — disse Kérrera.

— Nós também — eu disse — e com frequência. Nem tem antibiótico aqui no navio, então fico contando com a sorte.

— Anti-o-quê? — disse Kuato. — Enfim, nós também. Tinha um fungo que comia pedra no meu planeta. Credo. Nem gosto de lembrar. Um tio meu tinha. Não adiantava escovar. Os veios se infiltravam. E aí não tinha muito o que fazer.

— Tão vendo? — disse Lohta com um ultraminisorriso. — Bando de molengas.

Aquela foi a única conversa de verdade que Kérrera se permitiu no início. Dias mais tarde, continuava pelos cantos. Era difícil tirar dela algo que passasse de monossílabos. Fiquei contrariada demais, porque tentei várias e várias vezes. Ensinar algo do navio, explicar alguma piada interna, falar da Terra e da pouca vida que eu tinha vivido. Aí parei. Saco. Se a pessoa não quer se ajudar, quer ficar emburrada, que que eu posso fazer?

— Essa menina-ovo tá me dando nos nervos — cheguei a dizer algumas vezes pro Kuato.

— Relaxa a tua cabeça de carne, Ribu, ela tá se adaptando — ele dizia. Kuato me lembrava muito aqueles gigantes gentis das histórias.

Pelos menos não era só comigo. Ela não participava dos jogos, nem da contação de histórias, nem da Sinfonia da Soneca. A capitã a colocou pra varrer e lavar o convés e auxiliar o grupo de pesca. O convés sujava muito rápido com a poeira estelar que se acumulava, então sempre tinha trabalho de sobra. E na pesca, a função das novatas era mais afiar os arpões e limpar as peças dos canhões.

Se a gente não sabia como o navio se movia, ao menos sabia qual era o combustível: as cascas. Todo dia uma quantidade generosa, ao menos cinco carapaças grandes ou o equivalente a isso em menores, era levada ao compartimento de carga pras auxiliares recolherem. A capitã Jinja e todas as demais as chamavam assim, auxiliares, e eu não tinha por que mudar isso, ainda que quisesse chamar de robôs. Faria muito mais sentido. Não conversavam conosco, apenas subiam a escada dos níveis inferiores com comida ou com equipamentos ou o que quer que fosse, e desciam de volta. Não interagiam com ninguém, não falavam nada. E quando a gente queria jogar algo fora, era só deixar lá.

Os vários canhões, de todos os lados do navio, eram operados durante o dia (eu insistia em dividir o tempo em dia e noite), e sempre que uma casca brilhante se despregava da parede em um ponto próximo, a operadora mirava o arpão e atirava. Atravessada a casca, dura feito ferro, o arpão abria as esporas e a fisgada da corda fazia o resto. Aí era recolher a munição com o prêmio na ponta.

Numa dessas operações, enquanto desencaixavam o arpão duma casca, Kérrera, que não tinha experiência nenhuma, se apoiou muito próxima, e no puxão uma das esporas rasgou sua barriga. Uma gosma branca voou, como sangue. Kérrera juntou os lados separados pelo corte com as mãos. A ferida colou e não se viu mais vestígio de estrago nenhum.

A essa altura, a capitã já tava ali, eu também, toda a tripulação, curiosa pra ver o que tinha acontecido. Kérrera respondeu quando o coro engrossou, entoando se precisava de ajuda, de remédio, se doía:

— Perdi um pouquinho de vida, gente, só isso.

Agora ela queria usar metáfora… E o “só isso”, desmerecendo a preocupação de todo mundo? O pessoal se juntou pra paparicar a ovo mais um pouco, mas eu já tava de saco cheio. Andei até a popa e sentei a bombordo, com as pernas enfiadas entre as madeiras da amurada.

— Bem feito… — as palavras escapuliram malformadas da minha boca, num sussurro incompreensível. Ou foi o que achei.

— Não seja assim, Ribu — ouvi a voz de Lohta. Tinha esquecido que ele tirava uma soneca no bolso da minha camisa. — Sei que você não disse isso pra valer.

Aquilo me corroeu. Não era pra ninguém ter ouvido. Eu mesma não queria ter ouvido. Mas era tarde. Agora, a raiva que eu sentia tinha sido transferida pro amendoim. Tirei ele do bolso, sonolento, e o equilibrei sobre a unha do dedão. Ele sabia o que aquilo queria dizer.

— Eu quero ficar sozinha, Lohta — e lancei ele pra trás, pro meio do tablado. Ele não gostava muito disso, mas que mal um salto desses faria a um amendoim invencível?

Fiquei ali por um bom tempo. Ninguém veio falar comigo. Talvez o Kuato viesse, mas Lohta devia ter comentado algo. E aí, quando ficamos sozinhas, somos obrigadas a pensar.

O lado bom daquilo foi que, quando levantei, levantei decidida.

Cacei a menina-ovo e não a achei em lugar nenhum. Realmente Incrível, nosso homem-pássaro, que nessa hora tinha parado de dar os rasantes por cima do barco, me disse que a novata tava no dormitório, se recuperando. Desci as escadas. Ela tava sentada numa rede.

— Tá bom, já deu — eu disse. — Agora você vai conversar comigo e chega.

— Quê?

— É isso mesmo. Pra começar, que história é essa de minimizar o corte que você tomou? Se eu levasse um corte daquele, tava sendo costurada até agora, minando sangue, gritando e esperneando.

— Eu não minimizei nada, Ribu. Só perdi um pouco de vida. Isso não dói.

— Pode até ser que não dói. Mas você tá tão… Não vai me dizer que quis se machucar?

— Não, foi um acidente. Não se preocupa.

— Ufa. Então tá. Eu te perdoo.

— Pelo quê?

— Você sabe… Aliás. Esquece.

Puxei a rede por uma das pontas. Ela começou a balançar pra frente e pra trás.

— Que que é isso? — disse Kérrera.

— Só balancei a rede. Você não gosta?

— Nem um pouco.

Parei a rede e sentei numa das camas.

— Vou te explicar, Ribu — ela disse. — É assim que funciona pra nós, tlobianes. A gente perde massa e perde vida. Nascemos grandes, eu já fui maior do que sou hoje, e aí vamos diminuindo até desaparecer. Pra gente, morrer é virar uma partícula tão minúscula que é levada pelo vento, se integrando ao todo, perdendo a consciência.

— Quando a gente te achou, tinha duas tlobianes menores e uma bem menorzinha. Eram suas mães e sua avó?

— Quê?

— As suas progenitoras e a progenitora de uma delas?

— Não temos progenitoras. É o nosso planeta… Era o nosso planeta que nos gerava. As tlobianes são geradas em casulos dentro de incubadoras no solo. Nascer, pra gente, é quebrar esse casulo e emergir.

Uau. Se eu contasse pra ela o que é um ovo na Terra. E que os pintinhos justamente quebram a casca. E que nós, tranquilamente, matamos vários desses na gestação e comemos, fritinhos na panela com manteiga, cozidos, estralados…

— Então não temos conexão direta com nenhuma outra tlobiane — ela continuou. — Somos conectadas pela terra, pelo lugar, mas não por descendência.

— Por que vocês moravam todas juntas naquela casa?

— Era uma proteção dos elementos. Da água. Do vento. Das predadoras. Da radiação. Outras tlobianes construíram antes de nós, e as tlobianes seguintes foram ocupando. Quando eu nasci, ali perto, tinha lugar pra mim. Então fiquei.

— Credo. Que frieza. Você não sabia nem o nome das tlobianes que moravam com você?

— Claro que sabia. Só tô te explicando por que não foi nenhum choque o ferimento. Perder massa é perder tempo de vida e pronto. Já aconteceu, já foi. Pra que se irritar? Não dá pra mudar nada. A superfície do nosso planeta já foi quase toda de terra. As tlobianes viveram muitas e muitas eras, erigiram civilizações imensas, desenvolveram várias culturas. O que você viu foi o resquício. Pouquíssima terra. Pouco espaço pra nós. Não foi novidade nenhuma o que aconteceu com o planeta. Nenhuma de nós ficou triste. Havia previsões antigas de que esse momento chegaria. O que foi surpresa foi isso aqui, o Borunga.

— Do jeito que você fala, é como se não se preocupasse de ter perdido tudo.

— Era o que tinha que acontecer. Não adianta lamentar. Se tem algo errado, é eu continuar viva.

— Não fala besteira, não tem nada de errado nisso! Você teve uma chance, teve sorte, ganhou um presente.

— Se você tá dizendo…

— Ai, ai… E no meu planeta era o contrário. Tinha mais água antes. As terras eram todas juntas. Panqueca, era o nome do continente. Acho. Que é o nome de uma comida também. Aí ele foi se separando. E tem uns choques lá no fundo que remexem a terra e ela sobe, então temos montanhas, colinas, essas coisas.

— Nós tivemos muitas lendas de heroínas que se sacrificaram ou se acidentaram em alguma aventura pra salvar alguma tlobiane em perigo, normalmente — Kérrera disse, atropelando o meu comentário. — Como Lépru, que perdeu metade do corpo pra urasha afiada de uma monstra. Outras monstras voadoras tinham as tlobianes como iguaria e passavam aterrorizando as cidades e abocanhando quem ficasse desprotegida no solo. Quando emergi, já tinham entrado em extinção. E também diziam que tlobianes que despertaram o dom da platy-se-aka aprenderam a aumentar a quantidade de vida absorvendo o corpo de outra tlobiane. Algumas pra realizar algum feito extraordinário, outras pra se perpetuarem sem fim.

— É, como nas nossas histórias. Heroínas e vilãs.

— Deve ser.

— Tá. Mas voltando ao seu corte. Então você perdeu massa que não volta, beleza. E se você tá de bobeira de novo lá e toma uma arpãozada que arranca quase todo o seu corpo?

— Aí eu perco quase todo o corpo. Mas não dói.

— E daí? Não, não dá de continuar desse jeito. Vamos falar com a capitã, explicar tudo. Ela vai te tirar dos canhões. E das missões, com certeza.

— Não seja boba, Ribu. Se alguém tem que ficar fora de perigo, é você.

— Por quê?

— O Lohta me disse que se você perder a cabeça, morre.

— É, mas se eu me ferir em outro lugar, dependendo, eu me curo e volto ao normal.

Dependendo. Viu o problema? Se eu perco o índice corpóreo análogo à sua cabeça, tudo bem, já tô pronta pra outra.

Sei que ela falou mais coisa, mas travei no “índice corpóreo análogo”. Eu ainda teria pesadelos com aquele termo.

— Vamos fazer assim: eu me cuido, você se cuida — ela continuou. — E a gente cuida uma da outra, tá?

— Fechado. — Eu levantei e mostrei o soquinho pra ela. Ela, muito lentamente, repetiu o movimento.

— Vamos ter que conversar sobre isso.

— Isso não é nada. Tem abraço ainda, que você vai aprender. E beijo, então, acho que você ficaria horrorizada.

— O que é isso?

— Quando duas pessoas se gostavam muito, no meu planeta, elas encostavam as bocas uma na outra e remexiam as línguas lá dentro.

— Pra quê? Vocês já são frágeis, e ainda tinham que expor justamente a pessoa a quem queriam bem aos germes e todas as sujeiras que carregavam no próprio corpo?

— É o que a gente fazia com quem amava.

— Ah, me poupe. Esse seu planeta aí… Convenhamos, é cada besteira. Você já beijou?

— Aqui no Borunga. Só pra ver como era. Não foi muito bom não.

— Tá vendo? Acho que você tem mais a aprender comigo do que eu com você, Ribu.

— Desculpem interromper, mas vim tirar uma soneca — a voz de Lohta. — Ter minha dignidade roubada me dá sono. Será que podem ficar quietas ou continuar o papo lá em cima?

Não ouvimos Lohta chegando, pulando os degraus de um em um, mas também nunca dava pra ouvir. Na verdade, só passamos a ouvir direito o que ele falava quando Chopphpin instalou o alto-falante no ombro do coitado.

— Desculpa, Lohta — eu disse.

— Ah, sim, nossa, sua desculpa faz eu me sentir tão bem, Ribu.

De onde eu tava não dava pra ver, mas imaginei a cara de zangado de Lohta e contive um riso. É igual um gato bravo. Por pior que seja, você corre o risco de achar fofo.

— Ela tá te incomodando aí, maninha? — ele voltou a dizer.

— Claro que não — eu disse —, a gente tá só conversando.

— Eu não tava falando com você.

Olhei pra Kérrera. Tinha um amarelado no lado esquerdo dela. O que era aquilo? Seria um riso? Mas em vez de perguntar isso, resolvi perguntar de outra coisa que vinha notando nos últimos dias.

— Kérrera, o que é esse inchaço arroxeado que tem na parte de baixo da sua barriga?

— É que eu não tenho dormido direito.

Então ela dormia. Bom saber. Eu traduzi o que ela disse como olheiras. No mínimo ela não aguentava a maldita barulheira que a gente fazia antes de pegar no sono. Eu sabia que demorava pra se acostumar com a Sinfonia, mas a ponto de não dormir?

— É o barulho?

— Não.

— Você tá sentindo fome?

— Não.

— Sabe que pode comer a hora que quiser no refeitório, né?

— Anham.

— Triste com o seu planeta?

— Não.

Ela voltou ao ritmo de papo curto e grosso. Teria sido a chegada do Lohta? Ou, sei lá, cansaço? Não deu tempo de ficar investigando, porque a cabeçorra de pedra do Kuato apareceu pela abertura da escada e começou a gritar.

— Ribu! Ribu! RIBU!

— Tô indo, pedroca! — Levantei e fui pra escada. Lohta tinha enfim chegado no último degrau. — Quer que eu te coloque em algum lugar? — eu disse, abaixando perto dele.

— Vai se ferrar.

No convés, a pedra que era a cabeça de Kuato tava afinada embaixo, as curvaturas que eram seus olhos, arregaladas. E ele só fazia essa cara em uma situação: quando perdia.

— Xadrez, Kuato?

— É. Contra o Uqeo.

— Mas caramba! Eu já te falei que é IM-POS-SÍ-VEL ganhar do Uqeo! E você insiste!

Uqeo era de uma espécie que vivia em múltiplos ciclos de cinco segundos, sendo na maior parte do tempo um amontoado indistinto de movimentos e vozes. Portanto, tinha uma vantagem surreal em qualquer esporte, já que sabia como o adversário reagiria. No xadrez, a gente tinha que fazer a jogada só uns dez segundos depois da dele pra não ter como ele prever o ataque e se defender antes. Eu, que tinha ensinado o jogo, não tinha essa paciência toda. O Kuato era o único. Mas o problema é que ele se traía. Era a reação dele às jogadas do Uqeo que dava pista. O pedroca era horrível, incapaz de blefar, de esconder um sorriso ou irritação. E vivia perdendo.

Quando chegamos, o tabuleiro já tava quase todo liquidado, poucas peças.

— Mata essa e pede uma revanche — eu disse, dando um tapinha nas suas costas. — Mas depois vou precisar de uma ajuda tua.

— Beleza.

— Eieeieiii, sseemmmemmess ajjuaajjddaaauuu — disse, ou melhor, ia dizendo, o Uqeo.

— Sem ajuda uma pedrada, ô — disse Kuato. — Eu já sou o único que ainda joga contigo, então para de encher o saco.

Depois que conseguimos ganhar uma melhor de sete, foi a vez do Kuato me dar uma mão. Minha ideia era pegar os óculos de visão noturna do Tri-uni-oito, uma das criaturas mais detestáveis do navio, pra tirar uma dúvida.

Ele era um metamorfo. Na maior parte do tempo, um vegetal, como um cacto, ou então uma bola, pra chegar rolando nos lugares. O Chopphpin tinha criado os óculos pro Tri-uni-oito ver até onde podia se transformar depois de acordar todo mundo quando tinha pesadelos, virando um bicho depois do outro. Culpa dele de chegar sempre por último, no dormitório já escuro. Isso só rolou por um curto período, depois duma missão cabulosa, mas ele guardou os óculos afirmando que sempre podia acontecer de novo.

Não que o presente tivesse melhadorado seu humor. Era intratável. O único jeito de ganhar um favor dele era na aposta, algo que não negava. E Kuato não perdia numa coisa: levantamento de cascas. Nem o golem de quatro metros que o Tri-uni-oito fez pra competição foi páreo.

À noite, Kuato me passou os óculos. No rodízio, eu caí numa das poucas redes. As novatas, eu sabia, demoravam pra chegar nelas. Era nas camas duras de juta ou no chão forrado. E onde a Kérrera tava quando tinha ido sozinha pro dormitório mais cedo? Minha suspeita se confirmou. Qualquer pessoa que já colocou um ovo numa superfície lisa sabe que ele não fica parado. Imagina num navio em movimento.

No dia seguinte, a gente passou a tarde construindo uma espécie de ninho de passarinho com as lascas quebradas das tábuas que tiramos do tombadilho pra trocar por novas. Do tamanho da Kérrera. Por “a gente”, quero dizer eu e Kuato. Lohta tava junto, mas só caçando defeito e enchendo o saco.

Deixamos no local do rodízio dela, não falamos nada, mas foi a primeira noite em que conseguiu dormir, ela confessou de manhã pra gente, tomando café no nosso canto e perguntando como funcionava aquele jogo do qual eu vivia falando, o tal do dominó.

Tivemos mais três missões de resgate antes de Kérrera descer pra sua estreia. Subiram a bordo Carmina, uma inteligência artificial com o corpo feito de circuitos e placas, P’hua’p, uma espécie translúcida que carregava dentro de si uma microestrela e o poder de destruir o Borunga num instante caso entrasse em supernova (ela prometeu que isso não tinha perigo de acontecer), e To, uma ameba silenciosa que ficava observando tudo de dentro de um invólucro voador.

A chegada de tripulantes alterava bastante o equilíbrio das coisas. P’hua’p, por exemplo, conseguia controlar o brilho da estrela enquanto tava acordada, mas quando dormia fulgurava com força, e a gente podia cobrir com tudo que a luz ainda escapava e iluminava o aposento. Em vez de enxotar ela pro vento frio do convés ou pra solidão de outro canto, todo mundo aprendeu a dormir na claridade.

Carmina instalou sensores nos canhões e automatizou os disparos de arpão, o que ignorava possíveis falhas das controladoras, e a taxa de acertos subiu pra 100%. Mas a capitã Jinja a proibiu de aparelhar dois dos canhões, onde todas se revezavam, porque a gente podia esquecer de como operar eles. E quando não houvesse mais o programa, quando não houvesse mais Carmina, como seria? Implícita, sempre, essa realidade inescapável: o Borunga era eterno, nós éramos passageiras.

To não alterou nada pra maioria, mas, particularmente, aquela ameba voyeur me dava calafrios. Pra tudo que é lado que eu fosse, ela tava lá, vigiando.

Acontecia também quando tripulantes morriam. Nesse período, Rosbe e Loreto. Eram das antigas, e a certa altura não acordaram, que era como quase todo mundo falecia. Rosbe foi nosso grande veleiro, tecendo as velas com a teia resistente que produzia do próprio muco, e não com pano, que era como Jinja disse que a gente voltaria a fazer. Loreto era o metrônomo da Sinfonia da Soneca, com seu barulho infalível de bumbo e caixa. Cantamos a música — claro que fora de ritmo —, a capitã Jinja falou o de sempre e deixamos os corpos deles rolarem da prancha pro vazio da serpente infinita, pra boiar até que fossem consumidos pelo tempo ou pelo nada.

Então chegou o dia. Saímos da Passagem, a capitã veio escolhendo a equipe e tocou em Kérrera, que preparava o bote pra extração. Seu corpo afinou na hora. Era ansiedade. Dessa vez, as escolhidas fomos eu, Kuato, Kérrera e Lohta, a gangue, mais Uqeo, Realmente Incrível, Mino e P² e, claro, Goola. Já Chopphpin, o arroz de festa, teve uma merecida folga. Senti alívio, já que ele era tão bom em tudo que eu me sentia um lixo com ele por perto. Eu não demoraria muito pra me arrepender disso.

O planeta da vez acusava, de longe, o problema: um supervulcão em erupção. Não dava pra ver a caldeira, escondida sob a massa heterogênea de cinza vulcânica que se espalhava e já dominava metade da parte visível da esfera. O resgate se daria num continente ainda não totalmente coberto pelas cinzas, o que aconteceria em breve.

Nos distanciamos do Borunga, ancorado dessa vez mais acima do que de costume, num ponto qualquer da mesosfera. Goola manejava o bote com tranquilidade, aproveitando o empuxo gravitacional. Pra mim e pra Kérrera, a vista daquela superfície era nostálgica, já que nossos planetas eram feitos de ilhas circundadas por oceanos. Não era o caso de Kuato, com seu planeta completamente rochoso, nem de várias outras tripulantes, que tinham vivido em planetas muitas vezes inabitáveis pra mim, de ventos mortíferos ou oceânicos ou gigantes gasosos aos quais eu não podia descer (minoria, já que a vida inteligente não era comum neles). Olhando de longe, daria pra dizer que eu voltava pra Terra. Até as luzes nos conglomerados lembravam a energia elétrica das minhas cidades e seus postes e telões e prédios iluminados.

Mais perto, no entanto, tudo mudava. A engenharia urbana em camadas sobrepostas, parte delas escavadas no solo, as vias flutuantes por onde corriam, de um lado pro outro, esferas translúcidas com amontoados de criaturas que estariam mortas em pouco tempo. Os resultados letais do supervulcão seriam mais lentos pras espécies não inteligentes, pelo que Jinja nos explicaria mais tarde. As cinzas primeiro resfriariam o planeta e acabariam com as incidências solares por anos a fio, matando gradualmente a vegetação e os animais. Já pras mumbongas, o contato das cinzas com seu aparato respiratório seria letal e quase instantâneo.

Tivesse a evolução tecnológica preparado a espécie pra vida em abrigos, capaz de produzir alimentos pelos anos a fio até que a cinza se dissipasse, talvez ela tivesse chance. Mas se o Borunga tinha chegado aqui, ninguém teria essa sorte.

Era sempre um problema descer num lugar densamente povoado, porque quem não fica curiosa com um bote flutuante que aparece quando o planeta tá indo pro brejo? As chances de falha eram muitas, de tentativas de embarcar à força a ataques gratuitos, então a tensão sempre existia (o Casa ainda não tinha entrado no Borunga pra aliviar esse problema pra gente, isso ocorreria anos mais tarde).

Por sorte, o lugar onde a gente precisava chegar não era no nível do solo, o que nos permitiu estacionar diante de uma abertura ou janela no segundo ou terceiro andar de uma mansão ou algo assim, longe o suficiente do chão pra que as criaturas que se juntavam do lado de fora da cerca que delimitava o lugar não nos alcançassem. Já as pessoas dentro da cerca podiam subir pela estrutura e alcançar o cômodo onde desembarcamos. Algo a que não demos muita importância no início.

Encontramos naquele quarto várias mumbongas, trípodes musguentas, entre alguns móveis, com as orelhas caídas na altura do peito, corcundas, os joelhos esticados pra frente. Oferecemos as cápsulas com as estrelas brilhantes. Depois que eu engoli uma pra dar exemplo, a primeira corajosa esticou um braço, e a ponta de um dos três dedos englobou a cápsula na palma de Kuato. Quando falou, descobrimos que aquilo era um orfanato. Continuamos distribuindo as estrelas. Até que acabaram. Não paravam de chegar novas mumbongas. O espaço ficou apertado.

Goola deixou Realmente Incrível cuidando sozinho do bote e entrou pela janela, apontando uma daquelas muitas criaturas, encostada contra a parede. Era quem a gente precisava salvar, segundo o leitor no braço da subcapitã.

Uma gritaria, que já era dispersa, foi aumentando. As que tinham engolido as estrelas perguntavam pra tripulação o que tava acontecendo, e as que não tinham engolido queriam entender sobre que diabos conversavam as outras. Kérrera empurrou várias e levou a última estrela praquela mumbonga que seria salva. Seu dedo englobou a pílula.

Logo começamos a ser prensadas contra a parede da janela. Subi numa das camas, ou armário, ou o que quer que fosse aquilo. Goola gritou pro Kuato fechar a passagem que conectava nosso cômodo com o resto do orfanato. Ele abriu caminho e ainda empurrou umas retardatárias pra fora antes de se prostrar na abertura como uma lápide. Goola então deu a ordem pro Lohta. E Lohta gritou. Ele tava dentro do meu bolso, e sorte que tampei as orelhas a tempo.

A ensurdecedora onda silenciosa da boquinhazinha de Lohta teve o efeito esperado, que foi fazer as dezenas de criaturas ali ficarem petrificadas, de pelos e variantes arrepiados. Senti Lohta, esgotado, se soltar da borda do meu bolso e deslizar até a costura. Goola disse que precisava falar com alguém que falasse por todas.

— Eu posso falar por todas — disse uma mumbonga.

— Muito bem — disse Goola. — Nós somos a tripulação do Borunga e estamos aqui porque seu planeta está prestes a sucumbir a um desastre. Sua espécie não tem chance de sobrevivência. Nós, todas nós aqui, somos as únicas sobreviventes de nossas espécies, de planetas que já não existem. E viemos salvar uma de vocês.

— Como assim, um desastre? — disse outra delas.

— Você tá falando daquela nuvem preta se espalhando pra todo lado? — mais outra.

— Ela logo vai chegar aqui — disse Goola, e um suspiro amortecido saiu do trato oral de todas as que tinham engolido a estrela. As demais quiseram saber o motivo daquilo. E logo o caos voltaria a tomar conta. — Silêncio! Por favor, não temos muito tempo. Por isso pedi uma porta-voz.

— Por que só uma? — voltou a dizer a mumbonga que falou primeiro, pedindo com seus dedos roliços que as outras se acalmassem ou ficassem em silêncio, eu acho, porque foi esse o efeito. — Por que não chegaram aqui antes, não nos avisaram?

— A gente não sabia, e não temos tempo de explicar isso agora. O que importa é que somos a única chance de sobrevivência de uma de vocês, que será admitida no Borunga, nosso navio. E aquela ali — ela apontou a escolhida — tem passagem garantida.

— Por que a Bumpoc?

— Por que não ela?

— Eu quero ir, me leva — disse outra, atravessando a conversa.

— Quieta, Bumfepp — disse a porta-voz, que não passava de uma criança como as demais, pelo que dava pra concluir. — Nenhuma de nós vai sair daqui com essas estranhas. Isso não faz sentido. Não vamos entregar uma das nossas assim.

— Estranho é pouco — disse Goola —, mas vocês já estão cientes do que vem por aí. A nuvem de cinzas. Já sabem. Por que não salvar uma das suas?

— Porque ninguém merece isso mais que outra aqui nesse quarto, ou no orfanato, ou nesse planeta, se for verdade. Então leva todo mundo que tá aqui.

— Não é possível.

— Eu não quero ir — falou Bumpoc, a escolhida pelo Borunga. — Quem pode provar que o nosso planeta vai mesmo acabar?

— Eu não estaria aqui se não fosse o caso — disse Goola, já cansada, eu podia ver pelas rugas que se mostravam na sua barriga. — Não temos mais tempo pra discutir. Eu lamento. Realmente Incrível, aqui dentro. Tripulação, extração imediata.

Uma retirada urgente. Há quanto tempo eu não via isso acontecer. E nunca antes com tamanho potencial de perigo. Realmente Incrível, o único lá fora, entrou pela abertura num rasante, sobrevoando todas, agarrou a escolhida pelos sovacos e deu impulso na parede pra voltar ao bote. Foi rápido, mas não tão rápido que as demais não se revoltassem com a captura.

Goola se colocou de imediato no vão da janela, barrando a passagem das mumbongas pro bote, empurrando as mais próximas com seus braços troncudos, assim como Kuato do outro lado.

— Extração! — voltou a gritar. A gente tinha que sair de algum jeito.

Vi os braços vindo na minha direção, queriam me puxar de cima do móvel. Pulei duas vezes pra escapar dos agarrões e alcancei o que parecia ser um varão de cortina no alto da parede. Segurando uma ponta, pulei e encaixei a outra no chão entre a muvuca, acertando, pelo grito que ouvi, o pé de alguém. Um salto com vara que passou por várias cabeças e chegou perto, bem perto, de Goola, mas não o suficiente. Caí a poucos metros dela, num espaço que foi então varrido por uma de suas braçadas. Pulei pro parapeito da janela e me esgueirei entre suas pernas. Vendo que era eu, me deixou passar.

Dali, agarrada ao parapeito, tentei identificar o resto das nossas lá dentro. Dava pra ver Mino e P² pulando de um lado pro outro, de cabeça em cabeça, sendo agarradas aqui e ali, mas desferindo dentadas pra se soltarem. Uqeo, extravasando energia no que lembrava uma dança doida distribuída entre seus ciclos temporais, era um borrão difícil de identificar e circulava erraticamente, tumultuando.

Faltava Kérrera.

Que eu não via em lugar nenhum.

— Goola, tá vendo a Kérrera? — eu disse, apertando sua perna.

— Não. Uqeo, a Kérrera, tá vendo ela?

— Ãonoãonã!

— Ela caiu, ela caiu, Goola, deixa eu voltar — tentei me enfiar de volta pelas pernas, mas fui bloqueada.

— Não, Ribu. Vai pro bote, cuida da escolhida. Realmente Incrível! Volta aqui! Preciso que ache a Kérrera.

Realmente Incrível voltou ao quarto, passando pelo espacinho entre Goola e o teto. Pulei pro bote, e Bumpoc tava encolhida na ponta mais distante.

— Não vou te machucar — eu disse. — Pode não parecer agora, mas é pro seu próprio bem. Todas nós passamos por isso antes.

— Eu não quero ir. Minhas amigas tão todas aqui.

— Calma, já vai acabar. — Eu me sentei ao seu lado. Mesmo que não quisesse vir com a gente, se era pra garantir que ficasse viva, era nosso dever.

— Não tô vendo ela, não tô vendo! — ouvi Realmente Incrível gritar lá de dentro.

— Que tá acontecendo, Ribu? — Era Lohta, no meu bolso.

— Lohta, ainda bem! — Coloquei ele na palma da mão. — Vem cá! Faz de novo! — Pousei ele no parapeito, virado pro quarto. O novo grito do nosso amendoim paralisou todo mundo mais uma vez. Joguei ele de volta no bolso e enfiei a cara por entre as pernas de Goola.

— Que loucura é essa? — disse ela. — Só queremos ir embora. Parem. Não queremos confusão.

— Devolvam a nossa amiga — a porta-voz falou, subindo num dos móveis. Ela segurava Kérrera. — Se querem levar isso aqui de volta, devolvam a Bumpoc.

“Isso aqui.” A minha amiga. Rilhei os dentes. Goola demorou pra responder.

— Ribu, traga ela de volta aqui.

Eu fiz o gesto pra Bumpoc se aproximar, e ela entrou no quarto. Soltaram Kérrera. Não parecia ferida. Não parecia menor, aliás.

— Vocês vão embora — disse a porta-voz. — Nós vamos enfrentar o que tivermos que enfrentar juntas. Quem pode–

Do outro lado, um barulho surdo de explosão e o grito de Kuato. O primeiro grito de Kuato que ouvi, um grito de dor, algo que nunca esperava testemunhar. As rochas que formavam sua perna direita voaram em várias direções, trespassando duas crianças mumbongas e se enterrando nas paredes e no teto. Uma delas veio na direção de Goola. Uqeo correu, e por alguns instantes tudo o que vimos foi seu borrão indo do canto até um daqueles móveis do quarto e até Goola e o móvel se estilhaçando em pleno ar e as fagulhas voando e ele caindo no chão, tentando recuperar o fôlego.

Kuato desabou, e pela abertura entraram duas mumbongas maiores, adultas, a da frente segurando uma bola cheia de fios que só podia ser a origem da explosão, a outra esbravejando em sua língua nativa.

— Mino, não! — disse Goola, mas já era tarde.

Mino era uma raposa enorme e inofensiva enquanto P² apenas passeava pela sua superfície. Mas quando a metamorfose simbiótica que transformava o duo numa espécie de loba faminta dos infernos entrava em ação, bem… Um pulo, um rugido, duas mordidas e o estrago tava feito, a loba ameaçando qualquer um que chegasse perto da arma caída enquanto os dois corpos das mumbongas despencavam sem cabeça atrás dela.

Gritos se seguiram, mas as mumbongas não sentiam revolta agora, sentiam medo. E se afastaram da simbionte, se aglomerando nos cantos. Goola entrou, silenciosa, e tocou o rosto inexpressivo de Kuato.

— Realmente Incrível, Kérrera e Ribu, ajudem o Uqeo — disse. Depois, ergueu Kuato sozinha e o apoiou sobre o ombro inteiriço. — Lamento. Não era nossa intenção. Venham, Mino e P². E você — apontou pra escolhida, que era a mais bem guardada de todas elas —, não crie mais problemas. Só venha.

— Não, ela não vai — dessa vez foi Kérrera quem falou. E o centro do seu corpo ficou vermelho, como se um botão tivesse surgido ali. — Vamos embora, Goola. Já fizemos estrago que chega.

Nossa subcapitã baixou a cabeça e entrou no bote, depositando o corpo pedregoso de Kuato próximo do motor. As demais, todas nós, entramos na sequência, sem dar um pio. Mino e P², talvez por conta da adrenalina, continuavam metamorfoseadas.

O bote ganhou altitude. E altitude. Eu fiquei ao lado do Kuato, tentando acordar ele, preocupada porque não sabia como dizer se tava vivo, se tava só desacordado. Suas costas pareciam trincadas, cheias de veios na superfície, de rachaduras, e eu comecei a pensar no que faria se o tronco dele se abrisse em dois ali no bote, se isso o mataria.

Mais altitude. Vimos a camada de cinzas vulcânicas no horizonte, vinha como uma mancha preta, carregada, contida.

Mais altitude. Passamos da troposfera e suas nuvens mortíferas, e só quando chegamos a dezenas de metros do Borunga o botão vermelho na barriga de Kérrera se apagou, e ela desabou no tablado do bote.

Goola pulou de seu lugar, abandonando o leme, fazendo o bote frear de súbito. Lohta quase escapuliu do meu bolso. Goola fechou uma das mãos em Kérrera e a ergueu diante de seu rosto torácico, tamanha era a diferença de tamanho entre as duas.

— O que você fez comigo? O que você fez? O que você fez?!

Kérrera não respondeu, porque tava inconsciente. Na amurada do Borunga, todas as marujas a bordo nos olhavam, a capitã Jinja entre elas, e foi o cutucão e o sussurro de Realmente Incrível que fizeram com que Goola se virasse e sentisse todos aqueles olhos e outros órgãos visuais sobre ela. Largou Kérrera.

Da gangue, só eu não tava desmaiada. Então só eu vi a cara de espanto e, sobretudo, de frustração da capitã. Uma missão de resgate sem resgate. Essa era novidade.

Enquanto a capitã falava, eu ficava olhando pro Kuato, com medo dele apagar ou rachar de vez. Nem queria encostar antes de ter certeza, e ainda não tinha dado tempo de checar nada. Ele abriu os olhos e gritou na mesma hora em que Kérrera acordou, vomitando (pra ela, expelir comida era tipo crescer cabelo, e eu lembrei de um boneco com cabeça de grama que fiz com meia-calça, semente e serragem na escola). Jinja tinha esperado o rebuliço passar, se certificado de que as duas tavam bem, na medida do possível, e mandado todo mundo da missão pro refeitório.

Só a capitã continuava de pé, numa das pontas. Dum lado da mesa, Goola. No banco do outro lado, todas nós, as demais, com medo de levar um tapão por engano. Ela gesticulava bastante quando falava.

— … e eu queria mesmo era saber por que esse bando de bunda-mole não fez nada pra pegar a escolhida do planeta, se eu tava travada daquele jeito.

— Já falamos, Goola — disse Realmente Incrível —, achamos que você tinha desistido e seguimos sua deixa.

— Bundas-moles, como eu tô falando.

— Goola, já deu — disse a capitã. — Deixa as outras falarem. Kérrera, tá se sentindo melhor?

— Sim, senhora — ela respondeu pra Jinja, mas por educação, creio, todas pudemos ouvir.

— Então que tal explicar pra gente por que fez isso?

— Porque achei que era o certo, capitã. Quase nunca uso, mas achei que você soubesse que eu poderia fazer, se precisasse. Não foi por isso que eu fui junto?

— Você foi porque deveria auxiliar a nossa equipe, não a população do planeta.

— Pois então. Eu ajudei a nossa equipe. Eu ajudei a nossa equipe a ir embora sem sofrer mais violência ou até uma baixa, sem ter outras surpresas desagradáveis, já que a escolhida claramente não queria vir, e nenhuma das presentes parecia nem um pouco inclinada a deixar ela–

— Depois de tudo aquilo — Goola disse —, de você mesma escapar por um triz, do Kuato perder a perna, de quatro mumbongas caírem mortas no chão, de eu quase ser esmagada–

— Ainda não ouvi um agradecimento, falando nisso… — disse Uqeo e riu, mas riu sozinho e rápido, agora bastante fixo num lugar por todos os ciclos de cinco segundos pra qualquer uma ver a cara de bunda que fez por escolher hora tão errada pra falar.

— Eu não escapei por um triz, sua troglodita — disse Kérrera, encarando Goola. Todas ali tinham um cagaço mortal da subcapitã. Kérrera era a primeira que falava com ela nesse tom. — As mumbongas, as crianças, pelo menos, não eram violentas. Elas só não queriam perder a companheira. Você não entende?

— Você não entende que podia ter salvado uma delas, e que ela estaria aqui agora, ouvindo esse monte de merda?

— Ela não queria! Ela não queria vir, ela escolheu ficar. Por que é tão difícil entender?

— Por que você não usou essa sua coisa, esse seu poder, na escolhida? Pra fazer ela ficar quietinha no bote, sorrindo, dizendo que tava tudo bem?

— PORQUE. ELA. NÃO. QUERIA.

— Kérrera e Goola, as duas, por favor — disse a capitã. — Se acalmem. Ninguém vai conseguir voltar lá e mudar as coisas. Kérrera. Todas aqui nesse refeitório falaram, deram sua versão da história. Mas essa foi a sua primeira missão de resgate. Todas já fizemos isso muitas outras vezes. Nem sempre é legal. Nem sempre é bonito. Nem sempre as escolhidas querem vir. Mas temos um objetivo. E fazemos de tudo pra cumprir esse objetivo.

— Não faz sentido, capitã, com todo o respeito. A pessoa tem que querer ser salva.

— Kérrera, essas escolhidas… Elas nunca estarão num bom momento, num momento sereno pra decidir. Se o planeta está visivelmente ameaçado, elas estão com medo. Se não está, elas custam a acreditar em nós. E não estão preparadas pra escolher qualquer coisa lógica, que é a vida, quando aquelas que amam podem não existir mais. É natural. Mas se você visse alguém em perigo, se visse uma tlobiane prestes a perder toda a massa corpórea e pudesse ajudar, você a deixaria morrer?

— Sim, porque era pra ser assim. E é diferente. Eu tô falando de uma escolha.

— Eu estou falando de um acidente. Sempre é um acidente. Não há escolha a ser feita.

— Eu discordo.

— Vai ver ela queria ter ficado pra morrer no planeta dela, capitã — disse Goola.

— Sim! SIM! SIM! — Kérrera projetou um braço do corpo só pra poder esmurrar a mesa, imitando uma reação da subcapitã de momentos atrás. — Se querem saber, eu preferia ter ficado. Ter morrido na terra que me deu vida e era parte de mim, se a alternativa era vir pra cá. Pra quê? Pra andar com um bando de estranhas que não me entendem, que não se entendem, fazendo o que fazem sem saber o motivo, sabe-se lá pra quem, sabe-se lá até quando? Qual o sentido? O que a gente ganha se trouxer a bordo alguém que não quer ficar aqui? O que a gente ganha? Pode me explicar, capitã?

— Isso já aconteceu antes, Kérrera. Já trouxemos cadáveres daquelas que preferiram tirar a própria vida, ou que tiveram a vida tirada contra a nossa vontade, na nossa frente. Que vieram contrariadas e não se adaptaram. Que não acharam mais sentido em nada. Que se atiraram do convés pro vazio da Passagem quando ninguém estava olhando. Que não suportaram. Mas elas tiveram uma maldita escolha. Elas puderam subir aqui, ver o que é que o futuro delas guardava e decidir, com a cabeça fria, o que fariam. Tirar essa decisão de qualquer uma soa pra mim, pra Goola, pra todo mundo, mais injusta que só deixar a pessoa pra trás. Porque todas nós escolhemos viver, escolhemos ficar, no fim das contas. Até você.

— E por que você não desce, capitã? Se entende tanto, por que não desembarca e ilumina as pobres coitadas com esse conhecimento?

A capitã se aproximou com passos curtos de Kérrera. As cabeças e pescoços (e variantes) foram se virando junto pra acompanhar.

— Você não tem ideia de quantas vezes eu já fiz isso — disse Jinja. — A posição de mais alto comando não desce, maruja, porque é ela quem cuida do Borunga enquanto o Borunga existir. É ela quem vai levar esse navio adiante se ninguém do bote voltar, pra alcançar outros planetas, pra formar novas tripulações, pra construir novos botes. É ela quem vai tomar as decisões mais difíceis se chegar nesse ponto. Entendeu?

Kérrera sentou, ou melhor, encostou o corpo ovoide sobre o banco e contra o tampo da mesa. Na minha cabeça, foi como se ela tivesse desabado, corcunda, cansada.

— Por quê, capitã? Eu já perguntei pra todas do navio. Todas. Ninguém sabe. Por que fazemos o que fazemos? Resgatamos as pessoas? Continuamos fazendo isso?

— Porque ou é isso, ou ficar lá atrás, de onde a gente veio, esperando a morte.

— Quem criou isso aqui? Quem te ensinou a fazer o que você faz?

— Minha capitã me ensinou, como eu estou ensinando vocês. Quem criou o Borunga? Não sei. Quem criou as Passagens? Quem criou os planetas? Quem nos criou e criou tudo o que conhecemos? Você não pode deixar as perguntas pras quais não tem resposta acabarem com a sua sanidade, Kérrera. Ninguém sabe de tudo.

Ficamos olhando da capitã pra Kérrera e pra Goola e de volta.

— Se ninguém tem mais nada a dizer, dispensadas — disse Jinja.

E assim cada uma se ergueu, ou levantou voo, e subiu pro dormitório, algumas pro convés. Eu fiquei ali com a gangue, Kuato, Kérrera e Lohta, sentado em cima da mesa.

— Bom, agora que acabou a novela, Kérrera — disse ele —, não é por nada não, mas você viu que quase me acertou com aquela porrada na mesa?

— Cala a boca, Lohta — eu disse, e fui no comunicador pedir pras auxiliares um copo de água. — Quer alguma coisa, Kuato?

— Outra perna. Vê se elas me arranjam uma.

— Vou lá pro convés, quero um pouco de ar fresco — disse Kérrera. Eu suspeitava que ela queria era falar com a capitã a sós, ver se arrancava mais alguma coisa. Isso não era de todo incomum; eu já tinha tentado e visto muita gente tentar, mas ainda não com a intensidade dela.

— Que bom, Kérrera — disse Lohta. — Me leva junto? Te perdoo pela quase porrada. Ainda é menos do que outras pessoas já me fizeram, pessoas aqui neste recinto, inclusive. — Lohta, o amendoim mais rancoroso que já conheci.

Kérrera pegou Lohta, e subiram as escadas. Elas se davam tão bem. E o engraçado é que ficavam quietas a maior parte do tempo. Teve um dia que reparei nisso enquanto auxiliava alguém no canhão, elas sentadas na amurada. Se bem que pra falar Kérrera só precisava pensar, e a boca de Lohta era pequena demais pra ver à distância, então vai saber.

— Tá feio já, esse ciúme — disse Kuato. Ninguém me conhecia melhor que ele. — Não fica forçando a barra, deixa as coisas rolarem. Muito esforço às vezes só atrapalha.

— Ah, claro — eu disse —, tava demorando pras pérolas pedrocas voltarem a aparecer. Quem te falava isso?

— É tipo uma lei universal. Ninguém precisa falar, você aprende reparando.

— E ciúme do quê? Sou amiga tanto da Kérrera quanto do Lohta.

— Você sabe muito bem. Já me explicou tudo que sua espécie sente. Essa possessividade não é nada saudável… Continuo achando a tua espécie pra lá de egoísta. Acho que o Lohta tem um pouco de humano também, ele tem esse mesmo ciúme de nós dois, já reparou?

— O Lohta me lembra o meu avô, o que morava com a gente. Tudo ele achava ruim.

— É, nunca vi ele feliz de verdade, pra ser sincero.

— Eu queria que ele falasse mais da vida antes daqui. Mas ele não fala nada.

— Cada um lida de um jeito, Ribu. Você sabe. Deixa quieto.

— Eu deixo, mas talvez a gente entendesse melhor. Eu sei que outra Kuato te construiu, juntando algumas pedras dela com outras pedras soltas e passando um tempão deitada em cima de você. Então eu sei que você entende o que é mãe. Ou pai.

— Mas mesmo assim, não existia essa pegação da sua espécie. A outra tá perto o suficiente pra te ouvir, já tá ótimo. Não precisa chegar mais perto não.

— É que os humanos têm um negócio chamado tato. A gente sente as coisas pela pele. Coisas boas e coisas ruins.

— E eu que sou estranho.

Uma auxiliar subiu com um copo de água e me entregou.

— Obrigada — e pra variar, ela só se virou e foi embora. — Pelo jeito, não tem outra perna pra você.

— Ferrou. Agora mesmo é que não desço mais pra missão nenhuma.

— Poxa, Kuato. Isso é o de menos. Você tá aqui.

— Tô, não sei por quanto tempo. A explosão foi grande. Eu fui confiante demais. Não imaginei que pudessem me atacar pra abrir caminho. A gente não pode subestimar nada nem ninguém quando descemos. Lembra sempre disso, Ribu.

— Eu lembro sempre. Você que é o pedroca duro que se acha invencível. Até onde sei, só o Lohta que é.

— É verdade.

Virei o copo num golão e o coloquei na mesa.

— Credo, cuidado com isso quando tiver perto de mim.

— Já te falei que na Terra tinha um monte de pedra que ficava em contato com a água, né? Nos rios, nos mares. Toda hora chovia. E aí as pedras todas molhavam.

— Já, sim. Obrigado por me lembrar. Eu precisava mesmo reavivar esses pesadelos bem agora.

Cheguei perto dele, sentado no banco, e abracei parte da sua barriga.

— Tá vendo? Não entendo como isso significa qualquer coisa pra vocês — ele disse. — Que movimento esdrúxulo.

— Fica quieto e só aceita, vai. Não sei o que eu faria se você não tivesse voltado inteiro.

— Não voltei inteiro. E sai, você produz esse suor, que é água.

— Você entendeu. Não vai me deixar aqui sozinha com esse bando de mané.

— Você gosta desse bando de mané, nem vem.

Kuato tava no bote quando eu, Gaby e Marinho saímos de casa e vimos aquelas criaturas bizarras chegando, descendo do céu e estacionando na grama. Levaria um tempo pra mamãe e o papai saírem pra investigar o barulho. A gente não fazia ideia de que tava em perigo. Foi a Gaby quem apontou o Kuato e puxou minha calça, dizendo “gole de peda, gole de peda”. Tinha um golem de pedra tranquilão no desenho que a gente assistia de manhã, o Fantasnimais, e ela saiu correndo na direção dele. Kuato a ergueu e a colocou no ombro. Ela ficou lá, sorrindo, o Marinho se borrando de medo do meu lado. Nunca esqueci disso.

A única pessoa que lembrava, de longe, os seres humanos, era Kuato. E Goola, mas ela não tinha cabeça, aí ficava difícil. Ninguém usava roupa. Só Jinja, que já não descia pras missões e me aguardava lá em cima, no navio, com as duas bocas sorridentes.

— É sério, Kuato — eu disse. — Nem inventa de não continuar pra sempre aqui.

— Vou tentar, carninha.

No fim das contas, foi Chopphpin quem analisou o corpo de Kuato e constatou: rachaduras leves no tronco e na perna restante. Nada que o impedisse de continuar com a rotina, mas outra explosão como aquela ou outro grande impacto e as chances eram de que se despedaçasse. Pelo menos a cabeça tava intacta. E enquanto houvesse cabeça, Kuato viveria. Mesmo alquebrado, ainda era muito mais resistente que eu e Kérrera juntas, Chopphpin garantiu.

As auxiliares não tinham outra perna de pedra, mas tinham algo à altura: uma perna postiça com uma roda na ponta. Sim. Barba Negra, William Kidd, Ching Shih e Shanks, o Ruivo; nenhuma das piratas de que eu tinha ouvido falar chegaria perto de Kuato, o Roliço, e sua perna de pau deslizante (na verdade de titânio ou algo assim, mas Kuato me deixou pintar ela da cor da madeira).

Kérrera, por sua vez, furou o jantar daquela noite e não desceu pro dormitório na hora de costume. Fui atrás dela no convés, e ela abriu o jogo: ia desbravar o Borunga, não importava a punição que tomasse. Queria descer aos níveis inferiores, descobrir de onde vinham as auxiliares, de onde vinham a comida, a madeira, as roupas, as velas, como era a fornalha das cascas, o que mais escondiam por lá.

— Você até consegue descer pro nível abaixo do compartimento de carga, que fica depois do refeitório — eu disse —, mas dali pra frente tem uma porta enorme de ferro, que ninguém consegue abrir a não ser a capitã.

— Então ninguém sabe o que tem depois dessa porta?

— Só ela.

— Quem era capitã antes dela?

— O Bloubo. Eu não conheci. O Realmente Incrível já me falou dele.

— E ele também tinha acesso à porta?

— Tinha.

Virei e me escorei no mastro da mezena. Às vezes eu gostava de ficar sozinha ali na popa, olhando pra Passagem e pras cascas que se soltavam e espiralavam até sumirem de vista. Nada, absolutamente nada superava a beleza do momento em que a Passagem quebrava, mas ainda assim era bonito observar as cascas despencando de maneira aleatória. Os rastros formavam desenhos no ar. Nessas horas, quando ninguém tripulava os canhões ou gritava ou cacarejava ou fazia a algazarra de sempre, o silêncio só era interrompido pelo estalar das velas, e aquilo ficava ainda mais hipnótico.

— Eu entendo o que você sentiu naquele planeta, tentando proteger a mumbonga — eu disse. — A capitã devia ter explicado melhor as coisas antes de te deixar descer.

— Não sei, Ribu — disse Kérrera. — Eu queria poder expressar melhor o que eu sinto. De verdade. Não acho que tá funcionando. Com outras tlobianes, talvez eu me fizesse entender. Tenho a impressão de que algo se perde nesse caminho do pensamento formulado aqui até as palavras que você recebe aí. Que qualquer um aqui recebe.

— A estrela não é perfeita, ela adapta algumas coisas pro entendimento de cada receptor, mas a gente se entende bem, vai. Não sei por que você fica achando que não te entendo. É claro que eu te entendo. Mas vai passar. Eu já tive no seu lugar.

— É claro que não. Você só teve no seu lugar. E do jeito que você fala, parece tão fácil. Tão… automático. Não consigo. Tem umas coisas… — Kérrera também olhava a Passagem, as cascas, o infinito. — Por que não salvaram mais gente do meu planeta, do seu? Não é como se não coubesse aqui dentro.

— A capitã já explicou que não teria comida e espaço se todas viessem. Só entra um espécime de cada lugar.

— Tá vendo? Espécime? Quem fala isso? E de quem é essa regra que só entra um?

— Do Borunga. A Goola me contou que quando resgataram o Lohta, outro da espécie dele se enfiou no bolso de alguém, se escondeu, algo assim. E a maruja que carregava esse segundo amendoim não conseguiu entrar no navio. Como se tivesse uma barreira.

— É sério isso?

— Sério, tô te falando. Tiveram que jogar esse outro fora. Suspeito que é por isso que o Lohta tá sempre irritado, não aceitou muito bem. Acho que eram próximos. Mas ele se nega a falar a respeito.

— Desisto. Todo mundo tem resposta pra tudo. Tô cansada, Ribu. — Ela projetou pernas e braços e se levantou. — Vou deitar.

Eu já tava no meu lugar preferido do navio, com a adrenalina ainda alta por causa da missão, então acabei ficando mais um tempo por ali. Não queria fazer isso na frente dos outros, muito menos do Kuato, que abominava água, mas quando lembrei dele desmaiado no bote, não aguentei, comecei a chorar. Aí lembrei das mumbongas, todas a essa hora sem vida naquela mansão cabulosa, e chorei por elas também.

Ainda bem que não foi por muito tempo e logo o meu rosto tava seco, porque ouvi um barulho e vi Chopphpin agarrado numa das velas, colando um remendo. A saída da Passagem era violenta com elas, por isso a manutenção era constante. Chopphpin podia fazer isso durante o dia, mas gostava de escolher suas próprias horas.

Ele ficou um tempo passando o adesivo e remendando mais buracos, depois veio se arrastando com as ventosas úmidas até descer pelo mastro onde eu tava apoiada.

— Ribu.

— Oi, Chopphpin. Altas aventuras hoje, ein?

— Certamente fhhup.

Ele chegou ao chão e se ergueu sobre alguns dos tentáculos, se alinhando com a minha altura, como sempre.

— Mas reafirmo que não há fhhuppp motivos para preocupação com Kuato, sua compleição fhuppppísica é extremamente–

— Eu sei, eu sei. Não precisa repetir a palestra.

— Pois bem. Se me permite, eu não pude fhhhup deixar de reparar em um silencioso solilóquio de tristeza deveras comum para a sua espécie.

— Aff, você não perde uma. Sim, eu tava chorando, não posso?

— Com absoluta certeza. Mas ouso afffhuupppirmar que em vão.

— Eu choro pelo que eu quiser.

— Eu gostaria de compartilhar fhup uma anedota providencial do meu próprio lar.

— Demora?

— Não, em absoluto. Quando nossas ovas são polinizadas e ffffhup nascemos, uma minoria sobrevive. As progenitoras se alimentam da maioria das próprias fffhup ovas.

— Eca.

— Ritos de sobrevivência. As que fhhhhuupicam e sobrevivem se desenvolvem por mérito e sorte, afastadas. É o sonho prototípico de cada cria reencontrar suas fffhuup progenitoras e vingar suas irmãs. De quem nem se recordam. A ironia é que nenhuma cria cresce a ponto de se tornar uma ameaça antes que fhupppppp as progenitoras morram de velhice. É um sonho de vingança interrompido. Ciclicamente. É um fhuppp trauma coletivo.

— O que diabos isso quer dizer?

— Fhuuuup. Bom descanso, Ribu.

E então Chopphpin voltou à altura normal e foi se arrastando pro dormitório. Era pra eu me sentir melhor com aquilo? Maldito molusco. Aproveitei e fui pro dormitório também. Kérrera já tava lá, no seu ninho.

A Sinfonia começou, puxada pelo solista de costume, o Tri-uni-oito, e ela não participou. Acabei pegando no sono, e quando acordei, no susto, Kérrera não tava no dormitório. Era costumeiro as marujas saírem de madrugada pra ir no banheiro, pra comer ou tomar algo, muitas vezes pra subir no convés numa noite de insônia. Mas eu não tinha dúvida nenhuma de onde ela tava.

A porta era maciça. Não havia dobradiça, maçaneta, desnível. Kérrera tateava a reentrância do chão onde a porta era encaixada.

— Já tentou algum botão oculto na parede? — eu disse, descendo os degraus. — Foi a primeira coisa que eu fiz.

Ela se assustou, mas quando viu quem era, continuou abaixada, procurando.

— Uma hora vão abrir, certo? — ela disse. — Pra levar alguma coisa lá pra cima?

— A porta não abre se tiver alguma maruja aqui.

Seu corpo tinha uma linha verde nas costas, que ia de cima a baixo. Essa eu nunca tinha visto.

— Que é essa listra verde? — eu disse.

— Raiva.

— Caramba. Impossível esconder o que você tá sentindo.

— Você também não é muito difícil de ler não, Ribu. Só olhar pra sua cara e já sei. Agora, por exemplo, tá dormindo em pé.

Não tinha como negar. Sentei atrás da escada e escorei a cabeça na parede, observando aquele cubículo perfeitamente liso, sem reentrâncias além da abertura da escada no teto. Era monótono. Kérrera tentava de tudo pra abrir a porta, pra ver se ela não se mexia. Mesmo o batucar dos seus braços e pernas não fazia muito barulho, e aí reparei num dos degraus de madeira, uma marca que devia ser do salto da bota da capitã, uma bota que subia e descia ali, todo dia, toda hora, toda vez…

Quando abri os olhos, a porta continuava na minha frente, intacta. Mas Kérrera tinha sumido. De novo. Não demorava muito pra pessoa se convencer de que aquilo era inútil. Subi a escada. O refeitório tava vazio. O compartimento de carga, vazio. No dormitório, o ninho dela, vazio. Subi pro convés.

Kérrera tava sentada no mesmo lugar em que ela e Lohta tinham se sentado naquele primeiro dia que conversamos, numa das beiradas da proa. Me aproximei de mansinho. Ela tava virada pro vazio, com os dois braços projetados pra frente. Ela se mexeu, e alguma coisa branca espiralou pra fora, voando e logo sumindo na Passagem. Antes de eu chegar, mais uma coisa branca voou, espiralando. Aí acho que ela me ouviu se aproximar, porque retraiu os braços.

— Oi, Kérrera. A porta te deu muito trabalho? — Sentei com as costas na amurada pra ficar de frente pra ela.

— Pois é. Ei, achei que você ia dormir mais.

— Aquele chão é muito desconfortável, vai. Que que cê tava fazendo?

— Eu? Nada. Brincando. Com um pedaço de remendo de vela.

— Remendo? Peraí… — Tinha algo diferente nela. Ela continuava imóvel, distante, eu poderia dizer até envergonhada. E eu conseguia ver o topo da amurada do outro lado por cima dela. Era isso. Ela tava menor. Minha reação foi instintiva: eu de joelhos a segurando com as duas mãos. — Kérrera! O que você fez? O que você tá fazendo? — Foi a primeira vez que encostei nela, tirando o soquinho. Até a sensação de toque era a de um ovo cozido, conteúdo mole, pele firme.

— Não era pra você tá aqui, Ribu.

— Não era uma ova! Me mostra sua mão! Agora!

Ela se virou pra mim. Eu já tinha aprendido a ler qual era o seu lado da frente a essa altura, por mais que não houvesse um rosto. E demorou alguns segundos pra me obedecer. Ela não tinha motivo pra fazer isso. Eu não tinha controle nenhum sobre ela. Não me devia nada. Talvez tenham sido os meus olhos esbugalhados. Ou o desespero na minha voz. Alguma coisa mexeu com ela. Porque projetou as mãos pra fora do corpo. E numa delas tinha uma faca. A minha faca.

— Não — eu disse, balançando a cabeça. — Não, não, não, não. Você não tava fazendo isso. Me diz que não.

— O que eu faço ou deixo de fazer não é da sua conta, Ribu.

Eu chacoalhei ela.

— Mas é claro que é, sua paspalha! Nós somos amigas! AMIGAS! Me diz que você não tava tacando pedacinhos de você fora. Me diz que você não tava encurtando a sua vida. — As lágrimas já deviam ter enchido meu rosto a essa altura, porque a voz tava pra lá de embargada. — Me diz que você não tava se cortando. Por favor, Kérrera, por favor.

A maldita faca do refeitório. Ironicamente, dentre todos os utensílios usados pelas tripulantes, o meu. Era uma violação ainda maior, usar algo meu pra fazer uma barbaridade daquelas. E ela ainda segurava a faca. Com raiva, a tomei da mão dela, e no processo cortei a palma direita. O sangue começou a correr, mas antes de qualquer coisa joguei a faca fora. Ela voou pro ralo invisível da Passagem.

— Você se cortou — ouvi na minha cabeça.

— Sim, gênia — eu disse, segurando a mão que pingava sangue com a outra, que já ficava vermelha também.

— Pra que você fez isso? Tá vendo no que dá?

Eu queria rir daquela pergunta, mas não conseguia. O medo, a frustração, a tristeza, tudo envolvido pela dor que agora começava a pulsar. Eu não sabia se continuava dando esporro nela, um esporro que não parecia surtir efeito nenhum, se só ia lá pra dentro, se continuava chorando em silêncio.

Não precisei fazer nada disso. Porque o vulto de alguém se aproximava.

— Que barulheira é essa, Ribu? — disse a capitã Jinja. — O que tá acontecendo aqui?

— A Ribu se cortou — disse Kérrera.

— Foi um acidente — eu cuspi as palavras com lágrimas e ranho. — Diferente da Kérrera! Olha como ela tá menor, capitã!

Kérrera ficou em silêncio e voltou a olhar pra fora. Eu olhei pra cima, pra cara da capitã, que não parecia nem um pouco feliz. Ela fez um muxoxo duplo, as duas bocas em formato de S acima do queixo. Fechou os olhos e os deixou assim. Eu queria gritar de novo. Kérrera tentando se matar. O sangue da minha mão pingando. E a única adulta no recinto achando que meditar era a melhor coisa a fazer.

Ela tirou o tecido que usava como bandana na cabeça e me entregou.

— Enrola na sua mão, Ribu. As duas, pra minha cabine. Agora.

A cabine da capitã ficava no mesmo nível do nosso dormitório, mas o acesso era pelo outro lado do convés, uma escada que costumava ficar com o alçapão fechado. Era o menor cômodo do navio, ainda que fosse espaçoso pra uma maruja (dependendo da maruja, claro), e tinha um pequeno compartimento na parede do fundo que era onde a capitã guardava os pertences. Eu brincava que era onde ficavam os baús. O lugar não era secreto nem nada assim, todas faziam faxina ali em algum momento, no rodízio de funções. Mas Jinja nunca ficava lá dentro.

Agora o lugar parecia outro: a cama da capitã desarrumada, o chapéu pendurado num gancho, as telas apagadas nas paredes, a escrivaninha tomada por livros, papéis anotados e papiros. Ela afastou tudo aquilo, abriu uma gaveta e retirou uma caixa. Checou algumas das quinquilharias que estavam soltas ali dentro e pareceu satisfeita, então me pegou pelo pulso e enfiou a mão cortada na bacia de água da cômoda. Dei um grito que deve ter corroído em alguma medida minhas cordas vocais por toda a eternidade. Quando ela puxou a mão e secou com a toalha, deu pra ver melhor o corte.

— Bom, pelo menos não vai precisar de ponto — a capitã disse. Puxou a cadeira e me fez sentar, abrindo minha mão na mesa.

Era mesmo superficial. Na minha cabeça, o corte tinha atravessado o osso e a metade de cima da mão só não tinha caído fora por um golpe de sorte.

Ela tirou um frasco da caixinha, derrubou um pouco de líquido escuro na linha ensanguentada, polvilhou alguma coisa de outro frasco e enrolou tudo com uma faixa.

— Pronto. Daqui uns dois dias estará novinha em folha.

— Brigada, capitã.

— E quanto a você, Kérrera. — A capitã olhou pra maruja, agora alguns centímetros mais baixa, parada no meio da cabine. — Não tem nada que eu possa fazer, certo?

— Não, senhora, capitã.

— Veremos. Me sigam.

Voltamos pro compartimento de carga e descemos pela escada. Eu fui devagar, porque só conseguia usar uma mão. Quando a capitã chegou no antepenúltimo degrau, pulou direto pro chão. Era isso que cravava a marquinha na madeira que eu tinha reparado mais cedo.

— Já expliquei pra Kérrera que a porta só abre com a senhora — eu disse.

— Você está certa. Isso é uma das leis do Borunga. Mas é normal ter curiosidade. Eu vivia aqui embaixo nos meus tempos de maruja.

O que me soava como outra vida. Quando cheguei, Jinja já era capitã. Quando Lohta e Kuato chegaram, também. Só as mais velhas, como Realmente Incrível e Goola, tinham conhecido o capitão anterior, de quem quase não falavam. Eu não imaginava que isso fosse acontecer com Jinja. Eu imaginava que no futuro, quando outra capitã surgisse, a gente ia falar de Jinja toda hora, de como ela escolhia as marujas pras missões, de como eram suas iniciações, das músicas que gostava de cantar e do que comia. Aquilo ali era tudo. Era todo o nosso mundo, uma vez que se entrava nele.

Como o resto da tripulação, Jinja não contava muito do passado (eu era a exceção, falando pelos cotovelos), mas ela já tinha falado o suficiente pra eu entender que era o mais parecido com o meu, em comparação com todas as outras espécies do navio. A única espécie que tinha uma família como as que eu conhecia e que se relacionava de forma semelhante. E que vestia roupas parecidas com as minhas. Isso foi muito importante no início. Pelo respeito e distanciamento que sua posição exigia e pela diferença de idade, não éramos amigas confidentes, mas eu me sentia reconfortada pela presença dela.

E eis que, em toda sua grandeza e magnanimidade, ela deu três passos e encostou a palma da mão na porta, que arremeteu pro lado.

Eu tremi na base. Kérrera também, tenho certeza.

Logo adiante, um salão enorme. As auxiliares, dezenas delas, agrupadas em diferentes pontos.

Em um canto, a cozinha, panelas e travessas e cumbucas espalhadas ao redor de duas auxiliares esbranquiçadas de farinha ou outro ingrediente (lembrei da minha mãe com seu avental) que manipulavam o que julguei serem fogões e fornos variados, com vários pratos prontos encaixados em frisos na parede. Noutro, a tecelagem, diferentes fios de tecido em teares, uma esfera cheia de agulhas no interior. Noutro, a marcenaria, uma quantidade enorme das tábuas padronizadas que usávamos pros tablados, mas também peças dos mastros, partes do leme, bancos, amurada, pilastras. Noutro, a forja pras peças de metal do navio, a fornalha, os aprisionadores, pinças e martelos espalhados pelo chão.

O que mais me surpreendeu foi o que eu passaria a chamar de oficina, que era onde as auxiliares se construíam ou consertavam. Havia várias delas jogadas como brinquedos quebrados num canto, entre pedaços sobressalentes. Nenhuma falava, nenhuma tinha rosto. Eram humanoides, como eu e Jinja, e sem expressão, como Kérrera. Mas ali era possível ver diferentes formatos, com mais pernas, que lembravam aranhas enormes, com braços fortíssimos, com outras anatomias. Será que se adaptavam pra corresponder a cada capitã?

“Onde tá o Gepeto?”, pensei quando voltei a raciocinar. Eu tinha a impressão de que a qualquer hora apareceria a artífice daquilo tudo. Era uma boa pergunta. Que não fizemos na hora, Kérrera com o corpo afinado e eu com saliva pendurada da boca.

— Venham, entrem, ou a porta vai fechar com vocês duas aí fora — disse a capitã.

Obedecemos e a seguimos, passando pelo meio daquilo tudo até uma abertura entre a cozinha e a forja. Dali se abria outro salão, ainda maior. Algum tipo de revestimento escuro como borracha encapava teto, chão e paredes da metade pra frente dele, uma espécie de moldura pra outra abertura que englobava igualmente chão, teto e toda a parede do fundo.

Nessa abertura, havia o universo.

É difícil explicar de outro jeito. Era como voar no espaço sideral e olhar pra longe; era o que se podia ver depois que o Borunga saía da Passagem; era olhar pro tecido da imensidão coalhado de estrelas e planetas distantes, com algumas nebulosas decorando um ponto ou outro, um cinturão de gás e rocha aqui, um conglomerado de asteroides acolá. Era olhar prum universo de bolso, ou pela janela de um universo em si.

Mais auxiliares pelos arredores. Perto da borda, uma pilha de objetos. Eram as cascas que pescávamos lá em cima. Em uma eu vi claramente o buraco do arpão e o arranhado das esporas. Mas eram mais escuras do que quando as pescávamos, ainda brilhantes nos arredores, como sangue que rodeava um pedaço de pele arrancado do corpo, o rasgo fulgurante de uma escama tirada à força. Ali, já tinham perdido isso e adquirido uma tonalidade escura, uniforme.

— Elas ficam assim quando esfriam de vez — disse a capitã.

Uma trupe de auxiliares segurava uma das cascas naquele momento diante da bocarra, e a deslizou pelo chão até que caísse lá dentro. Kérrera e eu, vidradas, esperando algo grandioso acontecer. E ela só despencou e espiralou e sumiu, se amalgamando ao escuro.

— Venham — a capitã continuou, indo ao outro lado do salão, um ponto em que mais auxiliares se aglomeravam, embora não houvesse pilha de cascas ali. Ela fez um sinal pra gente aguardar, pra entender o que faziam reunidas diante dum ponto qualquer daquela parede borrachenta. E aí uma coisa bege despontou dali. Um tronco de árvore, ou algo parecido, com certeza de madeira. Aos poucos, ele foi expelido pras mãos das auxiliares, que a levaram de volta ao primeiro salão, matéria-prima a ser trabalhada.

— O que é isso? — eu finalmente disse, apontando o universo.

— Isso é o nosso motor, Ribu.

— Como é possível sair alguma coisa daquela parede? Depois dela não é o casco do Borunga?

— Como é possível qualquer das coisas que estamos vendo aqui? — Ela apontou a fonte, como eu passaria a chamar aquela parede fértil. — Tudo sai dali. Tudo que você já comeu ou vestiu ou tocou ou viu aqui dentro. Tudo é fabricado pelo próprio Borunga.

— Isso não é um navio, capitã — eu disse, o tipo de constatação idiota que rola pra fora da nossa boca quando ela não fica fechada.

— É um navio. Mas é muito mais que isso.

— Por quê? — disse Kérrera, sua marca registrada. — Por que tá nos mostrando isso?

— Não é óbvio, maruja? Há leis no Borunga. E há convenções, que nós criamos. Venham. Tem mais uma coisa que quero mostrar.

Ela voltou na direção do primeiro salão. Na divisão entre os dois, havia outra escada que não vimos antes, que descia pro nível inferior. De novo a lerdeza pra descer, por causa da mão machucada, quando a vontade era pular com tudo. Lá embaixo, outro choque, um local dissociado de qualquer dos outros níveis. Me parecia um laboratório, um laboratório num galpão imenso, que se estendia pra todos os lados.

— Se ali em cima vocês viram o coração, esse aqui é o cérebro — disse Jinja.

No centro, havia duas protuberâncias que se encaravam, uma do chão e outra do teto. Entre elas, projetado de alguma forma, um mapa em três dimensões, uma tapeçaria de pontos com brilho autônomo que boiavam, criando uma pintura, um tabuleiro do espaço, mas de outro espaço, não o que tava no andar de cima. Este possuía vários sóis, alguns buracos negros, vários planetas em sistemas orbitais reconhecíveis pra mim, em alguma medida. Em alguns pontos era possível ver pequenos canos, tubos entrecortados, cotovelos minúsculos de alguma coisa.

Kérrera tocou num desses canos, erguendo o dedinho no ar. O mapa, toda a tapeçaria, se reorganizou, galáxias foram redesenhadas com astros em órbitas variadas, novos canos aparecendo em vários pontos. Uma única coisa se mantinha do anterior: o tubo que Kérrera tinha tocado, ainda no mesmo lugar.

— As Passagens — disse a capitã. — É onde vivemos a maior parte do tempo, nesses tubos, andando entre universos.

Havia mesas ao redor e o que pareciam ser estantes com gavetas e utensílios de laboratório espalhados, outros pontos menores de projeção, tanques e contêineres, cabos indo de um lado pro outro, pendurados no meio do caminho.

Passado o susto e acostumados os olhos, o que realmente chamava atenção eram as paredes. Côncavas, desniveladas, com protuberâncias aleatórias, feito o interior de uma caverna. A sala era tão grande que se aproximar de uma de suas pontas tornava impossível ver o outro lado, ao menos pros meus olhos humanos. Estampadas nessas paredes, imagens, várias imagens sobrepostas. Rostos ou corpos inteiros, de frente, de perfil, de costas. Muitos e muitos, e eu não os conhecia. Fui andando, seguindo a parede até me chamar a atenção uma imagem mais brilhante que as outras, de cor mais viva. Era óbvio quem era aquela. Goola.

Toquei no seu rosto com a mão boa, e a imagem empurrou as outras, se sobrepôs, se expandiu diante de mim. Toquei de novo. A imagem deu lugar a outra, de um planeta congelado, uma linha horizontal minúscula no centro onde resistia terra seca e vegetação, a irradiação térmica dos polos praticamente completa. Era a entrada ou saída de um período glacial.

Outro toque. Imagens da missão de resgate de Goola. Apenas desconhecidas no bote do Borunga, com exceção da própria Jinja, na época maruja novata. Goola pequena, coberta de sujeira e de uma viscosidade cinza que era seu sangue ou o sangue de outros da espécie, a salvo no bote. E lá embaixo o fogo, fogo no que era uma habitação, com vários corpos carbonizados ao redor. No rosto abdominal de Goola, um sorriso de alívio que eu já conhecia muito bem.

Outro toque. Números e gráficos e algo que presumi ser sua composição biológica destrinchada, seu DNA, seus índices e características, numa língua que eu podia entender, mas não decodificar, porque não conhecia nada daquilo.

Outro toque. A visão borrada, situada em algum lugar ao nível do chão, vultos que se mexiam. Três sombras a uma distância média. Duas caídas ou ajoelhadas, outra mais alta, desferindo golpes, ou assim parecia. As memórias de Goola? Como eu conseguia ver aquilo?

De tão absorvida, nem reparei em Kérrera ao meu lado, vendo o mesmo que eu. Procuramos a capitã no meio da bagunça e a encontramos sentada diante da grande projeção no centro, em uma cadeira formada a partir daquela mesma protuberância que dava forma a tudo e a tudo continha.

— Bem-vindas ao Borunga, marujas. Conhecem tudo que eu conheço agora. Nada mais que as milhões de capitãs que vieram antes de mim conheciam, nada menos que as milhões que virão conhecerão.

— O que deu em você, capitã? — eu disse.

— Eu fiquei pensando. No que aconteceu. No que Kérrera fez. No risco real dela voltar a fazer isso, e assim repetir o que tantas já fizeram no passado, encurtando a viagem. E me perguntei se valia a pena. Se não seria mais fácil só mostrar pra vocês, pra que entendam que nem mesmo eu, que tenho acesso a isso, tenho as respostas.

— Aquela tela — Kérrera disse. — Goola. Seu planeta. Sua missão de resgate. Tudo foi registrado.

— Absolutamente tudo — disse Jinja. — Ela. Eu. Vocês. Todas que já tripularam o Borunga. É o que ele faz. Olhem. — Ela esticou o braço, digitou algo na tela. O mapa se redesenhou, outro universo. — Estamos cruzando as estradas do multiverso. E vamos chegar aqui — ela apontou um tubo —, o mais próximo possível desse lugar — e ampliou. Pra nossa surpresa, não era um planeta, mas uma estação espacial. — E lá dentro encontraremos esse espécime. — Ela varreu o mapa pra cima, e logo a imagem de um novo ser apareceu, similar a uma caixa com antenas. — Casomirlo — ela leu na tela —, ou o mais próximo do nome na sua língua que conseguimos dizer.

— O navio mostra quem temos que salvar na sequência — Kérrera disse.

— Exatamente.

— E escolhe quem vai nas missões? — perguntei, pensando na quantidade de vezes que eu já tinha descido.

— Não. É por isso que instituímos uma posição de comando. Pra cuidar dessas variantes. Aqui eu descubro o que nos aguarda em nosso destino e escolho as melhores tripulantes pra ocasião. Tudo é um teste. Somos nós, e não outras, que estamos aqui, justamente porque isso é uma variante calculada pelo Borunga.

— O que aconteceu com Bumpoc? — Aquilo não me saía da cabeça. — Não conseguimos trazer ela. O que acontece quando a escolhida não é resgatada?

— Nunca aconteceu. Como eu disse, nem que seja um cadáver, o espécime chega aqui.

— Mas Bumpoc ficou lá! — disse Kérrera. — Ela ficou, e não trouxemos nada.

— Mino e P² foram a salvaguarda. — A capitã tocou a projeção e a imagem das duas cabeças das mumbongas adultas, arrancadas pela loba, apareceram, cobertas de saliva arroxeada. — Perdemos a chance de ter uma nova tripulante, mas os dados das mumbongas estão aqui, armazenados, a salvo.

— Por que não me mostrou isso antes? — eu disse, tentando apagar a imagem de que ao meu lado, na viagem de volta daquele planeta, a simbionte carregava dentro da boca duas cabeças recém-arrancadas. Me incomodava a noção de que Kérrera tivesse precisado aparecer pra eu poder ter um vislumbre da verdade, da maquinação por trás da nossa existência. Justo eu, que achava que sabia tanto.

— Sei o que está pensando, Ribu. Não é falta de confiança. Tente entender. Toda essa multidão de espécimes já habitou o Borunga em algum momento — Jinja fez um gesto amplo, indicando as paredes —, e todas as formas de administrar a tripulação e nossa missão inevitável, de organizar, de conviver, já foram testadas. Há vários episódios de motim em nossa história. Até da erradicação total da tripulação, com a necessidade das auxiliares recriarem marujas pra darem continuidade ao que o Borunga faz, de uma forma ou de outra.

— Você quer me dizer que é possível reviver uma tripulante que já morreu? — eu disse, pensando no tanto de companheiras que havia perdido naqueles cinco anos a bordo do navio.

— Não reviver. Recriar. Todas as informações estão contidas aqui. É isso que o Borunga é. Um repositório. Um banco de dados. Um catálogo. Eu não tenho controle sobre isso. Eu tenho controle sobre muita coisa. Não sobre isso. Nem sobre nossas rotas. Nem sobre nossas escolhidas. Mas sobre vocês, sobre o que vocês fazem e sabem.

— Vamos contar, mostrar pra tripulação toda — disse Kérrera.

— Não. Não vamos. Essa é a minha maneira de liderar, como meu capitão liderou, e funcionou, e tem funcionado. É assim que a tripulação se mantém íntegra, que conseguimos arrancar um naco de felicidade aqui e ali dessa viagem sem fim. Eu estou mostrando isso pra vocês porque sei que Kérrera não suportaria viver aqui se sentisse que algo estava sendo escondido dela. E ela te infectaria com a mesma dúvida, Ribu. Já as outras, não. Elas viverão melhor sem a certeza de que, no fundo, não há certeza de nada. A decisão é minha. Quando chegar a vez de vocês, bem, aí façam como acharem melhor.

Pela primeira vez eu notei como as frases de Jinja não soavam seguras, enérgicas. Era essa atitude que mobilizava todas as marujas, é claro. Não era nada além disso. E doía fundo ver a fragilidade onde eu não julgava possível. Fui até ela, coloquei a mão sobre a dela.

— Obrigada, capitã. Acho que agora entendo o risco que tá correndo, de deixar a gente ciente de tudo.

— Capitã — disse Kérrera, insensível àquela franqueza toda. — Por acaso, em uma dessas muitas memórias arquivadas no Borunga, é possível saber se o navio já tentou ser desativado? Desde o começo? Se alguém já o desligou?

Jinja riu.

— Desde o começo? — ela disse. — Você quer ir longe demais. Mas desligar? Como se eu pudesse cortar a energia do motor que move esse navio? Acho que você ainda não entendeu, Kérrera. O Borunga não pode ser ligado e desligado. Não é uma máquina. Ele está vivo.

— Você lembra? — De vez em quando eu pergunto pra Kérrera, uma pergunta retórica quando descemos a escada do compartimento de carga, que ela já não responde há tempos.

É algo em que eu penso bastante, ainda. Naquela noite em que conheci o coração e o cérebro do Borunga. Toda vez que desço no arsenal lembro de Jinja, e de como devia ser difícil guardar aquele segredo e manter todo mundo unido. A gente se atém ao que já conhece, repete os erros das mães, diriam na Terra. Como a minha insistência em separar uma falta completa de ciclos em dias e noites, o que só faz sentido pra mim. Mas é isso. Faz sentido. A gente aprende que precisa encontrar sentido, de alguma forma.

Kérrera não voltou a tentar nada daquilo. Jinja colocou essa na conta da sua iniciativa de mostrar a verdade. Mas no fundo eu sabia o que tinha mudado a cabeça de Kérrera: nossa reação. Não só a minha, instintiva, tresloucada e transparente, ao saber que ela pensava em nos privar do que a gente mais queria, a companhia e aceitação dela, mas a de Kuato e Lohta também, no dia seguinte, quando perceberam que ela tinha perdido um pouco de massa. Prometemos, entre nós três, que ela não podia ficar sozinha nem por um segundo. Mas isso não foi necessário, logo vimos. E às vezes a gente precisa de um tempo sozinha.

A capitã Jinja faleceu alguns meses depois desse episódio. Dormindo. É o resultado do stress de uma vida no limite, agora eu sei, de suportar banhos insanos de radiação, por mais que as proteções do Borunga sejam fortes, tão fortes que mesmo elas diminuam nossa expectativa de vida.

Chopphpin, é claro, foi a escolha de Jinja, o próximo capitão. Eu aprendi a respeitar Chopphpin, e ele, a confiar em mim. Tão logo assumiu, eu e Kérrera abrimos o jogo, contando que a própria Jinja tinha nos falado tudo, e compartilhamos nossa teoria de que a tripulação não só tinha o direito de saber, como conseguiria lidar com aquilo. O conhecimento não mudaria nossa disposição de seguir fazendo o que a gente fazia, porque, afinal, qual seria a alternativa? Chopphpin concordou.

Talvez daqui a dezenas, centenas de ciclos olhem pra trás e vejam nossa decisão como o início de outra tragédia no mosaico infinito do Borunga, mas aqui, durante a nossa existência, não há do que reclamar. Os anos de Chopphpin foram os melhores anos da minha vida. Com acesso ilimitado ao arsenal, todas nós pudemos rastrear as informações codificadas de nossa espécie no computador central, se é que dava pra chamar assim aquela inteligência viva e pulsante, e aprender mais sobre nossa história, sobre nosso passado.

Em nosso código carregamos também a cultura que nossas antepassadas criaram, os projetos que inventaram e desenvolveram, ainda que nós, enquanto entidades conscientes, não tenhamos tido acesso direto. Chopphpin aceitou tal conceito como verdadeiro de cara. Já eu achava aquilo impossível de compreender. Era uma limitação da minha espécie, que no momento da erradicação ainda se via longe de aceitar certos aspectos metafísicos da existência; ainda não tínhamos atingido um nível de racionalização que me permitisse entender como algo abstrato como um filme ou uma pintura ou um livro ou uma corrente filosófica pudesse acabar inscrito no meu código genético se eu nunca tinha visto ou lido ou pensado naquilo (Chopphpin dizia que não era no código em si, mas que assim talvez fosse mais fácil de entender). E eu podia acessar tudo, tudo que quisesse, e aprender em meu tempo livre.

Quando Chopphpin se foi, e antes dele Goola, Realmente Incrível, nosso invencível Lohta (mas expirável, como ele costumava lembrar) e outras tantas, eu me tornei capitã. Eu me tornei responsável por tudo. Achei que seria Kérrera, mas foi Chopphpin quem me disse, no fim de sua vida, que uma posição de poder era, acima de tudo, uma questão de temperamento.

No meu tempo, tive que me despedir de Mino e P², de Tri-uni-oito, de Uqeo, de Carmina. E de Kuato, que alcançou mesmo as piores previsões de Chopphpin quando, em outra missão, teve o resto do corpo destruído. Mas o fim da sua vida não foi tão terrível. Casomirlo, o Casa, que era o nosso transporte oficial nas missões depois que se revelou bem mais útil que o bote, devido aos seus dotes camaleônicos e antigravitacionais, concordou em carregar ele pelo Borunga. Cada vez mais ranzinza, coisa que aprendeu com o Lohta, sem dúvida. Mas sempre um bom amigo e conselheiro.

Foi difícil empurrar a cabeça angulosa de Kuato da prancha. Eu quase fui junto. Tentei não chorar pra fazer bonito quando cantamos, mas não teve jeito.

Hei, hou, você aí
Olhe pra cima, pra cá
Hei, hou, você aí
Viemos pra te salvar

Hei, hou, maruja novata
Aqui é o seu lugar
Hei, hou, maruja novata
Pra lá que já vamos zarpar

Hei, hou, Borunga chegou
Hei, hou, Borunga chegou
Pra cima, avante
Em frente!
Hei, hou, Borunga chegou
Hei, hou, Borunga chegou

E no fim das contas, eu era a mais velha a bordo. Eu, com meus 19 anos, era a mais velha no Borunga, e isso não era nada, não era uma gotinha de nadica de nada na linha temporal do nosso navio, da nossa morada, do nosso Leviatã.

As ironias da vida. Os motivos secretos da minha camisa ter sempre um bolso na frente. Ali andou Lohta, por muito tempo, quando ninguém queria carregar ele pra cima e pra baixo. E ali anda Kérrera, já tão pequena quanto Lohta, desde que andar perto de nós, gigantes, se tornou um problema.

Ela vive seus últimos fiapos de vida, a minha amiga. Mas não é a única. Se tem algo de que posso me orgulhar, esse algo é de não ter perdido ninguém em campo. Kuato perdeu o corpo, tudo bem, mas todos os resgates foram bem-sucedidos. Todas as escolhidas vieram. E são tantas, agora. Mais de cinquenta.

É a vida, né? Sempre aparece alguém pra bagunçar tudo; essa é a graça.

Muuuuac, por exemplo, que será a capitã quando eu me for, é uma árvore. Pelo menos me lembra uma árvore. Ela floresce a cada tantos dias, e as flores são idênticas às que minha mãe colocava atrás da orelha quando eu era pequena. Como é possível que o final me lembre tanto o começo? De quando eu ainda não fazia a mínima ideia do que seria a vida?

Eu sei, de alguma forma, depois da janta. Será que Jinja, que Chopphpin, sabiam? Não há preocupação, porque Muuuuac vai dar conta, todas elas vão dar conta. Eu queria poder cantar pra Kérrera, é claro, mas há bastante gente pra cantar quando for a hora. E seguirá havendo.

Decido não ir pra minha cabine, nem pro convés, pra pegar no sono observando a dança das cascas. Durmo com a tripulação, reparando no ninho esquecido de Kérrera pegando pó num canto, que construímos há tanto tempo. Ela agora dorme dentro de uma caixinha menor que as de fósforo, sobre um maço de algodão.

Eu sentia falta da Sinfonia da Soneca e nem sabia. E ela mudou tanto, como eu deixei isso passar batido? A luz da estrela de P’hua’p não atrapalha nem um pouco, nem o olhar invasivo de To, aquela ameba desgraçada.

O sono vem tranquilo, como vai tranquilo o Borunga, singrando, singrando.

A foto quadrada mostra um homem branco, de cabelos castanho claro e barba cheia (com cavanhaque e bigode) da mesma cor. Ela está sorrindo levemente e olhando por sobre um dos ombros, mas de frente para a foto. Usa óculos com armação escura e mais grossa e está com uma camisa florida de azul e branco. Ao fundo, se vê uma vegetação, desfocada.

Santiago Santos escreve em Cuiabá, bebendo um tereré. Também traduz, revisa e prepara textos, entre outros trampos. Publicou Algazarra (2018, Patuá), uma coletânea de minicontos, e Na eternidade sempre é domingo (2016, Carlini & Caniato), uma road trip inca. Publicou também em jornais, blogs, revistas e antologias, com destaque para Fractais tropicais (2018, Sesi-SP). Seu refúgio oficial é o site Flash Fiction (flashfiction.com.br), onde escreve drops de ficção há um bocado de tempo.

Rodrigo van Kampen é escritor, editor da Revista Trasgo, redator publicitário e foge de moto nos fins de semana. Já publicou contos nas coletâneas Aqui quem fala é da Terra (Plutão),  O outro lado da cidade (Aquário), Futebol – histórias fantásticas de glória, paixão e vitórias (Draco), Samurais vs ninjas (Draco) e em zines independentes. Mora em Holambra com a esposa, filhos e duas cachorras. Também dá aulas de redação criativa e escreve em viverdaescrita.com.br.

A foto quadrada mostra um homem branco, de cabelos loiro escuro e barba cheia (com cavanhaque e bigode) da mesma cor. Ela está sorrindo, e a foto é mais afastada (mostra ele da cintura para cima). Ele está usando uma camisa preta da revista Trasgo e um terno escuro por cima.
A foto quadrada mostra um homem branco, de cabelos morenos e compridos, passando dos ombros, além de barba cheia (com cavanhaque e bigode) da mesma cor. Ela está olhando para a foto, sem sorrir, e tem uma lapiseira na mão, perto do rosto.

Mário Neves tem formação em Design Gráfico e já transitou pela publicidade, arquitetura, tatuagem, estúdios e até tarot online (!), mas é no desenho e na pintura que existe como indivíduo. Nasceu em Cuiabá, mas atualmente reside em São Paulo com sua companheira e dois felinos.