Na capa, que é majoritariamente escura, preta e vermelha, há uma mulher correndo desesperada por um corredor de hotel e, ao fundo, um monstro com jeito lupino, olhos brilhantes e boca cheia de dentes. Dá para ver mais duas figuras peculiares na lateral esquerda do corredor, e pessoas nas janelas da fachada de um hotel em uma perspectiva modificada. A mulher está com um revólver na mão. Em cima, há o nome da revista, Mafagafo, com a tipografia peculiar tremida. Logo abaixo, as informações "escrito por Thiago Lee e editado por Jana Bianchi", e embaixo, em letras tremidas e amarelas, o título do conto, "Quatro cabras da peste e um segredo". No canto superior esquerdo, tem o selinho com o logo da Mafagafo e a informação de que essa é a temporada 3, mês de maio de 2020. Acima do título, a informação que a ilustração é de Monaramis e a direção de arte é de Dante Luiz.

Para quitar uma dívida antiga, um grupo de amigos aceita a missão de procurar o capanga desaparecido do vigarista local em um hotel misterioso no interior de Sergipe. Os quatro cabras da peste — Celestino, um cachaceiro supersticioso, Satanás, um folgado com uma filha recém-nascida, e Guará e Maria, dois irmãos que brigam mais que cão e gato — terão de deixar as diferenças de lado se quiserem ter sucesso na empreitada, que esperam que seja a última. Contudo, mal imaginam os segredos que Henry, gringo dono do hotel, esconde em sua propriedade.

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Maria queria se arrepender de ter aceitado roubar aquele caralho de hotel, mas não tinha tempo pra pensar naquilo.

Segurou a ânsia de vômito com mais força do que o revólver calibre .38 que levava na mão esquerda. Ela não tremia tanto desde quando o irmão a convenceu a roubar manga do quintal do vizinho, trinta anos atrás.

O celular vibrou em seu bolso, e Maria achou que estava enfartando.

— Caraio, Satanás — ela sussurrou entre os dentes cerrados. — Onde cê tá, hômi?

— Tô aqui fora, tava sem sinal. Já dei partida no carro. Cêis tão demorando que só a peste. Acont…

Passos ecoaram no corredor do lado de fora do quarto onde Maria se escondia. Ela se arrastou mais pra longe da porta, sentindo um calafrio subir pelas costas suadas.

— Maria? Alô?

— Satanás, me escute — ela disse, ofegante. — Cadê Celestino e meu irmão?

— Eles num tavam com você?

Maria queria muito gritar, gritar e gritar, mas queria mais ainda sobreviver, então engoliu em seco o desespero.

— Satanás, chame a porra da polícia. Agora.

— Polícia, Maria? Cê quer ir presa a pulso, é?

Uma sombra surgiu pela fresta da porta e cresceu, como se pudesse se esticar pelo chão e agarrar seus pés. Um grunhido ressoou lá de fora, fazendo Maria se encolher na quina do quarto.

— Cê num tá entendendo — ela disse, ainda mais baixo.

— Apois, num tô entendendo mesmo. Eu vou entrar.

— Não faça isso, hômi! Satanás? Alô, Satanás? — A ligação caiu e o telefone ficou mudo.

A sombra se avolumou por debaixo da porta, quase encostando em seus pés.

Maria não estava sozinha.

Maria teve um pressentimento tão ruim que chega arrepiou os pelos do cangote. Parecia que tinha sonhado acordada no meio do boteco.

A vontade de tomar umazinha veio de repente, e ela só precisou levantar dois dedos da mão pro garçom entender o que ela queria. Uma caixa de som improvisada tocava um forró em volume estourado; ele não ia conseguir ouvi-la chamando nem se quisesse.

O cabra foi até o balcão e encheu dois copos americanos com uma dose generosa de pinga. Atravessou o bar, desviando dos casais que dançavam agarradinhos, e colocou as bebidas em cima da mesa de plástico ao redor da qual Maria, Satanás e Celestino estavam sentados. A expressão carrancuda do garçom deixava claro que ele não queria nem um pouco estar trabalhando ali às onze da noite de um sábado, cheirando a fumaça e óleo, com Calcinha Preta e Mastruz com Leite martelando em seus tímpanos.

Celestino pegou um dos copos de cachaça, derramou metade no chão e botou o resto pra dentro, sem pestanejar.

— Ô, fiducanso, além de desperdiçar cana ainda bebe sem brindar? — Maria fez um brinde simbólico.

— Mas repare. Cê sabe que a primeira dose é sempre do santo. E desde quando cê brinda antes de tomar cachaça?

— Achei que a ocasião de hoje pedisse. A gente brindou no enterro do meu pai, a gente brindou quando a filha de Satanás nasceu…

— E desde então esse bexiguento não bebe mais com a gente.

Satanás estava curvado sobre a mesa, checando o celular com uma mão e rodando o chapéu-panamá com a outra. Ele levantou os olhos por um instante, sem mexer a cabeça, e voltou a digitar uma mensagem.

— Não se faça de desentendido. — Celestino apertou o ombro de Satanás, que tentou se desvencilhar.

— Deixe o cara, Celestino. Se ele não quer beber, melhor pra ele.

Satanás apagou a tela do celular e se ajeitou na cadeira.

— Se vocês soubessem a responsabilidade que é ter uma filha, não mangariam de mim.

Celestino deu uma gaitada e balançou a cabeça.

— Falou o cara que vendia moto roubada em Lagarto inté um dia desse.

— Vendia não — Satanás bufou, mordendo os lábios. — Eu só fazia o frete; se a mercadoria era roubada, aí não é culpa minha.

— Vá se enganando…

— Chega, vocês dois. — Maria estalou o dedo entre eles, que voltaram a se recostar na cadeira.

Os três se estranharam por um instante. O garçom retornou com uma garrafa de Pitú e perguntou se podia servir mais uma dose. Maria confirmou com um joinha, levantando o copo.

— Bora brindar direito dessa vez? Satanás, cê vai com água mesmo.

Celestino se rendeu e, ao invés de virar a cachaça goela abaixo, levantou o copo no ar. Satanás guardou o celular e encostou a garrafa de plástico nas bebidas dos amigos.

— Não que eu me importe, mas a gente vai brindar sem o safado do Guará? — perguntou Celestino, olhando Maria.

— Meu irmão deve tá com as peguete dele por aí.

— Então bora logo que minha mão tá doendo.

— Pronto. — Maria parou pra pensar um pouco. — Um brinde à quitação da nossa dívida. Chega de ouvir desaforo e de passar aperreio.

Satanás continuou:

— Que minha filha cresça com saúde… — Ele desviou o olhar para Maria. — E que você reencontre em João Pessoa a tranquilidade com que sempre sonhou.

Os dois olharam para Celestino, esperando que ele concluísse o brinde.

— E que Araújo se enforque num pé de coentro.

— Ô, véi. — Satanás procurou ao redor pra ver se alguém ouvia a conversa. — A gente acabou de se livrar do cara e cê quer arranjar outra confusão?

— Apois qual o problema?

— Hômi… — Maria lançou um olhar de reprovação a Celestino, que entendeu o recado.

— Tá bom, tá bom, agora vamo brindar logo que eu tô com uma sede da bexiga.

O tilintar dos copos foi abafado pelo volume da música, que algum abestalhado tinha acabado de aumentar direto na caixa de som.

Olha que foi no risca faca que eu te conheci… — Celestino começou a cantar junto enquanto limpava o resto de cachaça dos beiços.

Maria achou graça, apesar do barulho insuportável.

— Falando no Guará… — Satanás aguardou o garçom sair correndo pra abaixar o som, puto da vida. — O que é que ele vai fazer daqui pra frente?

— Eu sei lá — respondeu Maria. — Só sei que eu tô fora. Minha ficha tá limpa, e eu quero manter assim.

— Só é limpa porque seu irmão assumiu a culpa lá do cheque sem fundo, né? — disse Celestino, coçando o nariz.

Maria subitamente sentiu que precisava de mais uma dose de cachaça.

— O que eu tinha que resolver com ele, já resolvi.

— Gente, relaxa, a dívida tá paga — disse Satanás. — Eu mesmo já troquei de celular e fechei conta de banco. O Araújo não é besta de vir atrás da gente.

— Assim espero. — Maria levantou mais dois dedos na direção do balcão. — Bora tomar a saideira?

O garçom veio de má vontade com o que tinha sobrado na garrafa de Pitú. Entre um bocejo e outro, despejou a bebida e foi embora.

— Não vão deixar nada pra mim não? — Uma voz surgiu atrás deles.

Os três se viraram ao mesmo tempo.

— Valei-me, Jesus, tá amarrado. — Celestino fez o sinal da cruz. — Que susto da moléstia, Guará.

— Oxi, que é que cê tá fazendo aqui, hômi? — Maria arregalou os olhos.

— Apois, neguinha, até parece que eu num venho todo santo dia tomar uma. Ô, Tonico, desce mais uma! — Guará puxou uma cadeira, afrouxou um botão da camisa polo, como de costume, e levantou a mão. Ao longe, o garçom fez um sinal pra que ele esperasse.

Maria ainda não sabia como se sentir em relação ao irmão. Dali pra frente, as coisas seriam diferentes, e Guará odiava mudança. Ele era cobra criada, não dava um passo sem pensar nos cinco próximos.

— A gente tava brindando que sua irmã finalmente decidiu voltar pra Paraíba mês que vem — disse Satanás.

— Sério? — Guará parecia surpreso. Maria desviou o olhar. — Vai correr com o rabo entre as pernas pras irmãs mais velhas? Vai abandonar seu irmãozinho desse jeito?

— Se assunte, hômi, você é só dois minutos mais novo que eu.

— E vai ganhar a vida fazendo o que lá?

— Desde quando você se importa?

— Desde que você nasceu.

Tonico surgiu entre os dois sem pedir licença.

— Pode encher. — Guará aproximou o copo do garçom.

— Bote aqui pra mim também — disse Maria.

— Acabou Pitú, só Velho Barreiro agora. — Tonico apontou pra garrafa.

— Serve. Celestino, não vai querer?

— Vou não. — Ele olhou pra Guará, desconfiado.

Maria deixou a dose de cachaça descansar no copo por um instante. Guará, por sua vez, virou a bebida de uma só talagada e chamou a atenção de todos.

— Seguinte, fui resolver as coisas com Araújo e tenho más notícias.

— Misericórdia. — Celestino descruzou os braços. Levantou uma sobrancelha. — Pra que você foi se meter com Araújo de novo? Achei que a gente já tinha se acertado.

Num impulso de raiva, Maria ficou de pé.

— Guará, se essa for mais uma das suas conversas fiadas, eu vou embora.

— Calma, dessa vez é sério, eu juro.

Maria encarou o irmão, meio decidida a dar as costas, meio querendo ouvir o que ele tinha a dizer. Guará sorriu de um jeito que ela odiava, pois sabia que, de uma maneira ou de outra, conseguiria convencê-la.

— Tome. — Guará lhe entregou o copo de cachaça, do qual ela já tinha esquecido completamente. — Eu juro que tô falando a verdade.

— Maria, se eu fosse você eu capava o gato, nada de bom sai da boca dele. — Celestino assistia àquele embate entre irmãos como se estivesse vendo um filme no cinema.

— Caramba, aí cê também tá exagerando, né? — Satanás pegou o chapéu que tinha deixado no colo.

Maria encarou cada um dos homens à mesa, esperando o cérebro decidir o que fazer. Uma brisa fria passou pelo boteco, que já começava a esvaziar pelo horário. Fazia mais ou menos 21 graus; o suficiente pras pessoas tirarem o casaco do guarda-roupa.

— Bom, a história é a seguinte. — Guará ficou sério de repente. — Eu fui lá em São Cristóvão entregar pra ele o resto do que a gente devia.

“Encontrei Araújo lá no Bar do Elizaldo, vendo o jogo do Flamengo. Ele tava numa mesa com dois ou três dos empregados, tomando Skol. Eu tinha os cinco mil numa sacola plástica guardada na cueca pra entregar pra ele.

“Me aprocheguei, bem vestido como sempre pra causar boa impressão. Acenei pra eles, mas Araújo nem aí pra mim; o jogo tava nos acréscimos do segundo tempo, e um dos jagunços dele mandou eu esperar na calçada.

“Tava torcendo pro Flamengo fazer um gol. Pensei que talvez isso fosse deixar ele de bom humor. Mas o time tava jogando mal pra peste e levou foi um golaço no meio das fuça. O cabrunquento do Araújo derrubou a cerveja no chão, e um garçom foi limpar. Foi aí que ele me chamou. Eu cheguei já com a mão estendida pra cumprimentar o homem, mas ele só queria saber do dinheiro.

“Perguntou como é que tinha sido o serviço. Eu tentei dar uma amaciada nele, mas não teve conversa. Foi aí que…”

— Guará, deixa de arrodeio. Conte logo o que aconteceu.

— Calma que tô acabando, porra. Um dos homens dele contou a grana. Foi então que ele me explicou que ficou faltando uma parte.

— Que parte? — Maria continuava cética.

— Do trabalho anterior. — Guará puxou uma caneta do bolso, pegou um guardanapo e desenhou uns rabiscos. — Ele disse que foi um trabalho danado pra se livrar da bagunça que a gente fez. Nosso acerto foi de vinte e cinco por cento ao mês, lembram? Fora o Monza velho de Satanás que a gente deixou como garantia, menos os cinco mil que faltavam, mais o adicional de limpeza, faltou isso aqui, ó.

Ele deslizou o papel riscado pela mesa. Todos se curvaram para enxergar melhor.

— É não. — Maria arregalou os olhos. — A gente ainda tá devendo essa quantia aí? Deixe de desdrobo.

Guará deu de ombros.

— Ave Maria, não é possível isso. — Celestino bateu o copo vazio na mesa, que chacoalhou com o impacto. — Aquele infeliz também mete a gente em cada uma… E se a gente não pagar?

— Cê viu a facilidade com que ele deu cabo dos rastros que a gente deixou? Se ele quiser sumir com você, pode dizer adeus pra esse plano terreno.

A mesa ficou em silêncio. Nem mesmo o forró arrasta-pé que tocava quebrou o clima sombrio da mesa.

— Então quer dizer que a gente tá lascado, é isso? — perguntou Satanás, ainda girando o chapéu.

— Se cêis me deixarem terminar a história… Então, eu falei pra Araújo que a gente queria vazar, que eu faria o que fosse necessário pra quitar logo essa dívida. Ele pensou um pouco, pediu outra Skol e me respondeu que tinha um último trabalho pra gente.

— Isso num tá me cheirando bem… — disse Celestino.

— Enfim, eu perguntei qual era o trabalho, e também se realmente ia ser o último. Ele me garantiu de pé junto que, se a gente não cagar o pau dessa vez, a dívida tá paga.

— Tá, mas como é esse trabalho? — Maria nem tentou parecer convencida.

Guará pediu mais uma pinga pro garçom.

— Ele mencionou um hotel que inaugurou ali em Areia Branca. O dono é um gringo que se mudou pra cá ano passado. Pelo que entendi, Araújo tá meio desconfiado do lugar e quer que a gente dê uma sondada. Parece que um funcionário dele foi passar o fim de semana no hotel e nunca mais deu as caras. Ele tá virado na peste com essa situação, deu até salvaguarda pra roubar o gringo se a gente quiser. Pode deixar a garrafa toda, Tonico, só tem mais umas três doses aqui.

Guará encheu os copos enquanto o repertório do boteco descambava do forró pro arrocha. Uns dois bêbados solitários cantavam a plenos pulmões enquanto um terceiro já parecia estar no décimo sono.

— Eu tô fora. — Celestino fez sinal de negativo com o dedo indicador. — Não, o copo pode encher, tô falando desse trabalho.

— Oxente, Celestino. — Guará se aproximou e serviu a pinga.

— Me inclua fora dessa. Tá parecendo fuleragem do Araújo pra cima da gente.

— Mas a gente tem alguma outra opção? — perguntou Maria, tentando decifrar a expressão do irmão.

Guará ergueu o copo perto do rosto, cheirando a cachaça de qualidade duvidosa.

— Não muitas — disse, virando a bebida. — Da última vez que a gente inventou de enganar o véio, eu fui em cana por quase um ano, lembram?

— Porr… Poxa, mas também foi amadorismo nosso passar cheque sem fundo, né? — Satanás entrou na conversa.

— Cê parece um abestalhado tentando esconder palavrão no meio do bar, sabia? — Guará abriu mais um botão da camisa e voltou a encher o copo.

— Preciso me acostumar pra não falar na frente da minha filha.

— Agora.. — disse Maria, virada pro irmão. — A gente chega lá, faz o que tem de fazer e capa o gato, entendeu? Sem surpresas.

— Neguinha, eu vou entender se você não quiser seguir com o trabalho.

— E deixar vocês lá se fudendo sozinhos? Nem pensar.

Celestino ficou de pé.

— Pra mim chega dessa budega. Não sei vocês, mas vou me picar. Boa sorte aí com esse gringo, eu não vou cair nesse papinho de novo. Nem que eu demore mais dois anos pra pagar a minha parte.

— Perainda, Celestino. — Satanás começou a se levantar, mas Maria segurou seu braço. Os dois trocaram olhares rápidos.

Celestino se virou pra ir embora, hesitou, pegou o Velho Barreiro e serviu uma última dose.

— Se precisarem de mim pra qualquer outro assunto, sabem onde me encontrar. — Ele bebeu a saideira, deixou dez reais na mesa e atravessou a rua.

Satanás não conseguia esconder a decepção no olhar.

— Maria, tu num acha melhor ir atrás…

— Os macho não sabem se acertar e eu que preciso resolver? Toda vez essa porra. — Maria suspirou. — E larga esse chapéu ou põe na cabeça de uma vez que já tá me dando gastura dele aí girando.

Ela odiava aquele sentimento de ter algo faltando sempre que algum dos quatro se afastava do grupo. Primeiro quando Guará ficou preso, depois, quando Satanás se casou. E agora isso. Ela era a cola que mantinha o quarteto unido, mas às vezes isso demandava um esforço que ela não estava disposta a fazer.

— Calma, neguinha. — Guará enfiou a mão no bolso, abriu a carteira e agitou uma nota de cinquenta reais pro garçom. — Bora pra casa, deixa que eu inteiro a conta. Fica com o troco, Tonico.

— Valeu, chefia.

— E vai descansar, cê tá com cara de acabado.

Tonico apontou a ruma de bebuns que não queriam ir embora de jeito maneira e deu as costas.

Assim que acertaram a conta, os três caminharam até a frente do bar e se despediram. O volume da música tinha diminuído, uma clara tentativa de expulsar o resto dos fregueses.

— Querem carona? — perguntou Satanás, destravando o carro.

— Num se avexe não, a gente vai andando — disse Guará, dando um abraço no homem.

— Tomem cuidado, então. — Satanás deu dois beijinhos nas bochechas de Maria. — E finalmente, que é que a gente faz?

Guará puxou um cigarro do bolso e o acendeu, pra desgosto de Maria.

— A gente vai ter que dar uma olhada nesse hotel aí — ela disse. — Eu vou dar uma estudada e aviso vocês.

E, com a voz de Reginaldo Rossi ao fundo, cada um tomou seu rumo.

Uma penca de turistas passeava pra lá e pra cá no saguão do hotel. O chão de mármore refletia a luz do lustre enorme, que parecia saído de um filme de Hollywood. Maria nunca imaginou que algo tão luxuoso pudesse existir naquele fim de mundo.

— Esse lugar num vai durar nem um ano, anote o que eu tô dizendo — ela falou baixinho. — Precisava ser tão longe assim? Meia hora na estrada de terra, o carro ficou todo sujo. Satanás vai matar a gente.

Guará olhou para ela enquanto mascava um chiclete de boca aberta. Maria odiava aquele hábito, mas ali não era a hora nem o local de dar carão — até porque aquilo dava credibilidade extra ao disfarce.

— Faz parte do charme, Maria. Um resort na entrada da Serra de Itabaiana, afastado de tudo, com uma vista linda da cidade ao longe. Na moral, não sei como ninguém pensou nessa porra antes.

— Ô, abestalhado, fale mais baixo. E não use meu nome não. — Maria entrelaçou seu braço ao dele para dar a impressão de que eram um casal. — Quer botar o plano por água abaixo?

Guará deu uma risada, uma pontinha do chiclete aparecendo entre os dentes.

Os dois se aproximaram do balcão, entrando no personagem e caminhando devagar, como se fossem gente importante. Uma moça os atendeu com um sorriso — ela estava maquiada demais pro calor da moléstia que fazia.

— Boa tarde. — Maria tomou a dianteira, tentando esconder o sotaque carregado. — Nós temos hora marcada às quatro com o doutor Howard. — Ela improvisou uma pronúncia do nome em inglês, que provavelmente estava meio errada.

A mulher digitou alguma coisa no computador — Maria se perguntou se havia qualquer sinal de internet naquele lugar — e virou o monitor na direção deles.

— Senhor e senhora Lopes? Vou precisar dos seus RGs, por favor.

Guará entregou os documentos forjados.

— Pronto. Subindo aquele elevador ao fundo, terceiro andar, a última sala à esquerda.

— Muito obrigada… Sandra. — Maria procurou o nome no crachá da recepcionista.

O suposto casal continuou em direção ao corredor, admirando os hóspedes que se amontoavam no saguão. Um grupinho de crianças corria em círculos, gargalhando numa altura que deixava Maria desconfortável. Todos ali pareciam felizes demais.

— É época de chuva, então casa de praia nem pensar — Guará sussurrou em seu ouvido.

— Ou seja, aqui é o novo point das férias de julho.

— Eu tarra veno que eles têm desde uns chalezinhos mais caros até quartos populares, com acesso a piscina, quadra de esportes, spa, cinema privativo e até um campo de minigolfe.

— Ô porra! — Maria falou mais alto do que gostaria.

O elevador se abriu diante deles. Estava vazio.

Maria apertou um botão no painel, e a porta se fechou com uma leve chacoalhada. O silêncio tomou conta do elevador.

— Cê tá pensando mesmo em voltar pra Paraíba? Tá com saudades das nossas irmãs? Da tia-avó? — Guará perguntou, sem olhar pra Maria.

Ela engoliu em seco.

— Oxi, por que isso agora, hômi? Tá preocupado com o quê?

— Eu, preocupado? Deixe de história.

Mais silêncio. Maria preferiu não dar corda.

— Cê quer que eu fale com o gringo? — Guará continuou, quebrando o gelo.

— E correr o risco de você falar merda? — Maria balançou a cabeça de um lado pro outro. — E vê se joga fora esse chiclete. Ou então engula logo, já tá me dando gastura.

Guará ainda mastigou umas três vezes, olhando pra Maria, antes de grudar a goma num canto do elevador. A porta se abriu com um solavanco, e um painel indicou o número 3.

O corredor do terceiro andar era bem chique. Um carpete vermelho novinho em folha cobria o chão, e dava pra sentir aquele cheirinho artificial de lavanda. A luz natural entrava pelas frestas que as cortinas de veludo formavam nas janelas. Nem mesmo o som dos hóspedes chegava naquele andar.

Por um momento, Maria esqueceu do sol escaldante lá fora, respirou fundo e lembrou-se da tarefa que tinha a cumprir: puxou o celular do bolso e começou a fotografar cada um dos cômodos — havia placas nas portas indicando o depósito, vestiário e almoxarifado. Não encontrou quartos para hóspedes, o que lhe pareceu natural, já que era um andar administrativo.

Chegaram diante da porta que a recepcionista tinha indicado.

Dr. Henry Howard, proprietário, dizia a placa em letras garrafais.

— Oxi, estranho que não vi nenhuma saída de emergência no andar. — Maria olhava de um lado pro outro.

— Minha filha, a gente tá no cafundó do Judas. — Guará penteou o cabelo com as mãos. — Saída de emergência pra onde? Além disso, cê acha que tem alguém fiscalizando essa biboca?

— Sim, deixe de arrodeio e se adiante, hômi.

Guará terminou de arrumar o cabelo e bateu na porta. Quase que de imediato, uma voz masculina com um sotaque estranho respondeu lá de dentro:

— Entre, por favorr.

Guará abriu a porta devagarinho. O escritório, apesar de meio antiquado, era luxuoso. Os móveis, todos em madeira de lei, soltavam cheiro de verniz fresco. As paredes do cômodo estavam repletas de quadros velhos. Sentado detrás da escrivaninha, um homem os aguardava.

Seus olhos pareciam cansados e dispersos, mas sua barba, roupas e chapéu estavam impecavelmente alinhados. O bigode enorme cobria seu lábio superior. Tudo nele, das feições duras à pele branca, deixava claro que o cabra era estrangeiro.

— Muito prazerr. — Ele se levantou e estendeu a mão. Por causa do bigode, não dava pra saber se estava sorrindo. — Eu me chama Henry Howard, mas vocês pode se endereçar a mim como Henry. Sou prroprietário do hotel. Sentem-se, por favorr.

— Prazer, me chamo José Lopes, e essa é minha esposa Paola — disse Guará, tomando a dianteira. Maria olhou feio pro irmão, que não notou a irritação.

Os três se cumprimentaram e se sentaram.

A palma da mão do gringo era mais áspera e enrugada do que Maria imaginava. Ela limpou inconscientemente a mão no vestido depois do cumprimento.

— Então, meus amigos, em que lhes posso serr útil?

Guará ia abrindo a boca, mas Maria pigarreou e foi mais rápida.

— Bom, doutor Howard, como a gente falou por e-mail na semana passada, meu marido e eu temos uma agência de turismo chamada J. P. Viagens… — Ela entregou o cartão de visitas falso ao homem, que apertou os olhos para ler melhor. — E não é segredo nenhum que ficamos imensamente interessados em incluir seu empreendimento em nossos passeios. — Maria gesticulava de forma bastante natural enquanto discursava. O irmão sempre ficava impressionado com sua capacidade de fingimento. Ela obviamente já havia se passado por outras pessoas, mas a cada trabalho parecia se superar uma vez mais.

Henry guardou o cartão no bolso frontal da camisa de botão e pigarreou antes de continuar:

— O Hotel Resort Areia Brranca está à disposição de vocês. — Ele abriu os braços num gesto acolhedor. — Vou designar um de meus assistentes parra acompanhar os senhores, montar os detalhe de nossa parceria e oferecer alguns preços prromocionais. Vocês estão há quanto tempo no merrcado?

— A gente, digo, nós acabamos de inaugurar — falou Maria. — E pensamos que a melhor forma de começar com o pé direito seria com uma parceria de grande porte.

— Vocês têm ótimo tino para os negócios.

— Muito obrigada, doutor Howard.

— Apenas Henry é suficiente, meus amigos. — O homem se recostou na cadeira.

— Henry, se importa de eu perguntar o que o motivou a abrir este hotel justamente aqui no interior de Sergipe? — dessa vez foi Guará quem perguntou. — Por que não no Rio de Janeiro, na Bahia ou em Santa Catarina, onde tem mais turistas?

Finalmente, o sorriso do gringo apareceu por debaixo do bigode.

— De todos os países por onde passei, você foi única pessoa a perguntar isso. — Henry abriu um botão da camisa e se levantou. — Se importam se eu fumarr? Ainda não me acostumei com fato de que ninguém nesse país sabe apreciar bom charuto. Sem ofensas, clarro.

Maria e Guará negaram com a cabeça. Henry retirou um molho de chaves do bolso e abriu uma das portas da cômoda atrás dele. Maria deu uma cutucada em Guará e esticou o pescoço pra bisbilhotar. O interior do armário estava repleto de joias, pratarias e antiguidades em geral. Maria desviou o olhar pro irmão, que confirmou levemente com a cabeça. Henry tirou um charuto de uma caixa ornamentada e o segurou debaixo do nariz, na horizontal. Deu uma fungada e soltou o ar bem devagar, com os olhos fechados.

— Arturo Fuente. — O homem cortou a ponta do charuto, puxou um isqueiro chique do bolso e o acendeu. O cheiro de tabaco empesteou o local. — Não importa o que os especialistas falem, esse continua sendo meu favorrito. — Ele se sentou, visivelmente mais relaxado, tirou o chapéu coco e o acomodou em cima da mesa.

Maria e Guará se mantiveram em silêncio, esperando o homem terminar de apreciar o charuto.

— Como eu ia dizendo — ele continuou —, existe um bom motivo para eu me mudarr para lugares, por assim dizer, alterrnativos. Guatemala, Nicarágua, Equador, Bolívia e agora Brrasil. Se tem uma coisa que aprendi com meu prróprio povo é que nós, americanos, é péssimos clientes. Nós achamos que o mundo nos pertence, então, quando algo não é exatamente como esperamos, vamos atrás de coisas melhor. Mas não vocês, latinos. Vocês têm sensa de comunidade, se preocupa uns com os outros, se contenta com o que a vida dá. Até por que seus governos não têm sido especialmente generosos com o povo, correto?

Maria e Guará apenas concordaram, sem saber exatamente como reagir.

— Porrtanto, meus amigos, é minha missão de vida trazer o melhor do entretenimento americano para vocês. — Henry deu mais uma tragada no charuto. — Mas eu já falei demais, vou deixar vocês à vontade para que explorrem a propriedade. Peçam à Sandrra da recepção que agende uma visita gratuita para conhecer melhor nossas acomodações, o que me dizem? No dia que for melhorr para vocês.

— Pode ser nessa sexta? — Guará se adiantou para responder e trocou um olhar animado e preocupado com a irmã. — Se não for muito incômodo, claro.

— Deixa eu verr aqui. — Henry puxou um caderno velho da gaveta, folheou algumas páginas repletas de anotações e parou o dedo indicador numa lacuna qualquer. — Friday, I can arrange that. Ótimo, nas sextas-feiras temos show do forró no hotel. Vocês têm mais alguém que quer trazer? Filhos, algum funcionárrio…

— A gente não tem filho, e somos só nós dois na empresa — respondeu Maria, ansiosa.

— Excelente. Espero vocês para sexta-feira, então — Henry disse, estendendo a mão enrugada em direção aos dois. — Este hotel é como se fosse minha casa. E vocês são muito bem-vindos em minha casa.

Eu não preciso de você

O mundo é grande e o destino me espera

Não é você quem vai me dar na primavera

As flores lindas que eu sonhei no meu verão

 

— Ô, Guará, abaixa essa porra aí, vai acordar a Clarinha.

Satanás girou o botão do aparelho de som até a música sumir.

— Ninguém em sã consciência para uma música de Flávio José no meio.

— Você vai ver o sopapo que eu vou dar na sua sã consciência se continuar com otarice na minha casa.

— Cê já foi menos chato, sabia?

Maria deu um beliscão no braço de Guará.

— Ai, porra.

— Hômi, se comporte que eu já tô por aqui de você.

Guará mangou em silêncio com a boca assim que Maria virou o rosto.

Satanás verificou se a filha ainda estava dormindo no quarto, fechou a porta com cuidado e foi se juntar aos amigos na sala. O lugar não era muito bem arrumado; a maioria das tralhas estava coberta com panos de renda. A única coisa que Satanás exibia com orgulho — além, é claro, do chapéu panamá vermelho pendurado no cabideiro — era a coleção de cordéis, entre eles A mulher que enganou o diabo e O cabra que foi pro inferno e voltou pra contar história.

Ele sacudiu o paninho que cobria a poltrona velha e se sentou. As molas da cadeira soltaram um rangido.

— Preciso passar um óleo nessa moléstia.

— Precisa jogar fora, isso sim — disse Guará.

— Num venha não. Essa poltrona era de meu avô.

Maria colocou a mochila cheia de livros em cima da mesa, que estalou com o peso.

— Vamo focar aqui no trabalho? Já vai dar dez horas. — Maria estendeu o celular na direção de Satanás. — A gente deu uma bizoiada lá no hotel, e eu aproveitei pra tirar umas fotos.

Satanás pegou o celular, aproximou do rosto e espremeu os olhos. Com a ponta dos dedos, deu zoom na foto pra ver melhor.

— A câmera do seu telefone é peba demais, viu?

— Isso que dá comprar celular de cem conto no centro — Guará completou.

— Cêis acham que meu dinheiro corre frouxo, é? Faz ligação e manda mensagem, já tá ótimo.

Satanás navegou pela galeria de fotos e devolveu o aparelho pra Maria, que continuou:

— O lugar é grande e isolado, a segurança é baixa e o americano guarda os objetos de valor no escritório.

— E o funcionário de Araújo que sumiu?

— Nenhum sinal dele. Quando a gente tiver lá dentro, procura no registro de hóspedes.

— Será que dá pra pagar o resto da dívida com o que a gente arranjar lá?

— Aquele gringo é bancado e gosta de se amostrar — respondeu Guará. — Se a gente rapar aquele escritório todo, acho que dá pra juntar uma grana boa. Só aqueles charutos devem ser caros que só a porra.

— Isso se a gente não fizer nenhuma bagunça e Araújo não tiver que limpar tudo de novo — completou Maria.

Satanás concordou com a cabeça enquanto tentava raciocinar.

— Só isso, então? — ele perguntou.

— Calma, hômi.

Maria abriu a mochila e tirou um livro enorme de dentro dela. Apoiou no braço esquerdo e começou a folhear.

— Eu tive um pressentimento muito ruim naquele dia que a gente tava no bar, e tarra lendo um pouco ontem pra tentar interpretar esse mau agouro.

— De novo essas armada, Maria? — Guará levantou uma sobrancelha.

— Sim, Guará, de novo. — Maria fechou o livro com uma mão, e uma camada de poeira subiu no ar.

Os dois se estranharam por um instante. Satanás tentou amenizar o clima.

— Tá, mas quando é a operação?

— A gente vai se hospedar lá essa sexta-feira.

— Peraí, essa sexta já?

— Sim, essa sexta. — Maria lançou um olhar decidido a Satanás. — Mas relaxe que eu já pensei em tudo.

— O que seria da gente se não fosse minha irmãzona?

— Cê nasceu com o rabo virado pra lua, hein, Guará?

— Muito engraçada, você.

 — Sim, prestem atenção. Satanás, cê vai dirigindo e deixa a gente lá bem cedo. Quando escurecer, meu irmão e eu investigamos e fazemos a limpa. A entrada principal é muito chamativa, mas a gente pode ir embora por essa aqui, na lateral, que dá pro campo de minigolfe.

— Perainda, lá tem campo de minigolfe?

Maria fez que sim.

— Rapaz, não é pouca merda não, viu? E só cêis dois já dão conta do recado? Lembrem que não vai ter Celestino pra ajudar.

Guará olhou pra Maria, que olhou pra Satanás, que olhou pra Guará.

— Não vai chegar a esse ponto. Num tem mau pressentimento certo se a gente seguir o plano — disse Maria, olhando especialmente pro irmão.

— Pois é — ele respondeu em seu tom presunçoso de sempre. — Quando foi que deixei vocês na mão?

Maria riu que se acabou.

Celestino olhava fixamente pro homem atrás do altar, mas tudo o que ele falava entrava por um ouvido e saía pelo outro. A mente vagueava por lugares onde sabia que Deus o estaria julgando. Por isso, Celestino tentava ancorar os pensamentos na igreja, mas aquilo estava sendo mais difícil do que imaginava.

— O que foi, Celestino? — uma senhorinha inclinou a cabeça e cochichou. Ao longe, o padre ainda continuava sua pregação. — Cê parece distraído.

— Não é nada, dona Nalva. — Celestino abriu um sorriso discreto.

— Faz tempo que cê num vem pra igreja. Espero que não tenha afastado Deus do seu coração — ela disse, voltando à posição.

O sorriso sumiu dos lábios de Celestino, que suspirou e tentou focar no sermão, mas as palavras do padre pareciam distantes. Ele falava alguma coisa sobre como Pedro, Tiago e João eram os melhores amigos de Jesus dentre os apóstolos, mas Celestino estava ocupado demais pensando nos próprios amigos para prestar atenção.

O reverendo anunciou a comunhão, e os fiéis se levantaram em silêncio enquanto a bandinha da igreja tocava uma canção de louvor. Dona Nalva se ergueu e puxou Celestino pelo braço, como se levasse um filho arredio pra tomar vacina. Ele se enfileirou logo atrás dela — seu um metro e oitenta de altura contrastando com a miudeza da mulher — e olhou para a porta da igreja, escancarada.

A fila andou, e dona Nalva estendeu a mão para trás.

— Vem, é a sua vez.

Mas Celestino não estava mais lá.

Maria não imaginava que cabia tanta coisa no bagageiro de um Chevette. Duas malas grandes, três mochilas e uma sacola de supermercado amarrada com dois nós — além do estepe e do extintor de incêndio.

— Mar menino, seu chevetão ainda aguenta o tranco, viu, Satanás?

— Né isso? E olha que já bati ele duas vezes. Só espero que essas coisas todas num me empatem de fechar a mala do carro. Cê precisa levar esses livro mesmo?

— Deixe meus livro quieto.

Maria encostou a mão no capô do carro azul, mas a levantou quase de imediato: o metal estava quente que só a peste. Já se passava das dez da manhã da sexta-feira e, mesmo sendo mês de julho, fazia mais de trinta graus em Aracaju. Na rua em que Satanás morava, ainda se viam os restos das fogueiras de festa junina espalhados pela calçada.

— Falando nisso, cadê seu irmão? Ele já tá atrasado.

— A vida dele é um atraso, isso sim. Ah, mas o cachorro vai escutar quando chegar.

— Espero que ele num tenha muita mala, senão vou me bater pra dirigir esse carro pesado na estrada de terra.

— Então acho melhor já começar a chorar. — Maria arregalou os olhos e apontou para a esquina. — Olha só quem tá vindo.

Guará acenava de longe, com uma mochila nas costas e o cigarro no canto da boca. Do lado dele, Celestino andava de cara amarrada.

— Oxente! E Celestino num tinha dado pra trás?

— Sei lá da porra. Só sei que a gente vai ter que se apertar mais no carro. Digo logo que eu vou no carona.

Satanás girou o chapéu, jogou ele no banco e entrou no carro com a desculpa de ajustar a posição dos bancos, mas com uma pitada de evitar ter que presenciar a bronca que Maria ia dar no irmão.

— Oi, Maria. Oi, Satanás. — Celestino deu dois beijinhos no rosto da amiga e enfiou a cara pela janela do carro pra falar com o outro.

— Ué, não tinha pedido arrego? — ela perguntou.

— Resolvi colocar um ponto final logo nessa história.

— E mudou de ideia por quê?

— Deixa pra lá.

— E você, fi do cabrunco. — Maria cruzou os braços e dirigiu-se ao irmão. — A gente não tinha marcado nove e meia aqui na casa de Satanás?

— Calma, neguinha, eu encontrei Celestino vindo pra cá, por isso o atraso. — Guará jogou o cigarro fora e tirou a mochila das costas.

— Num me meta nos seus problemas. — Celestino se desafastou. — Tô por um triz de dar meia-volta e arredar daqui.

Maria o ignorou para continuar brigando com o irmão.

— Não venha com seus peito caído achando que é moça não, Guará. Isso não justifica mais de meia hora de atraso. Achei que o bonitinho fosse o mais interessado nesse trabalho, mas, se não for pra levar a sério, é melhor parar por aqui.

— Eu sei, Maria, foi mal.

— Foi mal tá no inferno, entre logo no carro.

— Calma, antes preciso mostrar um negócio pra vocês, venham ver.

Satanás colocou a cabeça pra fora do Chevette.

Guará abriu o compartimento principal da mochila e mostrou pros amigos. Lá dentro, enrolado numa toalha, tinha um revólver calibre .38.

— Vôte! — Celestino tapou a mochila com a mão e olhou ao redor.

— Ficou maluco, hômi?

— Aquieta o facho, meu povo. — Guará subiu o zíper da mochila. — Depois que minha irmã teve esse mau agouro, achei melhor a gente se precaver. Nem tá carregado.

— Eu nem vou perguntar onde cê arranjou esse três oitão, mas agora cê passou do limite. — Maria encarou o irmão, que desviou o olhar.

— Fi do cabrunco, eu sabia que tinha sido uma má ideia voltar. — Celestino deu um murro no capô do Chevette.

— Ei, porra, cuidado com o carro — disse Satanás.

Os quatro se encararam em silêncio. Maria fuzilava o irmão com os olhos, que por sua vez procurava em Satanás algum sinal de aprovação. O motorista, mais preocupado com o carro de estimação, bufava enquanto encarava Celestino. Esse último fechava o ciclo ao manter o olhar fixo em Maria, esperando alguma reação.

— Chega. — Foi Celestino quem quebrou o gelo, fazendo o sinal da cruz. — Se vocês forem levar essa peste aí, eu tô fora. De novo.

Maria deu um joinha e apontou pra mochila do irmão.

— Guará, a gente vai entrar no carro, Satanás vai dirigir até em casa, cê vai esconder essa disgracenta seja lá em que biboca cê achar melhor e depois a gente vai seguir viagem. Quando a gente voltar, a primeira coisa que cê vai fazer é jogar ela fora, tamo entendido? Não quero um negócio desse dentro de casa.

— Sim senhora.

— Não me venha com deboche não, hômi.

Maria peitou o irmão. Satanás deslizou pra dentro do carro, sentindo a tensão da briga no ar.

Guará demorou alguns segundos, mas finalmente respondeu:

— Tamo entendido.

— Ótimo — disse Maria, relaxando os músculos e abrindo a porta do carro. — Satanás, bote esse chevetão pra funcionar antes que eu mude de ideia.

Maria trocou um último olhar com Satanás enquanto o Chevette azul se afastava do Hotel Resort Areia Branca. Uma poeira esbranquiçada subiu no ar assim que o carro deixou o asfalto e encostou no solo que dava nome à cidade. Duas fileiras de coqueiros demarcavam a entrada do hotel. Ele parecia ao mesmo tempo chique e inacabado, como se tivessem decidido inaugurar o estabelecimento antes do fim das obras.

— Deixe que eu te ajudo com a bagagem, neguinha. — Guará pegou a alça da mala com facilidade, o que era natural, já que ela estava vazia, pronta para ser preenchida com objetos roubados.

Assim que os irmãos se afastaram do carro, Maria aproveitou e tirou um objeto do bolso.

— Eu ia te dar isso mais cedo, mas peguei um ar da porra com aquela arma que cê queria trazer e preferi me acalmar primeiro.

Ela colocou um objeto na palma da mão do irmão.

Guará o deixou escorrer pelos dedos e deu uma boa olhada. Era o colar de prata que sua mãe tinha dado de presente para ele muitos anos antes.

— Eu sei o que cê vai falar — continuou Maria, com cara de deboche. — Ah, eu tenho tudo sob controle, não sei o quê, não sei que lá, mas num tô nem aí. Isso aqui vai te ajudar e te dar sorte.

Guará botou o colar no pescoço, sentindo um peso estranho no peito.

— Vai dar tudo certo. Brigado, neguinha — ele disse, afagando o braço da irmã.

Os dois atravessaram o portão da frente, e o calor da estrada foi substituído pelo ar-condicionado. Apesar de ser uma sexta-feira, o hotel parecia ter menos hóspedes do que Maria imaginava. Talvez fosse pela baixa temporada. Um punhado de casais de mãos dadas caminhava de um lado pro outro, alguns em trajes de banho, outros de bermuda e regata. Na recepção, Celestino era atendido por uma das recepcionistas. Maria puxou o irmão o mais longe possível dele, para não dar na cara de que se conheciam, e foi à procura de Sandra para descobrir onde ficariam acomodados.

— Senhorr e senhorra Lopes!

Os dois demoraram a perceber que aquela voz se referia a eles. Assim que Guará se tocou, deu uma cotovelada de leve na irmã e adiantou-se para cumprimentar o gringo.

— Henry, que surpresa o senhor aqui.

Os dois homens apertaram as mãos e trocaram um abraço tímido. Ao redor, os funcionários do hotel pareciam intimidados com a presença do proprietário no saguão.

— Eu vi em lista de hóspedes que vocês chegariam hoje de manhã e não poderia deixarr de cumprimentá-los pessoalmente. — Henry apertou a mão de Maria e deu-lhe um beijo na bochecha. O toque daqueles lábios frios em sua pele causou arrepios.

— Não precisava, de verdade, mas nós agradecemos, não é, querido? — Quando entrava no personagem, Maria se tornava irreconhecível. Até mesmo o tom de sua voz se adequava ao disfarce.

— Pois bem, espero que desfrutem do passeio, vou pedirr para que um dos meus funcionários os acomode e mostre instalações a vocês. — Henry checou o relógio de bolso, e Maria se perguntou quem ainda tinha um desses naquele século. — Temos muitas atividades acontecendo este final de semana. Não se esqueçam de show de forró hoje no barr.

Com o canto do olho, Maria avistou Celestino sendo conduzido ao quarto por um funcionário que carregava sua mala. Os dois trocaram um olhar rápido, quase imperceptível, mas que cada um tinha certeza de que o outro havia notado. Pela segunda vez, Maria teve um mau pressentimento sobre aquele lugar; tudo parecia estar andando muito facilmente. O único trabalho que havia começado tão tranquilo assim tinha sido o do cheque sem fundo, e Maria não gostava nem de recordar como aquilo tinha terminado.

— Bora, amor?

Guará e Henry aguardavam Maria sair de sua distração repentina.

— Ah, sim, claro.

— Por aqui, porr obséquio, infelizmente elevador está em manutenção esta semana — disse Henry, indicando a passagem com um movimento delicado da mão. — O Hotel Resort Areia Brranca ficará feliz de ter vocês aqui este dia.

Celestino estava matutando sobre a situação na qual tinha se enfiado. Guará o havia convencido de que aquele era o serviço final, o que quitaria a dívida deles com Araújo. Ele já estava de saco cheio das papagaiadas do amigo, mas, se aquela era realmente a chance de recomeçar, não via outra opção. Maria, por sua vez, tinha lhe detalhado tudo sobre o resort durante a viagem de carro: como ele era luxuoso que só a peste e afastado de tudo, tipo um hotel fazenda pra inglês ver; e, de fato, a primeira impressão de Celestino confirmava aquilo. Porém, alguma coisa o deixava com um pé atrás. Já Satanás não tinha comentado muita coisa a respeito, como era de costume — sempre que ficava entre a cruz e a espada, Satanás preferia dirigir, e dirigir apenas.

A janela do quarto dava a Celestino uma visão privilegiada da área externa do hotel. Ele enxergava desde a entrada principal até o caminho que levava às piscinas e ao campo de minigolfe. Se alguém fosse atrapalhar a operação daquela noite, ele saberia de antemão.

O sol ainda despontava no horizonte, aproximando-se aos poucos da Serra de Itabaiana. Ainda restavam algumas horas de descanso até a boca da noite. Celestino trocou mensagens com os amigos pra garantir que tava todo mundo bem e em posição. Satanás esperava afastado, dentro do carro. Guará e Maria passeavam pelo resort, tomando nota e investigando cada centímetro.

Celestino tirou um terço do bolso e o admirou por um instante. As contas de madeira já estavam desgastadas devido ao tempo, mas o Jesus crucificado na ponta continuava inteirinho. Sentiu um desconforto no bucho: um pouco de medo ininhado com culpa e vergonha — era uma ironia querer rezar logo antes de cometer outro pecado dos grandes. Ainda mais ele.

Resolveu que Jesus não merecia uma afronta daquelas e guardou o terço na gaveta do criado-mudo.

— Eita pega, não faz calor nessa roupa preta aí, não?

— Até faz, né, moça, mas a gente precisa trabalhar.

— Que judiação, bem que cês podiam ter um uniforme mais fresquinho.

— É a vida.

Um grupo de turistas passou ao lado de onde Maria e o segurança estavam. Ela disfarçou, arrumando o cabelo com as mãos.

— O dono daqui é aquele gringo de bigode? — ela perguntou assim que o grupo se afastou.

— Unrum.

— Ele deve ser bem cricri com os funcionários, né?

— Ele quase não dá as caras.

— Sério? Cê num acha estranho um americano construir um hotel desse tamanho nessa lonjura toda? Certeza que deve ter algum político lucrando em cima…

O segurança não respondeu; limitou-se a vigiar a entrada da área externa, as mãos juntas à frente do corpo.

Maria precisou pensar em outra abordagem.

— Cê é daqui de Areia Branca mesmo?

— Japaratuba, mas moro aqui — ele respondeu sem olhar pra Maria.

— O pessoal é todo da região?

— Tem uma van que cada dia pela manhã vai de povoado em povoado buscar os funcionários. De noite ela deixa a gente em casa.

— E como é pra quem trabalha de noite?

— Não conheço ninguém que faz esse turno.

— Entendi, então quer dizer que…

— Moça, me perdoe, mas se alguém da direção me vê papeando em horário de trabalho, eu vou pra rua.

— Ah, claro, eu que peço desculpas. Obrigada pela conversa. Inclusive, meu marido tá chegando ali. Até mais.

O segurança fez um aceno curto com a cabeça, e Maria se afastou pra encontrar Guará, que interpretava seu papel de turista. As mãos no bolso, a camiseta florida, os óculos escuros apoiados no cabelo e o protetor solar em excesso deixavam o irmão ridículo. Maria se segurou pra não dar uma gaitada.

— E aí, neguinha? — ele perguntou, sem perder a pose.

— Cê tá o cão chupando manga, sabia?

— Vou fazer de conta que isso foi um elogio.

— De certa forma, foi. — Maria pegou os óculos da cabeça dele e pôs nela mesma. — Então, eu tarra falando com o carinha ali da segurança, mas não consegui muita coisa não.

— Bom, Celestino me mandou mensagem avisando que a recepção fecha às sete da noite, e o bar às dez. Qualquer problema depois desse horário, só interfonando pro zelador que fica num chalezinho lá nos fundos.

— Eu tô achando a segurança do hotel meio falha… Não sei se é porque é novo ou se porque ainda tá em construção, mas parece que depois de escurecer só fica uns gato pingado aqui.

— Né isso? — Guará puxou o maço de cigarros do bolso. — Além do mais, tem pouco hóspede, e mais da metade é gringo.

— Então, eu vi uns pôsteres na entrada, parece que eles têm uns pacotes acessíveis pra baixa renda, mas só vi umas duas ou três famílias por aqui, além desse povo de fora.

Guará concordou com a cabeça e olhou o relógio de pulso.

— Deve ser a época do ano. De qualquer maneira, são quatro e meia agora. Eu vou ali fumar rapidinho.

— Pronto — respondeu Maria. — Vou lá encontrar Celestino e me aprontar pra mais tarde.

Celestino se sentou num banco do parquinho pra admirar o pôr do sol. Checou o horário no celular. Estava alguns minutos adiantado. Felizmente não demorou muito até Maria aparecer. Ela se acomodou no banco de trás, de costas para Celestino. Quem passasse por lá não acharia que a dupla conversava entre si.

— E aí? — perguntou Maria.

— Tudo certo pra mais tarde — Celestino respondeu enquanto olhava o celular.

— Guará e eu vamos aproveitar a zuada do forró pra entrar no escritório do véio e procurar o registro de hóspedes. Quem sabe até afanar um negocinho aqui e outro ali.

— Tá, eu vou ficar no bar então, de butuca.

— Deixe o celular ligado.

— Beleza. E Satanás?

Dois homens bem-vestidos — pela altura e pela pele exageradamente branca, provavelmente eram mais dois turistas — passaram caminhando por eles. Maria esperou até que se afastassem antes de responder:

— Véi, quanto gringo é esse? Tá parecendo Disneylândia isso aqui. — Ela deixou escapar um risinho. — Enfim, Satanás não atende o celular, mas ele disse que ia manter o carro funcionando pra se a gente precisasse sair na carreira.

— Beleza. Cê tá bem, Maria? — Celestino se dirigiu à amiga, ainda sem virar o rosto. — Se precisar de alguma cois…

— Tô bem sim, obrigada. Vai dar tudo certo.

— Graças a Deus. Até mais. — Celestino guardou o celular no bolso e se levantou.

Maria respirou fundo, pensativa, e seguiu na direção contrária.

Satanás estendia a mão o mais alto que podia, mas a barrinha não aparecia de jeito nenhum na tela. Apesar do nome da operadora telefônica, o sinal do celular estava morto. Maria ia comer ele com farinha quando soubesse disso.

Ele já havia tentado dar uma volta pelos arredores, e tinha reiniciado o aparelho tantas vezes que a bateria já estava em menos de cinquenta por cento. Voltou pra dentro do carro, o desespero lhe corroendo por dentro. Tudo o que podia fazer era aguardar até a hora marcada.

Botou um Alceu Valença pra tocar baixinho no celular, apanhou o chapéu do banco e ficou girando enquanto olhava fotos de Clarinha ao som de Anunciação.

Maria subia cada degrau com o máximo de cuidado pra não fazer zuada. Assim que chegaram ao terceiro andar, ela pegou o estojo no bolso e tirou o que precisava: arames e ferramentas pra abrir a porta do escritório. Pelo que tinha visto da vez anterior, era uma fechadura simples — não seria muito difícil de destrancar.

— E aí? — Guará sussurrou.

— Perainda, hômi — ela disse entre os dentes. — Pronto, vá na frente.

Os dois abriram a porta que dava pro corredor. Naturalmente, estava vazio. Guará entrou e fez sinal pra que Maria o seguisse. As cortinas fechadas impediam a luz da lua de entrar ali; a única iluminação do recinto vinha de duas lâmpadas presas na parede.

Já dava pra ouvir o forró comendo solto e bem alto lá fora.

— Falamansa, véi? Quem foi que achou que isso era forró de verdade? — Guará riu de nervoso.

— Isso que dá botar gringo pra escolher repertório. Mas vamo adiantar que Celestino deve tá agoniado lá embaixo, ainda mais com essa música tocando.

Atravessaram o corredor em silêncio, passaram na frente do elevador e pararam diante do escritório de Henry.

Guará abriu espaço e curvou a coluna, fazendo um movimento com as mãos de damas primeiro que Maria teve certeza de que era deboche.

Ela se ajoelhou e começou a trabalhar. Tinha razão quando calculou que seria uma porta fácil de abrir. Era uma fechadura barata, daquelas que se encontra em qualquer loja de material de construção.

Menos de cinco minutos depois, ouviu um clique. Maria sorriu.

Voilà.

— Voa onde?

— É uma palavra em francês… Deixa pra lá, vai, bora entrar.

Maria girou a maçaneta e espiou o interior do escritório, torcendo pra que não tivesse ninguém lá dentro esperando pra dar um susto neles. O lugar estava tão deserto quanto o corredor. Os dois irmãos entraram e fecharam a porta atrás de si.

— Não ligue a luz, use a sua lanterna. — Maria ligou a luz de flash da câmera do celular. O irmão aproveitou pra fazer o mesmo.

— Melhor cê ficar com o armário, neguinha. — Guará começou a levantar os papéis espalhados pela escrivaninha. — Eu que não vou mexer nessa prataria toda aí, deixa que eu olho a mesa.

— Verdade.

Maria destrancou o armário de Henry. Da outra vez, tinha visto o interior dele somente de relance. Agora que o enxergava de frente, parecia que tinha entrado numa feirinha de antiguidades. Canetas, relógios, cigarreiras, baús, colares e outros acessórios com cara de filme da Bonequinha de Luxo, que a mãe adorava assistir. Tudo era feito de prata, alguns até banhados a ouro.

— Marrapais! — Ela não conteve a felicidade. — A gente não precisa nem do dinheiro do caixa, só isso aqui já paga nossa dívida e ainda sobra. Achou alguma coisa aí, Guará?

— Mais ou menos. Só achei um livro velho, fede que nem uma bufa azeda. Tô tentando decifrar.

— Pera.

Maria deixou o armário de lado e foi ajudar o irmão. O tal livro velho estava aberto em cima da mesa; as páginas todas amareladas. Maria folheou um pouco e parou numa página qualquer. No topo, escrito em tinta preta, lia-se:

 

Buena Vista, Bolivia, July 13th, 2004.

 

— Tá em inglês essa budega. — Guará bisbilhotava a irmã enquanto ela mexia no livro.

— Mas dá pra ler. Me parece a lista de hóspedes.

— Ah, é, esqueci que você é a CDF da família.

— Psiu. — Maria empurrou Guará pro lado.

— Será que aí tem o registro do funcionário sumido de Araújo? — ele perguntou. — Qual era o nome dele mesmo? Lucas, Luís…

— É Luciano. Mas cê é tapado mesmo, hein? O que faria sem mim? — Maria passou o dedo pela página enquanto tentava decifrar a caligrafia rebuscada. — Hóspedes: Ariane Flores, 26 anos, cerca de 1,70m, cabelos pretos, lisos e longos. Olhos verdes. Bruno Flores… Lista VIP, Thomas Lewis, Jose Gutierrez…

— E aí, achou?

— Calma, hômi. — Maria folheou até a última página escrita. — Areia Branca, Brasil… Achei! Luciano Dantas, 34 anos, 1,67m, cabelos pretos, cacheados. Olhos castanhos… Tem nossos nomes falsos aqui também. José Lopes, Paola Lopes… Auction… Qual a tradução de auction mesmo?

— Sei lá. O que mais fala sobre Luciano aí?

— Que ele ficou hospedado um fim de semana em junho, só isso. Mas por que tá descrito até a cor de cabelo de todo mundo? Não tô gostando nem um pouco disso, Guará.

— Deixa isso e corre aqui. Pelo menos a gente leva essas pratarias e vende por uma grana boa.

Maria fechou o registro e foi ajudar o irmão. Guará abriu a mochila e fez sinal para a irmã.

— Cabe tudo aqui? Cê devia ter deixado seus livros no carro.

— Nunca se sabe quando vou precisar deles — respondeu Maria, reabrindo o armário.

Ela começou a entulhar a mochila com os objetos de valor, tomando cuidado pra que os itens de metal não se encostassem e fizessem muito barulho.

— Já sei exatamente pra quem vender essa velharia toda. — Guará pegou um relógio de ouro e testou no braço. — Só nesse troço aqui eu consigo uns oitocentos conto, no mínimo.

Foi quando ele percebeu algo.

— Que foi, hômi? — Maria parou de encher a mochila e encarou o irmão, que estava estático.

— Tá vendo esse cheiro?

— Não.

Guará lambeu os beiços, como se pudesse sentir o gosto na boca, e deu um passo em direção ao cheiro. O colar de sua mãe que levava no pescoço parecia pesar cada vez mais.

— Vou lá ver o que foi.

— E me deixar aqui sozinha?

Guará abriu uma fresta da porta. O corredor estava exatamente como haviam deixado. Ele deu um passo pra trás e enfiou a mão por debaixo da camisa.

— Termine de encher a mochila, te encontro daqui a pouco. E guarde isso com você.

Guará colocou um revólver na mão da irmã.

— Que porra é essa? Achei que cê tinha deixado em casa.

— Eu sabia que ia precisar uma hora. Só use em caso de emergência. — Guará se afastou dela, indo em direção ao corredor. — Já volto, só vou ver o que tá acontecendo.

Maria segurou a arma como se ela fosse morder a qualquer momento. Não tinha forças pra brigar com o irmão. Olhou para trás, e Guará tinha sumido.

A garrafa de 51 convidava Celestino pra dançar. Ele tinha passado a maior parte do dia entediado e, agora, pra piorar, estava no show de uma banda cover de Falamansa. Sabia que sua participação naquele esquema tinha sido planejada de última hora, mas não conseguia deixar de sentir que estava ficando de lado. Guará, como sempre, não pensava em ninguém além do próprio umbigo; Maria, apesar de brigar com o irmão o tempo inteiro, sempre acabava cedendo; e Satanás… Bom, Satanás não fedia nem cheirava, só dirigia mesmo.

Mas a 51 com certeza o entenderia melhor que todos eles.

O garçom passou ao lado de sua mesa, e Celestino levantou uma mão, meio que por reflexo. O homem percebeu o chamado e se aproximou.

— Me vê uma dose, faz favor.

Durante todo o trajeto que o cabra fez para ir até o balcão, tirar a garrafa da prateleira, lavar o copo, encher a dose e trazer a bebida, Celestino ficou pensando em pedir pra cancelar o pedido, mas a coragem ficou presa na garganta.

— Pronto, senhor. — O garçom trouxe a dose de cachaça.

Ele agradeceu enquanto se amaldiçoava pela escolha que tinha tomado. Na verdade, enquanto se amaldiçoava por praticamente todas as decisões que tinha tomado desde o dia em que saíra de fininho da igreja na semana anterior. Depois que aquilo tudo passasse, diria umas verdades na cara de Guará.

O bar estava mais cheio do que Celestino imaginava. Ficava na área externa, coberto só por um telhadinho de madeira, escondido da entrada do hotel. O homem reconheceu de vista alguns dos hóspedes — dois dos gringos, um casal que tinha tomado banho de piscina mais cedo e um rapaz careca que já estava pra lá de Bagdá com uma garrafa de Dreher na mesa. Além deles, havia o próprio garçom, alguns seguranças, a bandinha — composta por um sanfoneiro, um violonista e um percussionista — e um bando de gente bem-vestida que certamente ficava enfurnada na área chique do hotel o dia inteiro. Esses mais ricos — incluindo os dois gringos — assistiam ao show de um camarote elevado ao lado do palco.

 Até num hotel de luxo dava-se um jeito de fazer os menos abastados se sentirem inferiores.

Numa parte instrumental da música, o vocalista apontou para o fundo do bar e fez um anúncio:

— Com vocês, senhoras e senhores, Mr. Henry Howard.

O gringo bigodudo apareceu no recinto sob uma salva de palmas.

— Vamos fazer uma pausa agora e daqui a pouco voltamos pro segundo ato. — O cantor guardou a sanfona no pedestal, e os três integrantes da banda deixaram o palco às pressas, quase correndo. Celestino estranhou, mas ficou na dele.

Pegou o copo de cachaça com cuidado pra não desperdiçar a pinga na mesa, mas hesitou por um instante. O bar estava estranhamente silencioso, feito rodoviária de interior. O dono do hotel conversava aos risos com os gringos no camarote — Celestino lamentou por Maria não estar ali, já que há muitos anos tinha desaprendido o inglês. Um dos estadunidenses, um homem loiro e alto, arregalou os olhos; todos ao redor bateram palmas como se ele tivesse acabado de ganhar na loteria. Celestino olhou em volta: os hóspedes não pareciam se importar com aquela cena; talvez ele tivesse uma intuição melhor pra saber quando algo não parecia certo.

Afastou a cadeira da mesa para se levantar — iria dar uma volta nas redondezas e checar se a barra tava limpa pra Guará e Maria —, mas foi surpreendido por uma mão em seu ombro.

— Mantenha-se sentado, senhor, por favor — disse um dos seguranças. — O show ainda não acabou.

Celestino também estranhou aquilo, mas preferiu não tomar nenhuma ação brusca.

O dono do hotel fez sinal pro garçom, que apertou play no aparelho de som. A música que saía da caixa estava mais alta do que quando a própria banda tocava no palco.

O gringo de olhos azuis se levantou, deu um beijo na esposa — igualmente gringa — e desceu do camarote. O dono do hotel lhe deu um par de luvas, que ele calçou, e apontou pro casal de hóspedes que bebia cerveja desavisadamente.

This one? — ele perguntou. Celestino entendeu a frase. Henry apenas fez que sim com a cabeça.

Celestino nem teve tempo de pensar em como iria reagir.

O gringo loiro pegou um facão da mesa e enfiou com tudo nas costas do homem.

A mulher que o acompanhava deu um grito estridente, que foi seguido pelo som de armas sendo engatilhadas e apontadas aos presentes. Até mesmo o bebum levantou a cabeça de supetão.

— Puta que me pariu — disse Celestino, sentindo o cano frio da arma encostar na nuca.

Guará podia sentir aquele cheiro familiar de longe. O corredor estava um breu, e ele precisou encostar a mão na parede pra se guiar. Atravessou o andar com calma, tentando achar a origem do fedor. O colar de prata da mãe pesava no tórax, e Guará começou a suar mais do que deveria. Desceu um lance de escadas, ainda em silêncio. A intensidade do cheiro aumentava.

Foi quando pensou que o cheiro talvez estivesse vindo da área externa.

Guará se adiantou até a janela e olhou através das cortinas. No bar, ao longe, percebeu uma agitação. Não conseguia enxergar tudo com clareza, mas a visão dos homens com armas apontadas pros hóspedes — inclusive Celestino — foi o suficiente.

Seu sangue ferveu. Mordeu os lábios, sentindo o gosto ferroso invadir sua boca, e olhou para o céu logo antes de arrancar o colar do pescoço.

Todo mundo se manteve em silêncio enquanto o gringo loiro enfiava a ponta da faca no homem repetidamente, com um sorriso manchado de sangue no rosto. Bom, quase todo mundo. A companheira do recém-morto chorava, imobilizada pelo garçom, com uma arma apontada para a cabeça. Henry desceu calmamente do camarote e caminhou até o centro do bar, olhando para o homem sendo estripado no chão.

— Jonas, tem dois hóspedes que não está aqui nesse momento. Manda alguém de ronda noturna procurar eles e trazerr aqui. Agora.

— Sim senhor. — Um dos seguranças saiu em direção ao saguão de entrada, sempre com a arma apontada para os hóspedes.

Celestino não moveu um músculo. A dose de cachaça continuava intocada em cima da mesa.

— Muito bem, quem é o prróximo? — Henry continuou com serenidade, quase como um caixa de supermercado chamando os clientes.

As pessoas no camarote cochichavam entre si, e um homem levantou a mão — apesar das roupas chiques, parecia ser brasileiro.

— Finalmente decidiu botar mão na massa, capitão? — perguntou o gringo.

— Não, nada disso, seu Howard. Meu papel se resume a observar e garantir que tudo ocorra nos conformes e na surdina. — O homem tinha sotaque sergipano. Ele se levantou devagar, colocou o que parecia ser um distintivo em cima da mesa e estendeu a mão pra mulher ao lado dele. — Mas minha esposa parece ter adquirido uma… curiosidade com o passar do tempo.

— Que grrata surpresa, Senhora Coelho. — Howard fez sinal para ela se aproximar. A esposa do capitão se ergueu da cadeira, o olhar vidrado nos hóspedes. Desceu do camarote e aproximou-se do centro do salão. Tinha as pupilas dilatadas, e respirava com mais força que uma criança depois de levar corre de um boi.

— Fique à vontade, meu bem. A senhora saber regra melhor que ninguém. Cada um dos dois rapaz custa vinte mil. A moça ali, trinta mil. Dollars, é claro.

Ela calçou a luva esquerda que Henry ofereceu e apontou pra Celestino.

— Ele.

— Ótima escolha. Lembre-se que canibalismo ter custo adicional, tente não acertar órgão que quiserr comer, e boa caçada — disse Henry. Em seguida, ele se virou para Celestino. — Se quiserr, pode reagir, mas qualquer movimento brusco ser mais doloroso pra você.

O segurança apertou o cano da arma contra a nuca de Celestino.

A mulher pegou um facão de açougueiro e se aproximou, os longos cabelos arrumados mexendo pra lá e pra cá com o vento.

— Posso fazer um pedido? — perguntou Celestino, olhando pra Henry.

— Ela ser sua dona agora, não eu.

Celestino encarou a mulher com um certo desafio no olhar, e ela pareceu se excitar com aquela afronta.

— Que pedido?

— Terminar minha pinga. Só isso.

Ela levantou uma sobrancelha, como se achasse estranha a proposta, mas concordou com a cabeça.

Celestino levantou o copo, trouxe para perto de si e derramou um pouco do líquido na grama.

— O que é isso?

— É pro santo. — E virou o resto de uma vez, sentindo o álcool fazer arder sua garganta.

Não tinha jeito: beber era bom demais da conta.

Bateu o copo na mesa e sentiu a peixeira atravessar seu bucho.

Já não cabia mais nada na mochila. Maria tinha deixado pra trás alguns itens de menor valor, como a coleção de charutos do gringo. Pendurou a bolsa no ombro e saiu do escritório. Atravessou o corredor devagarinho — mais por causa do peso nas costas do que pelo silêncio —, levando o revólver do irmão na cintura. Andou até a porta que indicava a saída; três lances de escada e estaria fora daquele lugar.

Assim que descobrisse onde o irmão tinha se metido, é claro.

Desceu as escadarias, um degrau por vez. A mochila devia estar pesando uns dez quilos, pelo menos, e Maria não conseguia ir mais rápido que aquilo. Passos ecoaram lá de baixo, vindo em sua direção. De cara, achou que fosse Guará, mas o vulto que enxergou pelo vão da escada não era seu irmão. Um homem alto, segurando uma pistola, subia os andares com pressa, abrindo cada porta em busca de alguém nos corredores.

Dessa vez suas pernas se moveram com agilidade. Sem hesitar, Maria passou pela primeira porta que viu e fechou-a atrás de si.

Disparou pelo corredor do segundo andar, mas a mochila, além de limitar seu movimento, fazia barulho de metal batendo em metal. Olhou para trás e viu a porta que dava pras escadas se abrir.

Não deu outra: largou a bolsa no chão e correu. A cada porta que passava, girava a maçaneta. Lá pela quinta tentativa, encontrou uma aberta e fechou-se dentro do cômodo.

Maria queria se arrepender de ter aceitado roubar aquele caralho de hotel, mas não tinha tempo pra pensar naquilo.

Segurou a ânsia de vômito com mais força do que o revólver calibre .38 que levava na mão esquerda. Ela não tremia tanto desde quando o irmão a convenceu a roubar manga do quintal do vizinho, trinta anos atrás.

O celular vibrou em seu bolso, e Maria achou que estava enfartando.

— Caraio, Satanás — ela sussurrou entre os dentes cerrados. — Onde cê tá, hômi?

— Tô aqui fora, tava sem sinal. Já dei partida no carro. Cêis tão demorando que só a peste. Acont…

Passos ecoaram no corredor do lado de fora do quarto onde Maria se escondia. Ela se arrastou mais pra longe da porta, sentindo um calafrio subir pelas costas suadas.

— Maria? Alô?

— Satanás, me escute — ela disse, ofegante. — Cadê Celestino e meu irmão?

— Eles num tavam com você?

Maria queria muito gritar, gritar e gritar, mas queria mais ainda sobreviver, então engoliu em seco o desespero.

— Satanás, chame a porra da polícia. Agora.

— Polícia, Maria? Cê quer ir presa a pulso, é?

Uma sombra surgiu pela fresta da porta e cresceu, como se pudesse se esticar pelo chão e agarrar seus pés. Um grunhido ressoou lá de fora, fazendo Maria se encolher na quina do quarto.

— Cê num tá entendendo — ela disse, ainda mais baixo.

— Apois, num tô entendendo mesmo. Eu vou entrar.

— Não faça isso, hômi! Satanás? Alô, Satanás? — A ligação caiu e o telefone ficou mudo.

A sombra se avolumou por debaixo da porta, quase encostando em seus pés.

Maria não estava sozinha.

Celestino sentia um leve incômodo no estômago.

A mulher à sua frente, porém, o encarava como se estivesse de frente para um monstro — de certa forma, estava mesmo.

Ela tirou a peixeira da barriga dele, que saiu facinho, sem nem jorrar sangue, e enfiou de novo, um pouco mais pra cima.

— Cê não acha que já tá bom? — Celestino segurou a mão da mulher e a ajudou a tirar a peixeira.

— Que porra é essa?! — Ela olhou para Henry, como se acreditando que ele fosse ter uma resposta na ponta da língua.

Ele não tinha. O gringo tava branco que nem papel.

— Solo sagrado. — Celestino apontou pro chão, bem onde a pinga derramada brilhava, logo abaixo da cadeira. — Felizmente, o santo é um velho amigo meu.

A mulher deixou a faca cair, sem conseguir nem balbuciar uma única frase, e se afastou de ré, os olhos vidrados em Celestino.

— Cêis se meteram com o bando de cabra da peste errado. — Celestino se levantou e limpou a sujeira da roupa sob o olhar atônito dos presentes. — Foi Araújo quem mandou vocês?

Henry negou com a cabeça.

— Cêis são alguma seita satânica, alguma sociedade hermética bizarra?

Henry negou novamente. O gringo já era branco que só a peste, mas, de alguma forma, tinha conseguido ficar ainda mais.

— Isso aqui é só por… dinheiro? Por prazer?

Henry não respondeu, mas Celestino entendeu aquilo como um sim.

— Armaria, vocês realmente não sabem com quem se meteram, né? — Celestino olhou pra trás e finalmente entendeu o que tinha deixado todo mundo ali sem reação. — Eita pega.

Suas asas estavam à mostra. Numa delas, faltava metade das penas, e as que ainda sobravam estavam todas desbotadas. A outra asa nem pena tinha. Com um empurrãozinho e um pouco de esforço, ele as contraiu de volta.

Celestino se levantou e olhou pro céu. A lua cheia estava quase em seu ápice. Um cheiro de pelo molhado pairou no ar noturno.

— Cêis tão tudo fudido. — Ele fez o sinal da cruz. — Guará vem aí virado no raio da silibrina. Vou orar pelas suas almas.

Os seguranças armados deram um passo para trás e apontaram as pistolas em sua direção, mas aquilo não durou mais que três segundos.

Um vidro se estilhaçou ao longe, e, antes mesmo de alguém conseguir reagir, um bicho enorme — devia ter uns três metros de altura — caiu em cima do homem que tinha a arma na nuca de Celestino. O som foi uma mistura de costela quebrada e tripa espatifada.

A besta-fera olhou as pessoas ao redor, as pupilas dilatadas mexendo pra lá e pra cá, a venta enorme fungando cada uma delas e os caninos à mostra do tamanho de espigas de milho afiadas. Pelos longos e amarronzados cobriam a pele quase que por inteiro, menos nas palmas das patas, que se armavam em posição de ataque.

We… werewolf? — O gringo já nem parecia saber mais falar português.

Os homens armados — inclusive o suposto garçom, que tinha deixado a garrafa de 51 cair — descarregaram seus cartuchos de munição no bicho, mas as balas caíam feito carrapato.

Celestino se sentou novamente, alegre ao perceber que, quando aquilo terminasse, teria algumas garrafas de cachaça à disposição. Ele iria precisar.

— Aquela mulher e aquele cabra ali são inocentes, Guará, não vai fazer besteira. — Então, ele tirou um terço do bolso e começou a rezar. — Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco…

Guará se aproximou do dono do hotel, babando e andando em duas patas. O velho recuou e caiu no chão. Uma poça de mijo cresceu logo embaixo dele.

— Bendita sois vós entre as mulheres, bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus…

O bicho segurou Henry pelo pescoço, sua pata enorme envolvendo a cara dele.

Please… No…

Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós, pecadores…

Henry começou a sangrar pelos ouvidos por causa da pressão que os dedos faziam em suas têmporas. Aos poucos, a vida foi se esvaindo de seu corpo.

— Agora e na hora de nossa morte, amém.

Mesmo com a tremedeira, Maria apontou a arma na direção da porta. Levou a mão livre às costas, mas lembrou que tinha deixado a mochila para trás, e com ela os livros de feitiço. A maçaneta girou, e seus pelos da nuca se eriçaram.

A porta foi se abrindo aos poucos, e a silhueta de uma pessoa foi se formando.

Maria encostou o dedo no gatilho.

O homem entrou no quarto e, assim que viu Maria com a arma apontada, levantou as mãos. Ele também tinha uma pistola, que agora estava erguida no ar.

— Se chegar mais perto, eu meto uma bala no meio da sua fuça.

— Calma, moça, eu vim te ajudar. — A voz do homem era calma.

— Que ajudar o quê? Tá me achando com cara de abestalhada?

— É sério, veja.

O homem se agachou, pousou a arma no chão e a chutou pra longe. Maria mantinha a dela mirada na caixa dos peito dele.

— Seu marido pediu pra te chamar. Ele tá esperando no quarto.

— E por que ele mermo num veio?

— Teve um contratempo, disse que cê ia entender.

Maria aguardou um pouco, esperando o homem soltar mais alguma informação, mas ele ficou quieto. Ela se levantou, apoiando uma mão no chão e mantendo a outra com a arma apontada, e andou até a pistola que tinha deslizado pro canto do quarto.

— Cê fique aí quietinho. Encoste na parede.

O homem obedeceu.

Ela colocou a segunda arma no bolso e andou em direção à porta, tomando cuidado. O homem se ajeitou na posição em que estava.

— Num se mexa não, tô avisando.

Ele ficou estático novamente, os olhos vidrados em Maria.

— Cê num vai atirar assim do nada.

— Duvida?

— Sua mão tá tremendo, você tá suando.

— Pois aí que é pior pra você. Eu posso acabar fazendo uma besteira.

— Eu acho que não — ele disse, de cara lavada.

— Pois eu acho q…

Maria foi pega de surpresa.

Mais alto e mais forte que ela, o homem avançou, dando uma finta pra desviar do tiro que Maria deu, na reação. Ele a desarmou — o revólver voou pra debaixo do armário — e pegou de volta a própria pistola no bolso dela. Enforcou-a por trás e apontou a arma.

— Não é que cê atirou mesmo? — ele disse em tom de deboche. — Agora venha comigo, devagarinho.

Maria tinha dificuldade pra respirar, quanto mais pra tentar gritar. Ela devia ter ouvido o irmão e atirado logo de cara no sujeito. Mas no fundo sabia que iria dar pra trás na hora H.

O homem a forçou a caminhar pra fora do quarto, e ela não teve muita escolha.

O corredor estava escuro. Porém, Maria enxergou uma silhueta no meio do breu. O homem também devia ter percebido, pois parou de caminhar do nada. A sombra se moveu na direção deles, seus olhos vermelho-fogo reluzindo no escuro.

— Quem é você? — o homem armado perguntou, e Maria sentiu a voz dele tremer.

A pessoa no corredor chegou mais perto, confirmando o que Maria já sabia: Satanás se aproximou e parou a uns vinte palmos de distância. Pela primeira vez em muito tempo, vestia o chapéu panamá vermelho na cabeça. Mesmo já tendo visto aquilo algumas vezes, Maria sempre se surpreendia com aquela faceta do amigo. Era ao mesmo tempo assustadora e de dar risada, se é que era possível; o chapéu grande demais não combinava com o formato do rosto dele.

O homem desencostou a pistola da cabeça de Maria e mirou em Satanás.

— Quem é você?

— Muita calma com essa arma aí, parêia. — Satanás juntou as mãos no peito em uma posição defensiva.

— Quem é você? — repetiu o homem armado.

— Eu sou o cabra que passou a perna no capiroto. Já teve mais de um que desafiou o Diabo, mas eu fui o único que foi pro Inferno e voltou vivo pra contar a história. Nunca ouviu a música?

O homem fez uma cara confusa.

Satanás soltou uma risada desproporcional, bateu palma com a mão e com o pé no chão e começou a cantar, deixando Maria avexada e o homem encafifado.


Eu vou te contar de um homem

Que veio de Aracaju

Mas no meio das andança

Encontrou o belzebu

Resolveu tentar a sorte

E quase tomou no cu

 

Maria queria enterrar a cara no chão de vergonha, mas a música parecia ter servido ao seu propósito, pois o homem tava mais nervoso que antes.

— Dê… dê meia volta, senão eu atiro.

— Cê tem cara de cabra ruim mermo. Se fala que vai atirar, eu acredito de pé junto.

— A… acho bom.

— Mas aí é que tá: em quem cê vai atirar?

A pistola do homem começou a se mover devagar, numa tremedeira só, até encostar na própria cabeça.

— Em q… quem eu vou atirar?

O braço que apertava o pescoço de Maria afrouxou. Ela tossiu, respirou fundo para recuperar o fôlego e se afastou, indo pro lado do amigo.

A única expressão estampada no rosto do homem era pânico. Sua cabeça se mantinha virada pra frente, mas ele encarava a pistola meio que de lado, sem conseguir mexer o rosto. O braço estava paralisado, mas era visível o esforço descomunal que ele fazia pra tentar mover um músculo sequer.

— Cê tirou um fino danado de matar a minha amiga aqui. Sabe pra onde gente que nem você vai quando morre, né? Eu já tive lá e posso te dizer que é ruim que só a peste. Quer dizer, ruim é um apelido bem carinhoso.

O homem não respondeu nada — se é que conseguia falar. O próprio dedo indicador apertou um pouco mais o gatilho da arma, e seus olhos se espremeram de medo.

— Satanás, não. — Maria encostou a mão no ombro do amigo. Ele a olhou de volta por um instante.

— Cê tem família? — perguntou Satanás, ignorando a amiga.

O homem balançou a cabeça levemente, indicando que não tinha.

— Inda bem — continuou Satanás. — Imagina se tivesse, ia ser horrível pra eles ter que viver com alguém que nem você. Um dia ia acabar trazendo problema pra dentro de casa.

Maria sentiu um nó na garganta com aquela frase.

— Quer que eu cante mais uma estrofe? — perguntou Satanás, ainda rindo.

O homem balançou a cabeça de novo.

— Que pena, eu gosto tanto desse repente.

Satanás estalou os dedos, e o som de um tiro reverberou pelo corredor do hotel. Maria fechou os olhos e prendeu a respiração; quando finalmente relaxou, o corpo do homem estava estatelado no chão.

Mas não tinha sangue em lugar nenhum.

— Cê tá bem? — perguntou Satanás, tirando o chapéu da cabeça. Seus olhos perderam a luz interna e voltaram para a cor castanha. Maria fez que sim. — Ótimo. Relaxe, eu fiz ele atirar pra cima, mas o coitado desmaiou de medo. Pelo cheiro, se cagou todo também. Logo ele acorda. Vambora.

Celestino terminou de benzer o último dos cadáveres — meia dúzia de gringo, o capitão da PM, a esposa e o hóspede que infelizmente tinha sido morto —, pensando que ia sujar o Chevette todinho com o sangue que pingava das calças.

— Porra, Guará, mas tu também, viu? Vou te contar…

— Num venha não. Eu salvei a porra da sua vida. — Guará coçava as costas furiosamente. As roupas tinham rasgado com a transformação, e ele vestia apenas uma bermuda de elástico. — Misericórdia, toda vez isso. Eu me transformo e fico cheio de alergia, parece que tô com sarna.

Celestino suspirou, limpou a mão numa toalha de mesa e foi atrás dos sobreviventes. A moça segurava o cadáver do companheiro nos braços, ainda em prantos.

— Eu sinto muito. — Celestino fez o sinal da cruz. — Cê tá machucada?

Ela não respondeu de imediato.

— O senhor… não consegue… trazer meu noivo… de volta, seu anjo? — ela soluçava ao falar.

— Infelizmente, é impossível pra mim. Já não tenho esse poder há séculos, mas vou rezar pela alma dele.

Ela se recolheu à sua dor. Celestino resolveu deixá-la em paz.

O outro sobrevivente estava sentado à mesa, encarando o nada com um olhar quase que hipnotizado.

— Tá bem, fio? — Celestino encostou a mão em seu braço.

O homem concordou com a cabeça e afastou a garrafa de Dreher.

— Nunca mais eu vou beber — ele disse, sem nem piscar.

— Faz bem.

Guará gritou ao longe:

— Ô, Celestino, se apronte logo aí que eu vou atrás de Maria, ela ficou pra trás.

— Acho que não vai precisar. — Celestino indicou a entrada do hotel com a cabeça, e Guará se virou pra enxergar.

Maria e Satanás caminhavam em direção ao bar no maior sossego. Guará os avistou e correu ao encontro deles. Celestino pediu pros hóspedes restantes que não saíssem dali e foi também encontrar o grupo.

Pra surpresa de Maria, a primeira coisa que seu irmão fez foi lhe dar um abraço mais apertado do que o necessário. Ela não reclamou.

— O que aconteceu lá dentro, neguinha? — perguntou Guará, procurando algum sinal de ferida na irmã.

Maria se desvencilhou e empurrou o irmão.

— O que aconteceu pergunto eu, seu fio duma égua. Você saiu correndo e me deixou lá.

— Eu senti cheiro de sangue e fui ver o que era. Ainda deu tempo de salvar o couro de Celestino.

— Tá, mas que peste… — Maria olhou por trás do ombro do irmão. — VALHA-ME DEUS. De onde saiu tanto sangue? Cêis tavam degolando um boi?

— Não, é que… — Guará pensou por um instante e depois se virou pra Celestino. — Ela tem razão, o que é que tava acontecendo aqui? Por que tinha um segurança do hotel com a arma na sua cabeça quando eu cheguei? E aquele cabra, o marido da outra lá, que tava mais furado que peneira véia?

— Depois eu conto direito. Mas era um negócio meio que de psicopata, serial killer canibal, sei lá, coisa de americano. Os cara tava pagando pro gringo achar gente e eles matar a sangue frio. Se tu bota num filme, ninguém acredita.

— Era ritual satânico ou congregação de vampiro? Tem aumentado muito esses anos… — disse Satanás.

— Que nada. Só dinheiro e adrenalina mermo.

— Mar minino. — Maria levou a mão à boca. — Mas um negócio desse não pode ter sido coincidência.

— Se eu encontrar Araújo, vou dar uma surra de cansanção nele. — Celestino mordeu o lábio inferior.

— É sua chance, então. — Uma luz ofuscante tomou conta do lugar, e Satanás tapou os olhos com a mão.

Três carros pretos surgiram enfileirados pela estrada de terra branca, os faróis de milha ligados. Ignoraram o jardim e estacionaram na grama. Um só carro daquele devia valer uns dez Chevettes velhos. A porta de um deles se abriu, e de dentro saiu Araújo, de boina e óculos escuros. Uma carrada de gente saltou dos carros, homens vestidos com macacões e carregando maletas enormes. Araújo fez sinal para que eles vasculhassem o hotel e se aproximou do grupo.

— Que bonitinho, os quatro reunidos aqui. — Ele tirou os óculos e abriu os braços.

— Bonitinho uma porra. Desembucha logo, onde cê meteu a gente? — Celestino tomou a frente.

— Peraí, eu nem cheguei direito e cê já vem com sete pedras na mão?

Guará puxou Celestino pelo braço e peitou Araújo.

— Cê sabia que tinha uma porra duns psicopata americano aqui nesse hotel?

— É o quê, véi? Vamos com calma. E Luciano, descobriram o paradeiro dele?

— Se não deu mais as caras, deve ter virado jantar de gringo.

Araújo deu um suspiro e olhou para o céu. Sem pressa, guardou os óculos na gola da camisa e fechou um dos botões.

— Gringo filho de uma égua.

— Vai me dizer que você não sabia de nada? Minha irmã podia ter morrido!

— Eu achei que ia ter algo a ver com droga, sei lá, mas não isso. Além do mais, se eu soubesse a verdade, cê acha que eu teria avisado?

Guará tentou avançar em Araújo, mas foi preciso Celestino e Maria pra segurar o cabra.

— Me dê um só motivo pra eu não crinar e enfiar uma dentada na sua jugular agora mesmo!

— Eu tenho uma lista, quer? — Araújo não parecia assustado com o jeito violento de Guará. — Lembre-se que cêis devem pra mim, e que eu devo pra outras pessoas. Se eu desapareço de um dia pro outro, de quem é que essas pessoas vão cobrar o dinheiro?

Guará não sabia como responder. Deu o dedo pro homem e saiu de perto virado na peste.

— O que importa é que tão vivos — Araújo continuou. — Eu sei que cêis me veem como o vilão, mas eu não me vejo dessa maneira. Como diria Renato Russo, que Deus o tenha, não boto bomba em banca de jornal, nem em colégio de criança, isso eu não faço não. E não protejo general de dez estrelas, que fica atrás da mesa com o cu na mão. Agora dá licença que preciso fazer a limpa. Não foi pra isso que Satanás me ligou?

— O safado ainda por cima cita Legião Urbana, não é pra matar um fidapé desse? — Guará disse entre os dentes.

Maria deu um passo adiante.

— Chega de criancice, cêis dois. Escuta, Araújo: segundo andar, no corredor, uma mochila preta. — Ela apontou pro hotel. — Tem tudo que consegui juntar de valor. Só preciso voltar lá pra pegar meus livros. Tamos quites?

— Eu ainda preciso avaliar o material, é claro, mas tem a questão da limpeza. — Araújo desviou o rosto pra indicar o time que descarregava o material do bagageiro dos carros. — Tem sangue que só a peste no chão. Além do mais, sobrou alguém vivo? Tem o custo dos meus serviços de apagar a memória das testemunhas, et cetera e tal. Isso não sai barato.

— Tá todo mundo no salão ali do fundo. E tinha um policial militar junto com o gringo, certeza de que era bem pago pra manter tudo debaixo dos panos — disse Celestino. — Mas isso tudo podia ter sido evitado se você tivesse jogado a real com a gente.

— Celestino, deixa quieto. — Satanás pôs a mão no ombro do amigo. — De quebra de contrato eu entendo. Cê só vai se aperrear se começar a discutir.

Araújo abriu um sorriso odioso e pôs os óculos de volta.

— Senhores e senhorita, se me dão licença, envio a conta pra vocês na segunda, depois do jogo do Flamengo.

Maria, Celestino e Satanás ficaram em silêncio por um tempo, sem reação.

— Vão lá chamar Guará pra gente ir. — Satanás puxou a chave do carro de dentro do chapéu. — Acabei de lembrar que esqueci o chevetão ligado, se essa gasolina acaba no meio do caminho, a gente tá lascado.

— Tonico, desce mais uma que hoje eu vim pra comer água.

A caixa de som tocava Tayrone Cigano estourado no último volume, o que fez Celestino se perguntar se tinha valido a pena trocar o céu por aquilo. Mas, quando Tonico trouxe o copinho americano cheio até a metade e adicionou de graça um chorinho e uma porção de amendoim cozido, o pensamento sumiu da cabeça do anjo.

Maria e Satanás se sentavam ao seu lado na mesa. Tonico ofereceu um refil da dose, mas nenhum dos dois estava bebendo naquela noite.

— Até tu, Maria? Achei que ia me acompanhar.

— Vô nada, hômi, tô de cabeça cheia hoje.

— Mas aí que é bom dar uma golada, pra ajudar a organizar os pensamentos.

— Falando nisso, cadê teu irmão? — Satanás checava o celular com uma mão e girava o chapéu com a outra.

— E eu que sei? Tonico! — Maria pensou melhor e resolveu que ia beber. — Vou querer.

O garçom bufou, visivelmente irritado, e refez o caminho inteiro do balcão à mesa. Maria pediu desculpas e agradeceu. Ela levantou a bebida na direção de Celestino, que derramou meia dose pro santo antes dos dois virarem a bebida de uma vez.

Celestino tinha razão; aquilo ajudava mesmo a organizar os pensamentos.

— Eu tarra aqui pensando com meus botões — ela disse, chamando a atenção dos amigos. — Por que a gente não vai embora todo mundo desse fim de mundo? Pega um empréstimo, paga Araújo e some de uma vez? Minha tia-avó Josefa tem casa lá em João Pessoa.

— E minha filha? — Satanás nem pestanejou pra responder. — Num posso sumir assim do nada. Primeiro que ia ser um pega pra capar com a mãe dela. Segundo que eu não fiz pacto com o sete-pele à toa pra deixar a Clarinha desprotegida assim.

— E você, Celestino? — Maria perguntou.

O anjo limpou o canto da boca enquanto pensava.

— Não sei responder essa. De verdade. Onde tiver um risca-faca, um forrozinho, uma comidinha caseira, eu topo ir. Seja em Aracaju ou no Alabama. Ou em João Pessoa, no caso.

— Vocês ainda tão nessa conversa fiada de João Pessoa? Deuzulivre.

Guará puxou uma cadeira e se sentou. Maria percebeu de relance o colar da mãe preso em seu pescoço.

— É que a gente… — Satanás tentou explicar.

— Relaxe, tô mangando de vocês. Tonico, desce uma rodada.

Tonico se levantou de novo, abaixou o volume do som que tinha mudado pra um trio de sanfoneiros e desviou dos casais que estavam arriando a fivela no meio do salão.

— Neguinha… — Guará ficou enrolando antes de continuar a frase, o que significava que ia provavelmente se desculpar por algo e que estava escolhendo as palavras. — Obrigado pela ajuda nesse trabalho.

— Ah, deu pra querer me agradar agora? Tarde demais! Além disso, quem salvou o dia foi você. Eu não fiz foi nada.

— Nada uma porra, Maria — Satanás se intrometeu, levando a mão à boca quando percebeu que tinha soltado um palavrão. — Você montou o plano, engabelou o gringo, invadiu o escritório dele, traduziu os inglês, além do que, se não fosse seu mau agouro, a gente não teria ido tão preparado pra esse trabalho.

— Tô com Satanás e não abro. — Celestino concordou com a cabeça. — Não cabe nos dedos das mãos a quantidade de cilada que a gente escapou graças a você. É só por sua causa que a gente já não partiu dessa pra melhor… Bom, vocês, no caso.

— E eu já fui lá pra baixo uma vez, mas não conta — completou Satanás.

Guará colocou o colar de prata em cima da mesa.

— Fora que, se você não tivesse encantado o colar da mãe, ia ser mais difícil controlar minha transformação.

Maria deixou escapar um sorriso sincero.

— Tá bom, meninos, obrigada, já podem parar de me bajular. Mas vou te contar que fiquei puta por ter esquecido meus livros no corredor. Um feitiçozinho de proteção qualquer e eu não tinha me metido naquela cocó. Preciso treinar mais, não posso ser aprendiz pra sempre.

Tonico chegou com a cachaça de Guará, que pegou o copo e levantou-o no ar. Com os quatro com as devidas bebidas em mãos — Satanás com uma latinha de guaraná —, Guará propôs um brinde:

— Ao nosso próximo trabalho.

Celestino, que já estava no processo de brindar, tomou um susto e quase derrubou o copo. Maria bateu o dela na mesa e soltou um grito. Satanás arregalou os olhos e não quis nem saber; tava com sede e bebeu assim mesmo.

— Próximo trabalho? Araújo já tá cobrando a dívida? Assim, em menos de uma semana? — Maria perguntou.

Guará não segurou o riso. A irmã deu-lhe um beliscão, e a mesa virou uma bagunça. Era risada pra cá, grito pra lá.

— Agora é sério. — Guará levantou o copo. Os outros o encararam, sem querer cair no conto do vigário de novo. — Não tem trabalho nenhum, pelo menos por enquanto. Mas eu queria dizer que, independente do que aconteça, nem que a gente seja atacado por um mapinguari ou que Satanás caia nas graças da Mãe de Patanha…

— Ei! — Satanás protestou.

— O que importa é que a gente tá junto — continuou Guará, olhando para a irmã.

— Saúde — disse Maria.

— Saúde — os outros fizeram eco.

A foto quadrada mostra homem branco de boina cinza, barba castanha batida, sobrancelhas grossas e uma camisa vermelha. Ele sorri levemente, com o rosto meio virado para o lado esquerdo. O fundo está desfocado.

Thiago Lee é sergipano, nascido e criado, mas por algum motivo obscuro reside em São Paulo capital. Formado em edição de livros pela Casa Educação, é autor do livro O homem vazio (2018, independente) e podcaster no Curta Ficção.

Jana Bianchi é escritora, tradutora de livros, quadrinhos e jogos de tabuleiro, editora-chefe da Revista Mafagafo, cohostess do podcast Curta Ficção e passeadora de lobisomens. Entre outros, publicou a novela Lobo de rua (2016, Dame Blanche) e contos em antologias e revistas como Trasgo, Somnium e Dragão Brasil. Pode ser encontrada no site janabianchi.com.br e no Twitter e no Instagram como @janapbianchi.

A foto quadrada mostra uma mulher branca, de cabelos morenos e cortados na altura do ombro, meio bagunçados. Ela está sorrindo levemente e tem a mão estendida na direção da câmera, com os olhos fechados. Ao fundo, que é bem desfocado, é possível ver as luzes urbanas de uma avenida.
A ilustração quadrada mostra uma pessoa contra um fundo alaranjado, meio cor de salmão, com uma roupa restringindo os movimentos e dois galhos saindo dos cabelos na altura do ombro.

Sou ilustrador, quadrinista e concept artist, e meus desenhos costumam envolver cenários intrínsecos, fabulismo, steampunk/cyberpunk e personagens que remetem ao folclore e a mitologias. Atuo no meio desde 2018. Em 2019, lancei as HQs Fragmentos e Linha tênue, e fiz a arte da HQ Guarás, roteirizada por Felipe Castilho. Atualmente atuo como ilustrador e estou trabalhando em duas graphic novels, uma sobre mitologia celta com roteiro de Felipe Pan, e a outra que expande o universo das minhas demais HQs autorais, sobre barganhas faustianas, demônios e harpias. Quando eu não estou desenhando a trabalho eu uso meu tempo livre para praticar meu hobby de desenhar.