Não há milagres em Stalingrado, a não ser que você saiba onde procurar. Há rumores que a figura do Diabo assombra Stalingrado e, em troca de favores, dá comida e segurança àqueles que vêm buscar sua ajuda. Nadya vai até ele pensando em vender a medalha da sua mãe, mas o Diabo quer outra coisa: informações sobre o exército. Quando um espião é descoberto, Nadya precisa escolher: entregar um inocente em nome de sua própria segurança, ou morrer como traidora.
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Ao se aproximar de Stalingrado, os soldados costumavam dizer: “estamos entrando no inferno”. E depois de passar um ou dois dias aqui, eles diziam: “não, isto não é o inferno. Isto é dez vezes pior do que o inferno”.
— Relatos soviéticos
Na noite em que Nadezhda Mikhailovna Medveda vendeu sua alma para o Diabo, Stalingrado estava quieta pela primeira vez em semanas.
Nadya pulava sobre pedras e entulhos, seus passos silenciosos na neve macia. Não havia som de tiros, nem crianças solitárias chorando ou soldados gemendo durante a noite. Era quase pacífico, perambular pelo bairro proibido, sentindo o amassar ocasional de ossos dos soldados alemães debaixo de suas botas pesadas. As ruas estavam iluminadas, mas não por causa de eletricidade — Babushka insistia que o próprio Diabo acendia as lâmpadas de gás, esperando que os perdidos viessem à sua porta.
Nadya não costumava acreditar no Diabo, porque isso dava cadeia. Agora ela não tinha tanta certeza.
Ela havia visto os milagres brotando, apenas a poucas portas da sua casa. Larisa Grigoryevna tinha pão em suas mãos e ria ao lado de Kazimir Porfirovich, que havia sobrevivido a um rifle alemão nas suas costelas sem sequer um hematoma. A velha Sofia Yurievna caminhava com botas novas enquanto distribuía seus fósforos. E Ilya Alekseevich, que havia retornado para ela com um sorriso em seus lábios, seu rosto soturno esticado sobre seus ossos. Não havia meios de Larisa conseguir comida sem abrir suas pernas, mas o milagroso sobreviver de Kazimir havia convencido Nadya que existia algo maior por trás disso.
Nadya agarrava a medalha de sua mãe dentro do casaco. O vento soprava de todos os lados, como fazia sempre ao norte, a neve mordendo seu rosto e apegando-se a suas botas, o frio rastejandopara dentro de suas roupas e fazendo seus ossos estremecerem. Nadya conseguia ver, entre os entulhos dos prédios arruinados, um único galpão ainda de pé. Ela não conseguia recordar o que tinha sido antes da guerra, mas ele ainda estava ali, suas paredes grossas e resistentes em pé no meio da cidade das chamas eternas.
Nadya sentiu a sola de suas botas afundando-se na neve conforme ela corria para dentro do galpão e suas paredes protegidas. Ela soltou um suspiro quando chegou, inclinando-se contra o concreto. Era perigoso demais ficar entre o fogo cruzado de uma cidade em cerco, e todos os cidadãos eram avisados a permanecer longe. Mas Nadya tinha comido três dias atrás, e nenhuma outra comida tinha chegado desde então. Ela não iria morrer de fome quando sabia que além do campo de batalha havia alguém para ajudá-la.
Por um preço, é claro.
Respirando fundo e se aconchegando dentro do casaco de pele de urso de Babushka, Nadya entrou no edifício. A luz piscava conforme ela seguia, a neve se transformando em água e escorrendo pelas paredes em um eterno plic-plic-plic. Nadya seguia em frente, a mão dentro do bolso, segurando seu último recurso. Ela não sabia se acreditava nas histórias, mas sabia que havia alguém que estava cuidando das coisas por aqui.
Se fosse pega, seria pena de morte para ela e Babushka. As pessoas de Stalingrado já cochichavam sobre a sua avó ser uma bruxa e negociar com um estranho não ajudaria os rumores. Ela seria posta diante do esquadrão e eles atirariam sem piedade. Pensando bem, eles não tinham munição para desperdiçar. Eles amarrariam uma corda ao redor do seu pescoço. Ou talvez a queimassem em uma pira, como nos velhos tempos.
“Traição”, sussurrava a palavra dentro de sua mente. Ela deveria voltar, mas queria continuar. Ela queria a salvação.Ela queria qualquer réstia de esperança que pudessem poupar.
Nadya ajeitou seus ombros como tinha visto milhares de soldados alistados fazerem, marchando no corredor e espiando por dentro das portas para achar o comprador. Metade dos quartos estavam vazios, os móveis virados para baixo e apodrecendo. As baratas que sobreviviam ao frio passeavam dentro dos sofás destruídos. Quase não havia animais, e o cheiro não era tão pungente que ela não aguentasse ficar ali.
Nadya verificou todos os quartos, mas não encontrou ninguém. Ela estava prestes a dar a volta e ir para casa quando viu a figura.
Ele estava na parte mais escura do edifício, onde quase nenhuma luz alcançava. Nadya conseguia sentir o arder forçado do otmorozhennoye mesto, o frio congelante que possuía um odor específico, que vinha para comer as pontas dos dedos até que se tornassem pretos por congelamento, até não sobrar uma parte do corpo que não houvesse sido consumida por sua voracidade. Sombras acobertavam sua figura, puxando-o para dentro, e a única coisa que ela conseguia distinguir na escuridão era o capote, quase como uma outra camada de sombras que o abraçavam. Sua cabeça estava baixa, e era impossível ver suas feições.
— Veio atrás de um acordo?
As mãos de Nadya tremiam dentro do bolso. A voz dele era como veludo, calma e certa. Ela não conhecia ninguém assim neste clima frio, nem nesta guerra. Como se ele pudesse deixar tudo para trás, como os rifles alemães que as crianças russas lutavam para conseguir.
— Vim — ela respondeu, dentes semicerrados. — Eu tenho uma oferenda.
Nadya retirou a medalha do seu bolso. A última coisa que haviam enviado para casa, em troca de sua mãe e do avião que nunca conseguiram recuperar. O único consolo após a morte de sua mãe, mesmo quando ela conseguia ouvir os sussurros dos alemães em seus sonhos. Nachthexen. Bruxas da Noite. Um grupo de mulheres que pilotavam aviões, comandando ataques blitzkrieg nas tropas alemãs. O avião de sua mãe fora abatido; Nadya nunca a viu de novo.
Em vez disso, ela tinha a medalha. A única coisa de que Babushka não conseguia se desfazer.
Nadya estendeu a mão.
O homem a pegou, as sombras envolvendo suas mãos enluvadas. Luvas de couro. O coração de Nadya apertou. Ela daria qualquer coisa por luvas de couro. Ele não tinha decência no meio desse caos? Ela quase se virou e cuspiu nele. O homem examinou o artefato em silêncio, e então o devolveu.
— Sem valor nenhum — ele sussurrou. — Isso não paga pelo que você quer.
— Você não sabe o que eu quero.
Nadya não conseguia ver seu rosto, mas ela tinha a sensação de que ele estava sorrindo dentro do capote.
— Você entende como isso funciona?
As palavras dele eram um sussurro que se rastejava por baixo de seu casaco e de sua pele. Como o frio que fazia lá fora.
— Você quer acordos. Essa é a única coisa que resta de minha mãe. Pegue-a, e me dê comida.
O homem fez uma pausa.
— Isso não é o que eu quero.
Nadya perdeu a paciência.
— O que você quer?
O prédio estava silencioso. O vento havia parado de soprar, mesmo que jamais parasse em qualquer outro lugar. O frio não a açoitava e ela ficou em pé, quente, pela primeira vez em anos. Pela primeira vez desde que a guerra começou.
— Você trouxe comida para a casa de Lara — Nadya disse. — Você curou Kazik de ferimentos de bala.
“Você trouxe Ilya para casa”, ela pensou, mas não disse em voz alta. O que Ilya havia dado a este homem? O que ele poderia ter barganhado, quando eles não tinham nada?
— Certamente — o homem respondeu, embora ela não tivesse certeza de que estivesse mesmo escutando sua voz. — Mas essas não são as coisas que você quer, Nadezhda Mikhailovna.
Nadya sentiu um calafrio na espinha ao ouvir seu nome. O vento o levou para longe, mas a sensação permanecia ali.
— Você não sabe o que eu quero — ela repetiu.
O homem riu.
— Eu sei o que todos querem — ele diz. — Em Stalingrado, todos querem um pedaço de pão, um pouco de fogo, e não levar um tiro quando atravessam a rua.
Nadya ruborizou. Eram as três coisas que sempre estavam na sua mente, independentemente do tempo que fizesse lá fora. É por isso que ela havia arriscado atravessar a cidade. Trocar a última lembrança que tinha da mãe por um pouco de segurança.
— O que eu preciso fazer? — Nadya finalmente perguntou.
O homem não baixou o seu disfarce. Ela não conseguia ver seu rosto.
— Eu tenho uma oferta melhor pra você, Nadezhda Mikhailovna — ele disse. — Traga-me informações.
— Eu não tenho informações — ela respondeu.
O homem esticou suas mãos até Nadya, colocando uma mecha do seu cabelo escuro para trás.
— Não minta pra mim — ele disse em um sussurro. — Eu sei que você escuta atrás de paredes. É você quem traz a munição até o exército. É sua Babushka que na calada da noite responde as cartas dos oficiais. Não minta para mim, Nadya, e eu não mentirei para você.
O jeito que ele pronunciava seu apelido a fez congelar no lugar. Não era ruim. Era uma sensação estranha, como se o homem diante dela conhecesse todos os seus mais profundos segredos, e não tivesse medo de nenhum deles. Melhor. Como se não tivesse vergonha de nenhum deles.
— Está bem — Nadya disse finalmente. — E em troca?
Dessa vez, Nadya tinha certeza de que o homem estava sorrindo.
— Vá para casa — ele disse. — Lá você encontrará o que procura.
Quando Nadya voltou para casa, a mesa estava servida com pão e sopa. Babushka estava perto do fogão a lenha e a casa estava aquecida. Nadya tirou o casaco, pendurando-o atrás da porta, e se aproximou do fogo para se esquentar. Aos poucos, o calor voltou a suas extremidades, e ela se sentou à mesa para jantar.
— Onde estava? — Babushka perguntou, o olhar desconfiado. — Há um cerco acontecendo, Nadya.
— Estava na casa da viúva de Alexei Borisovich — Nadya respondeu, sem pestanejar. — Estavam planejando as doações.
— E conseguiu alguma coisa?
Nadya sacudiu a cabeça. Era mais fácil mentir do que admitir que levara a medalha para vender do outro lado da cidade, enfrentando o perigo do fogo cruzado. A medalha ainda pesava no bolso de sua calça, como um peso em sua consciência. Nadya devolveria a medalha na gaveta da cômoda, como se nunca houvesse saído de lá. Não tinha certeza do que faria depois disso, nem quando voltaria até o galpão.
Ela precisava levar informações.
Alguém bateu à porta e Nadya se levantou rapidamente para atender. No batente, estava a estranha figura de Ilya Alekseevich.
Em algum passado remoto, Nadya teria dito que Ilya Alekseevich era um dos garotos mais bonitos da cidade. Ele era alto e magro, suas maçãs do rosto finas e seu queixo esculpido tal qual uma estátua. Agora sua pele esticava por sobre os ossos, um tom acinzentado, seus olhos escuros perpetuamente fundos.
— Boa noite — disse ele, cumprimentando-a com um aperto de mão do partido. Ilya nunca deixava de seguir as regras. Nadya abriu a porta para deixa-lo entrar. — Posso falar com você?
Nadya acenou, indicando o quarto dos fundos. Babushka fingiu não notar a aparição repentina de Ilya, continuando a cantarolar uma de suas antigas canções no fogão enquanto mexia a colher de pau no ensopado.
Nadya não fechou a porta do quarto nem sequer sentou-se. Olhou de volta para Ilya, pálido de frente para ela.
— Vi você cruzando o Volga — disse ele, finalmente. — O que deu em você?
Nadya abriu a boca para responder, mas percebeu que não sabia o que dizer.
— Nadya, você poderia ter morrido — continuou Ilya. — A cidade está em cerco. É sorte não ter uma bala alemã alojada no meio de seu crânio.
Nadya ruborizou. Ilya não deveria estar aqui, muito menos tentando dar ordens a ela. Principalmente quando ele também obtivera um milagre, mesmo que não quisesse falar no assunto. Talvez Ilya não tivesse negociado sua própria volta. Talvez sua mãe ou uma de suas tias, uma das mulheres tristes que lamentavam a morte prematura do sobrinho na guerra, sua partida para São Petersburgo.
Ainda assim, Ilya continuava aqui, em meio à guerra.
— Sei bem disso — Nadya finalmente respondeu. — Eu estava atrás de um acordo. Só isso.
Ilya ergueu uma sobrancelha.
— Não vá me dizer que também acredita nos rumores — ele disse, sua voz se suavizando com um sorriso. Era quase como ela se lembrava dele. De um Ilya mais jovem, sem as marcas de soldado. Sem a farda, o partido ou os rifles. — São piores que corvos, espalhando boatos por aí.
Nadya não respondeu. Ela havia visto o boato com os próprios olhos.
Ilya percebeu que ela não respondera.
— Você é velha demais para acreditar no Diabo.
Ela era. Também era velha demais para ser perseguida por pesadelos, até durante o dia. Qualquer barulho de vento lembrava uma bala de um rifle passando à queima-roupa. O som de uma ave lembrava o de um apito a distância. Os latidos de cachorros confundiam-se com os ronronar dos tanques alemães, que por hora tentavam avançar para dentro da cidade, massacrando todos em seu caminho.
Era mais fácil acreditar em qualquer outra coisa do que nisto.
— Eu sei — concordou finalmente, mas não fitou Ilya nos olhos. — Não havia nada lá, de qualquer maneira.
A mentira saiu mais fácil do que ela pensava. Nunca mentira para Ilya. Ele era quem a conhecia há mais tempo. Brincaram juntos na infância, viram sua primeira nevasca ao mesmo tempo, e caçaram lobos no inverno com o avô de Ilya. Nadya o conhecia há tempo demais para ocultar qualquer verdade. No entanto, estavam os dois ali.
Ele também estava ocultando algo dela.
— Como você voltou, Ilya?
Ilya respondeu com um beijo em sua testa.
— Não se preocupe com isso, Nadushka.
Nadya sorriu, mas no sorriso também havia uma mentira.
Nadya mentira sobre as informações.
Informações eram perigosas em tempos de guerra. Quanto mais se sabia, maior o risco que se corria. Era melhor fingir não saber nada, abaixar a cabeça e fingir ser como uma das outras moças de Stalingrado, concentradas em servir o exército e ajudar em casa, em distribuir comidas e casacos. Informações eram um tipo de moeda valiosa, cujo ouro já vinha manchado de sangue.
Nadya tinha ouvidos apurados. A mãe dela sempre dizia isso. Nadya conseguia ouvir o avião a quase um quilômetro de distância e sempre sabia quando a mãe iria pousar. Nunca fazia barulho na floresta caçando ursos e, melhor ainda, sabia como ficar parada em um lugar sem mexer um músculo.
Não era de surpreender que sabia mais do que dizia e do que podia contar.
Na manhã seguinte, Stalingrado seguia com o cerco, como sempre. Apenas saíam de casa aqueles que já tinham negócios a cumprir, ou para a distribuição semanal de alimentos, que vinha cada vez mais escassa. Nadya andava na rua de cabeça baixa, apertando o capote contra si, os cabelos escuros numa trança que pendia para o lado até chegar ao armazém.
— Nadezhda Mikhailovna — cumprimentou o vendedor, com um aceno de cabeça. Era um homem surrado e velho, suas rugas espalhadas pelo rosto como uma pedra que irrompia a superfície de um lago. — Não há nada esta semana para você. Como está Aglaya Iraklievna?
— Babushka está bem — respondeu Nadya. — Forte como um touro.
— E que continue assim por muitos anos.
Nadya assentiu.
— Agradeço seus votos.
Nadya passou por trás do armazém, observando a neve que se acumulava no chão e nos telhados, um manto pesado que cobria a cidade. Não nevava nesta manhã, mas não queria dizer que isso impedia o avanço do exército do outro lado da cidade, uma zona de guerra que sempre estava se estendendo. Nadya puxou um cigarro do bolso, um último que havia conseguido de um soldado morto, acendendo-o enquanto observava os prédios. Nadya não gostava do gosto do cigarro, mas a fumaça ajudava a aquecer seus pulmões. A medalha de sua mãe continuava segura em seu bolso. Não tinha devolvido-a para o fundo da gaveta como prometera. Era quase um conforto tê-la ali, como se a memória de sua mãe pudesse a esquentar em meio ao frio.
Um homem parou ao seu lado. Nadya não olhou para o rosto do estranho. Não importava quem era, apenas o que ele tinha a dizer, a mensagem que carregava. Era assim toda semana. Sempre havia algo se esgueirando na cidade, por entre as paredes maltratadas e as cinzas que caíam como neve nos telhados das casas.
— Preciso que leve as ordens até Mamayev Kurgan — disse o homem.
Nadya assentiu. Estava toda a ouvidos.
— Há uma ordem de ataque dos alemães daqui dois dias — continuou ele. — Receberão um carregamento de alimentos por avião. Ordene a todos que fiquem de espreita.
Nadya assentiu novamente, e o homem a deixou. Nunca era mais do que isso. Algumas palavras trocadas no fundo do armazém, onde ninguém poderia vê-la. Contou até cem e saiu, suas botas pisando fundo na direção da cidade proibida.
Nunca notavam Nadya na cidade. Era apenas outra dos órfãos da guerra, crianças deixadas para trás e esquecidas com o tempo. Cada um fazia o que podia para sobreviver, e Nadya aprendera desde muito cedo que não haviam muitas opções. Algumas garotas tentavam ficar próximas aos rapazes alistados, outras se alistavam elas mesmas, no desespero de conseguir uma porção de comida a mais para alimentar a família. Outras formavam círculos de apoio, lembrando rezas antigas que foram proibidas há anos, para que apenas uma entidade maior pudesse salvá-los desse desespero. Ao fundo, o General Inverno, avançando com sua barba grisalha e seus passos conhecidos. Cada vez mais perto.
Nadya esgueirou-se pela cidade e por entre as casas, camuflando-se contra os prédios. Ela sabia a localização da maioria dos atiradores depois de um mês neste trabalho. Conseguia discernir o brilho do cano de um rifle a vinte metros de distância. Os capacetes caídos no chão nada mais eram do que tipos diferentes de obstáculos, uma lembrança de que alguém havia passado por aqui e não tinha cumprido seu trabalho.
Nadya sabia o que estava fazendo.
Arrastou-se pelo chão, passou por bombardeios e peças tortas e esquecidas de madeira de tempos remotos. Dentro de um dos prédios, ela conseguia ver o exército inimigo aos portões de sua cidade. Nas primeiras vezes, o ódio e a bile cresciam dentro dela, afogando-se na mágoa. Queria queimar a todos. Que morressem feito ratos, congelando na nevasca, com seus corpos apodrecendo entre o chão e a pólvora. Agora, não sentia mais nada. Eram apenas mais homens, e todos eles morreriam quando o inverno chegasse.
O problema do inverno é que ele matava tanto russos quanto alemães, sem olhar para nenhum dos lados.
Nadya encontrou todos que precisava encontrar. Ia de prédio em prédio, passos curtos e apressados, transmitindo a mensagem. Os atiradores não sabiam seu nome. Sabiam que ela era Privideniye. Aparição. Era o nome que davam aos voluntários para as mensagens, crianças que não tinham idade para se alistar e andavam como fantasmas por entre o campo de guerra, como se já estivessem mortas.
Era assim que Nadya se sentia. Quase morta. Como se suas andanças fossem nada mais do que pegadas que desapareceriam no amanhecer, e ninguém fosse lembrar dela no dia seguinte. Alguém que não tinha medo de morrer, porque já não havia outra solução.
Já estavam todos mortos. A diferença é que Nadya sabia disso.
Quando Nadya chegou em casa, Babushka estava tricotando perto da lareira. O fogo queimava baixo e fazia sombras compridas nas paredes de pedra. O tapete era puído e velho, e estava lá desde antes da época do Tzar. Babushka reclinava na cadeira, um cachecol longo aos seus pés.
— Estou de volta — anunciou Nadya, mesmo sabendo que não havia necessidade.
Babushka nunca perguntava onde ela estivera. Era como se soubesse, lá no fundo. Nadya nunca dizia nada. Suas missões eram segredos, suas andanças por este mundo ocultas como as de um fantasma. Levava e trazia mensagens, era isso que importava.
— Ilya esteve aqui procurando por você de novo — disse Babushka.
Nadya assentiu.
— E o que lhe disse?
— Disse que estava ajudando Avdotya Lvovna — respondeu. — Há algo de diferente nesse menino.
— Ele quase morreu, Babushka.
— Todos nós quase morremos, Nadya — respondeu Babushka. — Mas ele está aqui, de volta. O que isso quer dizer?
Nadya sentiu suas bochechas corarem.
— Babushka, sabe que é diferente agora.
— A guerra não vai acabar. Talvez demore. Talvez não. Mas não fará diferença para vocês dois.
Nadya não respondeu. Olhou para a lareira.
Quando Ilya fora se alistar, Nadya não chorou. Ele a fez prometer. Era simples assim: Nadya prometera que não choraria quando ele se fosse. Ela o ajudara a vestir o uniforme, quase um ano antes. Ela não o fitara nos olhos, nunca dissera o que sentia.
Ilya soubera, Nadya tinha impressão. Agora era tarde demais para qualquer tipo de sentimento que houvesse ali. Teriam que sobreviver à guerra primeiro.
— Ilya é um bom rapaz, Nadya.
— Eu sei, Babushka.
Babushka continuou tricotando o cachecol, os pensamentos perdidos entre tempos remotos. Nadya continuou sentada no chão ao seu lado, desejando poder falar mais.
A nevasca lá fora era audível por entre as janelas, quase pintadas de branco. O frio a congelava pelos ossos e, mesmo com as mãos esticadas para o fogo, Nadya ainda sentia o vento soprar em sua nuca.
— São tempos difíceis — disse Babushka finalmente, fitando Nadya nos olhos. — A morte e o diabo vêm para todos nós.
Nadya sentiu outro calafrio subir por sua espinha. Babushka costumava contar muitas histórias. Apesar de não acreditarem mais em magia, porque era errado, ainda havia rumores por Stalingrado da longa linhagem de feiticeiras de sua avó.
— Babushka, não fale besteiras.
— Estou velha, falo o que bem entender — replicou Babushka. — Não faz diferença para mim. Você acredita no que quiser, Nadya. Mas não se deixe enganar. Sobreviver é mais difícil do que parece. Há sempre um preço a se pagar.
Na segunda vez que Nadya se encontrou com o homem do capote, a nevasca lá fora estava amenizando.
Ela sabia que era uma mentira. Uma ilusão. Como enganar uma criança, dando esperança e depois arrancando-a com garras firmes. Era o General Inverno, o mais temível dos inimigos.
— O que tem para mim hoje, Nadezhda Mikhailovna? — perguntou o homem, a voz macia como um veludo.
Ela engoliu em seco antes de responder.
— Os alemães receberão um encargo de comida daqui dois dias — respondeu ela. — Nós iremos queimá-lo.
— Nós? Uma palavra interessante. É isso que se considera? Um soldado?
— Sou o que precisam que eu seja.
O homem soltou uma risada profunda. Por um instante, a gola do capote abaixou, e Nadya conseguiu ver a sombra de um esqueleto por baixo dele.
Um calafrio subiu por sua espinha.
Devia ser coisa da sua imaginação. Este homem não poderia ser o Diabo de verdade. Nadya sabia disso como sabia que tinha cinco dedos em cada mão, como sabia navegar as ruas estreitas do distrito industrial e como sabia que sua cidade mudava sempre de nome, mas nunca deixava o passado para trás.
— Uma boa resposta — respondeu o homem. — Talvez sejamos mais parecidos do que acha, Privideniye.
— Não sou como você.
— Um fantasma. Um espectro. Alguém que não está realmente aqui. Você enxerga todas as mentiras, Nadezhda Mikhailovna.
Nadya olhou para o homem de novo. Lembrava-se das histórias que Babushka contava quando ela era ainda pequena, e suas preocupações eram a escola e os seus verbos. Histórias quase proibidas, sussurradas para Nadya antes de dormir, para que se lembrasse de casa. Histórias sobre Koschei, O Imortal, e todas as mortes que se espalhavam por aí. Talvez o homem não passasse de uma outra alucinação, algo que ela não conseguia compreender.
Mas ele havia lhe dado comida e fogo, e Nadya não podia negar o significado disso.
Quando chegou em casa, havia alguém diferente esperando por ela.
Uma mulher, alta e vestindo um casaco de pele de lobos. Seus lábios eram pintados da cor de carmim, seus cabelos negros penteados para trás.
— Nadezhda Mikhailovna? — perguntou quando Nadya entrou.
Nadya fez que sim.
— Desculpe-me. Não sabia que teríamos visita.
A mulher sorriu, mas nunca alcançou seus olhos.
— Sua avó está nos fundos, mas gostaria de falar com você primeiro. Sente-se.
Nadya não tinha como deixar de notar a autoridade em sua voz. Essa mulher não era alguém comum. Talvez fosse uma oficial do exército, ou alguma outra possibilidade ainda mais tenebrosa. Não se falava nomes das organizações do governo em um lugar esquecido por todos como Stalingrado, e Nadya não fazia ideia do que esta mulher poderia estar fazendo ali.
Nadya tirou o casaco e o pendurou atrás da porta, sentando-se na simples mesa de madeira que ocupava quase todo o espaço da sala. A casa dela era pequena, mas era firme e de alvenaria, e continuaria resistindo por muito tempo.
— Meu nome é Irina Andreevna — disse a mulher. — Estou aqui apenas para fazer algumas perguntas.
Nadya ficou pálida.
— Não se preocupe, Nadezhda — continuou Irina. — Fui informada de quem você é. Como é mesmo que lhe chamam?
Nadya podia ouvir o sussurro do vento batendo a porta, querendo entrar.
— Prividenyie — respondeu.
Irina sorriu, seus lábios vermelhos curvados, mostrando entretenimento. No entanto, seus olhos escuros eram firmes e não deixavam nenhuma emoção transparecer.
— Leva e traz informações para os nossos atiradores no fronte — disse Irina. — É isto que faz, não é mesmo?
— Sim, camarada.
— Ouvi dizer que você é uma das melhores. Nunca atiraram em você.
Nadya tentou se recordar. O estampido dos tiros sempre ecoavam em sua mente, mas nunca tão de perto.
Uma vez, enquanto estava entregando uma ordem para um soldado sniper dentro de um prédio de três andares, Nadya viu o corpo morto de uma criança. Não devia ser muito mais novo que ela. Nadya tinha dezesseis, mas era pequena e conseguia se fazer ainda menor. O garoto não devia passar dos catorze, e o buraco de bala era minúsculo, o projétil alojado em seu cérebro e perdido nas entranhas. Não havia um erro sequer do atirador, uma circunferência escura que havia disparado para dentro do crânio. O sangue ainda estava escorrendo pela neve, pintando o branco de vermelho.
Chamavam-os de fantasmas, mas eles morriam tão facilmente quanto os outros soldados.
— Sim, camarada — respondeu Nadya, finalmente.
Irina continuou a sorrir.
— Tem ambições, Nadezhda?
Antigamente, Nadya se lembrava de alguma coisa que parecia um sonho ou uma ambição. Lembrava-se de sua mãe, que a segurava em seu colo, e do avião que ela pilotava. Queria talvez ser uma das bruxas da noite, ou ir para São Petersburgo estudar, ou servir o governo. Naquela época, ainda haviam opções.
Hoje em dia, não se lembrava mais de nada a não ser da guerra.
— Sobreviver — respondeu simplesmente. — Ganhar a guerra.
Camarada Irina sorriu novamente.
— Uma boa resposta. Venho aqui relatar um problema, Nadezhda, um problema que está nos atrapalhando a vencer esta guerra.
Nadya colocou as mãos sobre a mesa. Suas unhas estavam sujas de terra, e seu cabelo ainda estava escorrendo com neve derretendo.
— Não compreendo.
— Vai compreender — falou Irina. — Estamos falando de um espião.
Nadya empalideceu.
— Não estamos falando de você — continuou Irina, e Nadya conseguiu fazer com que seus ombros relaxassem. — Eu verifiquei todas as informações que lhe foram dadas, e algumas coisas não se encaixam. No entanto, você anda por aí mais do que qualquer outro Privideniye. Sabe onde estão nossos atiradores, e também conhece os atiradores alemães. É uma façanha e tanto.
Nadya corou e olhou para a porta dos fundos. Ela queria que Babushka estivesse ali. Talvez mandasse Irina Andreevna ir pastar com ovelhas por questionar a lealdade de sua neta. Nadya só queria que ela estivesse bem. Não queria sofrer outra perda.
— Preciso que nos ajude a encontrar o espião — falou Irina. — Uma tarefa simples. Apenas ouça o que os soldados têm a dizer e preste atenção em qualquer atividade estranha. Se souber de algum indivíduo que está se comportando diferente, reporte isso imediatamente ao Tenente Dmitri Ivanovich.
Nadya pensou na figura do Diabo, escondido nas sombras. Alguém que queria informações e fornecia sempre algo em troca. O mesmo homem que ela visitara antes. Ninguém sabia quem ele era.
Um espião, possivelmente.
Ela havia cometido um erro grave.
— Saiba que haverá uma recompensa — disse Irina. — Quer que a Mãe Rússia ganhe a guerra, não é?
Nadya fez que sim veementemente. Não sabia se podia mais confiar na sua boca traidora.
— Muito bem — disse Irina, dando um tapinha em sua bochecha. — Estamos conversadas.
Nadya não sabia aonde ir e, por isso, bateu a porta de Ilya Alekseevich.
Foi Ilya mesmo quem abriu, seu rosto pálido iluminando-se quando a viu na porta.
— Entre, Nadya — disse, abrindo mais a porta.
Nadya entrou, apertando suas mãos juntas. Ela tremia. Não sabia se era de frio ou da possibilidade de ser uma traidora. O que fariam se a pegassem? O que fariam com Babushka se Nadya fosse de fato a espiã?
Não conseguia pensar nessas possibilidades.
Nadya olhou para o restante da casa.
— Estamos sozinhos?
Ilya assentiu. Ele ofereceu sua mão, e Nadya a pegou. Como se fosse nos velhos tempos. Um ano antes, quando a guerra era apenas um rumor distante, Ilya não havia ainda se alistado e Nadya sentia um aperto no coração toda vez que via seu melhor amigo.
Ilya a guiou até seu quarto, fechando a porta atrás deles. Nadya sentou-se na cama. Em qualquer outra situação, estaria nervosa pensando no que sentar na cama de Ilya significava. Nadya não havia se confessado antes de Ilya ir embora. Achara melhor não.
E então chegara a guerra.
— Que foi, Nadya? Está tremendo.
Nadya sacudiu a cabeça.
— Vieram me ver.
Ilya franziu o cenho.
— Quem?
Nadya o fitou, mas não precisou dar uma resposta em voz alta. A KGB era conhecida o suficiente para ninguém precisar pronunciar em voz alta. Ilya não sabia que Nadya era um Privideniye. Não havia lhe contado, pois sabia o que ia dizer. Era um trabalho perigoso, e ele não gostaria que ela se arriscasse. Havia outros meios de servir a pátria.
Ilya escolhera o exército. Nadya escolhera as sombras.
Era assim que tinha que ser.
Ilya sentou-se ao seu lado na cama, o peso fazendo o colchão afundar. Ilya pegou sua mão, apertando seus dedos entre os dele. Nadya sentiu um calor subir por seu corpo.
— Eu não deveria ter ido — disse Ilya. — Quando estive fora, sempre pensei em retornar.
— A Stalingrado? — perguntou Nadya, fitando-o.
— A você. Eu devia ter lhe dito antes de ir. Talvez agora não valha de mais nada, Nadya.
— Talvez não.
Ele sorriu, mas seus olhos se entristeceram.
— Fiquei pensando muito como seria se não estivéssemos em guerra. Esperaria seu próximo aniversário, eu acho. Poderíamos nos casar.
Nadya queria esquecer de tudo isso. Suas mãos haviam parado de tremer e Ilya as segurava firmemente.
— Ilya…
— Não diga nada. Eu sei que não falamos por medo, mas fiquei pensando nisso desde que retornei. Preciso que essa guerra acabe.
— Vai acabar.
— Eu sei. Estou fazendo o possível. Irei te levar para algum lugar seguro.
Nadya sorriu, triste. Era apenas um sonho. Um sonho triste, de infância, daqueles que ainda apertavam seu coração.
Talvez por isso mesmo, deixou que as mãos de Ilya escorregassem por dentro de sua blusa. Talvez por isso mesmo, ela o guiou para que segurasse seu corpo.
Nadya tirou a blusa de Ilya antes de lhe beijar. Seus lábios se encontraram com firmeza, com algo que deixara de ser um gosto de sonho e era apenas um desejo. Desejo para que tudo lá fora acabasse, que não existisse mais nada entre os dois. Um desejo de agora, um pequeno porto seguro dentro de toda a incerteza.
Ilya tirou o resto de sua roupa por entre beijos e o corpo de Nadya arqueou em sua direção. O frio não importava mais lá fora quando Nadya o guiou para dentro de si, e apenas deixou que os gemidos e os beijos fossem a coisa mais audível da noite.
Quando terminaram, Nadya deitou-se por cima de Ilya. Ainda sentia o calor dentro de si, queimando-a por dentro. Estava viva, não morta. Uma pequena lembrança que a segurou ali.
Ilya a beijou na testa.
— Por que vieram te ver, Nadya?
Nadya ergueu-se um pouco para fitá-lo nos olhos. Eram azul-claros, pálidos, da cor do céu em uma manhã antes da nevasca.
— Disseram que há um espião — respondeu simplesmente.
Passou uma semana, mas Nadya só conseguia se lembrar da conversa que tivera com Irina Andreevna. Era como se pudesse ver seus lábios vermelhos até quando fechava os olhos. Continuou sua rota normalmente, lembrando-se sempre de esgueirar por entre as pedras caídas e os ossos dos mortos que já não importavam mais, mas nada parecia mudar.
Até que Kazimir Porfirovich amanheceu morto.
Em Stalingrado, dezenas amanheciam mortos, mas Kazimir fora diferente. Havia uma bala no meio de sua testa, e a palavra “изменник”, “traidor”, pintada em sangue por cima da sua farda. Alguém havia pendurado-o em frente ao armazém, suas botas com uma fina camada de gelo, o pescoço torto.
Haviam encontrado o espião.
Nadya ficou olhando enquanto retiravam os oficiais retiravam o corpo de Kazimir Porfirovich. A mãe dele chorava inconsolável ao fundo, mas ninguém se atrevia a chegar perto dela. Qualquer um poderia ser simpatizante e, em tempos de guerra, não havia espaço para sentimentos. O traidor estava morto e a urssganharia a guerra.
Era isso que importava.
— Vão jogar o corpo dele numa vala qualquer — falou uma voz perto dela, e Nadya quase deu um pulo.
Larisa Grigoryevna estava ao seu lado, enrolada em um casaco preto. Seus cabelos loiros haviam sido penteados para trás e seus olhos verdes destacavam-se com ódio. Ela observava os soldados com uma atenção memorável e Nadya acreditou que Larisa seria capaz de cortar seus pescoços com as próprias unhas.
— Sinto muito — disse Nadya, pois era a única coisa que era capaz de falar. Temia que outros ouvissem.
Larisa cuspiu ao seus pés.
— Sentimentos não irão nos levar a lugar algum. Kazik está morto. Ele, que não seria capaz de atirar em uma mosca.
Nadya sabia que isso era verdade. Não sabia como Kazimir havia sido capaz de ficar tanto tempo em silêncio sem ser pego. Traidores caíam rápido, e não havia piedade para aqueles que virassem às costas para a pátria.
— Ele não era um traidor — anunciou Larisa, olhando diretamente para Nadya.
— Por que está me contando isso?
— Não se faça de sonsa, Nadezhda Mikhailovna. Eu sei o que você faz. Sei que nunca está em nenhuma reunião do comitê, que nunca está com as viúvas costurando roupas para os soldados ou separando a comida. Não está datilografando para o exército. Mas está sempre andando por aí, silenciosa como um espectro.
Nadya sentiu suas bochechas corarem.
Larisa deu de ombros.
— Pouco importa o que faz. Mas saiba que meu Kazik não era um traidor.
— O que você quer que eu faça?
— Encontre o verdadeiro traidor. Faça com que pague. Por mim e por todas as outras mulheres que perderam quem amam.
— Eu sinto muito, Lara.
Larisa riu, um riso contagiante e maldoso. Um riso de escárnio e desespero.
— Todos sentem. Sentem o tempo todo. Estou farta de pessoas mortas e fantasmas. Estou farta desta guerra e não sei se conseguirei sobreviver.
— Todos vamos.
— Não vamos — respondeu Larisa. — Você vai, Nadya. Nunca levou um tiro, não é mesmo? O que fazem? Passam por você como se você fosse transparente?
Nadya fez que não com a cabeça.
— Encontre-o, Nadya.
— Eu farei isso.
Larisa Grigoryevna se virou para ir embora, mas, em um relampejo de lucidez, Nadya a chamou de volta.
— Lara? — perguntou. Larisa se virou. Não caíam lágrimas dos seus olhos. — O que você trocou?
Larisa franziu o cenho.
— Troquei pelo quê?
— Por Kazik. Por pão à sua mesa.
Larisa a encarou por um bom tempo. Seus olhos verdes nunca desviavam, mas não eram mais cheios de ódio.
— Troquei o que tinha para trocar — respondeu finalmente. — Farei isso de novo, se for para sobreviver.
Nadya assentiu, e Larisa Grigoryevna virou as costas, deixando Nadya novamente sozinha por entre a neve.
Nadya encontrou-se com o Diabo pela terceira vez naquela noite.
Suas mãos tremiam, mas não de frio. Quando tentava fechar os olhos, via o corpo de Kazimir pendurado, seus olhos já sem cor olhando para o nada. Algumas horas antes, na madrugada, havia desistido completamente de dormir e pegado o casaco e as botas, preferindo enfrentar a escuridão da noite.
Escurecia cedo, mas a madrugada jamais deixava de ser assustadora. Nadya sabia que deveriam ser quase três da manhã, e seus olhos lutavam para ficarem abertos. O frio era ainda pior, procurando qualquer brecha em seu casaco para tentar congelá-la por dentro. Nadya cruzou a cidade e encontrou-se no lugar que já era conhecido.
— Está cedo — disse a voz. — Alguma outra informação?
— Não quero mais fazer isso — replicou Nadya.
O homem se aprumou. Ainda não conseguia ver seu rosto por inteiro, nem o que havia debaixo do casaco. Percebeu que havia realmente começado a acreditar em uma força sobrenatural que não pertencia à sua casa.
Exceto pelo fato de que era o único lugar ao qual poderia pertencer. Entre os cadáveres esquecidos e as preces ditas em sussurro, Stalingrado era o único lugar ao qual um milagre da pior espécie poderia responder.
— Está tarde demais para isso, não acha, Nadya?
Chamá-la pelo apelido apenas a deixou mais desconfortável.
— Não quero mais sua ajuda — disse Nadya. — Se for para morrer de fome, que assim seja.
Ela quase tinha a sensação de que estava sorrindo.
— Você está assustada — respondeu ele. — É natural. O medo de morrer de fome passou, e agora você não sente mais o perigo.
Nadya não respondeu. É claro que ela sentia o perigo. Estava vendendo informações e o que sabia em troca de sobrevivência, mas o perigo também corria para o outro lado.
— Há um espião — respondeu Nadya simplesmente.
Pela primeira vez, o homem riu. Era uma risada sonora, estranha, deslocada deste mundo. Nadya congelou no lugar, o coração acelerado. Era uma risada que a avisava para correr e, no entanto, ela mal conseguia sair do lugar.
— Você acha que eu sou o espião, Nadezhda Mikhailovna?
— Talvez — encontrou sua voz para responder. — Mas sou eu que repasso informações.
O homem deu de ombros.
— Quem é você?
O homem não respondeu.
— Um garoto inocente foi morto — disse Nadya, dessa vez mais alto.
A raiva subia por suas veias e seu punho. Era como se tudo culminasse na figura morta de Kazimir, nas palavras duras de Larisa Grigoryevna.
— Muitos inocentes são mortos — replicou o homem.
— Ele não merecia isso.
— Ninguém merece a guerra, Nadya, e ela ainda assim vem até você. Foi o que pensou quando veio até mim, não é?
Nadya não respondeu. Kazimir não era o espião. Nadya sabia disso. Não sabia se esse homem também o era. Não conseguia saber sua identidade.
— Não sou seu espião — respondeu o homem finalmente, adivinhando seus pensamentos. — Todos vêm até mim com um pedido e eu pago o que posso. Apenas peço que retribuam o favor.
Ele levantou os olhos, e pela primeira vez, Nadya viu as órbitas vermelhas. Da cor da bandeira. Da cor do sangue de suas veias.
Ela entendeu a implicação da barganha, também. Não era apenas um combinado, algo a ser deixado para trás. Não eram apenas objetos e informações. Era muito mais do que isso. Era deixar parte do seu âmago para trás.
— Por que se importa, então?
O homem deu de ombros.
— Todos nós precisamos de negócios.
— Mas eu não…
— É muito tarde para ficar com a consciência pesada. Quantos mortos já viu, Nadya? Em quantos já não pisou, de quantos roubou botas, luvas, cigarros, casacos? Você olha para seus vizinhos e deseja que eles morram para sobrar mais comida, reza todas as noites para que as balas acertem os soldados e não você.
Nadya sentiu suas bochechas e seu corpo arderem. Era diferente. Ela nunca havia desejado que alguém tão próximo morresse, ou entendido as consequências de passar informações adiante.
Kazimir estava morto e era em boa parte sua culpa.
Sentiu algo quente escorrer pela sua bochecha e percebeu que era uma lágrima.
Havia deixado tudo para se manter de pé. Qualquer réstia de sua dignidade era apenas mais uma ilusão.
— Há sempre um preço para sobreviver — falou o homem. — Mais cedo ou mais tarde, todos pagam.
Nadya baixou os olhos.
— Eu lhe darei um presente — disse ele finalmente. — Você encontrará seu espião daqui uma hora, voltando da ponte destruída do Volga. Sabe atirar, não sabe?
Nadya fez que sim. Do canto do olho, percebeu que havia um rifle no meio do corredor. Não sabia há quanto tempo estava ali. Nadya pegou a arma com dedos trêmulos.
— Pegue o espião — ordenou o homem.
Nadya ficou a postos com o rifle.
Ela se lembrava de suas férias, de praticar os tiros em garrafas de vidro e depois em esquilos, animais rápidos e ágeis. Era o avô de Ilya que a ensinara, mais como um esporte do que qualquer outra coisa.
Nadya não esquecera. Ela havia vivido em meio aos atiradores, conhecia seus lugares e maneiras, sabia como ficar em meio ao cerco. Do topo de um edifício, sem saber se confiava na palavra do outro homem, Nadya ficou à espreita.
Talvez fosse a única maneira de poder encarar Lara de novo. Nadya havia prometido que encontraria o espião e agora não poderia voltar para casa sem ao menos resolver isso. Talvez, se encontrasse o verdadeiro espião, pudesse viver em paz. Daria as costas ao homem misterioso e não pensaria mais nisso, não vazaria outras informações. Jamais poderiam culpá-la.
Do topo do esconderijo, Nadya não sentia mais o frio. Seu rifle estava em posição enquanto esperava, observando o campo aberto à sua frente. Era um lugar arriscado em meio aos destroços, mas ela não ousou se mover de lá.
O primeiro a aparecer foi um soldado alemão. Nadya pensou em atirar, mas talvez o espião sentisse a armadilha de longe e se recusasse a aparecer. Dali, Nadya mal podia ver seu rosto, protegido por um capacete enquanto esperava.
Nadya apontou o rifle em sua direção, posicionando-se no lugar. Apenas esperando.
Dois minutos depois, um soldado russo apareceu. Havia algo de familiar no seu jeito de andar, e quando ele parou de frente para o alemão, Nadya conseguiu ver seu rosto.
Era Ilya.
Nadya respirou fundo. Suas mãos tremiam. Não podia ser. Não estava certo. Ilya não a trairia dessa maneira.
Ao mesmo tempo, os pedaços começaram a se encaixar. Ilya e seu misterioso retorno, o fato de que também não acreditava nos rumores. Como sua casa tinha lenha, seu casaco estava praticamente novo e a sola das suas botas não estava gasta. Nadya havia escolhido ignorar todas essas coisas, esperando um milagre, querendo acreditar.
Ilya trocou algumas palavras com o soldado alemão. A única coisa que Nadya conseguia ouvir era o sussurrar do vento e o tilintar do ar congelando ao seu redor. Ela não se mexeu.
Ilya sabia sobre o espião, mas havia condenado Kazimir a morrer em seu lugar. Havia condenado todos eles.
Nadya posicionou seu dedo no gatilho e atirou.
— Nadya.
Ilya sorriu ao vê-la. Estava caído no chão. O tiro o pegara no meio da coxa, que sangrava sobre a neve e os entulhos de um prédio bombardeado. Nadya se sentia exposta, parada em pé ao seu lado, mas lembrou-se do que era.
Privideniye. Um espectro.
Não estava realmente ali.
— Nadya, me ajude — pediu Ilya. — Atiraram em mim, algum dos inimigos…
Nadya não se moveu. Apenas encarou-o. Ilya calou sua súplica, como se finalmente entendesse a situação.
Nadya mostrou seu rifle.
— Por quê? — perguntou ela.
— Quero que a guerra acabe — respondeu Ilya. — Estamos há muito tempo fazendo isso. Deixe que tomem as terras e vençam. Viveremos mais assim.
— Todos vamos morrer, Ilya.
— Nadya, me ajude, podemos atravessar para o outro lado — disse ele, tentando estancar o sangue da perna. — Eu não consigo andar.
— Eu sei.
Ilya a fitou, olhando para cima.
— Nadya, não sabe o que está fazendo. Vamos. Ajude-me a ir para casa, e podemos esquecer tudo isso.
— Foi você que deu o nome de Kazimir Porfirovich à KGB, não foi?
Ilya franziu o cenho.
— Eles me encontrariam.
— Antes Kazik do que você, não é, Ilyusha.
— Não diga que não pensa o mesmo — cuspiu Ilya. — Eu sei que sim. Eu sei que você foi procurar o Diabo.
Nadya olhou para o rifle em suas mãos. No começo, tinha procurado-o por fome. Porque estava exausta, e queria que tudo acabasse. Estava esperando por algum tipo de milagre, uma salvação misteriosa, algo que a fizesse continuar.
Não fazia diferença agora. Estava morta também, como todos os outros. Se não agora, dali a uma semana, um mês, talvez um ano. Quanto tempo o cerco levasse. Não havia salvação para um lugar sem volta. Um lugar esquecido por milagres.
Se ela quisesse milagres, deveria fazer seus próprios.
— O que você trocou, Nadya? — perguntou Ilya. Seu sorriso tinha sangue. Ou talvez Nadya só estivesse imaginando. — O que ele pediu?
Nadya não respondeu, mas ajeitou o rifle em suas mãos, mirando para um tiro final.
Nadya largou o rifle em cima da mesa. O homem estava inclinado sobre a mesa, encarando-a do outro extremo.
— E então? — perguntou, um leve tom de escárnio em sua voz. — Pegou seu espião?
Nadya fez que sim.
Ela não estava exatamente satisfeita. Era um traidor a menos. Mesmo que fosse Ilya. Mesmo que, há apenas alguns dias, ela tivesse finalmente deixado se perder nos braços dele, esquecer do mundo por alguns instantes.
Lembrar-se disso a deixou com um gosto amargo na boca, mas não era por Ilya. Era porque queria ter essa sensação de novo. Era isso que a consumia por dentro. Andava na cidade como um fantasma e cumpria seu papel. Fazia o que era esperado dela, mandava todos os seus recados. Era leal a seu país e a sua família e, no entanto, encarando a nevasca, nada disso parecia o suficiente.
Nadya já não aguentava mais a eterna sensação de que iria morrer e que estava apenas esperando um golpe final.
Era esse o verdadeiro presente que havia dado a Ilya.
Nadya ergueu seus olhos para o homem a sua frente.
— Quem é você?
O homem deu de ombros.
— Importa mesmo, Nadya?
— Não sei. Talvez não para você.
— Você crê que importa — respondeu ele. — Mas, na verdade, não faz diferença. Você só quer saber qual o preço. O preço para sobreviver e conseguir esquecer de tudo isso. Nem todos conseguem pagar.
— Mas você oferece acordos.
— Sim, porque as pessoas estão desesperadas, e elas pagariam qualquer coisa por um esquecimento, por um alento a esta violência. A guerra diminui tudo, poucas coisas sobram. É por isso que os outros vieram até aqui, e eles voltarão também, não importa quem seja. No fim, todos vêm até aqui para dar suas almas.
Nadya ouviu o restante da frase mesmo já sabendo como terminava. Em parte, ela sabia o que tinha vendido. Pois não era apenas uma informação, uma medalha, algum dinheiro ou um membro da sua família. Quando se estava desesperado a este ponto, desdobrava-se ao meio para conseguir um consolo sequer. Quando isso acontecia, era um pedaço da sua alma que estava à venda.
Ninguém era mais o mesmo.
O homem se aproximou e tocou sua mão. As luvas de couro eram macias contra a pele de Nadya.
— Eu apenas coleto o que já ficou para trás — continuou o homem. — Não há mais almas dentro de uma guerra. Apenas espectros.
Prividenyie.
Lembrou-se das histórias de sua avó, e pensou em como queria mais um momento de sossego. Faria tudo por um consolo. Agora, finalmente, ela compreendera o preço. O homem se aproximou mais e Nadya conseguiu sentir seu hálito quente, visualizando pela primeira vez de verdade os seus olhos vermelhos. Dessa vez, Nadya não sentiu nenhum medo.
— É mais parecida comigo do que pensa — disse o Diabo.
— Eu sei — respondeu Nadya, tirando a faca da sua bota e deslizando-a entre as costelas dele.
Ele deu dois passos para trás, sem crer direito no que estava vendo. Pegou a faca e o sangue jorrou livremente pelo tronco, escorrendo em suas mãos. Nadya aguardou e foi quase como se sentisse a mudança dentro dela. Não sentia mais fome ou frio.
Sabia como se livrar de demônios.
O Diabo caiu morto a seus pés, espalhando um cheiro mórbido de metal e pólvora. Nada a que Nadya já não estivesse acostumada. Ela pegou o capote e as luvas de couro.
Cabiam perfeitamente.
Nadezhda Mikhailovna Medveda espera nas sombras pelas almas.
Eles vêm sempre até ela. Crianças, velhos, adolescentes, russos e também alemães. Não há distinção quando só se vê os ossos por baixo da pele e da carne, se é que há carne. Os tempos são escassos e difíceis e a cidade continua sob o cerco gelado da guerra e do inverno. Um dia, vão todos morrer. Nadya sabe disso melhor do que ninguém.
Eles trazem pedidos. Medalhas, ouro, joias, rifles, coisas de tempos passados que já foram esquecidos. Todas as coisas contêm lembranças. Às vezes, ela devolve algo material, mas às vezes ela devolve algo como a esperança. É coisa pouca aos olhos dos mortos. É o que eles vêm buscar.
Ela espera com o capote e as luvas de couro.
Sempre nas sombras.
Laura Pohl é autora de ficção científica e fantasia e adora histórias com o diabo e a Rússia. Seu primeiro romance, The Last 8, foi publicado nos Estados Unidos pela editora Sourcebooks e ganhou o prêmio International Latino Book Awards. The First 7, o segundo livro, sai em 2020. Também editou a coletânea Cantigas no escuro, disponível na Amazon. Formada em Letras pela USP, ela mora em São Paulo com uma cachorrinha salsicha. Você pode descobrir mais no site: www.onlybylaura.com ou segui-la nas redes sociais em @onlybylaura.
Karl Felippe é artista plástico e ilustrador. Ele conversa exclusivamente via verbetes de enciclopédia e filtra informações através de uma grade de referência formada por ficção e histórias de gente que já morreu. Uma década atrás ele ajudou a criar o Conselho Steampunk, e até hoje se dedica ao projeto. Quando não está focado em seus desenhos, esculturas, escondendo o que escreve ou trabalhando em uma misteriosa empreitada envolvendo taxonomia feérica, sua existência neste plano existencial é incerta. Recomenda-se por razões de segurança que ele apenas seja alimentado após a meia-noite.