1958: a Copa do Mundo de Futebol está para começar na Suécia. A seleção francesa conta com duas armas ótimas para conseguir, enfim, um título: Just Fontaine, um jogador excepcional, e Louis-Francis de Marseille, um misto de massagista, conselheiro espiritual e espião de times alheios. O que os franceses não sabem é que Louis-Francis não é exatamente quem (ou melhor, o que) ele diz que é — e quando ele trombar com Maria Severina, a misteriosa cozinheira da seleção brasileira, a vida dos dois mudará de maneira irreversível.
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I. São Paulo, 15 de julho de 2018
No pequeno sobrado em Pinheiros, uma bandeira da França tremulava orgulhosa na janela. Era um dia que Louis-Francis de Marseille nunca pensou que veria novamente — sua pátria natal jogando uma final de uma Copa do Mundo de futebol.
Se pelo menos ele conseguisse prestar atenção!
Como seria de se esperar em um evento de tal magnitude, o octogenário Marseille fechou seu bistrô no dia do jogo e dispensou os funcionários com o dia pago. Todos os familiares foram convidados para assistir à grande partida em seu sobrado, com direito a telão no quintal e comida e bebida suficientes para alimentar uma divisão do Exército.
Dos quatro filhos do senhor Marseille, só dois ainda moravam em São Paulo. Corentin estava em Salvador e mandou uma foto dele, dos três filhos e do neto com as camisas azuis com o galo branco no peito — os filhos estavam bem parecidos com o atacante Kylian Mbappé na cor e na pose, o neto de cinco meses orgulhosamente embrulhado em uma bandeira tricolor (para desgosto da mãe da criança, que ainda tinha crises de raiva quando pensava em Zinedine Zidane e companhia estragando seu aniversário de cinco anos na Copa de 1998). Já Gaëtan, autodeclarado “o único franco-brasileiro ainda sóbrio em Nova Iorque”, estava vendo o jogo na casa do maître do restaurante onde trabalhava, junto com praticamente todos os franceses e francos-alguma-outra-coisa do circuito gastronômico da cidade.
No sobrado em Pinheiros ficaram Jacques e Ronan, ambos com as famílias bem brasileiras — Jacques se casara com uma paraense e Ronan estava noivo de uma mineira. Ao todo, eram dez pessoas espalhadas pela sala, Ronan tentando fazer o streaming funcionar para que eles pudessem assistir ao jogo com a narração do canal francês TF1 enquanto Jacques tentava dissuadir o irmão mais novo do que considerava uma ideia de jerico (“ter que aturar o Galvão Bueno ninguém merece!”, Ronan resmungara. “E aquele chatonildo do Bixente Lizarazu por acaso é melhor?”, retrucara Jacques, referindo-se ao comentarista do canal francês). Uma grande pagaïe, Louis-Francis riu, pensando que os filhos e os netos não entenderiam aquela palavra tão antiquada: uma grande bagunça, uma mistura das duas pátrias em todos os detalhes, das garrafas de guaraná em cima da mesa (porque ele não admitia outro refrigerante em casa) até os amuse-bouches à moda dos franceses.
Mas a barulheira de filhos, netos e comentaristas na televisão estava deixando o pobre restaurateur com uma dor de cabeça de estilhaçar a tampa do crânio. E, em dado momento, ele ergueu a mão e estalou os dedos.
Em um segundo, tudo ao seu redor parou: Jacques e Ronan ainda discutindo sobre o streaming, a mãe de Cecília fofocando com a futura cunhada na cozinha, as crianças brincando no quintal, o avião acima deles cruzando o céu. Tudo congelado no tempo e no espaço em uma espécie de bolha, separados de tudo e de todos.
— Papy, mas o senhor prometeu que não ia fazer isso!
Louis-Francis olhou para trás. Era Cecília, a filha mais nova de Jacques, acomodada num canto mais escondido do quintal. A menina que tinha nascido dois dias depois que Didier Deschamps erguera a taça de campeão do mundo no meio do Stade de France em 1998. Ela agora era uma estudante de direito com os olhos escuros e amendoados que lembravam o dono da casa não só da mãe da menina, mas principalmente da avó paterna da garota.
— Ça alors, que susto! Que está fazendo aí no canto, Cecy?
— Não estou muito animada hoje, só isso.
— E qual o motivo do tristeza?
— “Tristeza” é substantivo feminino.
— Agradeço a correção, mas não mude de assunto. Que te mordeu, para precisar parar o seu tempo? — perguntou ele. Cecília deu de ombros e Louis lembrou-se de novo da esposa. Que falta ela lhe fazia! O Brasil não tinha mais tanta graça desde que ela morrera. — Eh bien, se você não fala, vou brincar de adivinhar. Emprego não pode ser, chateação porque o Brasil perdeu ia ser ridículo… É por causa de algum garoto?
— Não. É por causa de uma garota.
— E qual o problema com a garota?
— Ela… Bom, ela não é assim. Que nem eu.
— De fato, é difícil achar franco-paraenses por aí. Eu sou da opinião de que deveriam existir mais, mas os governos não topam a ideia de fazer intercâmbio ou, sei lá, uns amicales de futebol, um festival de música. Deviam considerar, sabe? E é difícil mesmo encontrar pessoas alérgicas a abacaxi ou fãs do… Como chama lá o chevelu que você gosta, que eu esqueci?
— Shawn Mendes, papy, e o senhor sabe do que eu estou falando!
— Ma puce, que você quer que eu diga?
— Não te choca? Ou te ofende?
— Ficaria ofendido se você me dissesse que torce pro Paris Saint-Germain ou que votou na Marine Le Pen na última eleição. Mas por você gostar de mulher? Eh, eu também gosto! Mulher não é problema, é solução! — exclamou. Cecília voltou a rir com a frase do avô. — Ma puce, não gaste as lágrimas com isso. Se não deu certo com essa, outra aparece. É a vida, só isso. Tem uma mulher em algum lugar do mundo neste momento que não sabe que uma franco-paraense com alergia a abacaxi vai virar a vida dela do avesso.
— E será que ela vai entender? Essa garota que o senhor falou. Essa futura garota esperando, como você diz. Será que ela vai entender isso daqui? — Cecília ergueu os dedos. — Como faço pra contar pra ela? Quer dizer, isso aqui mais me atrapalha do que me ajuda. É como andar no escuro. Nunca sei em quem eu devo confiar, para quem posso falar. Eu vivo engolindo sapo por causa dessa coisa. Papai não ajuda muito, porque pra ele é só confiar no sexto sentido. Meu sexto sentido veio com defeito, e agora?
— Não é que veio com defeito, é seu pai que ficou velho e não lembra como é morrer de medo de si mesmo. Ele está confortável agora e esqueceu do perigo que é. Pensa que não sei? Ser como eu sou já me causou tanta lágrima que dava para encher uma piscina olímpica! Teve uma vez, quando eu trabalhava para a Seleção Francesa de Futebol, que…
— O senhor cozinhou pros Bleus? — Cecília soou surpresa. — Por que nunca me contou?
— Não, ma puce, eu não fui cozinheiro deles. E nem acho que teria sido boa ideia, com o sal… Eu era da equipe técnica da Seleção. Tempos muito estranhos, aqueles. Enfim, te conto como foi? A gente aproveita para descansar os ouvidos desses dois gugusses — ele apontou Jacques e Ronan — discutindo por causa de besteira! Galvão Bueno, non, mais franchement!… Toda vez a mesma discussão! Não ia se aposentar, o sujeito? Enfim, senta aqui do meu lado e te conto…
II. O filho de Marselha
Tudo no passaporte de Louis-Francis era falso, a começar pelo nome. “Louis” era comum o suficiente para não chamar a atenção. Depois ele acrescentou “Francis” para se diferenciar dos outros três Louis que moravam na pensão onde se hospedou. O sobrenome “Marseille” foi a primeira coisa que lhe ocorreu quando perguntaram. Isso lhe rendeu anos de piadas quando ele se apresentava para alguém — “De Marseille”, oui, ça se voit, respondiam quase sempre. Sim, ele era de Marselha, estava até mesmo no sobrenome. Não dava para ser mais óbvio: bastava ele abrir a boca para o sotaque característico da cidade ser ouvido até na lua.
O fato é que, certo dia, ele chegou na prefeitura da cidade de Marselha e disse que tinha perdido seus documentos, será que eles podiam ajudar? No meio do caos de um porto em reconstrução após uma guerra tenebrosa, um homem pedindo por uma nova carteira de identidade era o menor dos problemas do governo local. Ninguém nem se deu ao trabalho de conferir nos registros — graças em parte aos deuses por sua lábia, e em outra aos exércitos que tinham transformado o porto em uma caixa de brita.
E antes disso? Bem, antes disso tinha sido o mar. Ele passara séculos olhando a costa de dentro do mar, vendo os mergulhadores e os caçadores de pérolas e corais com a curiosidade que os humanos tinham com os animais nos zoológicos. E não fosse a guerra, ele teria seguido em frente com aquele tipo de vida por todo o tempo a que tivesse direito. Mas submarinos, mísseis subaquáticos e cadáveres com braços e pernas amarrados e bocas amordaçadas sendo jogados em seu território mudaram radicalmente seu ponto de vista. O que aqueles desgraçados estavam querendo, se matando daquele jeito ridículo? Qual o objetivo daquela barulheira toda? Se queriam se destruir coletivamente, será que não podiam ficar concentrados na terra firme, como em todas as outras batalhas anteriores? Tinham mesmo que invadir os mares com aquelas porcarias todas?
O que eles queriam com a guerra, Louis-Francis não conseguiu descobrir. A pergunta era complexa demais até para quem estivera envolvido naquele frenesi assassino que colocara irmão contra irmão e país contra país por motivos aparentemente estapafúrdios — e olha que ele perguntara para todo tipo de gente depois de chegar na cidade, limpo e liso como uma pérola, tão pálido que as moças gastavam com ele seus arremedos de inglês julgando-lhe um oficial norte-americano.
Ele pretendia voltar para o mar, claro. Ele não tinha motivo para ficar longe de casa por tanto tempo. Mas não estava contando com o fato de que iria apreciar tanto jogo de pétanque e bouillabaisse, tão colorida e saborosa no prato. Ou então que a música e as vozes humanas soariam tão diferentes do lado de fora da água. Eles falavam de sereias que cantavam para afogar os marinheiros — será que acreditariam que um compacto de Édith Piaf em uma vitrolinha tinha o mesmo efeito? Dava para entender por que se orgulhavam tanto dos costumes: a comida, a música, o idioma — tudo isso ajudava a colocar para fora o que eles carregavam em si.
Ele arranjou um emprego e depois outro, uma namorada e depois outra (quando a primeira o trocou justamente por um oficial norte-americano, coisa que ensinou a Louis-Francis o poder dos pastis, engolidos no balcão de zinco do bar como maneira de tapar a dor da rejeição). E assim foi ficando, sempre atraído por alguma coisa nova na terra firme: café, pimenta, filme de pirata, moças ruivas com sutiãs de renda, bolo de chocolate, travesseiros de penas, passarinhos pousados nos fios telegráficos…
E futebol.
Futebol foi uma revelação tremenda, quase no mesmo nível dos sutiãs de renda e dos bolos de chocolate. Não foi amor à primeira vista: ele foi trabalhar no estádio do Olympique de Marseille porque precisava de dinheiro para comer e para pagar o lugar onde ficava sua cama. O time precisava de um massagista, coisa que ele não sabia o que era. Mas ele era um mentiroso de marca maior, e de ver como os outros faziam foi aprendendo o ofício. E, qualquer coisa, ele podia parar o tempo e refazer o movimento até acertar, ou então correr atrás da informação correta.
O tempo debaixo d’água passava em ritmo diferente, e ele carregou aquilo para a terra firme na ponta dos dedos. Não era truque que gostasse de usar, mas ninguém precisava ficar sabendo — e, de fato, ninguém percebia quando ele desligava os seus arredores da tomada. Parando o tempo, ele tinha como descobrir onde o jogador estava realmente machucado sem pressa e sem precisar apertar o sujeito de alto a baixo (Marseille percebeu, talvez de maneira um tanto rude, que os homens não gostavam de serem apertados e beliscados, embora fizessem isso com as mulheres — por falar em outra coisa que, assim como o fratricídio da guerra, ninguém lhe explicou direito).
Parando o tempo, também era possível apreciar com o devido respeito e admiração a maneira como as bolas de futebol, quando chutadas, simplesmente não obedeciam às mesmas leis da Física que todo o resto do planeta.
Gosto por futebol ele foi pegar depois, e mais porque gostava dos jogadores e queria vê-los felizes. E eles ficavam muito felizes quando ganhavam os jogos, felizes o suficiente para se esquecerem das durezas da vida — dos restos de cidade que a guerra tinha deixado, e da falta que as pessoas que tinham perecido nas batalhas lhes faziam.
Aquela euforia, Louis-Francis pensou, era bem melhor do que beber pastis, porque não deixava ressaca. O orgulho pelas cores do time era bem menos nocivo do que o sentimento que movia os exércitos pela costa. E, bem, um gol bonito às vezes deixava a pessoa mais siderada do que beijo de ruiva, com ou sem as rendinhas bonitas debaixo dos vestidos. Era fácil compreender o apelo que o jogo tinha para os humanos, e mais fácil ainda ficar meio viciado naquilo. Era democrático, era fácil de encontrar em qualquer canto, e não precisava ter nascido com habilidade especial para acompanhar a partida — o que mais um humano ou um ser de águas profundas podia querer?
Louis-Francis foi ficando e foi aprendendo a desvendar o corpo humano uma câimbra por vez, uma fratura ou contusão por mês. E alguma coisa boa ele devia estar fazendo para os jogadores porque, depois de um tempo no time, a Federação Francesa de Futebol pagou o dobro do salário para ele ir ajudar a cuidar dos jogadores da Seleção. Ele aceitou sem pensar muito, a princípio: era um time como o Olympique, só que formado por gente de vários lugares do país. Ele não se diria um patriota, mas a ideia de conhecer aqueles humanos que viviam longe da linha da água foi o suficiente para atiçar sua curiosidade.
Ele não estava contando que ia acabar encontrando aquela criatura tão estranha e tão divina. E tudo culpa daquela ideia maluca do Just Fontaine!
III. Um moleque, um homem de pernas tortas e um punhado de sal
— Você tem a manha, Marseille. Você enrola até Deus e os anjos quando está inspirado, por que não conseguiria enrolar meia dúzia de guardinhas?
— Olha, Fontaine… Não vou te dizer que a ideia não é boa…
— A ideia é ótima! Pensa: a gente já começa o jogo com vantagem se souber como os outros times jogam. Vou ser sincero, cara, eu preciso de toda ajuda que conseguir. Eu confio no meu taco, mas pensa na minha situação, com o pessoal encasquetando que eu não sou francês “francês” só porque minha mãe é espanhola…
— Você é mais francês que eu — Marseille resmungou.
— Você é de onde?
— Digamos que sou de território ultramarino. O fato é que você é francês. Marrocos é protetorado francês, seu pai é francês, você joga na seleção francesa, então que aqueles enjoados enfiem os preconceitos deles no rabo, se lhes agrada. Pare de se preocupar com isso.
— Vou parar de me preocupar quando começar a jogar, e ainda falta um mês para isso. E por isso preciso saber o que eu vou enfrentar pela frente! Por favor, Marseille, você tem os truques! Pensa nos meninos! Eles também iam precisar duma forcinha para saber o que temos que enfrentar… A gente tá no mato sem cachorro. Você leu o que escreveram? Disseram que a gente vai ser eliminado na primeira fase! Que o time é fracote. Qualquer arma contra isso é lucro.
Aquilo era jogo sujo: Louis-Francis, afinal, tinha adotado aquele bando de meninos da Seleção como se eles fossem seus, do mesmo jeito que tinha feito com os rapazes do Olympique anos antes. Alguém precisava fazê-lo, afinal de contas: bando de pintinhos sem pai nem mãe que eles eram, aqueles vinte e dois humanos, bem que precisavam de um pouco de orientação e umas aulas sobre como dar nós nas gravatas do uniforme social. Eram filhos de refugiados poloneses, de imigrantes italianos e espanhóis, de argelinos recomeçando a vida na França. Todos jogadores talentosos, porém tão perdidos quanto uma cebola em uma salada de frutas vestindo o uniforme nacional. Tão perdidos quanto Louis-Francis ao sair de dentro d’água no velho porto de Marselha.
Just Fontaine, porém, era especial para Louis-Francis. Ele foi orientado pelo chefe da delegação a cuidar especialmente do “rapaz marroquino”, que tinha operado os meniscos meses antes e ainda estava de molho. Isso foi antes do grupo sair da França na direção da Suécia para o grande evento na vida de qualquer jogador profissional: a Copa do Mundo de futebol.
Foi por causa disso que os dois acabaram virando amigos, bebendo quando lhes permitiam e conversando antes do toque de recolher dos jogadores. Just era interiorano, ia para a cama cedo e acordava cedo, mas enquanto não dormia o papo corria solto e a ideias iam se empilhando sobre a mesa como pratos sujos, sendo esquecidas no dia seguinte.
Uma das ideias de Fontaine, porém, sobreviveu à noite de bebedeira das folgas e acabou ganhando raízes e folhas, tomando todo o ambiente: por que não usar as astúcias de Louis-Francis para espionar os outros times? Afinal, o sujeito era discreto como uma sombra e conseguiria passar conversa até em São Pedro em seu portão dourado no céu. Ele poderia ajudar descobrindo como as outras seleções estavam se armando para aquela batalha, não poderia?
Não é que Louis-Francis fosse demorar para cruzar o país. Na verdade, ele poderia ir e voltar no mesmo dia, em menos de uma hora. Era só questão de estalar os dedos e sair correndo, aproveitando os ventos. Mas daí ele teria de explicar tudo para a comissão técnica… E para os jogadores… E para o resto do planeta… Não, não. Se não tinha como escapar da situação na qual Just Fontaine tinha lhe enfiado, então ele faria isso quase como um humano — o que significava acomodar seu traseiro no banco do trem e fingir que era mesmo um mero jornalista do diário esportivo L’Équipe responsável por fazer um perfil das Seleções que estavam presentes no torneio.
E foi assim que, armado apenas com paciência, bloquinho e uma caneta esferográfica, Louis-Francis foi pingando de canto em canto do território meio inóspito da Suécia antes da Copa do Mundo começar. Os primeiros a serem espionados foram os times que a França enfrentaria na primeira fase: Escócia (a defesa era uma piada, mas ainda assim eles faziam o possível para não dar vexame), Paraguai (os jogadores estavam congelando, apesar de todos os esforços e casacos) e Iugoslávia (time bom, com um goleiro que parecia de elástico, mas o ataque, honestamente…).
A comissão técnica francesa, porém, tinha uma missão especial para Marseille — e foi assim que ele saiu de Kopparberg, onde os franceses tinham se escondido, e foi parar em Hindås, uma vila de três mil habitantes do outro lado do país, em uma jornada de quase um dia inteiro para encontrar o local onde estava hospedada uma Seleção que poderia colocar em risco as pretensões dos Bleus.
Era bem verdade que Louis tinha grande curiosidade sobre o Brasil — de quando em quando aparecia um navio vindo daquelas bandas no porto de Marselha, nove em dez vezes descarregando sacas de café cujo perfume se espalhava pelas docas como um sinal divino. Do time de futebol mesmo, porém, ele só sabia que tinha perdido uma final em 1950, sediando o evento em casa. Diziam os franceses que eles eram bons no jogo, só eram amaldiçoados como Sísifo: sempre que chegavam em algum lugar de destaque, tudo desabava e voltavam para a linha de partida sem nada nas mãos.
O que dava para perceber, chegando no hotel que servia de base para o time, é que a Seleção brasileira devia ter algum problema muito sério com o sexo feminino, porque não havia mulher em lugar algum do prédio: nem na recepção, nem no bar, nem em lugar algum. Só marmanjos e mais marmanjos para todos os lados possíveis, em um lugar muito parecido com a concentração francesa — um hotel pequeno no meio do mato. Sorte a dele, porque assim não precisava gastar todo o seu arremedo de sueco para passar a conversa em seguranças ou policiais locais.
Ele esperava jogadores parecidos com os marinheiros dos navios cafeeiros, os únicos brasileiros que ele conhecia: gente alta e forte, como convém aos ratos de barco em todas as partes do mundo. O que apareceu no lugar disso no campo de treinamento foi um bando de homens com cara de que tinham enfrentado cem vidas em uma só existência. Fisicamente, eram leves com plumas ou seres alados — até andando normalmente eles pareciam vir do ar rarefeito, balançando de um jeito que faria franceses darem risada. Mas, ao mesmo tempo, não fazia sentido: eles pretendiam mesmo jogar o campeonato mais importante do mundo com um time formado por um homem atarracado e de pernas tortas, um franguinho negro de cabelo quadrado sem idade nem para beber, e mais meia dúzia de sujeitos mal-ajeitados? Mesmo?
Algo lhe forçava a prestar atenção — ali havia um segredo, alguma coisa que os humanos não veriam a olho nu, mas que ele conseguia sentir como se fosse sal na língua. E enquanto ele pensava e pensava, cara contra a grade, tentando entender aquele quebra-cabeça e as ordens do técnico gordinho que comandava o grupo, não notou a movimentação atrás dele. Quando percebeu, já era tarde: alguém tinha enfiado a mão em seu ombro com força o suficiente para derrubar um elefante — e, caramba, estava queimando!
Ele mordeu os lábios para não gritar, a mão voltando-se para trás para capturar sabe-se lá o que estava lhe machucando. Ele esperava um segurança, um estivador, ou talvez um daqueles sujeitos pomposos da comissão técnica. O que encontrou em vez disso foi o oposto quase completo: uma humana de pele muito escura, os cabelos enfiados em uma touca branca, com o olhar mais enfurecido que Louis-Francis já tinha visto em toda sua vida. E ela estava carregando um punhado bem grande de sal grosso na mão.
— Te manda, sete-peles, que tu não é bem-vindo aqui! — rugiu a mulher, antes de esfregar o punhado de sal grosso bem no nariz de Louis-Francis. Daquela vez ele não teve como conter o grito de dor, nem o modo como ele dissolveu no meio da alameda como se fosse feito de areia soprada por um vendaval.
IV. Uma dama de pijamas e um nome impronunciável
— Puta merda, Marseille, te deram uma surra dos diabos, hein?
— Para você ver que nem eu sou invencível, monsieur Fontaine — Louis-Francis resmungou, encolhendo-se em seu canto do refeitório.
Foi sorte que o pó de seus ossos foi soprado na direção do mar depois daquele encontro: ele conseguiu se recuperar do trauma do encontro em Hindås com certo sucesso depois de cair dentro da água. Todo o estoque de sorte, porém, acabara ali: a aventura no hotel dos brasileiros lhe rendera uma imensa mancha roxa no rosto, que não saía nem com preces, nem com banho.
Ele passou dois dias tentando entender o que tinha acontecido, mas não conseguia achar resposta adequada. Que caramba, os brasileiros tinham uma bruxa na comissão técnica? Para quê? Agora, ele tinha pesadelos com aqueles olhos rasos, com aquela voz chiada. Ela falara em português, e ele entendera perfeitamente, pelo menos a parte que não era patois. Sete-peles? Que raio era um “sete-peles”? Será que era o nome que os brasileiros davam para os seres como ele?
E disso nasceu outra pergunta incômoda: os brasileiros tinham seres como ele em suas águas?
Ele nunca tinha parado para se perguntar o que havia depois das portas do Mediterrâneo, porque o mundo para ele era Marselha e nada mais — todo o planeta parecia muito igual para ele, quando visto a partir do que chegava no porto. Porém, uma consulta a um mapa-múndi na biblioteca do hotel em Kopparberg mostrou que o tal país sul-americano tinha uma costa marítima bem maior do que a da França: era provável, embora não muito plausível, que um parente dele tivesse sido arrastado pelas correntes do Atlântico até parar no mítico Rio de Janeiro, que ele só conhecia dos filmes da Carmen Miranda.
Ele nem sabia se tinha parentes. Entendia o conceito de pai e mãe porque os humanos tinham demonstrado como funcionava — vira mulheres grávidas o suficiente para imaginar como seria participar daquele tipo de evento, por assim dizer: como seria plantar algo em terra firme. Se havia outro dele nas águas do Mediterrâneo, ele nunca achou e nunca tinha parado para pensar que deveria ter procurado antes de sair enfurecido praia afora querendo saber por que estavam manobrando submarinos de guerra em seu território.
Que vontade de pegar uma corrente de vento e voltar para Hindås para tirar satisfação com aquela bruaca encrenqueira! Mas como fazer isso sem ser notado pelo resto da delegação francesa? Os meninos já estavam treinando duro para o jogo de estreia, iam precisar do trabalho de um massagista para garantir que seus corpos estariam intactos para a batalha. E era apenas isso o que ele era para eles: um massagista. Aquele campeonato era o sonho dourado de todos aqueles moleques, a chance de finalmente entrarem para a História — e ele não poderia estragar tudo só porque estava com o rosto e o orgulho feridos.
— Mas você conseguiu ver alguma coisa do treino deles? — Just insistiu na conversa.
— Vi um pouco. Eles têm um jogador de pernas tortas que parece possuído quando está perto da bola. Garrigue, eu acho?
— Tipo as plantinhas?
— Bom, soava parecido com isso. Eu não peguei o nome dele direito, não deu tempo. Mas tem de tudo, parece mercado de pulgas. Pode ser que dê certo e pode ser que não. Só vai dar para saber vendo os jogos. Eu não me preocuparia agora.
— É, você não se preocupa, mas eu sim. Eles participaram de todas as Copas até aqui, e a gente só chegou nessa edição muito que por sorte.
— Você chama seus chutes de sorte, Just Fontaine? — Louis-Francis voltou a esfregar o nariz. — Porque eu chamo de talento. Eu vou descobrir mais coisa, fica frio.
— Ficar frio, eu fico. Juro para você que fico. Mas olha pro que sobrou do teu nariz, marselhês. Se te pegam de novo por lá, capaz de te moerem de vez. E aí vão ser dois problemas em um. Dessa vez, a comissão técnica deixou quieto, mas se der confusão de novo, eles…
Louis-Francis bufou, irritado, e estalou os dedos com força.
O mundo parou em seu eixo com o eco. Agora, ele precisava agir depressa — se queria resolver aquela questão e se comportar direito como massagista no dia seguinte, teria que voltar em um pé de vento para onde tudo começou. Fazia tanto tempo que não se deslocava daquela forma que, por um instante, achou que tinha esquecido como se fazia. Tantos anos escondido em corpo de humano o deixaram enferrujado, ele estava todo dolorido e seco por dentro.
Pior do que estava, porém, não poderia ficar. E como a jornada de Kopparberg até Hindås era bem rápida para um ser como ele, mesmo com vento contra, logo Marseille estava de novo diante do hotel da delegação brasileira, aquele reino masculino tão peculiar para os olhos.
Era sempre engraçado andar por um prédio quando o tempo estava parado: era como caminhar por um museu particularmente esquisito, com obras de arte meio grotescas ou até comoventes, mas sempre realistas em excesso. Pena que não dava para apreciar melhor a exibição, porque aquele grupo parecia bem divertido. Ele foi de andar por andar, de quarto em quarto, já sentindo a respiração começando a chiar por causa do esforço, fuçando em tudo que era canto para ver o que encontrava. Viu gente jogando cartas, falando com alguém aos berros no telefone, tentando sair do prédio sem ser visto, lendo revista de fotonovela sentado no vaso sanitário… Mas bruxa de olho raso e sal grosso na mão? Não tinha em canto nenhum.
Só faltava a cozinha do hotel — e a ideia de um lugar com sal o suficiente para lhe derreter duas ou três centenas de vezes fez Louis-Francis tremer. Bom senso era coisa que ele tinha pouco, mas ainda tinha, e aquela era bem a hora para começar a usar. Por isso, tratou de bater em retirada o mais depressa que conseguiu, declarando para si mesmo que era melhor voltar sem a resposta, porém vivo, do que encontrar a resposta e ser retornado para a concentração francesa dentro de um sachê de bouquet garni.
Mas o diabo do chiado em seu peito era sonoro como um alarme de ataque aéreo. E adivinha quem estava parada na porta do hotel, com um saco de sal nas mãos calejadas?
Louis-Francis parou, pegando fôlego enquanto se apoiava na parede, tentando não dar risada da cena ridícula diante dele: a bruxa tinha sido tirada de sua cama, e estava vestida com um penhoar de cetim e uma touca de meia no cabelo. Aquilo foi tão ridículo que qualquer sentimento de pânico ou ímpeto de fuga sumiu na mesma hora.
— Eu não te disse para ir embora, sete-peles? — a mulher rugiu, enfurecida.
— Madame, vai devagar que tô meio cansadinho. Baixa o sal, por favor?
— Só se tu disser por que voltou.
— Porque meu nariz parece uma berinjela, meus pulmões estão ardendo como uma fornalha, eu não consegui descobrir o que raios é um “sete-peles” nem como foi que alguém me descobriu aqui! — Louis pegou fôlego antes de continuar falando. — Então, baixa o sal. Eu não vim fazer mal pros seus moleques. É visita profissional. Não vou fazer vaudou com ninguém, palavra.
— Fazer o quê? — A bruxa baixou o pacote de sal.
— Vaudou. Sabe, os bonequinhos? Você coloca um fio de cabelo da pessoa e aí fica espetando? Não? E como é que brasileiro faz quando quer causar problema para um inimigo?
— Costura o nome do fulano na boca de um sapo.
— Aïe, mas coitado do sapo! Que fez ele para merecer isso? — Louis-Francis começou a rir, e aquilo fez seus pulmões doerem ainda mais. — Madame, eu posso pelo menos conhecer o nome da minha anfitriã?
— Tu me chame de Maria.
— Maria? Só Maria?
— Maria Severina, se precisa mesmo dum nome mais cheio… — Ela parou por um instante, falando mais para si mesma do que para seu interlocutor de outras paragens. — Mas se não veio fazer mal para eles, veio fazer o quê?
— Vim entender por que os brasileiros têm uma bruxa no time.
— Eu não sou bruxa. Só sei me defender. Por acaso o seu povo sabe que tu tá aqui?
— Qual dos dois povos? — Foi a vez de Louis-Francis erguer as sobrancelhas. Naquele momento, percebeu que ela podia saber que conversava com uma criatura de outro mundo, mas talvez não soubesse que ele estava com a delegação francesa. Era hora de dar no pé, antes que ela pudesse fazer uma queixa formal de invasão. — Eu vou indo. Boa sorte ao seu time.
— Fique longe dos meus meninos. Tu ouviu, assombração? — Maria ficou ofendida com aquela frase. — Fique longe dos meus meninos ou eu acabo contigo!
Louis estalou os dedos de novo. Quando abriu os olhos, estava em seu quarto na concentração francesa. E cada um de seus ossos estava estralando. Pelo menos ele não tinha mais queimaduras.
Maria Severina, então? Que nome mais bizarro, Marseille pensou. Na confusão daquela conversa, esqueceu de perguntar como foi que ela o reconhecera, afinal de contas. Que a dúvida permanecesse, ele pensou enquanto tentava se levantar. A ideia de jerico de Just Fontaine quase tinha lhe custado a existência — se ele queria voltar vivo para seu mar, era melhor parar de ficar tentando o diabo, como diziam os franceses.
Mas amarrar o nome de uma pessoa em um sapo? Ele quis voltar para Hindås só para perguntar como aquilo funcionava. Era para amarrar como? Com um barbante, um fio de retrós, fio de ouro? E depois, como o sapo conseguia comer? Perguntas, perguntas e mais perguntas…
V. Prato feito
A meros dias da estreia na Copa, e enquanto Louis-Francis corria para tratar as dores nos joelhos de Just Fontaine, a concentração em Kopparberg estava em polvorosa porque a outra estrela do time — Raymond Kopa, do Real Madrid — enfim chegara para se juntar a seus companheiros. Por capricho da comissão técnica — ou por pura falta de espaço —, o recém-chegado foi dormir no quarto de Just Fontaine, expulsando Marseille para o outro lado do prédio. Se Fontaine se queixava da troca (porque Kopa dormia tarde e acordava tarde, ao contrário dele), Marseille se pegou até agradecendo: dormindo sozinho, ele conseguia fugir para Hindås com mais facilidade.
Ele dizia para si mesmo que era apenas porque precisava entender como o homem das pernas tortas conseguia jogar. Mas sempre que o vento o soprava para o sul da Suécia, ele acabava indo parar diante de Maria Severina. Ele a via entre panelões de comida, a única cozinheira entre seis homens de avental e touca, ou então fritando bifes e sendo acossada pelos jogadores mais novos, que a tratavam como uma tia ou mesmo uma mamãe postiça, embora ela aparentasse ter poucos anos a mais do que eles. Ela mimava os garotos, apesar das ordens muito rígidas do nutricionista do time: sempre havia compota ou bolinho de chuva quando os mandachuvas não estavam olhando. Louis-Francis tinha visto aquilo nas mães dos jogadores do Olympique, que se desdobravam em vinte para garantir que o arrimo da família chegaria são e salvo no estádio.
Ele achou que a bruxa tinha decidido lhe ignorar. Certa noite, porém, lá estava ela com o maldito saco de sal grosso, vindo ao encontro dele de penhoar e touca de meia uma vez mais.
— Tu não te emenda, né? — ela resmungou.
— Não — ele sorriu —, nem um tiquinho. Por que dorme com esse troço na cabeça?
— Senão o trabalho de alisar vai todo pro buraco. E tu? Não dorme?
— Eu não consigo. Me faz falta alguma coisa. Acho que é sal…
— Muito engraçado. — Maria se sentou ao lado dele. — Que tanto que tu vem aqui, criatura? Dá para dizer duma vez? Não veio jogar mandiga, não veio espionar, veio fazer o quê então?
— Vim entender isso. — Ele apontou para o saco de sal.
— Já te disse, vi outros como tu no meu caminho antes.
— Devem ter te feito muito mal, para você me estragar o nariz desse jeito.
— Não me fizeram mais mal do que homem de carne e osso. Agora, me conte, tu não devia estar dentro da água, não?
— Devia. Mas aqui tem pastis, geleia, bebês… E futebol. Posso voltar para o meu mundo quando quiser.
— Se pensa assim, é porque sabe que não vai voltar. Bicho que nem tu quando sai da toca, não volta mais. Precisa ser arrastado na marra pra dentro d’água com uma pedra no pescoço.
— Não faz isso comigo, não. Os meus meninos precisam de mim. O outro massagista da comitiva é um brutamontes. Veio do Exército, sabe? Tem a delicadeza de um Panzer.
— Que é isso?
— É um tanque. Sua terra não teve guerra?
— Guerra? Como aquela aqui por essas bandas? Não que tenha visto. Mandaram uns moleques pra lutar na Itália, foi isso. Minha gente morre é de fome, sete-peles. De fome e de doença, não de tanque. Não ainda, pelo menos.
— Que engraçado, um lugar que não foi bombardeado…
— O mundo é grande. Acha que eu não estranho o jeito que as pessoas falam aqui? Ou o céu?
— E que tem o céu?
— As estrelas são diferentes no Brasil. O médico da Seleção me explicou que aqui em cima, são outras constelações que aparecem. Não é a mesma coisa que lá em casa.
Louis-Francis imediatamente ergueu a cabeça para o alto. Como assim, estrelas diferentes? Diferentes como? Melhores, piores, mais bonitas, menos brilhantes? Quando ele ainda era feito só de sal e correntes marinhas, às vezes punha os olhos fora da linha d’água para admirar o céu noturno — desde que viera para a terra, porém, as lâmpadas elétricas chamavam bem mais sua atenção. O céu era o céu, afinal de contas, e ele já sabia como ele se parecia — para quê ficaria olhando para o alto?
— Quanto mais converso com você, mais me assusto com minha burrice — Louis-Francis riu, desconcertado. — Que o mundo é grande, eu até sabia. Moro em um porto, afinal. Mas daí a saber que o céu tem outras estrelas…
— Tu há de ver todas elas, e não demora.
— É convite?
— Não sou dessas, sete-peles. — Ela se afastou um pouco, irritada.
— Se mudar de ideia, avisa, que não me incomodo. Dizem que eu sou bem-apessoado. E eu me disfarço bem. Não tenho família me esperando, mesmo…
— Também não tenho, gringo, se te ajuda em algo.
— Morreram ou sumiram?
— Não sei e não faço questão de saber. E tu não acha melhor ir embora? Daqui a pouco tu começa a chiar que nem uma locomotiva e aí não vou ter como te esconder. Se me flagram aqui, de conversinha com gente estranha, me põem no avião de volta pra casa. Os meninos precisam de mim. Eles sentem falta da comida lá do Brasil, e se não sou eu pra dar um jeito…
— E a comida de lá é tão diferente assim?
Maria deu uma risada, como se a pergunta fosse absurda ao extremo. Mas Louis-Francis estava falando sério, e por causa disso ele foi levado até a cozinha no meio da noite para comer o que havia sobrado nos tachos após o jantar dos hóspedes. Arroz, feijão, carne-seca e chuchu refogado — e Marseille só não comeu a porcelana do prato porque provavelmente pegaria mal. Maria Severina, sentada diante dele com o avental por cima do pijama, olhava admirada para aquela declaração de amor à refeição: alguém que apreciava tanto assim chuchu refogado e carne-seca até podia ter pacto com O Lá de Baixo, mas também tinha bom gosto o suficiente para compensar seus deslizes. E um homem com apetite era sempre uma coisa muito bonita de se ver, fosse gente de verdade ou gente de outro mundo.
— Madame, se é isso que brasileiro come todo dia, eu peço permissão para pedir sua mão em casamento — disse Louis-Francis, limpando a boca com o guardanapo, todo desajeitado.
— Já te disse que não sou dessas.
— Tudo bem por mim, se não quer casamento então a gente pode abrir um restaurante. Vai saber, de repente as águas andam perigosas para mim, tenho que pensar no futuro…
— Tu há de ter um restaurante, mas não há de ter chuchu no cardápio.
— E lá vai você de novo com essa conversa. E como você sabe que…
Uma porta batendo nos fundos da cozinha, um homem rindo e correndo. Louis-Francis se escondeu embaixo da bancada de metal, e só ouviu a conversa chiada entre os dois brasileiros: mas tu não tem vergonha, Mané?, e o homem respondendo vê se esquece que me viu. Os passos sumiram e Maria Severina suspirou, falando para si mesma tu ainda vai se arranjar um filho aqui, passarinho. Pobre da tua esposa, mais uma humilhação pra ela carregar.
— Ele já foi? — Louis-Francis sussurrou.
— Acho melhor tu ir embora — Maria sussurrou de volta.
— Você não me falou como faz lá o truque com o sapo…
— Seus meninos e os meus vão se cruzar. Chegando lá, eu te conto.
— Eu nem te disse para quem eu trabalho!
— Não precisa me dizer. O negócio é entre tu e eu, gringo. Agora, te manda. Junto com o Mané sempre vem mais meia dúzia, e logo essa cozinha vai virar um pandemônio. Estala teus dedos e foge.
Daquela vez, não era o ruído do vento que lhe ecoava nos ouvidos enquanto se deixava levar pelas terras da Suécia, dissolvido em pensamentos contraditórios — entre querer ficar e precisar partir. Era a risada rouca da cozinheira, o modo como ela olhava para ele admirada enquanto ele comia.
Não era o olhar que as mocinhas do porto lhe dirigiam, nem o jeito duro das suecas de paquerar. Era como se estivesse, enfim, diante de algo que era parecido com ele. Não era uma sensação ruim, pelo contrário — se ele desse corda, era capaz de se tornar algo tão viciante quanto ver jogo de futebol.
Bem-feito para ele, por achar que já tinha entendido como os humanos funcionavam. Então existiam outros jeitos de gostar de alguém — por que diabo ele tinha que descobrir isso justo naquele instante? Não dava para ter esperado um pouco? Como ia trabalhar com a cabeça perdida daquele jeito, pensando em olhos rasos e risadas roucas?
VI. Descascando a defesa alheia
Mas trabalhar era o que Louis-Francis de Marseille sabia fazer de melhor, e foi isso o que ele fez. E trabalho havia aos montes: além de massagista e padre confessor amador, ele também se viu costurando as bandeiras nas camisetas dos jogadores — a comissão técnica tinha mandado só dois jogos de uniforme, acreditando que a estadia dos Bleus pelas terras escandinavas seria curta.
A comissão técnica não contava com os chutes de Just Fontaine.
O rapaz fez o que era esperado dele: magia, pura e simples. Seis gols em três jogos (três gols logo na estreia em cima dos paraguaios, que era para os jornalistas pararem de resmungar), mais todo o espetáculo que ele, Kopa e os outros atacantes promoveram.
Agora o L’Équipe e o Le Monde esqueciam da mãe espanhola e do fato que o artilheiro da competição era nascido no Marrocos. E só não falavam mais de Fontaine porque os brasileiros estavam na competição — ainda que fosse estrelando o primeiro zero a zero de todas as Copas do Mundo para cima da Inglaterra (time fraco, feito com sobreviventes — um acidente de avião meses antes dizimara a base da equipe). Apesar dos pouquíssimos gols, o tal de Garrigue, o das pernas tortas como varetas de limpar cachimbo, era tão bom jogando que Louis-Francis teve que parar o tempo na partida contra a União Soviética para analisar os movimentos do sujeito e se certificar de que ele era mesmo 100% humano. Isso para não falar do galinho negro, que chamavam de Édson ou de Pelé, dependia do narrador.
— Pelé? E o que esse moleque está descascando? — Louis-Francis gargalhou enquanto dava voltas ao redor dos dois jogadores, ignorando o chiado cada vez mais alto em seu peito. A curiosidade o forçava a olhar os jogadores por todos os ângulos, até dentro da camisa se fosse preciso. Aqueles ali não eram humanos, não podiam ser — alguma coisa estavam escondendo, mas o quê? Onde estava o segredo daqueles dois dínamos que, com três minutos de jogo, já ganhavam de um a zero com duas bolas na trave? Aquilo era impossível! Se não era magia, o que era?
— Que é que tu tá rindo aí, sete-peles? Descascando o quê?
Maria Severina estava assistindo ao jogo na tribuna, junto com os dirigentes e o resto da comissão técnica. Daquela vez, ela não estava com nenhuma touca na cabeça: dava para notar que os cabelos estavam alisados e amarrados em um birote. O resto da roupa parecia emprestada: ela estava quase desaparecendo dentro do casaco de lã e das luvas tricotadas. Ele ficou com pena do frio que ela sentia, e ao mesmo tempo enlevado com aquele modo como ela erguia a cabeça, uma rainha zelando pelos jogadores em campo.
— Pelé! Como em “descascado”! — explicou Louis-Francis, parado no meio do campo entre os jogadores dos dois times. — Entendeu? Descascado! Pelé!
— É isso que o nome dele quer dizer na tua língua?
— Pois é! O que quer dizer em português?
— Vai ter que perguntar para ele. Eu o chamo de Édson, que é o nome dele. E tu veio fazer o quê aqui? Jogar feitiço nos meninos?
— Ô mulher teimosa, já te disse que não faço vaudou. Precisei ver isso de perto, só isso. Não estou entendendo mais nada. Esse cara não deveria nem estar aqui, e olha como ele joga! — ele apontou para Garrincha. — Ele é humano mesmo ou…?
— Se tem pacto com Deus ou com o sete-peles, não sei dizer. Só sei que nasceu para o que faz. Agora se afaste daí!
— Só depois de entender esse mecanismo. Não se preocupe, não posso mover nem machucar os meninos. Acredite, eu já tentei em outras ocasiões. É um poder completamente inofensivo e inútil.
— Eu disse pra tu se afastar! Vai causar um choque e ele vai quebrar a perna.
— Quebrar a perna com o quê? — Louis olhou para trás. O jogador soviético era um armário. — Ah, com ele? Se ele se mexer para a esquerda, como fez com o outro cara da defesa, acho que dá pé. O rapaz aqui — ele apontou o adversário — é forte, mas não é elástico.
— Apenas saia daí depressa.
— Me conte o segredo. Como eles jogam assim?
— Não tem segredo, gringo tonto. É fome e é raiva! Eles são todos que nem eu: humilhados dia sim, dia também. É isso que move eles por dentro, embora nenhum haja de admitir. Agora, vamos, desfaz isso duma vez.
— Você podia, pelo menos, pedir “por favor”! — Louis-Francis saiu correndo do campo e estalou os dedos.
O tempo voltou a correr: o garoto Pelé, jovem e ágil, trocou passes com um jogador chamado Vavá, que lançou a bola para o gol de maneira tão certeira que Louis-Francis, peito chiando, corpo descascando pelo esforço, quase começou a chorar de tão emocionado. Eles eram meros humanos, falíveis e de ossos frágeis. Mas aquilo que eles faziam? Aquilo sim, era magia — não aquilo que ele ou a tal Severina dos olhos rasos traçavam com seus dedos.
VII. Aconteceu em Solna
Quatro dias entre o último jogo da fase de grupos e o primeiro do mata-mata propriamente dito era tempo suficiente para fazer muita coisa e ao mesmo tempo não permitia nada. Os treinos seguiam em frente, os jornalistas seguiam enchendo a paciência alheia como mosquitos, e Marseille se virava em vinte para atender todos os jogadores. Quando chegava a noite, ele e Just Fontaine continuavam conversando sobre os jogos, sobre as possibilidades e sobre o futuro que talvez viesse para eles no fim daquela jornada.
Falavam de Pelé e de Garrincha — agora conseguiam pronunciar o nome —, e também de Vavá e de Didi. Se os franceses tinham derrotado os paraguaios, por que não conseguiriam derrotar os brasileiros? Eles eram bons, mas não eram deuses.
Talvez falar daquele jeito fosse uma maneira de puxar coragem do éter. Louis-Francis sabia quão loquazes os humanos podiam ser quando estavam com medo do destino marcado. E quando Fontaine era obrigado a obedecer ao toque de recolher da concentração, Marseille se dissolvia em outras direções. Ele não conseguia dormir — os jogos, as torcidas, os repórteres indo de um lado para o outro, tudo ecoava ainda dentro dele, vívido como uma tempestade. Não tinha ideia de que futebol pudesse deixar seus sentimentos assim, tão turbulentos quanto as ondas do mar agitado. Ele queria muito ser um humano, mas aquelas emoções todas lhe davam taquicardia.
Uma coisa que lhe incomodava era o desespero de Maria Severina quando ele parou o tempo durante o jogo. Que ela tinha algum truque na manga, ele sabia: afinal, ela o encontrava no tempo parado. Mas por que tinha ficado nervosa com uma jogada daquelas? O que ela achava que iria acontecer? As pernas do tal Garrincha eram tortas, mas não tão frágeis assim.
As chaves se moviam, e logo havia apenas quatro partidas diante deles: os quatro jogos das semifinais, que seriam disputadas ao mesmo tempo em quatro pontos da Suécia. Para os meninos de Louis-Francis, tudo se encaminhava para desaguar em Solna, uma cidade nos arredores da capital Estocolmo. Por caminhos tortos, entre derrotas que não valiam nada e vitórias muito magras, franceses e brasileiros enfim estariam no mesmo espaço-tempo.
Lá se foi ele costurar as bandeiras nos uniformes lavados às pressas, lá foram os jornalistas se preparar para a batalha que definiria aquela Copa. Era o melhor ataque contra a melhor defesa — Just Fontaine dos oito gols contra os homens que só não faziam chover em campo. Ele ficou com seus garotos, ouvindo as crises de pânico, tentando lembrá-los de que já tinham enfrentado coisas piores antes. Era como Maria havia dito: a maioria deles já tinha engolido sapos o suficiente na vida. Filhos de uma guerra e de estrangeiros procurando vida nova. Eles iriam sobreviver, fosse como fosse. Ganhando ou perdendo, a vida seguiria em frente.
Mas todos esperavam que eles ganhassem. E quando o time entrou em campo, o rugido da torcida sinalizou que aquela não era mesmo uma partida qualquer. Os espectadores esperavam sangue e lágrimas junto com o preço do ingresso, pelo visto.
Aos dois minutos de jogo, Vavá conseguiu derrubar Louis da cadeira e o time da França quase inteiro dentro do campo: o desgraçado tirou um truque do chapéu invisível e marcou um gol logo de cara. A vingança veio logo em seguida, nos pés de um marroquino: Fontaine empatou o jogo com um tiro de seis metros, e parecia disposto a fazer os brasileiros comerem grama pela raiz.
Por quase meia hora, parecia que estavam jogando xadrez, não futebol: o nervoso ia subindo como o crescendo de uma orquestra, fazendo as pessoas berrarem e os técnicos correrem pela lateral do campo. De algum jeito, aquele impasse teria que ser desfeito, antes que alguém morresse do coração — e do jeito que o coração monstruoso de Louis-Francis batia, era bem capaz de ser ele a desfalecer.
Marseille tirou os olhos do campo por um instante, como que incomodado com alguma coisa em sua testa, algo que queimava como uma bituca de cigarro acesa contra a pele. Maria Severina estava do outro lado do campo, com seu casaco imenso e o cabelo no mesmo birote tristonho. Os dois se encararam por um instante — talvez o tempo tivesse parado, talvez não; ele não soube dizer ao certo, de tão perdido que estava, de tão ansioso por algum tipo de consolo.
Só teve tempo de vê-la dizer eu sinto muito até que o ruído de um osso trincando o fez olhar para frente.
Jonquet, o capitão do time francês, estava estendido no chão. Houve apenas um grito, contido pela raiva, mas para Louis-Francis o som ecoava pelos séculos, como os gritos dos homens que eram amarrados e atirados ao mar durante a guerra.
Louis-Francis correu para o gramado com o outro massagista do time. Não havia muito o que ele ou qualquer outra pessoa pudesse fazer. Não existia substituição naqueles dias — quem tombava em campo, tombava para sempre, e o time que se virasse com dez jogadores, ou então que o jogador ferido seguisse em campo, da forma que fosse possível.
Não deu tempo nem mesmo de remover Jonquet para o vestiário — Marseille ajudou a carregar o jogador para a lateral do campo na base do improviso com a ajuda de dois outros jogadores. Ele quis fazer parar o tempo, pelo menos para poder examinar Jonquet melhor, mas o sujeito voltou para o campo, irritado e assustado ao mesmo tempo, querendo impedir a todo custo a derrota do time.
Dois minutos depois, dois a um para o Brasil.
Aquele tipo de coisa tinha o poder de congelar o mundo sem precisar estalar os dedos. No intervalo, o médico fez uma infiltração com novocaína para que Jonquet pudesse aguentar a dor e, pelo menos, manter-se em pé durante o jogo. Não que fosse adiantar alguma coisa: eles estavam perdidos. Os outros jogadores chegaram no vestiário sem fôlego, de olhos arregalados como se tivessem visto Deus e os anjos descerem em campo. Olhavam para Louis-Francis como se ele — que sempre tinha uma explicação para tudo, que sempre tinha uma palavra amiga, sempre um gesto oculto que resolvia qualquer coisa — pudesse fazer algo.
E Louis-Francis de Marseille olhava de volta querendo desesperadamente chorar de vergonha. De que adiantava ser mágico, de que adiantava ser capaz de se desfazer e se refazer, se não podia consertar aquilo? Ele não tinha como curar a perna de Jonquet, não tinha como travar os brasileiros. Seus meninos estavam sem leme, e ele estava à deriva junto com eles.
O que aconteceu depois passou por ele como um pesadelo, como algo que foi reportado por alguma outra pessoa, não por ele. Disseram que o tal Pelé fez um gol antológico — ele não viu. Tudo de que se lembrava era o ruído da torcida e depois o silêncio incômodo do ônibus de volta para o hotel. Just Fontaine mantinha a cabeça erguida —fizera o que tinha que fazer, conseguira furar a defesa impossível. Marcara seu nome na História, mas de que tinha adiantado? Ele não jogava sozinho. Não tinha como vencer semideuses quando se era simplesmente humano.
Naquela noite, Louis-Francis não saiu do hotel. Estava preocupado com Jonquet, que trincara a perna em dois pontos diferentes no choque com o jogador brasileiro; preocupado com os outros jogadores e com as camisas que precisavam ser lavadas de novo — porque eles iriam para a partida do terceiro lugar, justo contra a Alemanha, de que a maioria deles tinha motivos para desgostar — e com o que lhe esperaria no fim daquela aventura. Ele tinha visto o impossível: como voltaria para Marselha e para o Olympique, tendo visto Garrincha jogar? Não havia retorno possível. A vida calma de antes, pétanque e pastis e beijos de ruivas, tudo isso perdera a cor diante daquele espetáculo.
— Ô Louis! — alguém da comissão técnica gritou no corredor. — Tem uma visita para você! Ande depressa, que o médico quer falar contigo depois. Vamos precisar repassar…
Ele já não estava mais ouvindo. Maria Severina não tinha se dado ao trabalho de se apresentar ou de se ocultar: ela viera, embrulhada no casaco imenso, e estava esperando do lado de fora do hotel. Quem a trouxera, quem a levaria de volta? Não era pergunta que ele queria fazer naquele instante. Louis-Francis estava com raiva de causar maremotos dentro de si e apenas uma afirmação pendurada nos lábios.
— Você sabia — ele resmungou em voz baixa para não ser flagrado pelos outros enquanto se afastavam da porta do hotel. — Você sabia que o Jonquet ia quebrar a perna. Que mais você sabia?
— Eu só soube um instante antes de acontecer. Eu tinha visto, mas não sabia com quem era. Sabia que era em jogo importante, sabia que isso ia mudar tudo… Eu não sabia que era com o teu moleque — Maria respondeu com os olhos baixos.
— Você achou que era com o tal Garrigue, não foi?
— Era com alguém importante. Só depois… Depois é que eu vi. E aí era tarde demais para te avisar. Eu não tinha como sair da concentração, não sei voar que nem tu. Só vim dizer que sinto muito. Mas teus meninos precisam se orgulhar do que fizeram.
— Se orgulharem de terem perdido de cinco a dois, fora a humilhação? A imprensa vai nos comer vivos quando a gente voltar para Paris!
— Vocês vão ganhar da Alemanha. Seu menino Justo vai cavar um recorde que ninguém mais vai conseguir tocar. E tu não chore: tu há de ver a França se vingar várias vezes.
— Vou acreditar em você. Não estou em condição de pensar muito no assunto neste exato momento — ele respondeu, olhando para o hotel atrás de si. — Então é assim que os humanos se sentem? Quando os planos dão errado? É só um jogo. Eu já vi tantos antes. Por que eu quero arrancar a minha cabeça e sair chutando daqui para a rua?
— Porque você gosta deles como se fosse sua família. E é assim que a gente sofre por não poder alterar as coisas. A vida não é só carne-seca e chuchu refogado, gringo.
— Poderia ser. E você veio me consolar?
— Não. Eu vim me despedir.
— Você já vai voltar para o Brasil?
— Não, ainda não. Mas… olhe, gringo, eu não sou dessas. Não quero te dar esperanças. Eu sei que tu viu também. Lá na cozinha. Tu pensou o mesmo que eu, do contrário não tinha brincado de me pedir em casamento.
— Como te disse, não me incomodo com a ideia. Você, pelo menos, sabe quem eu sou. Passei tanto tempo fora da água que às vezes nem me lembro o que eu era, que não sou igual a vocês. A gente podia fazer muita coisa junto, não precisa casar, casar.
— Teus meninos não sabem de você?
— Os teus sabem de você? Eles não entenderiam. Ainda outro dia, a maioria deles estava vendo os parentes marchando de uniforme, ou então indo presos, ou sabe-se lá o que mais de ruim. Quem cresce em pátio de guerra só quer a segurança de acreditar no que vê. Pergunta para os teus meninos mortos de raiva e de fome, como você diz, se eles acreditam.
— E o pior é que eles acreditam. Só porque sobrou nada senão isso: o que não se vê. Mas olhe, se te consola, não é tu o problema. Tanto que te juro, tu vai ser um patriarca um dia, como Abraão na Bíblia. É que tu e eu… Tu vai querer o que eu não vou poder te dar. E se é pra ser assim, gringo, melhor nem começar.
— Você não quer me dar esperanças ou não quer se dar esperanças? — Louis-Francis nunca fora de chorar, mas agora era por um triz que não se desfazia com o sal das próprias lágrimas. Ela tinha entendido o que ele era, e estava lhe empurrando de volta para as águas por medo. — Poderíamos ter feito misérias juntos. Inventado uma receita de bouillabaisse com chuchu. Aberto um restaurante que serve carne-seca no porto de Marselha. Ia ter público.
— Com certeza — Maria também parecia triste —, mas é melhor assim. O problema de ver à frente é que eu sei quando vai dar merda. E eu já ignorei os sinais antes, achando que dava para mudar o caminho se eu enxergasse tudo, se eu fizesse um esforço. E sofri com isso, porque alguns caminhos não mudam. Não me pede pra ser o que não posso ser. Ande, homem. Vamos partir bons amigos — ela estendeu a mão. — É o que posso te dar.
Eles se cumprimentaram — engraçado pensar que ele agora a tocava sem medo de sal grosso.
— Você tinha me visto, não é? Antes de eu chegar lá em Hindås.
— Eu vi uma pessoa que ia causar mudanças. E eu vi a perna quebrada. Eu achei que fosse tu… Tinha que me livrar de ti, porque fiquei com medo pelos meninos. Depois que vi o resto.
— Você viu algum bom futuro para os meus meninos?
— Não conte pro Just Fontaine que o nome dele vai viver pra sempre. Senão ele não vai jogar nada contra os alemães. Vai ser feliz, Louis-Francis — ela forçou um sorriso enquanto se afastava —, um dia tu há de entender por que te deixei aqui. Vá com eles e não pense. É bom não saber o futuro. É bom se surpreender.
VIII. De volta a Pinheiros
— Entender, eu só fui entender mesmo décadas depois — Louis-Francis concluiu a história. Cecília desviou o rosto para que o avô pudesse enxugar as lágrimas discretamente. — O resto você já conhece. Ganhamos dos alemães; fomos recebidos como heróis em Paris. Just Fontaine ainda é o maior artilheiro em uma só Copa. Nem o Pelé Descascado fez tantos gols numa edição só. Ele e eu ainda somos amigos, mas ele ficou lá em Toulouse com as lojas dele e eu estou aqui. Eu decidi ver as estrelas de outro céu. Encontrei sua avó… Que não se importava com os meus truques… A gente abriu o restaurante… Tivemos os meninos, os meninos tiveram os filhos deles… E assim foi indo.
— E a Maria?
— Não soube mais dela. Quando cheguei no Rio, porque naquele tempo o voo vindo de Paris parava só no Rio, eu até pensei em procurá-la. Mas deixei quieto. Entendi o medo dela. Ela amava como você ama, num tempo que as pessoas achavam que, rezando, dava para realinhar os planetas. Sabe? E eu só fui juntar as peças depois. A gente podia ter sido feliz junto? Podia. Ela era braba, mas justa. E cozinhava bem que era uma coisa. Mas eu ia me apaixonar perdidamente por ela, eu sabia. Eu já era caidinho por ela. Ainda penso nela, de vez em quando. Eh bien, ça y est, c’est tout, ma puce. A gente é o que a gente é. E é como dizem, qui se ressemble s’assemble.
— Quem se parece…? — Cecília franziu a testa, tentando traduzir.
— Aqueles que se assemelham, se emparelham. Ou: a gente precisa é procurar a nossa turma. Ainda falam isso ou mudou a gíria? Magia ou não, a gente precisa se juntar com quem nos ama, menina. Não gaste suas lágrimas. A moça lá não era do seu time? Você logo acha alguém que é. É triste, mas disso não se morre.
Cecília assentiu, olhando ao seu redor: o pai e o tio brigando por causa do streaming, crianças no quintal e a bandeira tricolor na janela.
— Papy, e será que o Garrincha não era mágico como o senhor? Vai que a Maria mentiu pra você.
— Se era, nunca ninguém vai saber. Algumas magias passam séculos sem serem vistas, meu amor, só esperando a palavra certa nascer para poder sair da água. Eu precisei esperar para existir, então… Um dia, quem sabe? Eh alors, vamos desfazer o truque? A casa é minha, e eu digo que vou colocar na narração do Milton Leite e pronto!
A autora agradece a Dárcio Ricca pelos esclarecimentos sobre a Seleção Brasileira de 1958, e a Bruno Colombari, do site Chroniques Bleues, pelas informações sobre a Seleção Francesa de 1958.
E a título de esclarecimento: a história de que a comissão técnica brasileira vetou mulheres trabalhando no hotel que receberia a Seleção na Suécia é verídica. A autora partiu desse ponto inusitado para contar sua história.
Anna Martino nasceu em São Paulo em 1981. Uma das fundadoras da Editora Dame Blanche, especializada em ficção especulativa, ela já teve trabalhos interpretados na Radio BBC World e publicados em revistas como a norte-americana Translunar Travelers Lounge e as brasileiras Trasgo, Mafagafo, A Taverna e Mitografias. Também é editora da revista de ficção histórica Pretérita e da newsletter Anna Dixit. Nas horas vagas, ela tricota, costura e reclama do VAR nos jogos do Corinthians e do Norwich City FC, além de acompanhar campeonatos de rúgbi e torneios de tênis ao redor do mundo.
Diana Passy é editora, consultora de marketing e gerente do bom senso. É formada em Editoração pela USP e trabalhou para o Grupo Companhia das Letras por 11 anos. É criadora, organizadora e curadora da FLIPOP, o primeiro festival literário voltado para o público jovem do Brasil, e por este trabalho ganhou o Prêmio Jovens Talentos Publishnews 2018.