A ilustração no centro da capa mostra uma garota ajoelhada junto de três onças. Duas estão deitadas à frente dela, e ela abraça a terceira que está sentada a seu lado. A garota tem pele negra clara, cabelos pretos e encaracolados que vão até a base das costas e está usando uma calça jeans clara e uma camiseta branca. O fundo é totalmente roxo, e há um grande sol vermelho ocupando grande parte do céu (estilizado). O título “Corpo Estampado” vem abaixo do logo da Mafagafo (que é azul escuro), à direita, em azul claro. Do lado esquerdo, em cima, há o logo da Mafagafo com a informação “Temporada 003 - Setembro de 2020”. Bem na parte debaixo da capa vem as informações "Escrito por Iris M. Fonceca” e “editado por Sol Coelho” no mesmo azul claro do título da história. Acima do título da Mafagafo, há as informações “Ilustração: Juliana Lopes” e “Direção de Arte: Giovanna Cianelli”.

A lenda das mulheres-onça deleita e amedronta crianças e jovens que se embrenham pelas matas do sertão mineiro na expectativa de conseguir ver alguma delas em transformação. Para Luzia, o corpo estampado não é uma lenda, é sua segunda pele: uma vida baseada em caçar, matar, derramar sangue. É preciso saciar a fome maior, sempre guiada por um instinto ancestral na busca por sua liberdade. No entanto, um experimento ao sul do Brasil e a descoberta sobre o verdadeiro paradeiro de seu pai, sumido em 1972, viram um desafio ainda maior que sua identidade.

Esse conto é acompanhado de uma playlist que pode ser escutada aqui, além de fazer menção a uma personagem de Guimarães Rosa do conto “Meu tio, yauaretê”.

 

17.700 palavras | Aproximadamente 1h15min de leitura 

INTRODUÇÃO: MINAS
1987 [PRESENTE]

Luzia balançou o longo cabelo escuro, livrando-se do suor atrás do pescoço, puxando-os para cima em um rabo de cavalo cacheado. A pele negra brilhava, quente pelo sol. Sacudiu as pernas e caminhou alguns passos, deixando um rastro liso no calcário à beira da estrada. Estava cansada. Esperava uma carona que não chegava nunca, debaixo de um sol escaldante, no meio do Nada. Naquela meia hora, nenhum carro passara antes de Jorge. Ela descia do Norte mineiro para o seu epicentro e tinha certeza de que o carro resolvera enguiçar exatamente no pior lugar da rodovia

Após entrar no luxuoso Del Rey azul-noite e agradecer o moço bem-apessoado que parara para lhe dar carona, Luzia teceu um rosário sobre sua história de vida. Era vendedora de lingerie, roupas e enxovais e precisava chegar a Curvelo ainda naquele dia.

A casa de sua tia Nita devia estar em polvorosa para o casamento, saindo gente pela janela, mas teria, com certeza, um sofá à sua espera para repousar. Pela manhã, encontraria as fiéis clientes da cidade antes de fechar os trabalhos para aproveitar o final de semana com os parentes e, principalmente, com a irmã. Segunda-feira pretendia dar início aos trâmites para a locomoção do carro e seu conserto. Queria partir o mais breve possível para a próxima cidade. Assim era desde que ela completou 13 anos, lá em 1976.

Desde pequena, Luzia não conseguia ficar parada. A menina, que trazia no sangue uma necessidade urgente de correr, de estar sempre em movimento, tinha fogo nos pés. Sua mente rápida e a língua afiada encantavam a todos, contando suas histórias mirabolantes de lugares que jurava já ter visitado e outros tantos que ainda visitaria.

Estudou apenas para perceber que a matemática estava toda em sua cabeça por meio de contas perfeitas. Não ficou para ver até o final dessa história de não poder fazer questionamentos aos professores, de ter que decorar conteúdo, ficar sentada, comportada em uma sala de aula, tudo sempre sob os severos olhares dos inspetores do lugar. Não durou muito. Luzia foi expulsa do último ano da escola primária, ainda nas primeiras semanas de aula, por “insubordinação”.

Quando a mãe descobriu, não fez por pouco: deu bronca, chorou, sentiu, “Ah, se seu pai estivesse aqui!” — sem dar satisfações, Luiz saiu para trabalhar em uma tumultuosa noite de outono, em 1972, e nunca mais retornou; Luzia e a irmã eram mais novas —, ficou brava e comparou Luzia com Isabel — a prima quatro anos mais velha que recém-ingressara na faculdade de Veterinária da UFMG. Por fim, determinou: “Só se for pra trabalhar. Depois que seu pai foi embora, eu não tenho condições de sustentar nós três mais sua avó Olímpia sozinha, não. E fique fora até o horário do almoço, não quero que Joana — a irmã mais nova, na época com 10 anos — tome essas ideias mirabolantes de você. Ela precisa esperar algo mais da vida”.

Luzia achava que a mãe estava enganada. Ela esperava mais da vida. Sempre mais. Mais ar, mais liberdade, mais independência. A sala de aula sufocava. Ficar dentro de casa sufocava, era constante a sensação de que as paredes a esmagavam. Queria mesmo era botar os pés no mundo, conhecer cada um dos relevos apresentados no atlas geográfico pelo qual se encantara na biblioteca da Praça da Liberdade, a Biblioteca Pública Estadual, quando dindinha Zulmira levava as crianças para lá. Queria viver de viajar, de estar sempre em outro canto. Rodopiar, rodopiar, caminhar, seguir. Ser mais uma na multidão do “rio de asfalto e gente” que era Belo Horizonte.

Foi então que, com poucos dias para completar 13 anos, ela, a mãe Antônia, sua dindinha Zulmira — a Mirinha — e a tia Nita — que compartilhava o mesmo nome da sobrinha mais nova, Joana, mas que ganhara o apelido praticamente quando ainda estava na barriga da senhora sua mãe — chegaram a um consenso: Luzia tinha o perfil perfeito para ser uma ótima comerciante.

Começou revendendo peças de roupa que vinham de São Paulo através de dindinha Mirinha, que precisava cruzar os estados e ir até a metrópole comprar tecido e linha para a costura dos vestidos de festa de gala do Ateliê Z&S, montado em conjunto com sua companheira, Sandra.

Com as roupas em uma grande sacola, a menina saía comercializando pelos bairros próximos, de porta em porta. Depois, tomando coragem, ela subiu nos ônibus e começou a desbravar Belo Horizonte, expandindo suas vendas pelos bairros residenciais. Depois foi para o centro, chamando atenção por onde passava pela criatividade no uso com as palavras. Assim, foi acumulando clientes e juntando dinheiro: precisava levar suas vendas cada vez mais longe.

Aos 21 anos, tendo trabalhado muito, também como vendedora de discos, faxineira e babá, já tinha dinheiro suficiente para comprar seu primeiro — e único — carro. Usado. Com ele, estabeleceu uma rota maior. Luzia, que ia de ônibus às cidades vizinhas, agora poderia ir às mais distantes também. Por essa época, passou a vender enxovais completos de cama, mesa e banho, mirando e acertando nas mulheres recém-casadas, mães recém-paridas, mães de debutantes e donas de casa que não encontravam tempo para deixar o lar. Obviamente, teve uma aceitação enorme entre noivas, madrinhas e mães orgulhosas pelo casamento ou pelo nascimento dos rebentos.

Viajava sempre com seu Chevette País Tropical ‘76 bege, “Pra quem gosta de sombra, água fresca, cores, música e economia”, companheiro que a levou de Manga a Governador Valadares, de Campina Verde a Cambuí, fazendo com que sua mercadoria chegasse, principalmente, no interior e nos sertões de Minas Gerais. Único luxo que se permitiu, guardando até o último centavo para conseguir comprá-lo…

— Só para, num belo dia, o trem quebrar no meio do Nada. Depois de todo esse tempo, é de doer, não é não? Uma grande falta de sorte, não é? De novo, Jorge… É Jorge, não é isso?

— Jorge Monteiro Machado — ele respondeu com um sorriso encantador. Luzia sentiu um arrepio.

— Luzia das Dores. — “Silvério”. Era sempre doloroso ter que omitir o sobrenome do pai, mas ela fazia aquilo desde a fatídica noite. — Deus lhe pague pela carona. Aqui tava difícil de passar carro, não aparecia ninguém. — Luzia terminava seu relato suando em bicas e puxando o ar. Desde o momento em que entrara no carro, não conseguira parar de falar.

— Uai, de nada — respondeu Jorge com um sorriso espontâneo. — Eu que fico com a consciência em paz de ter parado, você estava trabalhando. Pena que não vou conseguir levar você até Curvelo. Eu vou para Diamantina, tenho uma tia doente que mora lá. Cheguei ontem aqui…

— Em Minas? — perguntou Luzia, mais para manter conversa do que por interesse. Era de fato curioso, ele parecia ser de Belo Horizonte, mesmo que o sotaque da capital soasse estranho nele. Falava arrastado, como se a voz não fosse usada há muito tempo. Vestia chapéu, uma camisa de botão e calça jeans. Devia ter certo poder aquisitivo. E, por baixo da pele humana, cheirava a algo familiar demais. Luzia ficou em alerta.

— Sim. Eu moro em Brasília já faz um tempo — ele respondeu. Aquilo podia explicar o início da perda do sotaque, ou será que…

Ah, não pode ser possível”. Se fosse o que Luzia estava pensando, ainda teria algumas horas para conseguir sair dali.

— Parei em Montes Claros para dormir e saí mais tarde do que o esperado. Sorte sua, acabei encontrando você no meio do Nada. E você? Está vindo de onde? — Jorge perguntou.

— Eu vinha descendo de Montes Claros para Bocaiúva, levando mercadoria — mentiu. Voltou as mãos aos céus, remexendo as pulseiras de madeira em seus pulsos. — Graças a Deus e Nossa Senhora consegui vender alguma coisa, foi eu sair da cidade e o motor do carro pifou, ‘cê acredita? — ela sorriu, incrédula do próprio azar, empurrando qualquer rastro de medo que estivesse sentindo. — Ele foi guinchado de volta para Montes Claros, mas como eu preciso estar em Curvelo pela manhã, vou tentar que levem o carro até a cidade para ser arrumado por lá mesmo. Precisei dar um jeito de vir antes, minha família está esperando por mim.

— Marido e filhos, eu imagino? — supôs o moço em tom jovial, tamborilando os dedos no volante.

— Não. Nem um, nem outro — ela sorriu. Era um fantasma de sorriso. Triste. — Minha irmã mais nova mora lá; vai casar no final de semana.

O rosto de Jorge lhe parecia familiar. Como se realmente já o tivesse visto em algum canto, mas ela não conseguia lembrar onde. Luzia era ótima com rostos. Os dois conversaram amenidades até o embalo do carro surtir seu efeito e Luzia cair num sono leve e incômodo.

Luzia, meu bem, acorda. — A voz familiar e distante de sua bisavó Araci ecoou por seus ouvidos, surtindo o efeito desejado.

Luzia abriu os olhos para se deparar com eles encarando-a de volta no espelho retrovisor. Sobressaltou-se ao perceber que o castanho-escuro dera lugar a um tom âmbar amarelado. Estava ficando com muita fome. Quando acordou, o relógio em seu pulso marcava 17h14. O sol começava a fazer seu espetáculo exuberante, batendo lindamente sobre as pedras, os descampados de gado e alguns eucaliptos.

Faltavam ainda uns bons quilômetros, e ela começava a pensar que talvez tivesse que dormir em alguma cidade antes de Curvelo. Não gostava de viajar de carona durante a noite, e precisava garantir sua janta. Teria que ligar para a tia e dizer que dormiria talvez por Diamantina mesmo, ou em Gouveia.

— Parece que arrumaram bastante a estrada pra cá — observou Jorge, reparando que sua passageira despertara.

— É. A gente que anda por tudo aqui que sabe dizer… — Luzia calou-se, perdendo sua linha de raciocínio. Observar o pôr do sol e as paisagens do cerrado mineiro era sempre uma experiência de tirar o fôlego.

Ela admirava a paisagem, que mudara bruscamente dos eucaliptos para as árvores tortas e baixas do cerrado. A chuva trouxera verde em tantos tons que era de doer os olhos… As pedras brilhavam pontiagudas e angulosas, de diversos tamanhos, o sol ricocheteando entre elas, esgueirando-se. Um tucano passou pertinho do para-brisa, arrancando um sorriso de Luzia. Uma extensão de árvores silvestres foi resumida a galhos desfolhados, secos, pretos e mixurucas, que se estendiam ao céu como braços pedindo por intervenção divina. No topo de um dos galhos finos, um gavião espiava seu entorno. Luzia sentiu o coração apertar. Queimadas criminosas estavam mais comuns, abrindo espaço para mais eucaliptos, empurrando a fauna mais para dentro das serras, desregulando o ecossistema.

“Desgraçados”, pensou. E suprimiu um sorriso: todas as mulheres de sua família a teriam repreendido naquele momento pelo uso de tal palavra. A saudade foi afrouxando no coração aflito.

Parecia que Jorge não estava aproveitando tanto a paisagem. Luzia conseguia ver pelo espelho retrovisor ao seu lado que o homem começava a olhá-la com certo interesse. Ela não precisava de mais essa agora…

— É bonito aqui, não é, Jorge? — ela tentou.

— N-Não reparei. Eu fico nervoso se tiro os olhos do volante, e seria bastante imprudente com alguém de carona — justificou o moço, ajustando-se no banco.

Luzia apreciou as árvores em silêncio. De tempos em tempos, olhava para Jorge e o pegava olhando de volta. Envergonhada, piscava, desviando o olhar. Segurou-se firme ao banco quando percebeu as feições do moço mudando conforme a noite ia caindo. Luzia piscava e ficava cada vez pior. E então aconteceu, bem diante de seus olhos. Uma mistura de tantas coisas: os olhos transformaram-se em fendas, como os de uma cobra, as orelhas ficaram pontudas como as de um morcego, os braços de cavalo assumiram cascos nas mãos que antes seguravam o volante, e, quando o homem começou a grunhir de uma forma completamente arrepiante, Luzia agiu. Tirou o cinto, abriu a porta e pulou fora. O carro freou bruscamente, e o monstro saiu logo em seguida, rasgando o teto. Havia aumentado em força também. Descomunal. Touro, talvez?

Ela saiu correndo desesperada, chorando e gritando, procurando algo com que se defender. Quando pensou ter encontrado, virou-se apenas para perceber que a besta pulava para atacá-la. Certeiramente, estaqueou-o nos pulmões humanos, deixando-o sem ar e fazendo com que caísse. Ele teria uma morte lenta, mas preservaria o coração.

E, meu Deus, como ela estava com fome. Aquilo era bom, mas talvez não desse tempo para se transformar por completo.

Colocou-se ao lado dele, pedindo que ficasse em silêncio; o homem ofegava, até não ofegar mais. Aquele era o momento exato. Com a cabeça de onça tomando lugar da humana, o que garantiria melhor uso das mandíbulas, Luzia serviu-se em seu banquete, optando por usar as mãos humanas para melhor aderência ao alimento. Começava pelo coração e nunca deixava nada para trás, valiam-lhe todos os órgãos, beber o sangue, roer os ossos, a refeição completa. Por fim, dando-se por satisfeita, guiou o carro até o mato, tirou sua mala de viagem e a grande sacola de roupas do porta-malas, voltou à rodovia e pôs-se a esperar pela próxima carona.

Não demorou muito, surgiu no horizonte um fusca cinza. De onde estava, e com alguma ajuda da visão felina, Luzia constatou que lá dentro vinha uma família: pai, mãe e filho. Hesitou um segundo, mas levantou o polegar. Ela precisava realmente chegar a Curvelo no dia seguinte. E, estando bem alimentada e com uma criança presente, não pretendia lhes fazer mal — ela nunca matava crianças e evitava matar mulheres, se pudesse. Era um acordo consigo.

O motorista fez sinal com o farol, piscando duas vezes, e foi perdendo a velocidade até parar a alguns metros de distância. Luzia seguiu pelo caminho até eles.

— Boa noite, será que vocês teriam espaço pra mais uma? — perguntou Luzia, sorrindo de forma simpática. Da janela do caroneiro, Luzia conseguiu enxergar os três, uma família negra, tipicamente sertaneja e bastante simples.

— Boa noite, senhora. Vai pra onde? — perguntou o motorista. A camisa de botão caprichosamente passada e meio aberta deixava ver a camiseta branquinha por baixo, calça cáqui, sapatos de couro muito usados. O cabelo raspado rente.

— Até Diamantina ou Gouveia, preciso chegar a Curvelo amanhã — disse Luzia.

— A moça tá com sorte. Nós vamos pra Curvelo mesmo, entra aí — respondeu o motorista, sorrindo.

Diante da confirmação, a mulher no banco do carona abriu a porta e saiu do carro a fim de puxar o banco para Luzia entrar.

— Abre o porta-malas, Gildo. A moça tá com sacola. É vendedora, moça?

As apresentações foram feitas. Gildo e Rosa eram de Itamarandiba, de vida apertada, sofrida, no Vale do Jequitinhonha. Casados há quase quarenta anos, tinham seis filhos, todos homens. Felipe, que vinha no carro, era muito desenvolto e bastante esperto, o mais novo de todos os irmãos, com 11 anos. Um deles, para surpresa de Luzia, era Ubiratã, noivo de sua irmã, Joana.

Após um tempo, a conversa caiu no trabalho de Luzia, e Felipe logo perdeu o interesse, mudando o rumo da conversa:

— Ô, pai, o senhor já ouviu falar de mulher-onça? — perguntou Felipe. No sotaque saiu “muié-onça”. De seu lugar no carro, olhava pela janela. A paisagem de fim de verão enchia seus olhos. Era a primeira vez que ele saía da cidade.

— Mulher-onça? — O pai olhou pelo espelho retrovisor, de onde pendia um terço de madeira, franzindo as sobrancelhas grisalhas. — Que história é essa?

Luzia tentou não pensar demais aonde aquela conversa poderia levar, mas se manteve interessada em saber o que o menino ia dizer.

— São mulheres que se transformam em onça — Felipe começou contando a história com entusiasmo. — Elas sentem tanta fome que precisam comer carne humana e beber o sangue — ele baixou a voz em tom de suspense — ainda quente.

A voz do menino falhou um pouco, deixando transparecer o medo. Luzia capturou o movimento em sua visão periférica quando ele esfregou os braços.

— A professora Berê disse que é uma lenda muito antiga, mais antiga que a do Lobisomem e do Boto juntas.

“Não é lenda não, moço. Ah, se você soubesse…”, pensou Luzia, sentindo uma tristeza imensa, profunda, irreparável.

— E a professora fica contando histórias assim, é? Por isso que ‘cê tá fazendo xixi na cama! Chega de noite, fica azucrinando seus irmãos que trabalharam o dia inteiro — o pai ralhava em tom sério. Luzia foi ficando com pena do menino. — Quando a gente voltar, eu vou conversar com a professora, esse não é o tipo de conteúdo adequado para uma escola! Fica passando medo pros meninos. Tsc… Sangue humano…

O pai ficou em silêncio, olhando para a esposa e para os dois no banco de trás através do espelhinho de maneira séria, contrariado. Então explodiu numa gargalhada.

— Uai, filho, me espanta é saber que ‘cês demoraram tanto a conhecer a maior lenda da minha infância. — Ele levantou o dedo indicador, gesticulando com animação. — Quando eu era menino, a gente se embrenhava no mato pra ver se conseguia ver uma mulher-onça em transformação. Elas têm fama de ser muito bonitas, e dizem que ficam peladas durante a transformação.

Rosa deu um tapa de leve no ombro do marido.

— Seu velho safado! — ela riu. — Vou me embrenhar no mato pra ver se vejo um homem-onça também!

Eles riram, divertidos, como se compartilhassem segredos. Coisas de pessoas cúmplices. Luzia sentiu um amor bonito ali. Lembrou dos pais e sentiu saudades de sua infância.

— Ah, Rosa, deixa disso, a gente era menino, sabe como é menino. — Gilson deu uma piscadela para o filho do espelhinho retrovisor.

O clima foi dissipando, ficando leve. Luzia conseguiu respirar. E a conversa foi lhe trazendo memórias da infância e de coisas da vida na roça. Ah, se eles soubessem quem levavam no carro… Lembrou da bisa, da avó. Da futura esposa de Ubiratã. A voz animada de Gildo a trouxe de volta à conversa.

— Seus irmãos todos já foram atrás para ver se achavam uma — ele contava ao filho. — Eu nunca consegui ver, nem eles. Talvez seja só lenda mesmo. — Sacudiu os ombros com um desapontamento nostálgico.

Luzia já tinha visto coisas demais para não acreditar em qualquer lenda que fosse: a noiva que faleceu no dia do casamento e que caminhava pelas estradas das roças, vestida de branco, procurando o noivo. Vilarejos fantasma, movidos por… Bem, por fantasmas. Chupa-cabra — que se alimentava de qualquer animal de pasto com sangue quente. Sempre que podia, Luzia deixava as galinhas para ele e para as raposas, indo procurar outro tipo de carne. Uma vez, para evitar uma briga por uma vaca, ela e um Chupa-cabra decidiram parti-la ao meio. Ambos saíram satisfeitos, mas Luzia tinha certeza de que ele saíra mais satisfeito que ela: sua fome vinha aumentando consideravelmente, quase nada a saciava. Os Lobisomens eram enormes; estavam por aí, rondando e uivando. Às vezes eram bem bravos — principalmente os mais novos, que ainda não conseguiam domar bem sua transformação —, mas, na maior parte do tempo, eram pacíficos, meio apáticos, até; só esperando um novo raiar de sol para que sua maldição passasse e seus ossos e membros parassem de doer.

Havia bichos piores, Luzia sabia. Eles podiam se esconder dentro de suas máscaras de homens de bem, pais de família, defensores da moral e dos bons costumes. Ditadores. Torturadores. Quimeras — como Jorge.

Lembrou-se de Jorge: eram ambos mentirosos. Os dois estavam caçando a céu aberto. Precisavam de histórias convincentes, que os fizessem parecer simpáticos ao caroneiro, que o compadecessem. Seu nome era familiar de alguma forma. Desde o início, Luzia pressentiu que o homem que parou para dar carona a ela não era mineiro. Estava tudo escondido no sotaque, no cheiro, na cor. Não, ele era de um lugar mais frio, do Sul. Um lugar úmido, que o obrigava a usar roupas de inverno por mais tempo e fazia do cheiro de mofo algo familiar. Isso também se refletia em seus olhos, na pele ressecada, desacostumada com o clima seco, e em seu cabelo de um dourado envelhecido. Além disso, Jorge tinha a fúria de não ser um bicho só, e de não se entender como algo natural: era bicho cruelmente criado em laboratório. Provavelmente, fora solto para vir atrás dela. Será que ela nunca acordaria desse pesadelo?

I: CAÇADOR DE MIM

Para a família de Luzia, mulher-onça não era lenda, era sua realidade. Era o símbolo de união das mulheres de sua casa. Um grito de liberdade, uma busca incessante por se entender, por algo que curasse a fome maior, essa coisa degradante de ter que comer carne humana. Realidade cruel, dolorida, repleta de saudades. Desde seu início. Uma herança triste que percorria sua família por lado de mãe. Essa era sua vida: caçar, matar, sangrar para sobreviver, ser livre, ser mulher e onça em um corpo só. Assim era, desde muito antes de Luzia nascer.

Essa história, na verdade, começava por sua bisavó, Araci.

Luzia forçou os pensamentos sobre a bisa a ficarem quietos até que deitasse a cabeça no travesseiro do quarto de hotel em Gouveia, onde passariam a noite. Não era necessário que a família de Ubiratã a visse chorando, alheia às conversas que, felizmente, após um silêncio tranquilo, tomaram outro rumo.

Dormiu inquieta, sempre meio desperta, como se estivesse em perigo e o mal espreitasse. Ou como se estivesse sendo observada por fantasmas (abria os olhos de cinco em cinco minutos para checar: eles não estavam lá).

Naquela noite, Luzia sonhou com a bisavó mais de uma vez. Não lembrou nada sobre um dos sonhos. No outro, Araci falava diretamente para ela. Incentivava sua bisneta a ser corajosa e a seguir em frente.

— Meu bem, liberdade não quer dizer ser só — falou Araci, sempre silenciosa, sempre sabendo o momento exato para aparecer. — Quer dizer que você é quem tem todo e qualquer poder sobre suas ações. Já pensou que sua liberdade pode ser estar junto de todos a quem você ama? Ah, minha pequena. — Ela ouviu, ao fundo, a voz suave e criada na roça que sempre trazia luz.

Luzia acordou admirando o teto, sentiu as lágrimas escorregarem pelo rosto. Ser corajosa e seguir seu sonho de liberdade dava um medo… Luzia se encolheu na cama, sentindo o leito aumentar de tamanho. Ficou ali, tão pequena. Tão solitária. Sempre tão solitária. Como as onças são. Por que tinha de possuir tantas características que a uniam intrinsecamente à sua segunda pele? Doía ainda mais profundamente quando sabia que o sonho tinha um propósito: a cada momento ela chegava mais perto de tudo, de todas.

As mulheres da família de Luzia eram bastante unidas, mas, em algum momento, ela acabara partindo para outros caminhos, seguindo outros rastros. Se perdeu e se encontrou como a monumental Senhora da Vastidão, uma Onça verdadeira. Fera no meio do mato, nas tocaias, emboscadas, na esperteza para fugir de armadilhas, de tiros de espingarda, do amor — tudo o que poderia matá-la. Passou perto de ficar de vez transformada em onça, como Maria Maria antes dela, mas sempre alguma coisa a impedia.

— Acorda, bem. — Luzia sentiu o fantasma da mão da bisa em seu ombro. Encolheu-se um pouco mais, e então relaxou. — Você vai perder a carona…

— Já tô levantando. — Luzia virou para se levantar, ainda sem procurar por Araci no quarto.

— Senti sua falta, assombração. — Luzia olhou para os pés descalços.

— Isso é jeito de falar com a sua bisavó? — Araci perguntou, divertida. Luzia sabia que a bisa não levava a sério: era um apelido carinhoso. Por estar sempre por perto, Araci acabara se tornando mais uma amiga do que uma memória afetiva.

— Bença, bisa — pediu Luzia, por hábito.

Era bom saber que Araci estava ali mais uma vez. Luzia nunca tivera muitos amigos. Com toda sua energia, quando criança, qualquer brincadeira virava logo motivo para confusão, porque ela corria demais, se escondia muito bem, chutava a bola com força, machucava sem querer machucar. Aquilo a escandalizava, porque não tinha mesmo a intenção, mas era difícil explicar. Os meninos do bairro já tinham um veredicto: “Se a Luzia for brincar, eu não brinco, não. Não dá pra brincar com a Luzia não, sô. Ela parece gato arisco, filhote de corisco.” O apelido pegou. E, chateada, Luzia voltava-se a brincar com sua irmã ou então sozinha.

Foi por esses tempos que aconteceu o primeiro encontro com Araci, durante um sonho, e tudo muito rápido. Uma jovem mulher que Luzia nunca tinha visto apareceu no meio de uma mata, de camisola, os cabelos castanhos e desgrenhados descendo numa cascata cacheada pelos ombros, folhas e pequenos gravetos despontando de vários lugares. Parecia uma ninfa dos livros ilustrados de mitologia grega que a dindinha tinha em casa. A figura limitou-se a abraçar o corpo magrelo de Luzia, um abraço que a menina sentiu como se estivesse realmente acontecendo.

— Espere só mais um pouco, meu bem. A gente vai se encontrar em breve, e tudo vai ser explicado.

O segundo encontro entre Luzia e Araci se deu um pouco depois, mas a menina só foi entender mais tarde.

Uma tarde, Luzia não se sentira bem e saíra atrás da avó para ganhar um colo ou alguma coisa que pudesse parar aquela dor de cabeça. O que por si só já era estranho; Luzia não costumava ficar doente. Chegando à porta entreaberta do quarto, ouvira dona Olímpia conversando no canto do cômodo com alguém que Luzia não podia ver, mas que não parecia se tratar da figura de Nossa Senhora das Dores no altar de canto que ficava no outro extremo do quarto, escoltada por Santo Antônio de um lado e São Francisco de outro. A avó também não usava o terço de madeira enrolado nas mãos, para rezar cada uma das sete Ave-Marias diárias à santa, como a vira fazer tantas vezes. Achando tudo engraçado, a menina entrou e perguntou:

— Tá caducando, é, vó? A senhora tá falando com quem? Tem ninguém aí, não, sô!

A avó riu e estendeu os braços, chamando-a para perto, os olhos castanhos brilhando.

— Venha cá, meu bem. — Luzia sentou-se ao seu lado na cama. A avó pegou-lhe a mão, fazendo carinho. — Eu falava com um duende que mora na minha cabeça. Ou com um fantasma, se preferir. — Ao ouvir aquilo, Luzia ergueu os olhos muito castanhos e muito arregalados na direção da avó, fazendo o sinal da cruz. Dona Olímpia riu. — Calma, bem, é um fantasma bom. Qualquer hora dessas, eu conto a história dela pro’cê…

— Dela? — Luzia interrompeu, empolgando-se ainda mais com aquela história. Bastava dizer “duende” e a imaginação da menina já corria solta. — Mas então é uma duende mulher? Uma fantasma?

Dona Olímpia simplesmente olhou para Luzia, e foi como se as duas vissem, uma na outra, o mundo diante de si. Vasto. O peso de uma hereditariedade. A avó desviou os olhos. Logo o destino de Luzia se mostraria, ela sentia, podia ver: mesmo antes da primeira transformação, Luzia já era mais Onça que todas na família.

O destino, afinal, atrasou um pouco e só foi se manifestar quando Luzia tinha catorze anos. Ela já havia abandonado a escola e começado a trabalhar como sacoleira. Quando chegou, não houve maiores alertas, só uma dor de barriga seguida por um piriri, e então sangue. Pouco, mas o bastante para assustar. Com o grito, a mãe Antônia veio acudir.

— Ah, minha filha. — Ao perceber toda a cena, a mulher sorriu. — Temos que providenciar paninhos para você. — Então o sorriso cedeu, os olhos perderam o brilho. Antônia ficou pálida e, ainda na porta do banheiro, virou a cabeça pra trás, chamando: — Mamãe, eu acho que precisaremos de você.

Com o chamado, dona Olímpia deixou as panelas no fogo e veio. Usava um lenço para impedir que o longo cabelo grisalho caísse na comida. Estendido sobre o ombro havia um pano de prato, para livrar o suor da testa castigada pelo sol no trabalho pesado da roça.

— Por que você está tão assustada, mamãe? — Luzia perguntou, aflita. — O que tá acontecendo? — Olhou da mãe para a avó. Precisava de respostas. — Vovó… Alguém pode me dizer por que vocês estão com essas caras? Parece que viram assombração. Eu… vou morrer? — Luzia perguntou num fio de voz.

As duas riram de forma automática; continuavam muito tensas.

— Você virou mocinha, minha filha — a avó respondeu, tomando as rédeas. — Suas regras desceram. — A menina não entendeu. — Precisamos providenciar paninhos. E, depois do almoço, precisamos conversar.

A avó virou para voltar à cozinha e terminar o almoço, mas deu meia-volta e olhou para as duas.

— Não comentem nada com Joana. Ela ainda não precisa saber disso. — Dona Olímpia chamou a filha para segui-la, então o tom sério mudou para uma falsa empolgação: — Talvez seja bom ligar para as suas irmãs, Antônia, contar as novidades!

O almoço transcorreu em um silêncio estranho. Luzia se mexia inquieta na cadeira, acostumando-se com o paninho na calcinha. Joana, sempre mais quieta que Luzia, estranhou o silêncio da irmã, e quis saber o que estava acontecendo.

— ‘Ocê tá se sentindo melhor? — Sob a desculpa de não estar se sentindo bem, Luzia tinha pedido para ficar em casa. Luzia negou com a cabeça. — Recebeu o boletim, Luzia? Mamãe foi buscar o meu hoje. Tirei boas notas em todas as matérias! — A pequena orgulhou-se. Por não estudarem nas mesmas escolas, Joana ainda não sabia que Luzia já não frequentava mais a escola; aquele era o combinado: Luzia trabalhava com a ajuda das tias, ficando a manhã toda fora. À tarde, a mãe saía para trabalhar, e ela deveria ficar para ajudar em casa.

— Recebi — respondeu Luzia, distante, murchinha. — Minhas notas não foram das melhores.

Após cair num silêncio profundo, Luzia pediu licença para se levantar, retirou o prato intocado, depositando a comida na grande tigela do cachorro Rabicó, e foi deitar-se virada para a parede. Sentia muita dor na barriga (ninguém ainda tinha falado para ela sobre as cólicas), e um desconforto muito grande fazia sentir como se seus ossos esticassem e doessem. Sua cabeça parecia que ia explodir. Sentia certa apatia também. E, lá no fundo, começava a sentir cheiros mais fortes, mais distantes. No almoço, pôde sentir o cheiro da pele das três, e soube qual era qual. Mais que isso, pôde sentir e distinguir o cheiro do sangue correndo nas veias das três. Sentiu pavor quando percebeu que salivava.

Após o almoço, Antônia colocou Joana para lavar as vasilhas e depois a despachou para a casa de uma amiguinha. Já havia ligado mais cedo para o consultório onde trabalhava como secretária, pedindo a tarde de folga porque estava no hospital com a filha. Ela precisava garantir o dia em casa: havia chegado o momento.

Luzia acordou com o bater dos pratos e xícaras, com vozes sussurrando apressadas; sua mãe veio chamar, acompanhada do cheiro de café coado fresquinho invadindo o quarto.

— Está na hora, filha. Fique tranquila, vamos explicar tudo.

Luzia a acompanhou até a copa, onde a menina se alegrou ao ver dindinha Mirinha e a prima Isabel juntas numa sexta-feira à tarde. Um bolo de fubá quentinho deixava a copa aquecida e cheirosa.

— Mamãe, Luzia está aqui — informou dindinha Mirinha. Tia Nita saiu da cozinha com algumas xícaras empilhadas nas mãos.

— Luzia, está na hora de te apresentar a uma pessoa muito importante — disse a avó, saindo da cozinha com o bule de café. Era seguida de perto por uma forma corpórea. Uma mulher muito parecida com dona Olímpia, mas anos mais jovem. Foi a primeira vez que Luzia viu um anjo. O anjo do sonho, Luzia pensou. Mas alguma coisa estava diferente: ela logo se deparou com a enorme mancha escorrendo pela camisola que o anjo usava.

— Uai, ‘ocê também tá menstruada? — Luzia perguntou, apontando para a mancha. Araci sorriu, pega de surpresa. A personalidade de Luzia contradizia a de todas as outras; elas sempre se assustavam quando a presença de Araci era revelada nas primeiras vezes.

— Não, meu bem. Essa é outra história… — Araci limitou-se a dizer.

— E tudo será explicado quando chegar a hora — a avó informou. — Agora precisamos nos apressar, temos pouco tempo. Você precisa comer logo.

Foi assim que Luzia começou a conhecer a história de sua família.

Tudo começava por Araci — agora a fantasma ou anjo da família. Araci contou à Luzia, assim como fizera com Isabel alguns anos antes; Antônia, Zulmira e Nita também, e, antes delas, a primeira, dona Olímpia. Todas já conheciam a história de cor, mas sempre doía da mesma forma.

 

Araci era a caçula dos Oliveira, uma família de posses com cinco filhas que, por razões políticas, buscava estreitar laços com fazendeiros ricos da região sul de Minas Gerais, todos enriquecidos pelo cultivo do café. Enquanto crescia, Araci via suas irmãs, uma a uma, sendo empurradas para casamentos arranjados. A moça, além dos atributos necessários às boas damas de sua época, gostava bastante de ler, e, nas histórias que encontrava, havia heróis como Romeu e Tristão. A ideia de ser a heroína de sua própria história, de decidir o que queria fazer da vida, era bem mais interessante do que acabar como alguma de suas irmãs, tendo um filho atrás do outro e perdendo o brilho nos olhos. E, de qualquer modo, a jovem já tinha outra pessoa em seu coração.

Elias era um jovem que trabalhava na fazenda dos Oliveira e era a pessoa mais doce que Araci conhecia. Não demorou muito para que um caísse nas graças do outro, furtando olhares e encontrando motivos para conversar. Logo estabeleceram um relacionamento escondido. Elias trabalhava muito às custas de pouco dinheiro, um lugar para dormir e um prato de comida; um trabalho pesado. Araci sabia que um casamento entre os dois não seria bem visto, e fugir da bênção em uma família tão católica quanto a sua traria desgosto para todos: a família ficaria mal falada; ela seria tomada por ingrata. A moça já entrara em embates com o pai por ter uma personalidade forte, custando a se manter quieta dentro de casa por muito tempo. Vivia pelos estábulos conversando com os peões, fazendo carinho nos cavalos e cavalgando, nadando no lago ou correndo por toda a extensão da fazenda. Quando ficava pela casa, era na biblioteca ou na cozinha, atazanando ou ajudando Maria, a cozinheira, a fazer bolos para o café.

Certa tarde, quando retornava de uma de suas cavalgadas, entrando na casa suada e resplandecente, o rosto e os braços bronzeados pela constante exposição ao sol, foi chamada por seu pai na sala de estar. Encontrou, além dos pais, três outros visitantes — entre eles, um jovem bonito e de aparência elegante, que se levantou da poltrona onde estava sentado quando a viu.

— Boa tarde — ele disse com um pouco de vergonha. Ela o olhou, atônita.

— Boa tarde — respondeu de maneira automática. Olhou para a mãe, que a encarava com uma expressão clara de desgosto pelo modo como a filha entrara na sala. Sentindo que devia uma explicação às visitas, dirigiu-se a eles: — Peço desculpas, eu acabei de voltar de um passeio a cavalo pela fazenda. Se vocês me dão licença, eu vou me limpar e volto em um instante. — Enquanto saía, passou por Maria, que trazia uma bandeja com café coado fresquinho, e sussurrou, os olhos apertados: — Posso saber o que está acontecendo aqui?

— É o seu noivo, bem — Maria respondeu, entristecida. Ela era a única pessoa que sabia do romance entre Araci e Elias. — Lembra que a mata ajuda àqueles que dela precisam. — Araci ouviu o conselho sem dar muita atenção e saiu para o quarto.

Sem que ela soubesse, seu pai já havia firmado compromisso com a proeminente família Alves Pereira. Amparados por interesse dos dois lados, os acertos foram feitos e, aos dezessete anos, Araci se viu noiva do encantador Dionísio Alves Machado, que almejava estudar direito em São Paulo. Com o noivado ajeitado, não demoraria a chegar sua vez de seguir o destino das irmãs, mas ela podia atrasar as coisas. Pelo menos para conhecer adequadamente o noivo. Sendo assim, acertaram de se casarem quando Dionísio finalizasse os estudos em São Paulo.

Naquela tarde, Araci aceitou fazer sala para as visitas depois de se arrumar de forma mais apropriada. Mas, à noite, não conseguiu dormir e saiu porta afora, correndo na noite enluarada de encontro à escuridão, adentrando a mata nativa aos fundos da fazenda. Sentia uma angústia tão grande, uma mistura de raiva e desilusão, como um bicho encurralado. Uma vez na mata, Araci percebeu que seus conflitos se amplificavam de alguma forma; seu corpo começava a doer pela corrida, experimentando aquela transformação dolorida que a fazia passar mal, até virar onça pela primeira vez sem saber. A dor da primeira transformação tirou todos os seus sentidos, e ela desmaiou, voltando à forma humana logo depois. Foi encontrada por Elias, que correu ao seu socorro quando a viu saindo da mata, trêmula e pálida. Acordou dois dias depois, sem lembrar de nada.

O tempo passou, e, enquanto o casamento não chegava, Araci continuava inquieta, raivosa, espetada. Passando ainda mais tempo fora da casa e mais tempo dentro da mata correndo como mulher e onça, e perto de Elias.

O casamento chegou com Araci já sabendo que estava grávida, um segredo mantido com Maria, que cuidava para que os pais da moça não soubessem. Mesmo com o ato tendo sido consumado na noite de núpcias, ela sabia que não havia nenhuma possibilidade de ser de Dionísio. A criança que carregava na barriga era de Elias.

Uma noite, Araci acordou em uma poça de água e sangue. Saiu desesperada atrás de Maria. Desconfiado, Dionísio seguiu as duas enquanto estas iam em direção ao barracão no qual Elias ficava, uma levando o barrigão à frente e a outra uma lamparina e panos. De dentro da pequena casa, ele ouviu a voz apressada da esposa dizer: “Nossa criança está chegando a qualquer momento”. Dionísio voltou à casa, acordando todos aos gritos.

A real identidade do pai foi descoberta, e a sentença foi a morte. Ao presenciar o assassinato de Elias, em um instinto para salvar a criança, Araci seguiu uma última vez o conselho de Maria. Enquanto corria pela mata, com as emoções amplificadas, começou a entrar em trabalho de parto. Era seguida de perto por Maria, que havia prometido proteger a ela e à criança, garantindo a segurança de ambas.

Correndo dentro da floresta, Araci buscava um lugar para se esconder. Acabou encontrando uma caverna. Maria entrou logo atrás para dar assistência e fazer o parto — o que fez em meio a promessas de cuidar da criança e de levá-la a um lugar onde pudesse ficar segura, longe daquela fazenda.

Sozinha, Araci foi acometida por tantos sentimentos… A dor pela perda do amor e da filha, a raiva que sentia do pai e do marido; começou a se transformar em onça mais uma vez. Após a transformação completa, ela voltou a correr pela mata por tanto tempo que não pôde mensurar. Ao ouvir vozes, subiu em uma árvore para se esconder. Insatisfeitos e com medo pelos barulhos da mata, os homens foram embora, procurando por ela em outra direção. Araci estava muito fraca por ter dado à luz e pela perda de energia. O eco distante do choro do bebê pela mata chegou até ela. Nem teve tempo de dar um nome à menininha. Com um último esturro, que soou bastante como um soluço, Araci caiu da árvore, de volta à forma humana. Quando seu corpo tocou o chão, já estava morta. Cumprindo a promessa de Maria, a mata se encarregou de esconder o corpo da mulher morta dentro de suas entranhas, protegendo-a uma última vez.

Certa vez, Chico lhe contara uma história sobre mulheres lindas que se transformavam em onça, e como ele era “doidim pra encontrar com uma”. Luzia achou que ele era muito corajoso, na época, querendo se embrenhar no mato para procurar onça.

Ela nunca imaginou que a história de fantasia de Chico estivesse dentro da sua própria casa.

Luzia observou a avó amparada por Antônia e tia Nita. Dindinha Mirinha segurava com força a mão de Isabel. Todas elas tinham os olhos rasos d’água. E, pela primeira vez, a menina compartilhou de uma dor que ela não sabia que sentia.

Araci inspirou; começava a cumprir seu objetivo, o de ensinar Luzia em sua nova natureza. A história entristeceu a menina de uma forma implacável. A bisavó fora impedida de viver com o seu amor verdadeiro, com sua filha. Impedida de viver qualquer coisa que chegasse perto de se entender como uma mulher livre, como a heroína de seus livros.

Enquanto Araci pairava com um olhar distante, de uma tristeza sem fim, dona Olímpia tomou a narrativa:

— Foi com Araci e comigo, única filha que ela conseguiu ter, que se deu origem à nossa família.

Dona Olímpia andou pela cozinha, pensando. Parecia procurar alguma coisa apenas com as vistas. Foi ao lado da bela cristaleira de madeira e abaixou-se, empurrando um rodapé falso; do buraco, tirou um volume embrulhado em um pano branco esfiapado. Entregou o volume à Luzia, que o pegou com muita seriedade.

— O que é isso? — perguntou a menina, esperando qualquer tipo de resposta para descobrir.

— Isso é um diário — respondeu a avó. — Não sei se você vai conseguir entender bem meus garranchos, mas aí eu escrevi cada transformação pela qual passei nos primeiros anos. Depois passei às minhas filhas, quando elas foram para o Educandário Nossa Senhora das Dores. Lá elas conseguiram escrever e ilustrar melhor do que eu. — Ela olhou com orgulho para Zulmira. — Depois Isabel, que devolveu ao completar os estudos na escola. Agora é seu. Sem mais segredos. Você pode colocar o que quiser aí dentro: transformações, desenhos, informações de lugares perigosos, outras Onças ou metamorfos que encontrar pelo caminho.

Luzia, distraída com a capa simples de couro marrom do diário, levantou a cabeça quando ouviu a palavra nova.

— O que são metamorfos? — perguntou, curiosa. Era muita informação nova para um dia só.

— Pessoas como nós — começou dindinha Mirinha, aproximando-se dela —, que se transformam em outros animais. Como os Lobisomens, por exemplo.

— Lobisomens? — Luzia ficou impressionada. Queria contar tudo para Chico. “Imagina a cara dele quando souber!”, pensou. — Eu posso encontrar Lobisomens?

— Lobisomens, Chupa-cabra, Saci, Bruxa… — dindinha Mirinha enumerou. — Todos eles fazem parte de seu mundo agora. — Ela se abaixou. — E, se você der sorte, posso te levar um dia para conhecer um casal de Duendes e uma Fada — disse baixinho, piscando um olho.

Algum tempo mais tarde, folheando o diário, Luzia descobriu que a Fada era, na verdade, tia Sandra. Dindinha Mirinha gostava muito de desenhar e escrever sobre tia Sandra como Fada, e foi através desses esboços que a dindinha foi se descobrindo como estilista e lésbica, e estava tudo ali. No diário. Sem mais segredos mesmo.

Luzia não havia reparado que sua mãe saíra da cozinha, e agora voltava com uma das sacolas de roupa para vender e uma mala de mão. Antônia estava com uma expressão bastante preocupada: parecia não estar muito longe de vomitar todo o almoço no chão. Olhou para todas na cozinha.

— Temos que ir ou não chegaremos a tempo — falou com certa gravidade.

— E nós vamos aonde? — Luzia quis saber.

— Visitar o único homem-onça dessa família — a mãe respondeu. — Você e eu vamos ficar com o seu padrinho no sítio em Sabará por alguns dias. Ele já está com tudo preparado para nos receber. Dindinha Mirinha vai nos levar até lá.

— E a Joana? — Luzia perguntou à mãe.

— Joana vai ficar aqui com sua avó — a mãe respondeu.

— E ninguém vai contar nada pra ela? — Luzia começava a se indignar.

Era muita coisa para ser dita de uma vez, no mesmo dia em que algo do tamanho de uma transformação — em Onça! — acontecia. No mesmo dia em que ela se sentira enjoada e com dor de barriga; afinal, era dor de barriga? Ela já trabalhava, era bastante independente, mas muitas coisas ainda eram novidades que ela recebia quase com um interesse infantil. Como reagir? Devia ou não sentir medo? Devia ou não perguntar alguma coisa? E esses paninhos? E por que ninguém falou na palavra regras naquela casa até ela receber as suas? E que palavrinha feia e esquisita, regras.

O olhar de dona Olímpia foi suficiente para calar os pensamentos altos de Luzia.

— Não. Ninguém vai falar nada para Joana até que a hora dela chegue. — A avó enquadrou os olhos de Luzia. — Entendido?

Luzia confirmou, de olhos arregalados, contra sua vontade. Tinha alguma coisa no olhar da avó, em chamas. Pareciam felinos demais. Luzia piscou. E a força do olhar de dona Olímpia cedeu. A avó parecia impressionada.

— Você já é uma Onça muito forte, Luzia. Ou eu já sou uma Onça velha. — Ela pareceu triste por um momento. — Tome cuidado lá fora. Existem armadilhas de todos os tipos para mulheres como nós.

A casa caiu num silêncio breve. Isabel parecia incomodada, bufando e trocando o apoio dos pés, como se não quisesse estar ali.

— Antes que você abra o diário — a prima finalmente resolveu falar —, de uma Onça jovem para outra: tenta não se assustar. Com a transformação. Vai doer bastante. — Todas se manifestaram quando Isabel começou a falar. Ela protestou: — Uai, eu não vou mentir para Luzia, não. A transformação dói. Sempre. É como se revirasse você inteira. É uma segunda pele, de verdade, tá embaixo de tudo. Antes a gente nem sente, depois que começa a se transformar, é como se um campo magnético estivesse sempre ativo na segunda pele e a primeira fosse um ímã, uma se puxando para a outra. Dói. É melhor que você tire a roupa e a esconda em algum lugar seguro, você não quer que ninguém te encontre pelada. Você vai ficar no frio, no sereno, no calor, na chuva, ao ar livre. Cuidado com o caminho que você decidir fazer. — Luzia arregalou os olhos. Nunca tinha visto Isabel com tanta raiva na vida. — Você precisa se alimentar. Onça caça. Você vai precisar caçar. Faz parte da sua natureza. Uma onça adulta, na natureza, pode ficar mais de duas semanas sem se alimentar. Nós não, preste atenção, oito dias é o nosso limite. No início é meio difícil, quase como se você fosse um filhote de onça aprendendo a caçar. Eu nunca me dei muito bem com a caça, por isso fui fazer medicina veterinária, um curso em que eu posso estar mais próxima de animais grandes de pasto. Caçadores estão escondidos onde você menos espera. Eles adoram espreitar mulher-onça, então, por favor, toma cuidado. Eles podem esperar você se transformar de novo em sua forma humana e te atacar.

A mandíbula de Luzia se escancarou.

— Eu achei que você era inteligente e se preocupava com os bichos! — a menina provocou a prima com algum sarcasmo. — Você é esperta. Foi pelo jeito mais fácil. Não que eu ache que entrar na faculdade seja fácil. — Luzia acompanhara alguns rompantes da prima quando esta se hospedara ali a fim de se preparar para o vestibular.

— Para de assustar a menina, Isabel — tia Nita repreendeu.

Isabel encarou a mãe ainda com raiva, mas tentou se acalmar. Aproximou-se de Luzia e segurou suas mãos. Olhando para a prima, falou:

— Eu já disse o que tinha pra dizer. Vou esperar lá fora. E por favor, toma cuidado, Luzia. — E saiu para a rua batendo a porta com um pouco mais de força do que o necessário.

— Eu vou explicar — começou tia Nita. — Não queremos que se assuste, mas você precisa ir logo. Sua primeira transformação acontece em seguida à primeira vez que descem as regras. São cíclicas nos primeiros anos, sempre acontecendo em dois momentos: durante o período de regras e durante a lua cheia. Quando você começa a dominar mais sua segunda pele, pode negá-la. É possível impedir a transformação. Isso é muito doloroso e vai contra a sua própria natureza. Por outro lado, você pode assumi-la e se transformar sempre que quiser, o que é bastante cansativo, requer treinamento constante e completo domínio dos instintos de onça e humana ao mesmo tempo. Nesse último caso, quando exposta durante muito tempo à segunda pele, mais e mais características inerentes à Onça você vai incorporando. Em casos mais extremos, temos o exemplo de Maria Maria, que nunca mais voltou à forma humana.

— É informação demais. Minha cabeça vai explodir — suplicou Luzia.

— Está certo, você ainda tem uma viagem curta para fazer — disse a avó, dando fim ao assunto.

A viagem transcorreu sem maiores incidentes, a não ser pela dor excruciante que Luzia começava a sentir — e que ela nunca mais esqueceu. Já estava escurecendo quando elas estacionaram o fusca vermelho de sua madrinha em frente à pequena casa do sítio. Seu padrinho esperava na porta. Antes de descerem do carro, a mãe de Luzia virou-se no banco do carona e olhou para ela.

— Uma última coisa — começou sua mãe. Os olhos castanhos como os de Luzia eram só bondade. — Esse diário agora é seu, use da forma que precisar. E, qualquer coisa que precisar, nós vamos estar sempre aqui. Somos uma família. De pessoas-onça. Passamos por coisas parecidas. Esse diário é para garantir sua maior segurança. Você vai ler coisas que ninguém gostou de escrever, e escrever outras tantas de que não vai gostar. Você é mulher-onça, mas você é única, nada escrito aqui define o que você é. Sua história pode ser completamente diferente de qualquer uma das escritas aí. E eu espero que seja. E lembre-se de que você não deve nada a ninguém.

— Muito menos o amor — disse dindinha Mirinha, encarando Luzia do espelho retrovisor interno. — Isso cabe inteiramente a você decidir. As histórias das outras não definem a sua. Leia nossas páginas como guia, mas nunca como verdade absoluta. E por fim, seja sincera com a sua história. Sempre. Ninguém mais pode escrevê-la por você.

Diferente das outras vezes que estivera ali com o padrinho, nadando até tarde, contando estrelas e capturando vagalumes, não houve nada de divertido em acampar à beira da cachoeira de Morro Vermelho naquelas condições: sendo amparada pela mãe enquanto sua madrinha acompanhava cada parte da transformação e o padrinho (muito parecido com Araci, Luzia percebeu), já completamente transformado, guardava a todos, espantando possíveis campistas — um casal desistiu de acampar por ali quando a luz da lanterna bateu diretamente na ponta da cauda de uma onça que, no escuro, levantava a sobrancelha em um gesto mímico de sarcasmo bastante humano.

A última memória de Luzia fora sua mãe segurando-a enquanto vomitava pela força da dor. Depois disso, Luzia apagou e não lembrou mais nada sobre sua primeira transformação. Demorou quase seis meses para que começasse a separar as mentes de forma a conectar uma à outra — uma velocidade bastante rápida, de acordo com os outros relatos — e se ver caçando, primeiros animais pequenos, depois maiores. Com quinze anos, já passava pelas transformações sozinha ou com Araci, sempre pelos interiores com mata ciliar.

Foi aí que Luzia percebeu a importância de manter um diário, de como ele ajudava a conectá-la mais facilmente com sua parte humana. Dava uma sensação única de fazer parte de alguma coisa, de compartilhar um grande segredo. Após passar o diário da família para Joana, manteve um próprio, e, já estando mais que acostumada com sua presença, não conseguiu resistir à proposta de Araci de ser guiada por ela.

Aos dezesseis anos, já dominava completamente os ciclos da transformação, tornando-se a mais jovem de sua família a conseguir tal feito.

II: A LUA GIROU

Conforme a distância da viagem para Curvelo minguava, mais e mais pensamentos invadiam a mente de Luzia. Ela precisava aguentar firme, seria um momento importante em sua família: haveria, enfim, um casamento envolvido em respeito e amor, em carinho e confiança. Queria que Joana acreditasse que ela estava feliz pela união. Luzia gostava do que conhecia de Ubiratã, o pouco que soubera dele, pelo menos — era difícil mandar cartas para quem não tinha um endereço fixo, como ela. Quanto mais avançava, mais as histórias das outras inundavam sua cabeça. Era o medo de novo, o receio de não dar certo. Em meio a tantas histórias, tantas vidas sofridas, Luzia nem sabia direito o que mais doía. A transformação, a fome ou ter que se libertar. Era por isso que vivia para fugir do amor, que, para ela, havia se personificado em duas pessoas: Francisco e Lavínia. Pensou na avó com o coração apertado.

A vida de dona Olímpia também não tinha sido fácil: uma vida sofrida e privada de felicidade, amor e carinho ao lado de um homem rude e violento, Aníbal. Para evitar que as meninas sofressem qualquer tipo de violência, dona Olímpia aceitou a sugestão de dona Xica, uma senhora viúva vizinha e muito amiga dela, e mandou as três para estudar no Educandário Feminino de Nossa Senhora das Dores, em Diamantina. Elas ficariam na casa da tia de dona Xica, Madalena.

No primeiro retorno para as férias de verão, nasceu o primeiro — e único — menino na família, e Nita passou por sua primeira transformação. Com o diário em mãos e a experiência de uma garota de treze anos, ficou encarregada de passar adiante o ensinamento às irmãs, sozinha pelos primeiros anos, uma vez que a mãe declarara não se transformar mais.

Enquanto o tempo passava e elas cresciam e se descobriam, o pequeno José também crescia, e o pai, finalmente, parecia ter se acalmado e se apaixonado novamente — o que Olímpia sempre respondia com o pé atrás. Até o dia em que ele a atacou durante uma noite de lua cheia. Tanto tempo reprimida, abusada, guardando suas dores e tendo ainda uma criança pequena para cuidar levou dona Olímpia a um colapso. Ela se defendeu quebrando uma cadeira na cabeça dele. Transformada, arrastou o corpo do marido para o mato e, com uma patada certeira e um esturro puxado de suas entranhas, abriu-lhe a garganta, bebeu um pouco de sangue para se revigorar e o deixou lá para que outros animais se alimentassem de sua carne podre.

Próxima à casa dela, havia a fazenda de dona Xica Borba. Ali, a simpática viúva vivia com a família do mais novo dos seis filhos, que decidira morar com a mãe para ajudar na manutenção da fazenda. Enquanto alguns irmãos construíam casas e vidas próximas, três foram para longe: dois para São Paulo, outro para o Sul, no Paraná. O casal teve três filhos: um menino, Francisco, que viria a ser o melhor amigo e um grande amor na vida de Luzia, e duas meninas, Silvia e Alessandra.

A história de Luzia com Chico era longa, podia-se dizer até que atemporal, como se eles se conhecessem de outras épocas. Desses amores que perduram, não soltam, não desatam, não deixam nunca de apertar o coração. Chico era doce, carinhoso, curioso, inteligente e trabalhador, adorava contar histórias e causos e dizia que, se não fosse pela fazenda, queria ser astronauta.

— Imagina ver a Lua de perto Luzia! Aquela bola enorme pertim d’ocê — ele dissera uma vez enquanto comiam laranja trepados em uma laranjeira.

Luzia conseguia imaginá-lo pisando na superfície lunar da forma mais leve possível para não a machucar.

Ele parecia ser o avesso de tudo o que o diário revelara sobre os outros homens: sua tia Nita viveu aos trancos e barrancos cuidando sozinha de uma esperta bebê Isabel. Dindinha Mirinha só tinha olhos para Sandra, e eram tão felizes. Seu padrinho documentara pouco sobre qualquer amor, apesar de registrar o nome Marcos em um texto repleto de saudades que parecia uma carta nunca enviada onde dizia tudo o que ele precisava falar. Sua mãe suprimiu qualquer registro de seu pai, Luzia percebera que faltavam algumas páginas. Aquilo lhe doía mais: vinha de dentro da sua casa. Era pessoal demais.

A história de Luzia e Francisco teve suas raízes plantadas quando eles ainda eram muito novos para pensar em amor, no tempo em que Antônia, as meninas e a mãe passaram na antiga casa de dona Olímpia, na roça. Aconteceu depois de uma ligação apressada: elas fugiram da capital na calada da noite; logo depois, seu pai sumiu.

Luzia não se cabia de tristeza por não saber o que acontecera ao pai, que nunca voltou do trabalho; por isso, tentava ficar fora de casa o maior tempo possível, às vezes levando Joana, às vezes abandonando-a enquanto explorava o novo ambiente com Chico.

O que começou como amizade, transformou-se em atração instantânea quando os dois voltaram a se encontrar em uma festa popular e religiosa que acontecia nos arredores de um cemitério. Naquela época, eles tinham 15 anos. Dali em diante, as coisas ficaram mais interessantes. Eles começaram a namorar, mesmo com a distância, e tudo ia bem até a festa de Ano Novo em que eles completariam 18 anos.

A festa na casa da família de Chico havia sido ótima, com direito a banho de lua cheia — a exposição ao céu enluarado sem nuvens sempre deixava as mulheres da família de Luzia doloridas e irritadas pelo esforço de não completarem a transformação — e constelações que o céu, completamente limpo, deixava mostrar, mas entre Luzia e Chico ficara um sentimento estranho, como se cada um em uma ponta esticasse uma corda invisível e ela pudesse se partir a qualquer momento. Ele iria se preparar para servir ao Exército, e Luzia precisava, de uma vez por todas, contar para Chico sobre sua condição — ela não conseguia nem pensar em machucá-lo. O peso de ter que dar fim a um relacionamento com alguém que era tão doce com ela, tão amoroso, a quem ela também amava tanto, era doloroso demais. Naquela noite, foi dormir muito triste, querendo que tudo acabasse sem que ela tivesse de falar coisa alguma.

Luzia despertou com um barulho em sua porta. Ainda estava escuro; com a visão felina, esquadrinhou rapidamente o quarto. Não havia ninguém além dela. Seus olhos bateram em um bilhete sobre o travesseiro. Seu nome escrito em uma letra que tentava ser caprichada, por uma mão que não via uma caneta há algum tempo. Abriu o papelzinho para perceber que a letra de Chico era melhor que a sua. Dentro, uma canção que as lavadeiras cantavam nos rios, dessas que há tempos não ouvia.

A lua girou, girou

Traçou no céu um compasso

Eu bem queria fazer um travesseiro dos seus braços…

Preciso conversar com você antes que vá embora. Tô aqui fora.

Chico.

Ela saiu da cama, quase rastejando, seus braços e pernas ainda doloridos por evitar uma transformação. Pensou que todas as mulheres naquela casa deviam estar passando pela mesma coisa, em maior ou menor intensidade. Sentindo dor para proteger pessoas inocentes.

Abriu a porta e deparou-se com os olhos de Chico olhando para ela. E, meu Deus, como ela o amava. Do cabelo rente ao toque suave da pele negra, os olhos castanho-claros tão expressivos. As mãos e os braços acostumados e moldados pelo trabalho pesado na fazenda. Durante a adolescência, Luzia reconheceu apenas dois sorrisos inconfundíveis em Chico: um de flerte irresistível para momentos muito específicos (como quando ela o reconheceu na festa) e um apertado, envergonhado, que sorria para ela e para o chão, como se a própria visão dela fosse algo que ainda o deixasse sem graça (quando ele a flagrava olhando).

Luzia não resistiu, lançou-se sobre o pescoço dele, envolvendo-o. Ele a puxou pela cintura, girando-a em um abraço muito forte. Eles partilhavam da mesma dor, ninguém queria ir embora. Ela tentou esconder as lágrimas, mas não conseguiu.

— Por que é tão difícil? — ela perguntou para o chão.

— Eu também não quero ficar longe de você Luzia, acredita em mim.

— Chico, a gente precisa conversar. — Luzia levantou os olhos para ele. — É sério.

Chico trocou o apoio dos pés; parecia nervoso.

— Não tô entendendo… Por que ‘ocê tá tão séria? Eu também tenho uma coisa pra falar, não foi como eu imaginei, mas vai ter que ser assim. Mas você fala primeiro.

Ah, não, não, não, não. Não. Luzia o imaginou ajoelhando, sem jeito, mas seguro do importante pedido que queria fazer. Era tão óbvio. Se eles ficassem noivos, o relacionamento se oficializaria de vez. Como ele não estava entendendo que ela não podia ser a noiva perfeita que ele imaginava? Não parecia ser tão difícil. Luzia respirou fundo. Era chegada a hora.

— Vamos lá fora, preciso mostrar um negócio pra você. — Ela o puxou pelo braço, e ele não fez resistência alguma. Ela se virou para trás, entrou em casa e voltou com uma lanterna em mãos.

— Até onde a gente vai, Luzia? — ele perguntou, desconfiado.

— Você acabou de dizer que não estava entendendo, não foi? Pois eu vou explicar. Só posso explicar de uma forma. Me desculpa, é o único jeito.

Os dois saíram pelo terreiro caprichosamente varrido. A ideia era irem até o rio mais abaixo. Enquanto caminhavam, ele procurou pela mão dela, segurando-a firme, a aspereza familiar demais. As nuvens ajudaram encobrindo a claridade insidiosa da lua até darem lugar às copas das árvores no pomar, mas Luzia começava a sentir os efeitos do cansaço que ainda era causado por fugir de sua natureza quando exposta ao luar. Ela esperava que suas mãos não suassem frio. Precisava que fosse aos poucos, de forma segura para ambos. Depois… Ficaria para depois.

— Você não tem medo de bicho, não, Luzia? — Chico perguntou perto do pescoço dela.

“O filho da mãe tinha que fazer essas coisas tão fora de hora?”, ela se perguntou ao sentir o corpo inteiro arrepiar. Limitou-se a esfregar os braços para garantir calor e perguntou:

— Que tipo de bicho?

— Tem de tudo por essas bandas… Jaguatirica, raposa, suçuarana, onça… — respondeu o moço. — Você tá com frio, bem?

Ela sinalizou que sim — não estava: mulheres-onça não costumavam sentir frio, mas podia ser sua última noite com ele. O pensamento a entristeceu.

Chico a puxou para perto, abraçando-a com uma delicadeza desproporcional à sua força.

— Você pode me proteger dos bichos… Eu acho… Ou não? — ela perguntou, e riu ao perceber que ele encolhia os ombros. Depois de tudo, ele ainda ficava tímido por coisa pouca. — Tudo bem, meu bem, nós só vamos até o rio. — Diante da resposta, ele se animou.

— Está uma noite muito bonita pra ficar por ali um pouco.

Andaram por mais alguns minutos até chegarem à pontezinha que permitia o acesso ao outro lado do rio, podendo, assim, alcançar a outra margem. Mas Luzia tinha algumas ideias, usaria o relevo a seu favor: se ele ficasse de um lado e ela de outro, talvez fosse possível não o machucar. Nunca tinha tentado o que estava prestes a fazer.

Chegando à margem, a jovem soltou a mão do namorado e virou-se de frente para ele, encarando-o de forma bastante séria.

— Chico, eu preciso que confie em mim. Vou te explicar tudo, mas você precisa ficar deste lado, eu vou cruzar a ponte e falo com você de lá, tá bem?

O moço a olhava curioso e desconfiado ao mesmo tempo. Por fim, acenou positivamente, e ela se pôs a caminhar em direção à ponte. Do outro lado da margem, colocou-se de frente para ele e começou a falar:

— Eu preciso que você entenda por que eu não vou me casar com você. Não é que eu não queira, é porque eu não posso.

Ao ouvir o que Luzia falava, o rosto inteiro de Chico murchou, a testa franziu toda, como se sentisse uma repentina dor de cabeça, os olhos atônitos encararam o chão: a personificação da tristeza.

— Com todo o respeito, mas você é muito orgulhosa Luzia, nem me permitiu fazer o pedido. — Ela piscou, sentindo a ardência das lágrimas se formando. Era realmente orgulhosa. E egoísta. — É isso, então. Você me chamou aqui fora foi para me dar um pé na bunda? — ele perguntou em palavras contidas. Tentava não chorar na frente dela, mas, com um movimento que tirou a luz da lanterna do seu rosto, ela entendeu que ele não estava conseguindo.

Vê-lo daquela forma, e dizer o que disse, doeu mais do que ela poderia imaginar. Agora, precisava seguir adiante, terminar de vez com aquela agonia. Deu uma fungada breve e começou a abrir os botões do vestido.

— Luzia! Você quer me deixar louco? — exclamou Chico, exasperado, fazendo intenção de se dirigir à ponte.

— Você fique aí, por favor, pelo amor de Deus — Luzia quase rugiu, levantando as mãos, o medo estampado em seus olhos. A transformação estava começando. De onde estava, ela poderia garantir que ele ficasse em segurança.

Ele se agitou, balançando braços e pernas. Colocou a mão em punho na boca, sufocando um grito. Luzia podia sentir a frustração e a confusão que brigavam dentro de Chico. Que ideia achar que haveria um jeito seguro de não o machucar. Ela já o estava machucando.

— Chico? Se acalme, por favor — Luzia pediu. — Eu preciso que você olhe para mim agora. E tente não gritar. Eu não preciso de mais atenção que os seus olhos, meu amor. Por favor.

Resignado, o jovem cravou os olhos nela. Estavam flamejando. Luzia piscou, usando seu poder e aproveitando o momento para fazer com que Chico se acalmasse. Não queria, mas era sempre necessário nos primeiros minutos, e ele foi relaxando, deixando seus braços ao lado do corpo, as mãos abertas. As pernas começavam a arder pela perda de tensão; o corpo e o rosto inteiro ficaram relaxados, encarando as íris cor de âmbar da moça.

Aos poucos, Luzia foi tomando a forma de sua segunda pele. Primeiro, as mãos viraram grandes patas arredondadas, completamente pardas com pintas em tamanhos variados que pontilhavam toda a extensão dos braços. Da região dos cotovelos em diante, as pintas pequenas viam-se cercadas por lineamentos maiores, circundando-as. A padronagem característica da pelagem de onça ia aumentando conforme chegava mais perto do tronco e da cabeça. A moça ficou desproporcional, mantendo a cabeça humana, como uma esfinge. Doía demais.

— Se eu pedir para você chegar perto, você viria? — Ela desviou os olhos para o chão, libertando-o. Chico piscou, incrédulo.

— Luzia… O que tá acontecendo com você? O que é isso? — Ele estava se desesperando, perdendo o controle a cada palavra.

— É assim que eu sou, Chico. Esse é o grande motivo de eu não poder me casar com você. — Enquanto ela falava, sentia a cauda crescendo, pesando o cóccix. Sentiu os pés começando a se transformar. — Hein, Chico? Você viria até aqui, agora que sabe o que eu sou? Ainda quer me pedir em casamento? Quer ter filhos com uma mulher-onça… Um monstro? — Luzia nunca se sentira tão desesperada por uma resposta. E tão dividida pelo que devia fazer e pelo que queria fazer.

— Eu vou subir a ponte, e, quando você sentir que é seguro, eu chego até você — ele falou, encarando-a.

Subiu a ponte, enquanto ela se sentava de uma maneira bastante felina para permitir a aerodinâmica e equilíbrio necessários a seu outro ser. No final da ponte, Chico parou para observá-la, esperou um pouco mais e perguntou:

— Agora eu posso ir até você?

— Você não percebe o quanto isso é perigoso? Para todo mundo? — Luzia questionou, desesperada. Ela nunca se sentira tão confusa. Que tipo de pessoa se arriscaria por um monstro como ela? Aquilo não era bom, não queria apresentar sentimentos fortes que pudessem acabar com tudo em uma grande tragédia. — Eu não quero passar isso adiante, essa maldição. Pelo menos a minha quero que termine comigo.

Ele se aproximou silencioso, os pés mal tocando o chão. Tentando não fazer movimentos bruscos. Era muito esperto, nunca levou adiante os talentos do exímio caçador que era. Não gostava de matar bicho.

— Você tem noção do que você é, Luzia? Já te contaram?

Ela balançou a cabeça afirmativamente.

— Perigosa, traiçoeira, assassina, com uma padronagem e uma pele lindas, mas que só trazem desgraça — afirmou Luzia.

— Não fale assim, Luzia, é pecado — Chico contestou.

Sentindo o rosto contorcer em desgosto, a Onça andou em um círculo perfeito, contrariada. Não queria nunca que Chico pensasse algo tão cruel sobre ela. Chico deu uns passos mais adiante, chegando perto. Luzia sentou-se e pôs-se a ouvir a voz de seu amor.

— Não falo da parte da natureza das onças, falo da lenda. A gente aqui na roça ouve desde pequeninho as histórias das mulheres-onça. Eu sempre achei elas tão poderosas, mágicas, incríveis. — Os olhos de Chico pareciam brilhar com um entusiasmo quase infantil. — Meu sonho de menino era encontrar com uma. Eu e meus irmãos acampamos muito por aqui, esperando encontrar uma de vocês. — Ele gesticulou com a lanterna, abrangendo todo o espaço, e continuou: — Até que meu pai precisou de mim na lida da roça, os meninos perderam o interesse e você veio aqui pela primeira vez, e eu não quis mais procurar mulher-onça ou mulher nenhuma que não fosse você.

Ah, vovó, até onde vocês iam para proteger a gente?”, Luzia pensou, entristecendo. Às vezes esquecia o quanto a família de Chico era importante para sua avó — por todas as vezes que dona Xica a salvara das agressões de Aníbal. Eram como irmãs. Ela levantou os olhos para ele, que parecia bastante interessado em tocá-la.

— Você é encantado com uma história que foi contada a você como lenda, meu bem. Mas nós não somos lenda. Somos reais. Vou contar pra você como tudo aconteceu, pelo menos na minha família. — Ela percebeu como ele ficou animado. — Chico, você precisa me prometer que não vai contar para ninguém. Meu bem, você promete?

— Eu prometo.

Para Luzia foi o suficiente, e ela contou toda a história, assim como Araci havia contado a ela.

— Sabe como começou na minha família? Pelo desespero de uma mãe que só queria viver com o amor de sua vida, mas que não pôde porque sua família não abençoava a relação. Em perigo, ela se escondeu na mata, porque…

— “A mata ajuda a quem precisa” — Chico completou. Luzia piscou os olhos, sentindo as lágrimas começarem a cair. — Meu vô costumava dizer isso quando eu era menino — ele se explicou, um pouco sem jeito por ter cortado a história.

Acenando afirmativamente, Luzia continuou:

— Sim. A mata ajuda a quem precisa. Araci seguiu esse conselho e assim se transformou em mulher-onça pela primeira vez antes de dar à luz sua única filha. É hereditário. Minha avó também é. Minhas tias e tio, minha prima, minha irmã. Somos pessoas-onça. Eu sei o que sou. Uma caçadora. Eu preciso me alimentar de coisa viva, quente. No ponto. Sempre com essa raiva e essa dor que também é minha, que vem de sangue, que passa. — Luzia parou, a voz embargando. Tinha que se controlar. Respirou fundo e finalizou a história.

Luzia voltou à forma humana. Sobrepondo-se sobre sua pele negra nua, era possível perceber uma padronagem de manchas mais escuras, semelhantes às de onça, em torno do abdome. Ela pegou o vestido do chão, mas Chico gentilmente a impediu de colocar. Ele a puxou para perto, cheirando seu pescoço, e ela se soltou de qualquer tipo de controle, permitindo também extravasar o que sentia pelo moço.

— Luzia, vamos conversar. — Ela terminava de abotoar o vestido, e batalhava silenciosamente consigo mesma entre sentir ou não raiva por ter se deixado entregar. — A gente pode encontrar um jeito de estarmos juntos mesmo com a sua… condição — Chico insistiu.

— Eu não vou conseguir viver feliz sabendo que posso te machucar — Luzia suspirou. — Olha a minha família. Só dindinha vive bem e feliz com tia Sandra. De resto… Deu tudo errado.

— Não parece que a gente deu errado. — Luzia o encarou, mas ele parecia dizer aquilo sem nenhum pingo de malícia. Era como se atestasse um fato. Então ele levantou a cabeça, arriscando: — Se eu fosse uma mulher, você ficaria comigo? — Chico perguntou, dessa vez com humor. Luzia franziu as sobrancelhas, confusa. — Ué, parece que deu certo pra sua madrinha, não foi? Ela se deu bem!

Luzia sorriu, adorava a história das duas.

— Não é fácil para elas também, meu bem. Dindinha Mirinha vive adoentada por se transformar apenas duas vezes por ano, isso tudo para proteger tia Sandra.

— E você não poderia fazer algo assim, também? — Chico perguntou.

— Chico, a Onça dentro de mim é muito forte. Eu já sou quase mais onça que mulher. Eu não consigo nem imaginar acordar um dia e ver que te machuquei ou que você foi embora por finalmente entender que não conseguiria se sentir seguro morando com uma fera.

Chico a abraçou.

— Não precisa ser fácil, Luzia, precisa ser você. — Ela olhou para ele e não conseguiu enxergar mais do que verdade. Pura. — Eu amo você. Vou esperar até você achar que está na nossa hora.

Ela partiu achando que podia resolver aquilo do jeito mais fácil: a hora deles não chegaria nunca. Naquela noite, fora acordada antes de todas por um sopro frio na ponta do nariz. Luzia piscou duas vezes.

— O que foi agora? — ela perguntou amargurada.

— Acho que está na hora de irmos embora, meu bem — respondeu Araci.
Angustiada, mas decidida, Luzia colocou-se de pé e, nem bem raiava o dia, embrenhou-se no mato, vestiu-se de onça e partiu.

III: NUVEM CIGANA
1986

Três anos depois, Luzia não tinha mais endereço fixo. Quando dava, mandava postais ou telegramas para casa de lugares em que planejava passar mais de algumas semanas, e ligava pelo menos uma vez por semana para manter a mãe informada. A jovem sentia que precisava partir, seguir, lançar os pés Brasil afora em busca de sua própria identidade como mulher-onça. Acompanhada de Araci por carro ou por mato, ia ela desbravando Minas Gerais.

Em posse de seu sonho de consumo, o Chevette País Tropical, que vinha com rádio e toca-fitas, a moça abdicara das caronas e virara a caroneira (o que tornou a caça conveniente demais). O anúncio do carro com toca-fitas fora essencial — se tinha algo que Luzia precisava quase mais do que o combustível para levá-la do ponto A ao ponto B, era música. A música ajudava a aliviar a saudade, a extravasar o medo, a cantar a dor. Principalmente quando estava sozinha.

O tempo que trabalhara na loja de discos no centro de Belo Horizonte e as intermináveis conversas sobre música e literatura com tia Sandra aproximaram-na do cenário musical brasileiro e aprimoraram sua consciência política — algo que seu pai não teve tempo de fazer. Música instrumental experimental e rock britânico também acabaram integrando os gostos da jovem — mais pelo efeito que as melodias lhe causavam do que pelas letras. Luzia nunca aprendeu inglês. No final das contas, eram todos artistas que lembravam muito seu pai, um elegante e esguio homem negro que, por trás do balcão em seu bar, fora um grande observador do alimento cultural dos jovens da cidade.

Consciente do momento em que vivia, com o fim recente da ditadura militar, Luzia pensava nas possibilidades do que realmente podia ter acontecido a seu pai. As lembranças de seus pais juntos tiravam Luzia do prumo: como seu pai, que amara tanto sua mãe, sempre tão afetuoso com ela e com as meninas, sumira de uma hora para outra sem deixar rastros? Era muito estranho que ele tivesse simplesmente abandonado as três. Por algum motivo, ninguém em casa comentava nada sobre o assunto.

Desde que estivera com Chico pela última vez, os pensamentos acerca do pai ficavam mais e mais frequentes. Dindinha Mirinha e tia Sandra eram as únicas que pareciam conseguir levar um relacionamento saudável, seguro, bonito e duradouro. Talvez pudesse atrelar às suas viagens uma busca por pistas de onde o pai se encontrava. Mesmo depois de tanto tempo, quem sabe conseguisse achá-lo.

E assim ela começou a desbravar Minas Gerais de carro, pelas rodovias e descalça, pelas matas e montanhas. Ganhava confiança, ganhava distância, acumulava dores, e seguia. Não sabia que encontraria mais perguntas que respostas a cada cidade, a cada pessoa nova que conhecia.

O ano já havia virado quando, voltando de Três Pontas e subindo para Belo Horizonte, Luzia presenciou um acidente horrível entre dois ônibus. A fila para a remoção dos corpos e salvamento dos sobreviventes era longa, e ela já estava ali há algum tempo quando a fome bateu mais alto. Conseguiu acessar uma estrada de terra que a levou a um vilarejo onde achou seguro deixar o carro. Voltaria para dormir ali depois. Saiu do carro e discretamente se embrenhou no mato que emoldurava o vilarejo. Poderia se transformar e arriscar pegar um corpo mais próximo da rodovia.

— Luzia, cuidado, não parece seguro — alertou Araci, como se lesse pensamentos.

— É um jeito fácil de conseguir o que comer, e eu estou com muita fome… — Luzia tentou argumentar, mas percebendo que soava como uma criança birrenta.

— Você está sendo irresponsável e descuidada, mas, se quer seguir pelo caminho mais fácil, eu não vou impedir. Estarei aqui quando voltar — Araci respondeu de forma direta.

Já como Onça, Luzia aproximou-se com cautela dos ônibus. Vindo pelo mato, havia um barranco que a deixava em certa vantagem; ela podia observar sem ser observada. Fora um acidente feio, havia corpos chamuscados, o cheiro não estava nada agradável, mas Luzia salivava. Localizou o corpo de um homem de meia-idade, barrigudo e com bigodes, que batera a cabeça: os braços estavam arranhados, e um deles repousava em um ângulo que só poderia ser consertado com cirurgia. Seria o suficiente. Luzia preparou-se para o bote; os paramédicos encontravam-se do outro lado, próximos ao segundo ônibus. Com muita sorte, ela podia pegar o corpo sem nem ser vista.

Tomou impulso e pulou, mas acabou sendo interceptada por outro bicho. Assustada e pega de surpresa, Luzia esturrava baixo e tentava atacar seu interceptor, rolando pelo barranco. Não conseguia enxergar direito, era tudo um borrão, mas arranhou a bochecha na queda, que começou a sangrar. Ela reagiu, empurrando seu antagonista para longe. Não se machucou tanto com a queda, mas o outro sim, caindo inconsciente.

Meio tonta, Luzia se aproximou, cega de raiva e fome, e levantou a pata para acertar a jugular, sem nem assimilar de qual tipo de bicho se tratava, quando a aparência da criatura começou a mudar. As patas e o torso de cavalo branco deram lugar a braços e pernas claras, e a monstruosa cabeça de veado deu lugar a uma figura feminina. A Onça conteve o ataque, confusa. Era uma mulher? Uma metamorfa? Nunca tinha ouvido falar de metamorfo que não se transformasse inteiramente em sua segunda pele. Era natural? O que ela estava pensando? Ela, Luzia, não era algo natural, era aberração. Mas e aquela mulher que se estendia completamente apagada diante dela? O que fizeram a ela para que ficasse assim? Luzia voltou a sua forma humana e preocupou-se em observar sua combatente. Percebeu que ela respirava, seria uma questão de tempo até que acordasse.

Com cuidado, Luzia a pegou nos braços. Era uma mulher baixa, tinha feições comuns, bonitas: o cabelo castanho comprido caía ondulado, o rosto pequeno era uma constelação de pintas, expressivas na pele clara, o corpo era rechonchudo. Luzia a colocou no banco do carona, pegou uma das colchas de Piquet de seu estoque no porta-malas e cobriu o corpo nu da moça. Voltou ao assento do motorista e colocou-se a dirigir sem muita direção, seguindo por estradas de terra com casas de campo.

Já era noite — e Luzia estava bem perdida — quando a moça, no banco ao lado, se mexeu. Luzia olhou para ela direto nos olhos: teria de mantê-la sob efeito do contato visual por um tempo, até que a outra explicasse suas atitudes. Parou o carro.

— Quem é você? — Luzia perguntou, sem piscar. A voz séria.

— Meu nome é Lavínia — a moça respondeu de forma pouco natural. Talvez Luzia estivesse colocando muita intensidade no contato visual, mas não queria correr riscos.

— Por que você me interceptou? — Luzia perguntou, desconfiada.

— Pra te manter segura. — Diante da resposta, Luzia ficou confusa. — Eu vi a tua transformação. — Os olhos marejavam; Luzia estava realmente estabelecendo um contato visual muito forte, a moça nem conseguia piscar. — E não fui a única. — Luzia piscou espantada, quebrando o contato visual abruptamente, resultando em uma forte dor de cabeça para ambas. A moça suspirou, ajeitando-se na manta. — Tem certeza de que estamos seguras aqui?

— Não estamos mais em Três Pontas, pelo menos — Luzia respondeu. — Quem mais viu?

— Um Monitor. — Lavínia não pareceu feliz em dar essa informação, ao mesmo tempo em que a resposta não pareceu satisfatória para Luzia, que a olhava confusa. Ela suspirou. — Ele estava atrás de mim. Percebi que estava sendo seguida em São José dos Pinhais, no Paraná, mas tinha conseguido despistá-lo. Não sabia que estava atrás de mim até vê-lo saindo de um dos carros na hora do acidente. Eu tava dentro do ônibus, consegui sair ilesa por uma janela e fugir pro mato. Ele deve ter me visto. Quando segui o teu carro, pensei em conseguir uma carona até outra cidade qualquer, mas aí vi quando tu se transformou, e eu fiquei curiosa porque tu se transformou de forma natural em um bicho só. E depois preocupada que ele pudesse te alcançar antes de mim e te levar pra dentro daquele laboratório horroroso.

A cabeça de Luzia rodava. Era muita informação. Depois de tanto tempo, ela tinha ficado tão descuidada a ponto de ser vista não por uma, mas por duas pessoas? E que história era aquela de laboratório? E sua interceptora, Lavínia, provavelmente uma fugitiva, era agora alguém que literalmente se arriscara para salvar a vida de uma desconhecida?

O que você é? — foi a única pergunta que Luzia conseguiu formular.

— Eu te prometo que respondo, mas antes você teria uma roupa para me emprestar? — E, em meio a tanto nervosismo, Luzia se viu obrigada a rir.

— Eu vendo roupas para viver, moça. É claro que eu tenho. — Ela se virou para puxar a maçaneta do carro, mas parou, voltando-se. — E depois vamos atrás de alguma coisa pra comer. Eu tô faminta. — Ela olhou para Lavínia.

— Eu que não quero ficar dando sopa na frente de uma Onça faminta. — Lavínia abriu um sorriso quase felino. — Vai que ela me come.

Foi dessa maneira que Luzia foi apresentada pela primeira vez a uma Quimera. Após o encontro inesperado, que quase culminou na morte das duas, elas estabeleceram uma trégua, se acertaram e, juntas, seguiram viagem. Dividida entre estar divertida e alerta com a nova companhia, Luzia demorou um tempo para perceber que Araci não as acompanhava.

Seguiam Brasil abaixo, sempre despistando o Monitor do qual Lavínia tinha falado e de quem ela sentia tanto ódio. Lavínia fora um furacão de quatro meses na vida de Luzia. Engraçada, inteligente, um papo agradabilíssimo e um estilo bastante peculiar de flertar, que sempre tirava Luzia do eixo. Em pouco tempo, as duas se tornaram amantes intensamente magnéticas.

Certa noite, ao som dos primeiros acordes de uma música, Lavínia começou a sorrir de canto de boca. Seus olhos se estreitaram de leve quando Luzia começou a cantar junto, quase que distraidamente. A motorista mantinha os olhos atentos na estrada. Era muito bonita, disso Lavínia não tinha dúvidas. Alguns traços um pouco felinos nos olhos, no nariz de coração, na boca que, Lavínia percebeu, começavam a se abrir em um sorriso malicioso, incrível e sensual.

Luzia parou o carro no acostamento, abriu a porta e saiu do carro. Olhando para dentro, perguntou:

— Quer dançar?

— O que você dançar — Lavínia respondeu, saindo rapidamente do carro. E, naquele momento, as duas se permitiram dançar e cantar, sem medo.

Naquela época, Luzia mudou todos os planos para conhecer o mar. Lavínia, que era de Porto Alegre, se encarregou de apresentá-lo a Luzia. Elas desciam para o sul, um dia de cada vez e sem demora. Alguma coisa dizia que seria interessante apreciar as paisagens de lá, testar a resistência da segunda pele no inverno. A viagem serviu para estreitar laços e tornar as duas amantes inseparáveis. Lavínia era mais velha que Luzia, tinha 38 anos, e contou a ela toda a sua história — ou o que lembrava dela —, sempre dentro do carro, onde as duas se sentiam seguras.

— Esse é o maior problema das Quimeras que dão “certo” — Lavínia havia dito. — Elas não lembram quem eram antes de serem presas. O que faziam, onde moravam, se tinham família ou não. Some tudo. Eles apagam tudo para que se aumentem os instintos dos animais a quem somos “acoplados”. E foi aí que eu dei errado. Sou uma Quimera defeituosa. Rata de laboratório, cobaia de primeiras experiências. CERBERUS012, Quimera nº 08. Eu consigo lembrar a minha vida antes de chegar ao Laboratório. Eu era professora de história, comunista, feminista e lésbica — ela enumerou, erguendo os dedos. — Eles nem deram satisfação, só me trancaram em um buraco e me torturaram durante dias, buscando por informações e paradeiros de amigos que eu nunca revelei. Até que o Projeto foi estabelecido, e acharam que eu me encaixava no perfil…

— Existem outros como você? — Luzia perguntou.

Lavínia afirmou com a cabeça.

— Pelo menos seis da última vez que eu soube…

— Soltos? — Luzia ficava cada vez mais impressionada com a história de Lavínia.

— Não. A maioria está hibernando. Sempre fazem novos testes. Eles procuram a Quimera perfeita há mais de dez anos… — Luzia piscou.

— Dez anos? Isso tem acontecido há mais de dez anos? — Ela sentia sua voz exaltada. Era uma atrocidade. — O que seria uma Quimera perfeita?

— A arma perfeita — Lavínia respondeu de imediato. — Sem passado, e com um só objetivo: acertar os alvos. Acabar com ameaças. Fazer de um aliado o próprio inimigo.

A Quimera ainda explicou à Luzia todo o processo de sua criação e informou que, depois de soltos, eles preferiam o clima mais frio, entre as montanhas mais úmidas e nevoentas, como nos Aparados no Rio Grande do Sul, na Serra Catarinense e no sul de Minas. Mas Lavínia pretendia ir além. Queria chegar ao Canadá, o que preferiu manter em segredo no início.

Em Florianópolis, num dia frio e chuvoso, elas se hospedaram no quarto de uma aconchegante pousada à beira-mar. Ali, Lavínia trouxe à tona o que pretendia fazer em seus próximos passos. Uma vez recuperada a memória, e livre, planejava fugir do Brasil de uma vez por todas. Luzia ficou sem reação àquela afirmação.

— Você… Vai embora?

— Não tem outro jeito, Luzia — Lavínia respondeu, decidida. — Se eu conseguir sair daqui, não vou mais precisar correr olhando sobre o ombro para ver se alguém está vindo atrás de mim para me levar de volta àquele inferno.

— Mas e as pessoas que estão lá? — Luzia quis saber. — A gente vai permitir que outras pessoas continuem passando por isso? — Só de pensar na ideia, ficava revoltada. Queria fazer alguma coisa.

— O que tu tá pensando em fazer? — Lavínia perguntou. — Denunciar não vai adiantar de nada.

Luzia olhou para ela. Estava prestes a ser abandonada. Começava a sentir o que Chico podia ter sentido quando Luzia decidiu ir embora. Foi uma escolha dela. Não podia tirar isso de Lavínia. Luzia se aproximou, puxando Lavínia — que, silenciosa, observava a chuva — para perto.

— Você tá certa. Tem que ir para um lugar onde se sinta segura. — Luzia deu um beijo nos lábios de Lavínia e afastou-se para olhá-la nos olhos. Estavam dispersos. Não queria dizer adeus, ainda.

— Antes de você ir embora, tenho um pedido a fazer — Luzia começou, uma vez que estavam novamente dentro do carro. Estava nervosa ao volante; seguir as placas para fora da cidade era difícil. Olhou para Lavínia. Ela estava muito pálida. — Me diz como chegar lá, Lavínia. Como acho o laboratório?

— Guria, tu tá doida? — Lavínia perguntou, olhando para ela.

— Eu quero destruir aquele lugar — Luzia falava muito sério. — Por você, pelos outros, pelos que ainda não foram transformados. Isso é desumano. — Ela olhou para Lavínia. — Me leva até lá.

— Tu não tá pensando em fazer isso sozinha, tá, Luzia? Somos uma Onça e uma Quimera com três bichos lutando por espaço.

— ‘Cê não tá pensando em servir de isca viva, né? — Luzia retrucou, agitada. Não conseguia pensar em Lavínia voltando ao lugar de onde fugira.

— Não vou discutir contigo. Eu te mostro como chegar lá, mas tu vai ter que me levar junto.

Ela não podia deixar que Lavínia corresse de encontro à própria morte. Era óbvio que, se conseguissem capturá-la novamente, a Quimera não teria nem tempo de se explicar. Até lá, bolaria um plano para que Lavínia conseguisse sair ilesa.

Por fim, Lavínia preferiu acatar a sugestão de Luzia, entrando em um ônibus em Criciúma. Para onde, a Onça nunca soube. Mais seguro para as duas. Luzia não entrou com ela no terminal, sob ordens expressas de uma mulher que ia embora despedaçada. Mais uma vez em pedaços. Naqueles meses intensos em que as duas passaram juntas, Luzia nunca a tinha visto chorar. No carro, após se despedirem e Luzia prometer a ela que caçaria todos os que a fizeram mal, a Onça percebeu que Lavínia deixara uma carta.

 

“Que coisa mais linda ter te encontrado em meu caminho.

Preciso ser honesta: eu tô morrendo, Luzia.

Por isso aceitei essa viagem; ia ser bom ver o mar, viajar de carro, me apaixonar uma última vez. Mas eu não quero morrer uma segunda vez pelas mãos deles. Nem sou mais um ser inteiro. Olhe para mim, vivo com pedaços amputados e mal colados de outros animais em meu próprio corpo. Uma coisa malfeita, de laboratório.

Mas quem eu sou? Quem era esse veado-do-cerrado que colocaram na minha cabeça, será que era mãe de algum filhote que ficou abandonado por aí? E esse cavalo que dividiu comigo suas patas e seu torso? Onde tu vais encontrar meus restos, Luzia, meus outros?

Por fim, peço que reconsidere. Não sei se é certo tu ir até lá. Eu acho que é uma missão suicida. Se eles te pegarem, vão destruir tudo o que te resta. Acabam com você. E tu diz que vais caçá-los por mim?

Com amor,

Lavínia.”

 

Luzia levantou os olhos da carta, as lágrimas correndo livres por seu rosto.

— Você é linda, não tem nada de monstruosa. O que fizeram com você, e com tantos outros que a gente nem ouve falar, é desumano — Luzia disse para o interior do carro. — E é por isso que vou acabar com eles.

— Luzia, você percebe que está falando de si mesma também? Nunca quis que você se odiasse. Você é magia do que ficou, uma força da natureza, uma solução. Não se menospreze.

Luzia suprimiu o susto em um sorriso comprimido, o coração apertado, dolorido. Um sopro na nuca trouxe um calafrio familiar, que terminou com ela caindo no choro.

— Há quanto tempo você tá aí, assombração? — Luzia perguntou quando conseguiu se acalmar um pouco.

— Eu nunca fui embora, meu bem.

IV: JARDIM DE INFÂNCIA

A aproximação do complexo onde estava instalado o laboratório deixou o clima no carro tenso, sem espaço nem para música. A raiva fez Luzia perder a voz, respirar com dificuldade, a cabeça girando. Araci acompanhava calada, observando a paisagem pela janela do carro.

Um descampado nos pampas gaúchos. A criação de bois, galinhas e ovelhas desviava a curiosidade do prédio escondido atrás da fachada de casa de fazenda. Luzia passou direto, estudando formas de entrar ali sem ser vista. Não deveria ter grandes problemas: uma grande montanha atrás do complexo assumia ares de parede verde de mata nativa.

— Que bonitinho — Luzia falou com escárnio. — Parece que eles se preocupam com a natureza.

Para ela, o prédio estar próximo a uma área de preservação era só uma forma de dar ares de legitimidade ao esconderijo deles — da rodovia, via-se uma fazenda de tamanho médio. Mas agora seria também de onde viria o inimigo. Luzia pensou se conseguiria se integrar, encontrar algumas jaguatiricas; talvez elas pudessem ajudar no primeiro susto.

Entrar de madrugada foi relativamente fácil. Luzia ainda rodou com o carro por mais de uma hora, deixando-o seguro no estacionamento de um hotel de beira de estrada. Pagou por um quarto, deixou seus pertences, tomou um banho e esperou a novela das oito terminar antes de descer e sair de forma discreta. Entrou no mato e seguiu em direção a seu destino. Luzia deduzira corretamente: a parte dos fundos, de quem vinha por dentro da reserva, era quase desprotegida — a presença de animais notívagos resultava em certo distanciamento por “respeito à natureza dos animais”.

“Hipócritas covardes”, era só o que Luzia conseguia pensar. Por precaução, ludibriou duas jaguatiricas mortas de fome que estavam ofendidas com a presença dela por ali, trazendo-as em seu encalço como se não desconfiasse de nada. Talvez conseguisse atraí-las até os animais da fazenda, sem ser atacada. E foi o que aconteceu. Aproveitando os pontos de sombra, Luzia adentrava cada vez mais em terreno desconhecido e começava a pensar que era realmente suicida: podia haver alguém de tocaia com alguma espingarda.

Encontrou um vigia, que não teve tempo de chegar ao botão de emergência, pois Luzia já estava jogando-o ao chão, abrindo-lhe a jugular numa patada certeira. A primeira sala em que entrou era um almoxarifado. Três armários de metal fechados à chave, todas elas numeradas. As prateleiras das estantes estocavam — entre caixas de papel higiênico, esfregões, vassouras e produtos de limpeza — caixas e mais caixas de empresas de materiais cirúrgicos. Duas cadeiras de dentista e uma maca desmontada estavam encostadas ao canto, na parede da porta. Luzia sentiu náusea.

A convivência com Lavínia não preparou Luzia para o que ela encontrou dentro das câmaras do laboratório. Descendo o corredor, encontrou um mapa do que parecia um labirinto. Administração, Direção, Sala de cirurgia, Canil I, Canil II, Jardim de Infância, Sala de descanso. Luzia se viu perdida sem saber por onde começar. Era uma mistura de hospital veterinário com escola, era tão desumano! Uma ideia veio em sua cabeça: poderia procurar os documentos sobre Lavínia, e, se conseguisse sair viva daquilo, levaria para a imprensa — ou aguardaria o momento certo para fazê-lo. Mas aquele absurdo não ficaria mais no escuro, escondido em uma fazenda ao sul do país.

Encontrar a sala da Direção não foi difícil, difícil foi entrar. Eram três guardas, e dessa vez Luzia não teve tempo de abatê-los sem que um acionasse o aviso de emergência. Conseguiu se livrar dos três e saiu em disparada, descendo os corredores. Em um deles, uma enorme porta de metal de duas folhas delimitava o fim de sua corrida. Refeitório. Ela estava encurralada. Conseguia ouvir passos apressados e gritos vindos de lados diferentes. Olhou em volta e calculou o que podia fazer. Talvez conseguisse se esconder em alguma parte do refeitório e voltar ao trabalho.

Empurrou a porta, e foi a mesma coisa que nada. Foi quando sentiu o cheiro forte de urina em algum lugar. Seguido de um silvo baixo. Havia outro felino acuado ali. Do lado de dentro. De todas as coisas que Luzia não gostava de fazer, matar qualquer outro tipo de felino estava no topo, junto com as crianças e mulheres. Não importava se não fosse onça: era como se fossem todos da sua família. Ela teria que tentar. Experimentou empurrar a porta mais uma vez, que dessa vez se abriu sem esforço. Era um felino menor que ela, de compleição completamente desconhecida para a Onça. O bicho arreganhou os dentes.

Luzia correu para a parte de trás do refeitório, entrando pela porta vai-e-vem da cozinha, o felino em seu encalço. Teria fugido de algum lugar? Dentro da despensa, Luzia parou e virou na direção dele. Estava muito assustado. Concentrou o olhar nele, antes que conseguisse atacar, os olhos redondos cor de âmbar ficando completamente pretos com as pupilas dilatadas. “Não quero te fazer mal”, Luzia pensou com sinceridade, dando um silvo baixo, abaixando a guarda. A resposta veio com notas de repreensão. “Você não devia estar aqui, humana”. Luzia quase piscou, desconcentrando-se.

“Os felinos todos já sabem que tem uma mulher-onça aqui. Seu cheiro é completamente diferente”. O bicho se aproximou com curiosidade, cheirando Luzia. “É agridoce. E mais suave que os outros”.

Luzia se afastou, observando. O felino era menor que ela, além de ainda não ter chegado à maturidade. Tinha a cabeça pequena e redonda, as orelhas eram curtinhas e arredondadas, as patas pequenas, enquanto o corpo e a cauda eram longos. O pelo era cinza-escuro e sem manchas, mas as pontinhas esbranquiçadas lembravam gotas de orvalho. Mais tarde, Luzia descobriria se tratar de um jaguarundi, um gato-mourisco. Não houve tempo para maiores perguntas: a luz do refeitório se acendeu, e um homem com uma espingarda tranquilizante apareceu do outro lado. Ele estava mancando, e o ombro sangrava. “Bom trabalho, baixinho!”. Em uma emboscada dupla, os dois felinos levaram o homem ao chão. Assim que ele caiu, Luzia correu na direção em que ele tinha vindo — o idiota havia deixado a porta aberta. Alguns minutos depois, o gato-mourisco estava atrás dela de novo.

“O que você tá fazendo aqui, humana?”.

Pagando uma promessa”, Luzia respondeu num quase esturro. “Perdi uma pessoa muito importante pra esses homens horrorosos. E você?”.

“Fui capturado. Mas tô tentando fugir daqui. O que você tem que fazer pra pagar essa promessa?”.

Eles passavam pelo que parecia ser uma grande clínica, com salas dos dois lados, de diferentes especialidades. “Depois de torturadas, esperavam cobaias saudáveis”. Tudo fazia aumentar a ojeriza em Luzia.

“Destruir esse lugar”.

Houve um momento de silêncio, e então a pergunta certa pegou Luzia desprevenida:

“E como você vai fazer isso?”.

Luzia parou de chofre. O gato-mourisco só podia estar brincando com ela. Ele seguiu e bateu com força na parede que indicava o final do corredor, e, apesar de chacoalhar todo o pelo, não aparentou sentir dor. Luzia quis gritar. “MALDITO LABRINTO”. Aquele lugar só podia estar mexendo com a cabeça dela, levando-a à loucura. Não conseguira fazer nada do que planejara. Mas, além de entrar, a verdade é que ela não tinha um plano completo. Havia agido por impulso: só queria acabar com aquilo, colocar fim àquela monstruosidade.

“Como a gente sai daqui?”, Luzia perguntou, ansiosa.

“Voltando”, sugeriu o jaguarundi.

Ela olhou para ele, arreganhando os dentes.

“Não precisamos voltar todo o caminho. Antes de você aparecer, eu tava tentando achar o melhor jeito de sair daqui. Me acompanha”.

Ela o acompanhou com a certeza de que estavam indo de encontro ao olho do furacão.

Passaram por outra porta de duas folhas, dessa vez com mola aérea e destrancada; só foi necessário um pouco de força e os dois felinos estavam dentro de uma sala ampla, muito limpa — tirando o forte e familiar cheiro de urina — e organizada.

“Que lugar é esse?”, Luzia quis saber.

“A gente chama de abatedouro. Mas eles chamam de sala de cirurgia”. O jaguarundi deu uma pausa. “Eu estava ali de manhã, depois de eles descobrirem que eu estava, nas palavras deles, ‘tentando dar uma voltinha’”.

Luzia esquadrinhou o ambiente e encontrou uma jaula pequena demais para o felino ao seu lado. A cabeça dela parecia prestes a explodir. Sem pensar, ela começou a destruir tudo o que via pela frente. Não conseguia pensar em nada, e, mais tarde, quando voltou à forma humana, a destruição daquela sala não passava de um borrão em sua memória, o fantasma de um sonho de anos atrás.

A sala dava acesso a outro pavilhão do prédio, que abria direto para a sala da Administração. Também foi fácil — havia uma janela de vidro no centro da folha da porta, com os dizeres “Administração” e o horário de atendimento.

Luzia usou a pata para quebrar o suporte do martelinho contra incêndio na parede. Transformando-se em humana, arrancou-o de seu lugar, acertando com força no vidro temperado, que se estilhaçou, caindo dos dois lados da porta. Ela voltou à forma de Onça e entrou pelo buraco. “Fica aí, não quero demorar”, Luzia pediu ao outro. Ele soltou um silvo sem significado. Ela entrou e foi direta ao armário próximo de uma estante cheia de pastas, livros grossos e livros-caixa.

Tal qual no almoxarifado, o móvel era fechado à chave. Dessa vez, a Onça não se importou. Derrubou o armário no chão, depois correu as patas pelos livros nas estantes, rasgando-os, trazendo-os para baixo. Rasgou a cadeira e o sofá de dois lugares que descansava preguiçoso contra a parede. Acabou com a mesa de centro, com o peso para papel sobre a escrivaninha, e, dentro de um porta-lápis — ela não acreditou em sua sorte —, havia um molho de chaves. Ela retornou para sua forma humana e partiu ao trabalho de abrir o armário.

Agachada ao lado do móvel, Luzia testou todas as chaves até conseguir enfiar a correta no buraco para abrir o primeiro gavetão. Fichas. No alto da folha se lia, datilografado, “Projeto CERBERUS ano 14, iniciado em 1970 sob a direção dos médicos do Exército de Alta Patente, Dr. Albert Hoffman (Diretor de Saúde) e Dr. Benício Prates (Médico Veterinário)”. E, logo abaixo, “CERBERUS012/Quimera de nº40 concluída com sucesso”, junto das iniciais: “A. A”.

O coração de Luzia apertou. Cada número era uma pessoa. A cada minuto, aquele lugar ficava pior. Ela não tinha muito tempo. Foi à letra L. Não esperava que estivessem em ordem alfabética por nome ou sobrenome, mas foi mesmo assim. Primeiro, seus olhos bateram nas iniciais L. D., mulher, historiadora, comunista, lésbica e feminista de Porto Alegre. Todas as informações batiam com as de Lavínia. Aquela ficha voltaria com ela. Passou para as próximas. Sem aviso, seus olhos bateram nas iniciais L.V. S., as mesmas de seu pai, Luiz Vicentino Silvério. Pela primeira vez, Luzia sentiu gotas frias descendo por suas costas, as mãos suavam, todo seu corpo tremia. Medo puro. Durante a leitura da ficha, ela segurou a respiração. Lia-se:

 

Projeto CERBERUS ano 5. Iniciado em 1970.

 

Elemento em teste: CERBERUS012/Quimera nº4

Nome: L. V. S. . Gênero: Masculino.

Localidade:….. Belo Horizonte — MG…..

Motivo: …..Em seu comércio, foi conivente com reuniões de lideranças comunistas. Incentivador ideológico de jovens e estudantes…..

Formação: …..filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais…..

Médico cirurgião encarregado:….. Dr. Albert Hoffman

Cirurgião veterinário encarregado:….. Dr. Jorge M. Machado

Membros selecionados para teste:….. Cabeça / pernas e tronco.

Animais selecionados para teste: Cachorro Pastor Alemão (cabeça)

Cavalo Mangalarga Marchador (tronco e patas traseiras).

Características de seleção da Quimera: Inteligência / Comprometimento à missão / Lealdade /  / Porte físico / Força.

Situação: Morto durante cirurgia de teste de acoplamento. Nas folhas em anexo, descreve-se as causas de morte.

Hora da morte: 11:47.

Data: Caçapava do Sul, 18 de abril de 1975.

 

Foi o que ela conseguiu ler, pois, do lado de fora da porta, o gato-mourisco soltou um silvo baixo de aviso. Alguém se aproximava. Luzia olhava atordoada para a ficha. Abriram-se todas as feridas que ela jurava estarem fechadas, esquecidas, coisas vividas por outra pessoa, outra criança. Ela reagiu ao segundo silvo, que foi mais urgente. Queria levar a ficha consigo. Olhou em volta e encontrou uma bolsa de nylon. Iria servir. Jogou fora todo o conteúdo ali dentro (roupas de academia do administrador e produtos de higiene) e colocou todas as pastas do armário no lugar; teriam alguma serventia.

Saiu da sala, e os dois correram, descendo o corredor.

“Me leva aos canis”, Luzia pediu.

“Parece que só tem mais poucas pessoas no Canil II”.

“PESSOAS? Me leva agora!”

Os dois contornaram o pavilhão, adentrando cada vez mais no labirinto. O Canil II ficava nos fundos do segundo pavilhão, e eles demoraram uns vinte minutos para cruzar todo o caminho. Quando chegaram, havia quatro guardas mortos no chão. O cheiro de sangue era forte. Luzia percebeu que o lado semiadulto do jaguarundi farejava o ar com fome; o lado humano dela não permitiu que seu lado felino demonstrasse o mesmo.

“Foi você?”, Luzia perguntou.

“Não. Eu saí da sala de cirurgia, lembra?”, ele respondeu num esturro. Estava com medo.

Tentaram empurrar a porta, mas estava trancada.

“O que você quer aqui no canil, humana?”, o gato-mourisco perguntou.

“Soltar todos eles. Não podemos fazer nada pelos que estão mortos, mas podemos impedir que continuem com essa loucura”, Luzia respondeu, cansada.

Ele a olhou, esturrando, as orelhas e a cauda baixas, o pelo eriçado — sinal de perigo e medo.

“Os que estão aí dentro já estão mortos”.

 E então Luzia observou a cena mais atentamente. Os guardas poderiam ter matado as pessoas presas ali e depois se matado para evitar complicações. Era um jeito fácil de fazer com que presos políticos desaparecessem. Mas por quê? Que ameaça os teria forçado a fazer algo assim? A mulher-onça nas câmeras de segurança ou alguma outra coisa? Aquilo Luzia nunca descobriria.

Tudo nela começava a doer. Aumentando de uma forma rápida e excruciante. Ela conteve um gemido. Só conseguia se sentir impotente. Nada naquele lugar lhe trouxera algo com o que se sentir satisfeita. Trouxera respostas, verdade, mas a que custo? Ela estava há quanto tempo correndo e matando quem encontrava pelo caminho? E aquele pequeno? Se fosse humano, Luzia lhe daria uns 14 anos, um menino-felino ainda no início de suas transformações. Não queria pensar na possibilidade de sentir-se responsável pela morte de um ser que desde o início só queria sair dali. Assustado. Sozinho.

“Vamos sair daqui, menino”, Luzia falou. “Vamos embora”.

Eles conseguiram sair por uma janela alta e partiram em disparada em direção à mata. Os dois se despediram, e Luzia seguiu seu caminho. Ainda tinha mais de uma hora de corrida pela vegetação. Nem conseguiu pensar em caçar; sentia-se enjoada, quase morta. A bolsa pesando mais que o necessário. Um peso psicológico. O peso do terror, do medo, do silêncio, da angústia, da tortura. O peso do cárcere. Voltando ao hotel, ela só conseguiu pegar suas coisas, entrar no carro e seguir viagem. Dormiria depois, em outro lugar. Em outro estado, de preferência.

Algum tempo depois, Luzia estava em um hotel em Montes Claros, onde passara a semana vendendo enxovais. Ainda estava remoendo e pensando sobre como colocar a boca no trombone quando recebeu o convite de casamento de sua irmã, Joana. Veio por telegrama em um texto curto:

 

VOU CASAR PROXIMO MES ESPERO MINHA MADRINHA.

 

Luzia via-se mais próxima às onças do que aos humanos. Mas a saudade esmagava seu peito a cada noite, dormindo e acordando com o travesseiro molhado. Saudade de cada uma delas, de Chico; saudade do pai, de Lavínia, até do improvável amigo, laço criado em momento de perigo. Mas sempre, sempre sentia saudade de casa. Sentiu as lágrimas rasgando seus olhos.

— Vai, Luzia. — A voz familiar e quentinha como o cheiro do café coado a preencheu. — Faz o que você faz de melhor, meu bem: coloca os pés no mundo. Se liberta.

Como se precisasse apenas dessa autorização, estava na hora de voltar.

A foto quadrada mostra uma mulher branca, de cabelos pretos e amarrados em um rabo de cavalo. Ela está sorrindo, à meia luz, e na frente do rosto segura luzinhas de natal. Ela usa uma blusinha de alça escura.

Nasci em Florianópolis, Santa Catarina e estudo Letras Português na UFSC. Tenho o coração um pouco no sul e um pouco em Minas. Minha paixão pela escrita deve vir do charmoso Fonceca de meu pai, grafado com ‘c’ no sertão mineiro. A paixão pela leitura vem desde a barriga, quando ganhei o primeiro livro de minha mãe. Fã de fantasia, realismo mágico, folclore, suspense e terror, eu tomo inspirações um pouco de cá, um pouco de lá, um pouco da vida para escrever. Dedico aos meus pais pelo carinho com outras histórias, e ao meu irmão, por ser meu Txai.

Sol Coelho é agente literário na Agência Magh, editor de textos e mentor de autores. Facilmente encontrado no Twitter como @_solcoelho

A foto quadrada mostra um homem branco, de boné e óculos de aro grosso. Ele está sério, olhando para a câmera. Usa uma camisa preta com detalhes metálicos e um brinco apenas na orelha esquerda.
A foto quadrada mostra uma mulher branca, de cabelos castanhos meio avermelhados um pouco além dos ombros. Ela está séria, com uma das mãos na lateral do rosto. Ela usa uma blusa de manga comprida escura e está contra um fundo cor-de-rosa.

Juliana Lopes é figurinista formada em Moda e apaixonada por historicismo, roupas velhas e papéis de parede peculiares. Também atua como designer e ilustradora em aquarela, nanquim, gouache, técnicas mistas e digitais. Artista em tudo mais que der vontade com graus variados de sucesso.