A capa mostra uma série de papeis e objetos e, sobre eles, duas mãos: uma de pele branca e uma de pele negra. Ambas usam alianças de coquinho. Entre os objetos, há uma foto de três pessoas de meia-idade (uma mulher loira de pele branca e uma camisa branca esvoaçante, um homem de pele negra e camisa azul com um chapéu de pesca e uma mulher negra de cabelos crespos e curtos e uma camisa laranja em um cenário de praia), uma foto menor de uma mulher morena com pele branca e óculos de armação vermelha, um mapa, uma chave de carro, uma nota fiscal, um bilhete escrito à mão (é possível ler "viva e me perdoe, se puder), e caixas de remédio. Acima da capa há a logo da Mafagafo em laranja. O título, em verde claro, vai no canto inferior esquerdo ("Três desejos para o fim do mundo"). Uma das fotos tem uma legenda "Escrito por Sáskia Sá" e a outra "Editado por Dante Luiz e JP Lima). Na bordinha do mapa há a informação de que a arte é de Juliana Pinho. No canto inferior direito há o logo da Mafagafo com a informação: Temporada 004, Agosto de 2021.

18.600 palavras | Aproximadamente 1h25min de leitura

Pra você, meu amor.

Viva e me perdoe, se puder.

Nem você nem eu sabíamos que, no dia em que Pedro foi sepultado, uma confluência de acontecimentos transformaria as nossas vidas e desencadearia o fim do mundo tal qual o conhecíamos.

Naquela noite, enquanto findava a vida do seu único irmão e meu companheiro de toda a existência, a barragem de rejeitos de mineração da empresa Riacho Doce rompia e Ava irrompia em nosso universo por uma fenda espaço-temporal.

Espero que minha memória não me traia, que um dia você possa me perdoar e consiga entender que esta é só a minha perspectiva da nossa história.

Mas estou me adiantando, e é melhor seguir a ordem dos acontecimentos ao escrever esse longo relato de despedida. A esta hora, você já sabe de tudo.

Só tenho a dizer que os últimos tempos foram os melhores de toda a minha vida.

Naquele amanhecer, depois de quase afundar na lama, Ava veste uma blusa que pega no varal de um quintal soterrado pela avalanche — da qual conseguiu escapar por sorte. Ela está só e olha para os lados, certificando-se de que ninguém a veja roubando, mas não há seres viventes ao seu redor. A destruição toma conta da paisagem coberta de lama dura que se movimenta feito lava, lentamente reivindicando o leito do rio e o vale, cobrindo casas e terrenos do que um dia já foi uma vila.

Algumas pessoas e animais fugiram, mas a maioria foi soterrada. Ava olha para um estranho aparelho com coordenadas marcadas por luzes coloridas, passa as mãos nos cabelos curtos e sujos e guarda o objeto na mochila. Ela caminha até a estrada, ainda sem saber como encontrar uma forma de chegar ao outro portal.

Naquele mesmo dia, o homem chamado Saulo recebe um vídeo de uma câmera de segurança. Ele é contratado pelos diretores da companhia de mineração para descobrir quem é a mulher que caiu do céu em meio à lama do desastre.

Após o funeral, estou exausta e com dor, mas não consigo dormir. Tomo o remédio e a dor diminui um pouco, mas não passa totalmente — está cada vez mais difícil controlá-la. Pego o laptop, sento-me no sofá da sala e revejo as fotos de Pedro. Eu sei o que me espera num futuro próximo e, no entanto, vivo através de uma película que me separa da vida real.

A televisão está ligada, e toda hora o plantão jornalístico surge com imagens do rompimento da barragem de rejeitos daquela empresa de mineração. Não é o primeiro desastre, mas esse deve ter sido o pior de todos — são centenas de mortos dessa vez. Eu me pergunto como os canalhas conseguem dormir sendo responsáveis por tantas mortes. Retiro o som da tevê com o controle remoto e volto a olhar as fotos no laptop. Já me basta de tristeza por hoje.

Passando as fotos, chego em uma das que eu mais gosto, uma naquele tom lilás desbotado de fotografia velha digitalizada, na qual estávamos nós três sentados num quiosque na areia da praia. Sobre a mesa, várias carcaças de caranguejo e garrafas de cerveja vazias.

Ouço você abrindo a porta. Você se senta ao meu lado e passa o braço por cima dos meus ombros. Deito a cabeça no seu colo e finalmente choro enquanto você acaricia meus cabelos brancos. Você fica em silêncio e me deixa chorar até que eu levante a cabeça e enxugue as lágrimas.

— Adoro essa foto — você fala, franzindo a testa ao ver as marcas de cansaço no meu rosto. — Conseguiu dormir um pouco?

— Não… — eu respondo. — Acho que só agora assimilei que Pedro não está mais aqui. Olho o relógio e ainda penso se não tá na hora dos remédios dele.

— Vai demorar um pouco pra gente se acostumar com a ausência.

— Ele era tão gente boa…

— Sim, nosso Pedro era uma pessoa rara, Ceci.

Você percebe que eu vou chorar de novo e me abraça, também liberando suas lágrimas. Pergunto se você quer ficar pra dormir, e você diz que não iria me deixar sozinha numa hora dessas. E eu penso que não sei o que faria sem você.

Você me puxa pela mão até a cozinha pra comer o bolo de cenoura com cobertura de chocolate que você fez.

— Um café bem forte é tudo o que eu preciso pra acordar — comento, e você refuta se não é melhor tomar um chá pra tentar dormir.

— Não, quero um café! — insisto, decidida. — Quero começar a juntar as coisas do Pedro hoje.

— Não é muito cedo? — você me questiona, sem saber que já é muito tarde pra mim.

— Não quero ficar o tempo todo esbarrando nas roupas dele, na escova de dentes, na espuma de… — Um soluço escapa, e eu engulo o choro.

Você me estende a mão e diz que depois a gente pode beber um bom vinho. Isso me anima.

Ah, Dalva, foram tantos anos sofrendo com essa desgraça de doença que nos tirou o nosso Pedro… Você viu como foi e também sofreu junto. Vimos o seu irmão definhando, morrendo lentamente… E nós duas morremos um pouquinho a cada dia em que enfrentávamos a jornada pelos hospitais e o processo contra a empresa. Você foi a única amiga que ficou comigo até o fim… A doença o corroendo, o corpo deteriorado se transformando numa prisão pra ele, pra mim e pra você também. Dez anos de sofrimento… Dez anos de agonia.

Apesar de você ter sofrido tanto ou mais do que eu, esses dez anos não afetaram visivelmente a sua forma serena e solidária de encarar a vida. Ao contrário de você, eu, que já era uma pessoa fechada, tornei-me cada vez mais desesperançada na minha dor.

Após a morte dele, a minha única vontade era fugir, mas agora isso não importa.

A gente abre um vinho e começa a organizar as coisas do Pedro. Em cima da cama de casal, duas pilhas de roupas e objetos de toda a vida dele. Você vai me mostrando cada item e eu vou dizendo o que vai e o que fica, embora minha vontade seja de que tudo vá.

Estou sentada na cadeira da minha escrivaninha com a madeira gasta e as manchas de copo. Retiro papéis da gaveta e jogo em um grande saco plástico. Eu me viro pra você e estendo minha taça, que você enche com o merlot especial que não cheguei a tomar com Pedro.

Reviro a gaveta e pego uns folhetos de viagem amarelados.

— A gente viajava tanto antes da doença… A gente economizava e viajava… Sem filhos até que não foi difícil. Meu pai me viciou na estrada… Era só mamãe bobear e lá ia a família toda enfiada na perua Vemaguet. — Dou uma risadinha, rasgando os folhetos e atirando-os no saco. — Ela odiava! Era mamãe quem precisava cuidar de tudo! Mala, filhos, lanche… Papai só entrava no carro e dirigia…

— Eu queria ter viajado mais vezes. Mas com o salário de professora do estado… — você fala, meio distraída, enquanto dobra uma das calças de Pedro e dá outro gole no vinho.

— Ah, Dalva! Eu também era professora — eu interrompo. Você se irrita, retrucando, como sempre, que eu fui professora universitária.

— Você teve muito mais chances de estudar do que eu. E você tinha o Pedro, Ceci… — você continua, e eu já sei onde você quer chegar.

Mas eu a interrompo de novo:

— Eu sei, a sua vida nunca foi moleza — respondo meio debochada, mas você não percebe e continua a falar da sua preguiça de viajar sozinha, dos seus medos, das mulheres da nossa geração, de como sempre fomos travadas, blá, blá, blá… Ah, Dalva, a vida é tão curta…, eu penso, mas não falo. Pelo contrário, eu concordo com você. — Mas a gente conseguiu fazer muita coisa que era impensável no tempo das nossas mães.

— Imagina eu, nascida nessa vila, negra, filha de pescador e de mãe evangélica… — você me interrompe. — Era um tal de não pode isso, não pode aquilo!

— Mas, Dalva, teve umas viagens que você foi com a gente, lembra? — Eu tento interromper o ciclo e acho que consigo.

— Óbvio que eu lembro, Ceci! Teve aquela vez que a gente foi pra Buenos Aires…

— E Montevidéu… E Lisboa também! — Tomo um gole de vinho e emendo: — Aquela vez foi divertida demais! Teve aquele português… Como que era mesmo o nome dele?

Você fecha os olhos, tentando lembrar.

— Jorge! A gente se conheceu naquele bar no Bairro Alto e ele me pediu em casamento! Ai, meu Deus! Que desgraça de homem insuportável!

Nós duas caímos na gargalhada, e você quase se engasga com o vinho. A sua risada é gostosa demais, Dalva! Será que eu já disse isso pra você?

— Ai, Ceci, o Jorge era um tremendo de um machista, e racista também!

Eu concordo com você, esse tipo de homem era bem normal na época, né? Nem sei como a gente aguentava, mas as coisas nem mudaram tanto assim.

Continuamos a rir até o riso morrer devagarzinho e nos deixar cada uma com as suas lembranças. Olho pra você e me pego pensando na solidão e no porquê de você nunca ter se casado. Eu sei, eu sei… Agora eu sei, você me contou. Eu já devia saber, mas não prestava atenção, Dalva, perdão…

— Dalva… nunca teve um homem por quem você se apaixonou?

Você interrompe a arrumação e me olha. Demora pra responder, e eu me apresso em pedir desculpas, quase como se não quisesse ouvir o que você tem pra dizer.

— Não precisa responder, eu sei que você é discreta com essas coisas.

— Ah, Ceci, eu tive meus momentos, mas daí a casar? Ter uma vida toda junto com alguém feito você e o Pedro tiveram… Não, nunca quis isso pra mim. Ninguém queria se envolver, e eu fiquei cansada. Sei lá! Acho que eu sou muito exigente.

— Não acho que você seja exigente, você só sabe o que quer — eu falo, olhando pra você, reparando em como você ainda é muito bonita com seus cabelos cacheados, o corpo forte e a pele luminosa. — Você sempre foi bonita, Dalva. Aliás, continua linda!

Você me lança um olhar estranho. Eu disfarço e pego mais folhetos na gaveta, imaginando que você está refletindo sobre o quanto estou envelhecida e em como eu emagreci nos últimos tempos. Você aproveita pra mudar de assunto:

— E esses folhetos? São de algum lugar que vocês foram?

Eu passo os papéis pra você olhar.

— São de Ushuaia… Pedro queria ir lá só por causa da história do fim do mundo.

— A cidade do fim do mundo… Falando em fim do mundo, você viu o rompimento da barragem? — você pergunta, e eu sacudo a cabeça.

— Vi, mas não quero pensar nisso. É muita desgraça, Dalva, isso não acaba nunca.

Você concorda, assentindo, e eu gesticulo na direção dos folhetos.

— Eu queria ir nesse lugar aqui, os Miradores de Darwin. — Aponto. — Não sei nada do lugar, só me encantei pela foto.

Você observa a imagem por um bom tempo e depois me devolve os folhetos. Eu pego os papéis e olho pra foto, fico pensando que a gente tinha se programado pra ir, mas aí veio o câncer…

Eu guardo os folhetos de novo, meio sem saber por que, até que meus dedos roçam numa latinha enferrujada.

— Dalvinha, meu bem! Olha só o que eu achei!

— É o que eu tô pensando?

Eu sorrio e jogo a lata pra você, que pega os óculos a fim de preparar o baseado. Quando termina de apertar, a gente acende e fuma. Logo estamos rindo.

— Como maconha é bom, né? — eu falo, soltando a fumaça e tossindo. Um calor insuportável se instala no quarto, e eu começo a me abanar com um leque. — Vamos dar um mergulho? — eu proponho.

— Tá doidona! — você fala, passando pra mim o baseado.

A gente se olha, sorri, e pouco depois já estamos sentadas na areia da praia deserta, ouvindo o barulho das ondas do mar e vendo a lua no horizonte, provocando reflexos na maré baixa. A gente bebe vinho no gargalo da garrafa, passando de uma pra outra até acabar. Eu mostro a garrafa vazia pra você e digo que a gente devia ter trazido uma extra, mas você, sempre mais ajuizada, diz que já está meio doidinha.

Mas eu quero mais da vida. Eu me levanto, meio cambaleante, e digo que está na hora do mergulho. Você olha pros lados, preocupada, enquanto eu já começo a tirar a roupa, exibindo minha nudez envelhecida. Imagino o que se passa na sua cabeça — que eu sou uma velha doida e que algum vizinho vai me ver nua. Eu sorrio, corro pro mar e mergulho, talvez meu último mergulho. Afinal, sempre pode ser o último, não é?

Chamo seu nome de dentro da água até que você tire o vestido e corra pro mar de calcinha e sutiã.

A gente se afasta da praia, nadando com braçadas vigorosas e, já no fundo, ficamos boiando. Ali naquele silêncio, sob a luz da lua, foi a primeira vez em anos que me senti livre. Eu tive a consciência exata do momento presente e de como nada é eterno — basta piscar que tudo muda. É impossível segurar o momento, Dalva…

— Tão lindo! — você sussurra.

— E você estava com frescurinha… — eu implico.

— Você tava certa…

— Eu tava o quê? — continuo a implicar.

— Tava certa! — você grita, rindo comigo e jogando água em mim.

Então eu olho pro mar limpo ao redor, e as imagens do desastre da mineradora surgem em minha mente. De repente, eu me dou conta de que a foz do rio afetado é aqui em Portinho. Nosso breve momento de alegria passa, e meu riso morre ao pensar que a lama vai descer o rio até desaguar aqui.

— A lama está vindo — eu falo.

— Lama?

— A lama do desastre, Dalvinha! Ela tá descendo pelo rio…

Ficamos em silêncio, e ouço nossas respirações embaladas pelas ondas.

— Eu nasci aqui, Ceci… Que tristeza!

— Desculpa, eu nem devia ter falado nisso agora.

— Meu pai era pescador, se ele ainda estivesse vivo ia sofrer tanto… — você murmura e começa a nadar lentamente de volta pra praia.

Ainda fico alguns segundos olhando a luz da lua refletida no relevo do meu corpo branco, boiando nas águas noturnas e calmas. Depois começo a nadar, sem vontade de voltar pra essa vida abraçada à morte.

Na areia, colocamos nossas roupas e olhamos pro mar em uma despedida silenciosa, depois saímos abraçadas. Já em casa, você resolve dormir comigo porque está tarde, apesar da sua timidez em dividirmos a cama.

Como se um móvel pudesse guardar alguma sacralidade de um casamento que havia muito era só a união de dois amigos se escorando contra a doença em uma luta desde sempre perdida pra nós dois…

— Ainda bem que você tá aqui, Dalva… — eu sussurro no escuro, e você me abraça.

Eu me aconchego em você, e ficamos as duas com os olhos abertos.

Estou acordada, mas finjo que durmo. A luz do dia entra pela cortina entreaberta, incide sobre minhas retinas, avermelhando minha escuridão. Você se mexe, e sinto seus olhos pousados sobre mim. As pontas dos seus dedos tocam meus cabelos brancos e recuam rapidamente, depois percebo pelo movimento no colchão que você se levanta e sai do quarto, pisando leve nos tacos do assoalho. Abro os olhos e aproveito que estou sozinha pra pegar o caderno na gaveta da mesinha de cabeceira. Escrevo um pouco antes de descer pra tomar café com você. Quero aproveitar todos os momentos pra escrever enquanto eu posso, não sei até quando vou suportar as dores.

Chego na cozinha. Você está olhando pela janela, segurando uma caneca fumegante. Fico uns segundos contemplando sua silhueta recortada na moldura do vidro. Como você continua tão bonita, Dalva?

Eu penso na nossa idade — sessenta e cinco anos — e me sento, arrastando a cadeira e fazendo barulho. Você ouve e se vira, sorrindo.

— Já de pé?

— Dormi demais! Você sabe que eu durmo pouco.

— Fiz café.

Você se senta na minha frente enquanto eu me sirvo. O silêncio da casa traz conforto, e o cheiro do café forte é bom. É bom ficar em silêncio com quem a gente gosta, né, Dalva? Eu olho pro céu azul.

— Tá um dia lindo, né? — eu falo, e você balança a cabeça concordando. — A gente podia dar uma saída. Não tô com vontade de mexer com arrumação agora.

— A gente podia ir até a vila de bicicleta… — você sugere, e eu faço a lista mental das coisas que preciso comprar pra casa: verdura, sabonete, peixe… — A gente passa lá em casa, pega a minha bicicleta e vai.

Eu olho pra você e me surpreendo por agir como se você fosse o Pedro e nós vivêssemos juntas.

— Não precisa ficar comigo se tiver algo melhor pra fazer — eu falo, um tanto ríspida, e você franze a testa.

— Relaxa, Ceci, posso passar o dia com a minha amiga. — Você estica o braço e acaricia minha mão, mas eu me retraio automaticamente.

Ah, Dalva, eu devia ter sido menos idiota quando me resta tão pouco tempo. No entanto, só respondo no meu mau humor característico que não quero empatar a sua vida. Você recolhe a mão, irritada, e se levanta da mesa.

— Vou ignorar por respeito ao que você tá sentindo, mas se lembre que eu também estou de luto, Cecília. Vou me arrumar, termina logo esse café pra gente sair.

Você sai pisando duro, e eu estico o braço, mas você desvia do meu toque.

— Desculpa… — balbucio pra cozinha vazia. A dor da ausência de Pedro se aproxima, e eu não quero ficar remoendo tristezas. Quase posso vê-lo na minha frente, no dia em que ele me contou que estava com câncer. Eu ainda não me sentia velha, meus cabelos ainda eram longos e pintados de loiro. Eu me vejo encarando Pedro, olhando pro papel do exame que ele me estende por sobre o tampo da mesa. Eu olho pro papel, e meus olhos se nublam imediatamente com as lágrimas que não quero deixar escapar. Abandono a folha de exame em cima da mesa e me levanto. O papel cai no chão, e eu saio da cozinha engasgada com o choro e com o medo de perdê-lo.

Observo a cozinha de azulejos amarelos, iluminada de sol, e uma lágrima desce, pingando no tampo de madeira gasta da mesa. Limpo a superfície molhada com meus dedos brancos, enrugados e trêmulos.

Eu e você pedalamos ao longo da praia. A saída e o dia ensolarado me fazem bem. Sinto o esforço das pedaladas, o vento no rosto, o cheiro da maresia e o calor do sol sobre a pele me trazendo alívio depois de meses de infindáveis idas e vindas ao hospital.

A gente chega na praça central da vila, segue até o Mercadinho da Edna e prende as bicicletas com os cadeados na grade da casa ao lado da venda. Eu entro, mas você ainda para e lê as manchetes estampadas nas capas dos jornais na banca do Zé Jorge. São quase todas sobre a tragédia ambiental. Sua expressão grave demonstra o medo quanto ao que pode acontecer com o paraíso onde você nasceu na hora que lama chegar aqui. Depois você se junta a mim dentro do mercado, e caminhamos pelos corredores espremidos entre as prateleiras, escolhendo frutas e verduras.

Levamos as compras até o caixa, e você cumprimenta Edna, que olha pra mim enquanto passa os produtos pelo leitor de código de barras.

— Eu soube do Pedro, Cecília, meus sentimentos. A gente não conseguiu ir ao enterro, o movimento aqui nessa época de verão não deixa a gente sair pra nada.

— Ah, Edna, não se preocupa…

— É, nem nesses momentos a vida dá trégua pra quem trabalha. Eu gostava muito do Pedro, ele era muito querido por todos aqui em Portinho. Pelo menos ele descansou — Edna diz. — Vocês chegaram a ver o rompimento da barragem?

— A gente precisa ficar de olho, a lama tá descendo pelo rio e vai chegar até a foz… — você responde.

— Será que eles não vão resolver isso antes de chegar aqui?

— Sei não, viu? — você emenda. — Essas empresas só pensam no lucro, o resto que se dane!

De repente, a gente ouve uma gritaria na rua. Você sai pra ver o que é enquanto eu pago as compras e sigo logo atrás.

Um bafafá está armado na praça em frente ao mercadinho. Uma jovem de pele acobreada e cabelo curto discute com um homem branco vestido naquele estilo camisa polo e bermuda caqui. Ele está acompanhado por outros dois homens, e os três parecem bêbados. Algumas pessoas se juntam pra assistir à confusão, e eu vejo você se aproximando de um casal de meia-idade que acaba de sair do templo neopentecostal — a mulher é Marília, que é da igreja que a sua mãe frequentava. Eu e Edna assistimos da porta do mercadinho enquanto a discussão esquenta e, de repente, o homem segura no braço da moça.

— Solta o meu braço… — ela fala com firmeza.

Eu admiro a serenidade da garota. No lugar dela, eu já teria partido pra ignorância.

— Sua vagabunda! — ele berra, aproximando o rosto do dela. — Tá pensando o quê?

De onde estou, vejo você conversando com Marília, que responde alguma coisa. Você olha pra mim e se afasta deles.

Eu saio do mercadinho carregando as compras e me apresso pra chegar mais perto, abrindo caminho entre o círculo de curiosos que cercam a jovem e os amigos babacas do homem. Vejo seu olhar de revolta por ninguém fazer nada e sei que você está prestes a se colocar no meio da confusão. Você aproveita pra se aproximar da garota enquanto Edna e o marido afastam os curiosos. Você a puxa pro seu lado. Um dos homens tenta puxar a moça de volta, mas o marido da Edna o empurra. Eu enfim consigo chegar até vocês, e nós saímos dali, levando a jovem com a gente.

Pegando as bicicletas, seguimos em silêncio pro bar do Geraldinho na esquina da rua da praia, onde a gente se senta numa mesa amarela de plástico na calçada. O bar não está cheio, apesar de ser uma manhã ensolarada de um domingo de verão.

— Obrigada por me tirarem de lá.

A moça finalmente se manifesta, e eu me viro pra olhá-la de perto. Seu porte é franzino — e um tanto andrógino —, com cabelos curtos pretos e olhos fundos no rosto magro. Agitada, ela começa a contar o que aconteceu:

— Eu tinha acabado de chegar aqui e parei naquele bar pra ir ao banheiro. — Ela gesticula intensamente com as mãos. — Aquele homem saiu da cabine masculina e pegou no meu braço, me puxando e insistindo pra eu ir me sentar na mesa deles.

As coisas nunca mudam mesmo!, eu penso

— Você não precisa explicar nada — eu a interrompo. — Deu pra ver o tipinho deles! Só porque aqui é um balneário, esses idiotas acham que podem fazer o que bem entendem.

— Ainda mais com mulher “desacompanhada” — você emenda. — Eles acham que mulher tem que ter dono e andar com uma coleira.

— Eu tentei me soltar e… — A voz dela fica trêmula. — Ele começou a me chamar de vagabunda, de esquisita! Não sei o que ele quis dizer com isso.

A jovem olha pra dentro do bar — talvez esteja com sede. O garçom está demorando a aparecer. Eu reparo que ela está com os lábios ressecados e que entrelaça os dedos sem parar, nervosa. Eu vejo o garçom saindo da cozinha e faço um gesto pra que ele se apresse. O homem se aproxima, e eu peço uma água e uma cerveja.

— Mas agora você tá entre amigas. Eu sou a Dalva, e esta é a Cecília — você responde.

— Eu me chamo Ava… Eu estou vindo lá da área do desastre.

— Mesmo? — A jovem consegue captar o seu interesse. — Você estava lá?

Ava olha pra nós duas, girando a cabeça de uma pra outra. Ela hesita por um instante antes de responder que sim. O garçom finalmente chega com o nosso pedido, e Ava se apressa em pegar a garrafinha de água, bebendo tudo de uma vez só.

— Como estão as coisas por lá? — você pergunta assim que ela coloca a garrafa vazia sobre a mesa.

— Tudo muito feio. Pessoas e animais mortos… Soterrados por uma lama vermelha, com um cheiro horrível de podridão… Nunca vi tanta morte! Mas aí eu resolvi vir até a costa. Segui o rio, pegando carona na estrada, e acabei chegando aqui em Portinho, que é a foz do rio, né? — ela pergunta, e nós assentimos. — É pra cá que a lama está vindo.

— A gente já imaginava isso — você comenta. — A lama vai descer o rio e vai chegar até a foz se ninguém fizer nada pra impedir.

— Ninguém vai fazer nada — Ava declara.

— Como assim? — eu pergunto, intrigada pela certeza da jovem.

— É claro que ninguém vai fazer nada! Aqui é o lucro acima da vida… — ela responde e bebe um gole de cerveja.

Eu me levanto e digo que vou até a banca dos pescadores comprar um peixe pro almoço. Não demora nada e você vem atrás de mim.

— Peraí, Ceci! Vou te dar dinheiro, compra camarão também. — Você se aproxima e me entrega o dinheiro, mas, na verdade, você quer falar da moça. — A menina é estranha, né?

— Também achei… O que a gente vai fazer com ela agora? Parece que não tem pra onde ir, que tá meio perdida na vida.

— Parece mesmo… — você fala e olha pra Ava. — Mas sabe, até que eu gostei dela? A gente podia chamar a menina pra almoçar.

— Vamos sim, né? Não tenho coragem de deixar a pobrezinha aqui na vila. Vai que aqueles ignorantes voltam…

Vou comprar o peixe e você retorna pra mesa do bar. Alcimar — o velho pescador que limpa o robalo e os camarões pra nossa moqueca — me entrega os pescados, e nós dois lamentamos a tragédia que se aproxima de Portinho. Eu agradeço e pago, voltando pro bar em seguida. Me sento, tomo um gole de cerveja e faço o convite:

— A gente vai fazer uma moqueca, Ava, você almoça com a gente?

— Moqueca?

— Não conhece? Nunca comeu?

Ava faz que não com a cabeça, e você olha pra moça, incrédula.

— Deve ser porque você é de Minas… Bom, é um prato de pescados feito na panela de barro. Se você gosta de peixe, vai gostar.

— De onde eu venho, os animais não são considerados alimento.

— Ah, você é vegana… Mas tudo bem, vou fazer uma moquequinha de banana da terra pra você então — eu respondo.

— Sabe, Ava, a vila até que é bastante pacata, não costuma ter muita confusão por aqui, mas é bom não bobear, né? Aqueles homens ainda podem estar por aí e, se virem você, podem querer se vingar — você continua.

— Agradeço muito mesmo — Ava sorri e toma um gole de cerveja, olhando demoradamente pra nós antes de continuar: — A Dalva me disse que vocês estão de luto. Esse Pedro, ele morreu de quê?

Você me olha, sabendo que não estou com disposição pra levar o assunto adiante, e então me poupa de ficar remoendo a história e responde:

— É, o Pedro… como eu falei, ele era meu irmão e marido da Cecília. Ele morreu tem dois dias, mas já estava doente fazia muito tempo… de câncer.

Ava desvia os olhos, encarando o copo de cerveja.

— É um mundo muito doente mesmo.

— Você tem toda razão, é realmente um mundo doente, envenenado, estamos todos doentes.

— Em breve tudo vai piorar.

— Imagino… — você responde, mas eu percebo que Ava tem um jeito meio esquisito de se comunicar. Você continua falando, preenchendo o tempo e mudando o foco do assunto “Pedro” pro crime ambiental: — Essa lama do desastre é tóxica, né?

— É…

Eu me levanto e vou até o caixa pra pagar a conta. Pra mim, essa conversa já terminou. Quero ir logo pra casa e começar a cozinhar, relaxar e me desligar de tudo.

Depois do almoço, ficamos um tempo de preguiça ao redor da mesa, onde ainda restam a panela de barro e algumas garrafas de cerveja vazias. Os pratos já estão empilhados na pia, e o som agradável das risadas suaves ressoa pelo ambiente banhado na luz do sol que entra pelas janelas. Eu me levanto pra fazer um café, e você começa a lavar a louça. Ponho a chaleira com água pra ferver e me viro, encarando Ava.

— Você já tem onde ficar, Ava? — pergunto.

— Ainda não.

— Pode ficar aqui em casa hoje se quiser.

— Obrigada, aceito sim.

Eu me viro e pego o pó de café e o coador de pano no armário sob a pia.

No dia seguinte, Ava se mostra bastante útil e nos ajuda a continuar a arrumação. Sei que na época você estranhou a minha sanha por me livrar logo das coisas de Pedro, mas não era só das coisas dele que eu precisava me livrar — eu queria me libertar de tudo o que pesava sobre meus ombros havia tantos anos. Sei que depois você entendeu tudo, mas, naquele momento, eu não conseguia e nem queria contar nada pra você.

A gente desce pelo caminho de pedras quadradas que atravessa o jardim, ladeando a casa até a entrada da garagem nos fundos. Eu abro o cadeado da porta grande de metal, fazendo um esforço extra pra levantá-la porque a porta está emperrada depois de não ser aberta há tanto tempo.

Os raios de sol atravessam a poeira em suspensão na penumbra, criando formas nebulosas no ambiente com cheiro de mofo. Nós ficamos paradas no limiar entre luz e escuridão por um instante, olhando pra garagem que é usada como quarto de depósito e que está cheia de quinquilharias: caixas de papelão se desfazendo, ferramentas de jardim enferrujadas, penduradas em ganchos na parede; e outras coisas há muito sem uso.

Começamos a levar as bugigangas pro quintal. Ava se aproxima de um grande volume no centro do ambiente, coberto por uma lona amarela. Curiosa, ela puxa a lona, levantando um poeirão. Nós corremos pro lado de fora, esperando a poeira baixar. Quando o pó assenta, voltamos a entrar e olhamos pro carro antigo com tração nas quatro rodas revelado por Ava. Ela anda ao redor do veículo, observando os detalhes até se aproximar do capô do motor.

— Esse carro é antigo, né?

— Um pouco, Ava. É um Toyota Bandeirante dos anos noventa. Pedro cuidava dele como se fosse um filho. Ele teve algum problema mecânico, não me lembro bem qual foi… Acabou ficando parado na garagem já tem um tempo. Eu usava o meu carro, mas tive que vender pra pagar as despesas de internação do Pedro.

 — Mas esse você não vendeu… — Ava comenta.

— Não… — eu hesito em responder. — Pedro amava esse carro, não tive coragem…

Desvio o rosto pra Ava não ver meus olhos marejados. Ela abre a tampa do motor e olha pra mim.

— Desculpa eu perguntar, mas vocês falaram que o Pedro morreu de câncer. O que aconteceu?

Eu suspiro, pensando em como resumir o que aconteceu, mas me vejo sem saída a não ser contar tudo desde o começo. A história surge em minha mente como um filme, como se eu estivesse descolada da personagem que fui, agora tão distante.

A primeira cena que me vem é a do meu casamento na praia. Pedro estava tão bonito com seu terno de linho claro, os grandes olhos negros e brilhantes que não paravam de me seguir pra todo lado. Eu me lembro do meu longo vestido creme de tecido leve e rendado, das sandálias baixas pra caminhar na areia, que depois tirei e fiquei descalça. Das flores enfeitando a casa da sua família e de Pedro na beira da praia, dos amigos, de você usando um vestido rosa estampado com flores azuis, o cabelo trançado em um penteado alto. Tão bonita a minha madrinha de casamento e melhor amiga. Éramos tão felizes… É difícil começar a contar quando já se viveu tanto… Percebo que estou devaneando e resolvo pular pra parte em que as escolhas que fizemos nos trouxeram até aqui.

— Já estávamos casados, e a vida não era nada fácil, sempre trabalhando e estudando. Pedro se graduou em biologia, e eu terminei meu mestrado em educação. Lembro que Dalva tinha se formado em Pedagogia e já dava aulas. Pedro acabou recebendo uma proposta de trabalho de uma companhia de agrotóxicos, e a gente se mudou pro Mato Grosso. Moramos nos alojamentos da empresa, uma espécie de fazenda-modelo que também era um laboratório de pesquisa com uma fábrica anexa que produzia esses venenos.

— Como assim veneno? — Ava pergunta.

— Agrotóxicos! — Você se impacienta com Ava. — Em que mundo você vive?!

— Com certeza que não é num mundo que produz veneno.

Eu respiro fundo e continuo a contar. Me lembro da primeira vez que Pedro se sentiu mal. Ele foi me buscar na faculdade onde eu dava aula. Apareceu na porta da minha sala enquanto os alunos saíam, pálido e com olheiras profundas.

— Pedro me contou que descobriu que a empresa fraudava laudos de toxicidade e disse que não queria se envolver com todo aquele lixo. Depois disso, ele começou a ter crises intermitentes de saúde. Ele estava sempre passando mal, porque trabalhava diretamente com os agrotóxicos. A gente resolveu que não dava mais pra ficar lá e voltou pra cá.

Você percebe a minha dificuldade em continuar o relato e tenta dar outro tom pra conversa:

— Eu fiquei feliz deles terem voltado. Estava me sentindo muito sozinha depois da morte dos nossos pais.

— Então vocês tiveram um tempo bom aqui… — Ava quer saber.

— Sim, mas durou pouco… Pedro continuava adoecendo. Até que, depois de fazer um monte de exames, a gente descobriu que ele estava com câncer.

Você se aproxima e me abraça. Sei que você sente a minha tremedeira, mas, com certeza, pensa que é pela emoção de recordar.

— A causa provável da doença foi o fato dele ter trabalhado por tanto tempo exposto aos venenos agrícolas, Ava — eu falo, soltando-me do seu abraço. — Foram dez anos de luta. A gente entrou com uma ação contra a empresa, mas perdemos as duas brigas.

Eu olho pro carro.

— E o carro ficou aí, esquecido…

Eu não aguento mais a dor e saio da garagem sem olhar pra trás. Vou pro meu quarto e tento esquecer tudo, a dor e Pedro. Tomo o comprimido, sento-me na poltrona da varanda do quarto e fico olhando o mar pela janela. A tevê está ligada, e o repórter fala que a lama de resíduos tóxicos do desastre está descendo o rio e que em poucos dias pode alcançar a foz em Portinho, mas não presto atenção, só quero que a dor passe.

Mas sei que ela não vai passar. Só terei alívios momentâneos, mas as coisas não vão melhorar. Eu me encolho na poltrona e fecho os olhos, e a imagem do carro me traz a memória de uma viagem que fiz com Pedro quando éramos jovens.

Eu insiro a fita cassete no toca-fitas do carro e ouço os primeiros acordes de Friday do The Cure soarem nos alto-falantes. Logo a voz de Robert Smith canta “I don’t care if Monday is blue…”, e eu e Pedro cantamos aos berros, sobrepondo nossas vozes desafinadas à do cantor.

Ele dirige o carro que acabou de comprar, e a gente fuma um baseado enquanto voa leve pela estrada ensolarada que nos leva até o sul da Bahia. É fim de tarde, e as cores douradas do dia iluminam os olhos apaixonados de Pedro, que sorri ao me ver rebolar no banco do carona. A Cecília jovem ama aquele homem e ama a forma como ele olha pra ela. Temos todo o tempo do mundo e só queremos aproveitar a viagem de férias.

Mas o tempo passou, e eu não sou mais jovem e nem Pedro está mais aqui. Sinto que não tenho mais forças, mas você ainda vai me trazer mais do que força, vai me dar a alegria que eu acreditei estar perdida pra sempre.

Com a ajuda de vocês duas, em menos de uma semana me livro de tudo que era do Pedro e de grande parte das tralhas que acumulei ao longo dos meus sessenta anos. Às vezes, parece que existe esperança no mundo, embora eu tenha consciência da grande ilusão dessa pretensa esperança. Eu acordo bem e sem dor, e resolvo chamar vocês duas pra gente sair e aproveitar o dia ensolarado. Desço até a garagem, onde Ava parece ter criado raízes, e a vejo olhando prum aparelho preto que parece uma caixa de metal e que emite luzes coloridas. Ela aponta o aparelho pro motor e observa uns gráficos em movimento.

— Ei, Ava! Já aqui? — eu falo, e ela guarda o aparelho no bolso da calça, virando-se pra mim.

— Ei, Cecília! Acordei cedo pra adiantar as coisas. — Ava sorri. — Você parece bem melhor hoje.

— Sim, tem dias que o luto é difícil, mas tem dias mais fáceis também. Hoje estou muito bem! Pensei em dar uma volta, talvez almoçar fora. Vamos?

— A Dalva tá aí?

— Não, mas vamos passar na casa dela e ver se ela quer ir junto.

— Ótimo! — Ava fecha a tampa do capô do carro. — É que o carro tá pronto, a gente podia experimentar.

— Você é mecânica? Vi que você estava usando um aparelho diferente…

— Não! — Ela coloca a mão no bolso, como se estivesse na defensiva. — É que, de onde eu venho, esse tipo de mecânica é bem rudimentar.

— De onde você vem… Você sempre fala isso.

Percebo que Ava desvia o olhar e vira de costas pra não me encarar. Ela dá a volta no carro e depois sorri pra mim.

— É, falo, mas vamos logo, né? Pra aproveitar bem o dia!

Ava abre a porta do carro e faz uma reverência. Eu entro no veículo sem imaginar que logo ele será nosso passaporte pra maior aventura de nossas vidas. Ava se senta no banco do carona, e eu ligo o carro. Nós duas sorrimos ao ouvir o som do motor.

Saímos da garagem e passamos na sua casa. Eu buzino em frente ao portão do jardim, e você coloca a cabeça pela janela emoldurada por alamandas amarelas, abrindo um enorme sorriso. Você sai de casa, tranca a porta e entra no carro, indo se sentar no banco de trás, e nós três seguimos pela estrada litorânea. Fumamos um baseado e cantamos juntas a música Everybody wants to rule the world do Tears for Fears, que soa nas caixas de som. Logo depois de uma curva, nós nos deparamos com o rio que deságua na foz em Portinho. Vemos que uma parte da água já está tingida pela lama tóxica da cor de tijolo, um contraste gritante com o verde das águas ainda não afetadas.

Nós três ficamos em silêncio por um tempo, olhando aquela tragédia anunciada que se aproxima.

— Não tenho energia pra lidar com esse horror agora… Mas não adianta nada me esconder, né? A lama já está chegando — você fala.

— Queria fugir disso tudo… — eu murmuro.

— E por que não? — Ava pergunta. — O carro está funcionando e vocês são aposentadas, por que não fazem uma viagem? Vocês não precisam ficar presas aqui esperando…

— Mas isso não seria covardia? — você pergunta e olha pra mim, como se eu pudesse ter uma resposta pra essa situação absurda.

Eu olho a lama pela janela, sem vontade de responder.

— Vocês deviam pensar em vocês! — Ava insiste. — Vocês já não são jovens. Quanto tempo de vida resta pra vocês?

Eu permaneço calada, mas ela continua:

— O que vocês gostariam de fazer antes de morrer?

A pergunta é mais oportuna do que vocês duas poderiam imaginar naquele dia, mas nem eu nem você respondemos de imediato. A música termina, e o carro desliza pelo asfalto em silêncio. O rio tingido de lama passa pela janela enquanto passamos por ele e nossas vidas passam por nossas mentes.

— Pra quem fala tão pouco, você até que fez um discurso e tanto, Ava… — você fala e ri, talvez tentando melhorar o clima, talvez pra mudar de assunto. Eu concordo com você na hora. Ava nunca foi muito expansiva desde que chegou a Portinho, mas começo a reparar em coisas como o aparelho estranho, sem, no entanto, entender muito bem quem ela é e o que deseja de verdade.

— Talvez o mundo não tenha mais muito jeito mesmo e não exista mais solução pros problemas criados nesse sistema… — Ava solta.

— Como assim, Ava? — você fala, irritada com todo aquele niilismo. — Esse desastre é terrível, destruiu um rio e está afetando toda a vida nas regiões atingidas. Pra poder recuperar o meio ambiente, vai ser uma luta contra gigantes! Eu e Cecília sabemos muito bem o que é lutar contra esse tipo de monstro capitalista, mas daí a dizer que não há mais solução… É um pensamento muito pessimista pra uma pessoa tão jovem feito você.

Ava fica um tempo em silêncio, parecendo pesar bem as palavras que precisa dizer.

— E se eu disser que vocês estão vivendo o fim desse tempo e desse lugar? — Ava pergunta, e você se debruça no encosto do banco pra olhar a garota.

— Eu vou dizer que você tem problemas! — você responde, rindo.

— Tem coisas que vocês não têm como saber, mas eu sei, Dalva… — Ela hesita antes de continuar: — Eu preciso contar pra vocês, pra que possam entender.

— Ih, acho que a Ava fumou maconha estragada! — Você continua a brincar e consegue mudar o tom da conversa. — Então, meninas, que tal a gente parar pra tomar uma cerveja e aí você nos conta a sua história?

— Acho uma boa ideia — eu falo. — A gente te acolheu com a maior generosidade e não me arrependo nem um pouco disso. Você também tem sido um amor, ajudando em tudo. Até consertou o carro, né? Mas até hoje a gente não tem a mínima ideia de quem você é nem de onde veio.

Você passa o baseado pra Ava por cima do banco, olhando pra ela e soltando a fumaça devagar.

Ava pega o baseado, fuma e passa pra mim.

— Todas nós temos segredos, né? — ela diz. — Agora vocês vão saber o meu.

O carro faz uma curva e segue pela estrada, deixando o rio tingido de lama pra trás.

Paramos pra tomar umas cervejas e comer aipim frito e umas iscas de peixe na varanda do bar da Zefa, um boteco-trailer numa rua de terra na beira da praia.

— Deixa eu ver se entendi… Você diz que, no dia do rompimento da barragem, você ultrapassou uma fenda entre dois mundos e veio parar aqui?! — Você cai na gargalhada. — Acho que o fumo estava estragado mesmo, Ceci!

A gente ri até quase perder o fôlego, mas Ava continua:

— Mais ou menos, Dalva… Tá mais pra universos paralelos… multiversos… — Ela toma um gole de cerveja. — Na sua realidade, existem algumas teorias científicas sobre isso, mas, de onde eu venho, isso não é só teoria. Bom… sei que é complicado, mas…

— Complicado? Ai, ai… Socorro, Ceci! Ava! Desculpa, mas você devia ser escritora de ficção científica!

Rimos mais uma vez sem parar, e nem Ava consegue segurar a seriedade após tantos baseados e cervejas.

— Tá, tudo bem! — eu falo assim que consigo me controlar. — Então, quando você fica falando “de onde eu venho”, quer dizer que você é uma alienígena de um outro mundo…

— Universo…

— Sei… universo paralelo, multiverso… — Você se apoia na mesa e encara Ava. — Explica isso direito, como é que o rompimento da barragem trouxe você pra cá?

— Eu não sei se vou conseguir explicar tudo pra vocês… — Ava ri, constrangida. — Sem querer desmerecer a inteligência das duas, mas acho que vocês não iam entender. Resumindo, o rompimento da barragem provocou um desequilíbrio entre dois universos paralelos e abriu uma fenda espaço-temporal que me sugou pro lado de cá.

— Isso a gente já entendeu e dá até pra imaginar. É tipo uma parede que se rompe entre dois cômodos, e a pessoa que estava em um cômodo cai pro outro lado, né?

Você demonstra com um guardanapo, furando o papel com um palito de fósforo e fazendo Ava rir da analogia.

— É! Eu estava no lugar errado e na hora errada.

— Isso não é conversa pra uma maconheira velha! — você diz e olha pro baseado entre os dedos. — Tudo bem, Ava, ninguém aqui vai te julgar, viu? Nós já fomos jovens e já usamos umas drogas bem doidas. Vamos fazer o seguinte: assim que a onda acabar, a gente finge que não ouviu nada disso que você falou…

— Mas, Dalva… — Ava interrompe, dessa vez bem séria. — Eu contei isso pra vocês porque preciso de ajuda pra chegar até Ushuaia.

Nesse instante, o homem que diz se chamar Saulo recebe um vídeo da câmera de segurança de um posto de combustíveis na BR-101 que leva até Portinho. Ele checa as coordenadas no mapa em seu celular e calcula o tempo para chegar até lá.

O homem vai até o quarto do seu apartamento decorado em tons de cinza e branco e com equipamentos de tecnologia de ponta. Ele abre o armário e pega uma mochila preta, colocando dentro dela algumas peças de roupa em tons neutros. Ele abre um cofre e retira uma arma e pentes de munição e os coloca na mochila, fechando o zíper. Dá uma última olhada no apartamento, liga o alarme e sai, trancando a porta.

 

Eu e você estamos na cozinha, e Ava já foi pro quarto.

— Que história doida, né? Ava nunca fala nada e, de repente, solta esse monte de asneira! — Coloco a chaleira no fogo e pego a caixinha de chás e ervas pra fazer a infusão de capim-cidreira. Você abre o armário em cima da pia e pega as canecas, levando-as pra mesa e se sentando. Você olha pra mim com seus olhos grandes e expressivos, que nesse momento demonstram preocupação.

— Olha, Ceci, eu acho que ela acredita mesmo nessa história.

— Pior que a única coisa que a gente sabe dela é o que ela contou. — Ponho a erva seca na água. Quando começa a ferver, desligo e tampo a chaleira. — Mas ela também tem sido uma fofa, né?

Levo a chaleira pra mesa e me sento de frente pra você.

— É, ela nem nos atacou com uma pistola de raio laser — você fala, e nós rimos. — Mas o que a gente faz?

— Você tá falando do quê? — eu pergunto. — Da viagem?

— O que você acha?

— Por que não? Você quer ficar aqui esperando pela lama? Viver toda essa tristeza depois de tudo o que a gente já sofreu com a doença do Pedro? — eu pergunto. Você foge do meu olhar e se vira pra janela, tirando um tempo pra pensar no que vai me responder. Você levanta a mão e move um cacho pra trás da orelha, um gesto seu que sempre vejo você fazer quando está hesitando em dizer aquilo que realmente pensa. Quando você me encara outra vez, percebo que é culpa o que você está sentindo.

— Eu me sinto meio covarde de abandonar a vila onde nasci e cresci.

— Mas, Dalva, o que duas velhas como nós poderiam fazer? De que adiantaria o nosso sacrifício? Nem você nem eu temos mais família. Amigos? Quais deles ficaram do nosso lado durante os últimos anos?

— Não me sinto uma velha inútil pra lutar…

— Pra lutar contra uma megacorporação de mineração? Ah, tá! Nem que você fosse a Jane Fonda e tivesse dez vidas conseguiria vencer essa guerra!

— Agora é você que está sendo niilista, Ceci! Nunca vi você falando assim.

— É que eu cansei, Dalva! — Eu subo o tom de voz. — Depois de dez anos lutando contra um gigante dos agrotóxicos, acho que eu mereço uma dose de escapismo, não?

Você fica me olhando, e eu me calo.

— O que foi, Dalva?

— Ainda bem que você pode desistir da luta, né? Porque os pescadores não podem…

— Ah, Dalva, me poupe, viu? Se você quiser ficar, tudo bem! Eu vou! E depois eu volto e continuo a luta! — eu minto, sabendo que, se for, não vou voltar.

Isso é, então, um ultimato. Um tudo ou nada que eu lanço pro universo, esperando que você decida vir comigo.

Você fixa o olhar na chávena à sua frente, os dedos brincando com a colherinha. Eu me sinto desprezível por ser tão manipuladora, mas eu sei o que o tempo significa pra mim… o que também não é desculpa pro que eu fiz com você, minha amiga, eu sei.

De repente, você levanta os olhos e me encara, sorrindo, e eu vejo que consegui o que eu queria.

— Tudo bem. Você tem razão, é uma oportunidade de conhecer Ushuaia… Fim do Mundo… Desertos… — você responde, bebendo o chá. — E nada me impede de voltar e ajudar as pessoas daqui depois.

Eu sorrio e acaricio sua mão por cima do tampo da mesa.

— Que bom, eu não quero ir sem você.

— A gente vai precisar de dinheiro, porque a Ava não tem nada, né?

— Eu sei, mas eu tenho um dinheirinho que sobrou da venda do meu carro, mais a aposentadoria… — Eu me pego planejando e fico excitada com a possibilidade da aventura. Você me olha, e sei que também está, embora, na época, eu ainda não soubesse qual era o seu desejo pra essa viagem.

— Eu também tenho um dinheiro guardado… É, acho que vai dar, Ceci. Mas é bom a gente planejar bem, temos que ver as rotas, diárias de pousadas, combustível, vai ser uma viagem longa.

Como eu admiro a sua sensatez! Eu me animo e pego um caderno e uma caneta na gaveta da mesa. Você vai buscar o computador na sala. Nós passamos boa parte da noite organizando a grande viagem das nossas vidas.

Dois dias depois, já estamos com tudo resolvido. Ava não para de sorrir, dizendo que vai pra casa e que nunca será capaz de nos agradecer pelo que estamos fazendo por ela, embora saibamos que também fazemos por nós.

Na manhã da partida, vocês colocam as coisas no carro, e eu vou até o portão entregar as chaves de casa pra Maurício, meu vizinho, que vai cuidar das plantas do jardim.

Alguns dias depois, ele liga e diz que, assim que saímos, um homem estranho apareceu na rua procurando por Ava. Maurício perguntou quem ele era e o que queria com a moça. O homem deu o nome de Saulo e respondeu que era advogado da família de Ava, que tinha sumido havia meses. Maurício se deixou engabelar pela conversa e acabou contando que a gente viajou.

Felizmente, ele não disse pra onde e nem deu meu telefone pro tal do Saulo, que agradeceu e foi embora.

Então começamos nossa viagem. Eu vou no banco do carona e Ava vai atrás, enquanto você dirige. Olho pra nossa foto no meu celular: Maurício que tirou antes de sairmos. É uma foto linda, nós três estamos rindo em frente ao jardim da casa, a luz do sol batendo na fachada branca de janelas azuis, iluminando o pé de primavera cor-de-rosa que faz um arco acima do portão de madeira, emoldurando a cena. Eu me pergunto se vou sentir saudades daquela vida e o que vou encontrar nessa viagem, mas resolvo que os melhores anos que vivi ali com Pedro já se foram faz tempo. Agora eu me abro pra um mundo de incertezas e possibilidades.

O carro diminui a velocidade, e eu levanto o rosto. Chegamos no acesso à BR-101. Você sorri e olha pra mim.

— Lá vamos nós!

Eu sorrio, ligo o som, e Heroes do David Bowie começa a tocar. Eu me recosto e olho pela janela, cantarolando a música. Você me segue com sua voz linda. No banco de trás, Ava sorri.

I

I will be king

And you

You will be queen

Though nothing

Will drive them away

We can beat them

Just for one day

We can be heroes

Just for one day…

O carro entra na rodovia no sentido sul. A estrada está muito movimentada — muitos carros e caminhões carregando granito e eucaliptos arrancados da terra sempre exaurida pelos poderosos. Seguimos confiantes rumo ao Fim do Mundo. Nessa viagem, cada uma de nós carrega um desejo enquanto o mundo se desequilibra cada vez mais rumo ao fim.

Chegamos a Rio das Ostras no fim da tarde e seguimos pelas ruas da cidade cheia de turistas de verão. Paramos o carro em frente à pousada que reservamos, pegamos a chave e levamos as coisas pro quarto. Saímos a fim de dar uma volta a pé pelo simpático balneário — pena que viemos fora da época do festival de jazz, que é sempre animado e com atrações de várias partes do mundo.

Escolhemos um bar cheio de mesas na calçada em uma rua com um movimento intenso de pessoas caminhando. O garçom vem logo, e pedimos cervejas e uma porção de peixe e batata frita. Estamos cansadas de viajar o dia todo e ficamos em silêncio. Na tevê, uma repórter fala ao vivo sobre a lama que chega à foz do rio no litoral de Portinho.

— Esses desgraçados podiam ter evitado isso e não fizeram nada! A mineração é um inferno! — Você se exalta, talvez sentindo culpa por ter me acompanhado nessa fuga insana.

— Você quer voltar, Dalva? — eu pergunto.

Você fica em silêncio, olhando pras imagens na tevê onde vários rostos conhecidos choram e gritam. Eu prendo a respiração, esperando a sua resposta, mas você balança a cabeça e me olha.

— Não, Ceci, eu não vou voltar.

Respiro aliviada e encaro a tevê, as câmeras focando na grande mancha cor de tijolo tomando o lugar do verde do mar. Eu perco a fome e a vontade de beber, resolvo ir pra pousada e me despeço de vocês.

A noite está agradável, e eu caminho pelas ruas, onde um vento fresco alivia o calor do dia. Penso que devo ser mesmo uma manipuladora miserável. Sei muito bem o que estou fazendo com você, mas não queria enfrentar essa viagem sozinha, Dalva. Talvez um dia você entenda, talvez nunca me perdoe, mas agora é tarde pra arrependimentos.

A brisa acaricia meus cabelos na beira da praia, e sinto alívio em poder andar sozinha e ouvir meus próprios pensamentos sem ter que pensar nos seus ou nas estranhezas de Ava. Sinto que o vento me leva embora e eu só penso em ir e ir e ir, deixar tudo pra trás, deixar quem sou e quem fui e me dissolver no futuro desconhecido.

Partimos de Rio das Ostras com o sol nascendo e seguimos rumo ao sul, passando pela Região dos Lagos pra evitar o tráfego pesado da BR-101. Não temos hora pra chegar e seguimos passeando e parando pra dormir em pequenas cidades pelo caminho.

Após alguns dias, chegamos a Mostardas no Rio Grande do Sul. Assim que nos registramos na pousada, digo que estou cansada e que quero cochilar um pouco. Você me observa, preocupada. Imagino que converse com Ava sobre meus cansaços nos últimos tempos, mas, agora, tenho a ótima desculpa da viagem de carro. Após meu descanso, damos um passeio pela cidade e vamos até a praia ver o pôr do sol. Na volta, passamos na frente de um bar com uma placa em neon rosado, piscando com os dizeres “Karaokê da Rosa”. Você vê a placa e me segura pelo braço.

— Olha, Ceci! Karaokê! Vamos?

Nós rimos da sua empolgação e entramos no bar. Mal sabia eu que a noite iria me mostrar tantas coisas pras quais fui tão desatenta.

Entramos no bar e pedimos as bebidas. O ambiente é todo decorado em tons escuros, com luzes neon fluorescentes iluminando o balcão do bar. Você corre pra conferir o cardápio de músicas e reserva a sua vez de cantar.

O tempo passa, viramos alguns copos e cantamos com os outros cantores, nem sempre afinados. Eu apoio os cotovelos na mesa, sentindo um pouco de tontura depois dos drinques. Você está concentrada escolhendo a música, e eu me viro pra conversar com Ava.

— Acho que já não tenho mais a energia da juventude. Você também fica bêbada, Ava?

— Sim, por quê? — Ava ri da minha pergunta.

— Ah, sei lá! Você fala que veio de um universo paralelo… De repente, de onde você veio, não tem bebida, droga…

— Você tá sendo irônica, né? Nunca acreditou em mim…

— Não acredito mesmo! Você tem que concordar comigo que essa sua história é bem esquisita. Mas isso não importa, né? Estamos todas juntas nessa aventura, cruzando as estradas, dormindo em pousadinhas vagabundas e cantando em karaokês…

Ava só me observa, sem responder, mas eu continuo:

— Mas sacia a minha curiosidade, finge que eu acredito em você e me conta se no seu mundo as pessoas ficam bêbadas.

— Bom, bebida e droga são a mesma coisa no meu universo! — Ava dá um gole na bebida à sua frente. — A única diferença é como as pessoas se relacionam com isso.

— Como assim?

Tudo que você ingere afeta o seu corpo, mas aqui as pessoas têm uma visão muito limitada do que é droga… Afinal, a maconha causa algum mal, Ceci? Não vejo nenhuma razão científica pra proibir o uso.

— Claro que não! Sou uma maconheira irrecuperável! A maconha me deixa muito bem… Já o álcool, bem… olha só o que ele faz comigo!

Eu cambaleio, e nós rimos.

O marcador eletrônico na beira do palco mostra o número da sua senha. Você sobe ao palco.

— Vai lá, Dalvinha! Arrasa! — eu grito.

Ao me virar pra pegar o copo na mesa, vejo um jovem sentado sozinho na mesa ao lado, que ri da nossa empolgação. Olho pra Ava e vejo que ela sorri de volta pra ele. Pego meu copo e fico de frente pro palco pra assistir você cantar.

Os primeiros acordes de I Don’t Know começam, e você se posiciona sob a luz do holofote, preparando-se pra seguir a melodia. Logo começa a cantar com sua bela voz rascante os versos da música de Ruth Brown, que você agora interpreta com uma força que me surpreende.

Should I let myself go in her direction. Is her love strong enough for my heart’s protection? I don’t know! I don’t know!

Eu percebo que você troca o pronome “his” por “her”, sempre com os olhos fixos em mim. Tento me refugiar no copo e dou um grande gole, sem entender muito bem por que sinto meu rosto esquentando. Ava se aproxima e fala no meu ouvido:

— Você não percebeu ainda ou tá fingindo que não?

Olho pra ela e franzo a testa.

— O que eu devia ter percebido, Ava?

Ava se vira e olha pra você, que está ainda mais linda com a luz azulada sobre sua pele marrom-escura.

— Eu acho que você entendeu sim.

Todos aplaudem quando você termina de cantar. Você desce do palco e vem até a mesa, e eu me levanto dizendo que vou ao banheiro, num impulso angustiado.

Quando volto pra mesa, Ava está sentada com o jovem e você está sozinha. Abraço você e dou parabéns pela performance, mas sinto que o estrago já está feito. Você está com raiva e se arrepende de ter exposto sua alma ao cantar sobre desejo, ainda mais sabendo que eu entendi tudo, mas preferi fingir não entender. Você se levanta e joga algumas notas sobre a mesa.

— Esse dinheiro deve dar pra minha parte.

De imediato, eu me dou conta da minha estupidez.

— Dalva! — eu grito, mas você já está saindo pra rua.

Também deixo dinheiro na mesa e saio correndo. Ava me olha, mas volta a prestar atenção no rapaz com quem está conversando.

Na rua, eu corro atrás de você.

— Ô, Dalva! Espera!

Você para, e eu a alcanço.

— Que foi isso? — eu pergunto.

Que foi isso?! — você grita com raiva. — Você quer mesmo saber?

— Calma, Dalva, tô tentando entender… — eu falo, assustada com a sua reação.

— Ceci… — Você respira fundo pra se acalmar. — Você não é burra! Será que nesses anos todos você não teve empatia suficiente pra perceber nada?

— Perceber o quê, Dalva? A gente sempre foi amiga, irmã!

“A gente sempre foi amiga, irmã!” — você ironiza. — É evidente que a gente sempre foi amiga! Mas tem uma diferença enorme entre a gente e os nossos sentimentos, percebe? Ou é tão difícil pra você entender alguma coisa do alto dos seus privilégios?

— Privilégios?! Devo estar muito bêbada mesmo, não tô entendendo na…

— Privilégios sim! — você me interrompe. — Se olha no espelho! Você é branca, casada, doutora, professora universitária…

— Nossa! Casada com um homem negro, né? E eu nunca…

Você ri da minha resposta idiota, é óbvio. Por que eu fui dar a carteirada do meu casamento com Pedro? Morro de vergonha e me arrependo imediatamente, mas é tarde demais.

— Sério, Ceci? Você é ridícula! — Você se irrita e sobe o tom. — Você nunca nem me viu, Ceci!

— Isso não é verdade!

— Não é verdade pra você! Tudo sempre girou ao redor da sua vida, dos seus problemas, do seu casamento! Sempre foi tudo sobre você! E a minha vida? O meu amor? A minha solidão?

— Dalva… Por favor, não faz isso… a nossa amiza…

— Eu sou sua amiga! — você me interrompe de novo, com fúria nos olhos. — Eu! Dalva, filha de mãe evangélica que não podia sair do armário e se acostumou a se esconder! Caramba! Você não entendeu nada mesmo… Eu sou lésbica, Ceci! Por que você acha que eu nunca me casei?

— Dalva… perdão… Eu não sabia…

— É, você nunca sabe de nada mesmo… — você murmura, sem forças, mas agora nada mais a detém, você quer falar tudo. — Você nunca viu que eu sempre fui apaixonada por você, Ceci… Pra você, sempre foi muito natural eu estar sempre disponível, mas pra mim não é nada natural… Sinceramente, eu tô cansada. Nem sei mais por que eu vim nessa viagem!

Você vira as costas e me deixa sozinha no meio da rua enquanto se afasta.

Eu não sei o que pensar, nem o que deveria falar pra você. E você tem razão, eu nunca entendi nada. Eu olho pro lado e vejo um trailer de lanche, sigo pra lá me sentindo odiosa e me sento em uma mesa pra esperar passar a tremedeira do choque da discussão. Peço uma cerveja e vejo quando Ava passa pela rua deserta com o jovem que estava a seu lado no bar. Ela acena pra mim, e os dois vão andando abraçados.

— É, Ava, pelo menos você está aproveitando essa maldita viagem pro fim do mundo…

Neste mesmo instante, Saulo está terminando de comer um misto-quente na lanchonete de uma parada de ônibus interestaduais na BR-101. Ele ouve o som de notificação do celular, pega o aparelho e vê uma foto da câmera de vigilância da pousada em Rio das Ostras, mostrando a placa do carro de Cecília. Ele se levanta, paga a conta e segue viagem.

 

Na manhã seguinte, você acorda cedo e sai com Ava e Lucas, o jovem com quem ela passou a noite. Você não me acorda, ainda irritada pela discussão da noite anterior. Vocês deixam um recado pra mim na recepção, dizendo que é pra encontrá-las na praia do Farol. Eu me lembro da nossa discussão e morro de medo de você desistir da viagem e voltar pra Portinho.

Depois do café, eu vou até a praia e, de longe, vejo Ava e Lucas fotografando. Apesar de soprar um vento frio, a manhã está agradável, e você toma sol sentada numa canga. Eu me sento ao seu lado e encaro o mar. Nós ficamos em silêncio por um bom tempo, mas sinto que você está mais calma e resolvo que é melhor falar logo pra acabar com esse clima hostil entre nós.

— Dalva, eu queria conversar com você…

— Olha, Ceci, deixa pra lá. Ontem eu estava com raiva e tinha bebido, me desculpe. Não gosto de agir assim e sei que ter bebido não justifica nada.

Eu sei que você está só repetindo a mesma atitude de sempre, sem saber se fez bem ou não em falar de sentimentos que permaneceram submersos por tantos anos. Com certeza está dizendo pra si mesma que eu não tinha como adivinhar o que você sente, já que nunca demonstrou nada pra mim, que eu ainda era casada com o seu irmão. Mas sei que as coisas não são bem assim. Depois de ontem, entendi melhor. Sei que devia ter prestado mais atenção no que você sente. Eu sempre vivi numa bolha, as coisas sempre foram mesmo sobre mim.

— Ontem — eu interrompo —, depois que você foi embora, eu fiquei naquele trailer, tomando uma cerveja sozinha e pensando em tudo o que você me disse.

— Ceci, eu já pedi desculpas!

— Por favor, Dalva, me deixa falar! Você disse tudo o que queria, e deu pra ver que isso tava entalado na sua garganta. Agora eu quero dizer o que passou pela minha cabeça depois que você deu as costas e saiu.

Você se vira e encara o mar, sem coragem de me olhar no rosto.

— Sou eu que preciso pedir desculpas. Você até podia estar com raiva e, aliás, você tinha todo o direito de explodir. Eu fui muito insensível e egocêntrica esses anos todos. — Eu respiro fundo e seguro em seu ombro, tentando fazer você olhar pra mim, mas você se enrijece. — Dalva… olha pra mim. Eu só via a Dalva que eu queria ver, não a Dalva que você é. Ontem, me lembrando da nossa história, eu consegui enxergar essa mulher… Me desculpa, Dalva, por tudo, por favor.

Você se vira pra mim com os olhos marejados. A gente se abraça, chorando juntas em silêncio. Ficamos assim até Ava voltar com Lucas.

— Gente! — ela nos chama. — Lucas me ensinou a fotografar!

Ela se senta conosco e nos mostra as fotos.

— Estão muito boas, Ava! — eu elogio e olho pra Lucas. — Você é fotógrafo?

— Não! Só curto fotografar. Eu sou cozinheiro.

— Mas é bom fotógrafo também! Olha só que bonitas! — Ava diz e mostra as fotos, entusiasmada.

— Você vive aqui, Lucas? — você pergunta.

— Vivo. Tenho um pequeno restaurante, que está passando por uma reforma e teve que fechar nessa semana. Tô aproveitando pra tirar umas férias.

— E por que você não aproveita e viaja? — eu pergunto.

— Não dá… — Lucas sorri. — Tenho que acompanhar a reforma.

— Que pena… — Ava comenta. — Você podia vir pro fim do mundo com a gente.

Lucas se vira pra Ava e franze a testa.

— Fim do mundo?

Nós sorrimos, mas ninguém explica a piada pra ele.

— Eu queria oferecer um jantar pra vocês hoje à noite.

— Mas o restaurante não está fechado? — você argumenta. — A gente não quer atrapalhar.

— Ah, vamos meninas! Vai ser bom! — Ava tenta nos convencer, e acabamos aceitando após os dois insistirem.

O sol aparece, aquecendo o clima, e resolvemos tomar um banho de mar. Saímos correndo e mergulhamos na água fria, fazendo uma algazarra na praia semideserta.

À noite, estamos jantando na cozinha do restaurante de Lucas, um lugar caseiro e agradável, apesar da desordem decorrente da reforma no salão anexo, que é decorado com objetos familiares e artesanais adquiridos nas comunidades tradicionais da região. Nós brindamos com vinho e comemos uma caldeirada de frutos do mar. Pra Ava, ele fez um cozido de legumes.

— Mas você é realmente um ótimo cozinheiro, Lucas! E seu restaurante é uma graça! — você comenta após esvaziar o prato pela segunda vez.

— Pena que o salão do restaurante ainda não tá pronto — Lucas responde, satisfeito com os elogios.

— Ah, mas tá tudo ótimo! — Ava fala e dá um beijo em Lucas.

Você e eu nos olhamos e sorrimos.

— Mas… — Lucas olha pra mim. — Ava me disse que vocês estão vindo de Portinho, na foz do rio onde aconteceu o crime ambiental…

— É… já rodamos um bocado e ainda vamos viajar bastante — eu falo.

— Vocês são muito corajosas! Fazer uma viagem assim, sozinhas…

— Nós não estamos sozinhas — você discorda. — Estamos em três.

— Eu não quis dizer…

— Eu sei o que você quis dizer — você o interrompe. — Somos só mulheres na estrada, sem um homem.

— Sim, me desculpe, mas… Vocês não têm medo?

— Viver é perigoso, Lucas, termina sempre do mesmo jeito — eu falo. — E nem sempre viajar ou viver com um homem é seguro.

Nós sorrimos, e Lucas, um tanto envergonhado, digere o que falamos.

Mais tarde, eu e você voltamos pro nosso quarto. Enquanto você vai ao banheiro, troco a roupa por uma camiseta, me jogo na cama e fico olhando pro teto daquele quarto de hotel barato. Parece ser sempre o mesmo quarto, com paredes claras, quadros de pinturas genéricas, camas simples, travesseiros desconfortáveis e lençóis nada macios.

Coisas que estão naquele limiar entre o não lugar e o desconforto a que me submeti pra chegar até os Miradores de Darwin e acabar com toda a dor.

Você sai do banheiro, liga a tevê, pega uma garrafa d’água no frigobar e se senta na outra cama.

— Acho que a Ava ficou meio balançada pelo Lucas — você fala e bebe um gole da água.

Eu olho pras imagens da tevê sem som, onde um gráfico mostra vários lugares do mundo onde estão ocorrendo tremores de terra.

— Ele é uma graça — respondo, meio desatenta.

— Mas é um pouco machistinha — você responde e se deita. — “Vocês são muito corajosas, fazer uma viagem assim, sozinhas.”

— E tem homem que não seja? — Pego o controle remoto pra aumentar o som. — Você viu esses tremores de terra?

Você se vira pra tevê, franzindo a testa.

— Estranho, né?

Nós duas prestamos atenção na notícia, que mostra vários aquíferos vazando e vertendo água devido aos tremores. Corporações mineradoras de água cercam veios e nascentes em várias partes do mundo e contratam exércitos particulares a fim de vigiá-los. As pessoas estão acabando com o estoque de água dos mercados.

— Será que é mesmo o fim do mundo? — eu comento e me cubro.

— Talvez… O fim do mundo não vai ser como num filme americano, não vai ter nenhum herói pra nos salvar.

Eu desligo a tevê e olho pra você.

— Você acha que corre o risco da Ava desistir da viagem por causa do Lucas? — eu pergunto.

— Acho que não, Ava tá muito decidida a chegar lá — você murmura, apagando a luminária. — Vou dormir, amanhã sou eu que dirijo. Só espero que o fim do mundo não chegue antes da gente voltar pra casa. Boa noite, Ceci.

— Boa noite…

Ficamos em silêncio no escuro, mas continuo com os olhos abertos. Quase posso ouvir nossos pensamentos se batendo com as questões que não ousamos falar.

Penso em Ava, tão jovem, às vezes tão estranha e ao mesmo tempo tão sábia. Penso nela com Lucas, deixando-se ser abraçada na penumbra do quarto iluminado pela luz da lua que entra através das cortinas entreabertas. Imagino Ava falando que vamos pra Ushuaia, dizendo que queria que ele fosse com a gente, explicando a história do fim do mundo, sem querer dizer tudo o que ela nos contou e parece mesmo acreditar. Penso que Lucas tenta convencê-la a ficar, mas ela diz que não pode. Eu me perco nesses devaneios, tentando entender o que move Ava, qual é o seu desejo. Minha suspensão de descrença não consegue ir além de acreditar que toda essa história é uma forma dela lidar com alguma outra coisa. Ou será que eu estou errada e o mundo dela é a utopia, o paraíso oposto ao nosso?

Mas não importa mais. O sono vem, e desisto desses pensamentos que não servem pra nada além de me tirar o foco do meu desejo final e da despedida que endereço a você, pra que um dia eu possa, talvez, ser perdoada.

No dia seguinte, esperamos Ava na frente da casa de Lucas. Eles saem, e ela coloca suas coisas no porta-malas. Os dois se beijam e se despedem. Você está no volante e coloca o rosto pra fora.

— Lucas, muito obrigada pelo jantar! Foi um prazer te conhecer!

— Eu que agradeço a presença de vocês. Quando estiverem voltando, passem por aqui e serão muito bem-vindas.

— Obrigada, Lucas! — eu grito de dentro do carro. — Até mais!

Ava e Lucas se beijam novamente antes dela se sentar no banco traseiro. Você dá a partida, e a gente segue. Ava se vira e acena pra Lucas. Ele fica olhando a gente até o carro virar a esquina.

Eu ligo o som bem baixinho, e ouvimos os acordes de guitarra de uma canção do Bob Dylan. Ava se deita no banco e sorri, observando a copa das árvores que passam num borrão pela janela lateral. Você dirige, e eu olho pra você com um carinho que me inunda desde a noite anterior. Talvez seja por causa da despedida de Ava e Lucas, por pensar nas impossibilidades que nos tomam a vida. Eu levanto a mão e acaricio sua nuca exposta pelo coque alto do cabelo. Você se vira pra mim, surpresa, e sorri.

Passamos o dia na estrada e chegamos à cidade de Lúcio V. Mancilla à noite. Você roda de carro pela cidade, procurando o endereço da pousada até chegar ao local. Nós colocamos nossas coisas nos quartos e saímos, procurando um lugar pra comer. Paramos em frente a um bar com as indefectíveis mesas de plástico e televisores que exibem um jogo de futebol. Escolhemos uma mesa e nos sentamos, mas Ava fica em pé, parada ao lado da cadeira. Você olha pra ela.

— Que foi, Ava?

— Tô cansada, vou pra pousada.

Ava se vira e volta pelo mesmo caminho que viemos.

— Deve estar cansada mesmo… — Você ri, sem entender a atitude dela.

— Também não vou durar muito — eu falo e me alongo.

— A gente pode pedir alguma coisa pra comer na pousada.

— Boa ideia! Vamos só tomar uma cervejinha então.

Pedimos e tomamos nossa cerveja enquanto esperamos a comida ficar pronta. Eu olho pra tevê: as legendas apontam a notícia da contaminação dos aquíferos e lençóis freáticos por metais pesados que desceram com o rompimento da barragem. Há caos em algumas cidades, e já começa a faltar água pras populações mais pobres. Falam que a contaminação está se espalhando pela terra e que pode afetar as lavouras. Os tremores continuam a ocorrer em várias partes do mundo onde nunca aconteceram terremotos.

Os copos sobre a mesa tremem, e nós duas os seguramos, assustadas. Nem percebo que você me olha, até que ouço sua voz no meio do barulho das conversas apavoradas ao nosso redor.

— Ceci… tudo bem com a gente?

Eu me viro e encaro você, voltando pro aqui e agora de nós duas sentadas em um boteco barulhento onde o fim do mundo parece real por alguns segundos.

— Com a gente? Não sei do que você tá falando…

— Tô falando sério! — você responde, irritada com a minha desatenção. — Eu me abri com você…

Eu sorrio e faço um carinho em seu rosto.

— Nem que você quisesse muito ia conseguir me deixar com raiva. — Recolho a mão ao ver a ruga que se forma entre seus olhos. — Eu que te pergunto se tá tudo bem com a gente.

Você pega minha mão por cima da mesa.

— Não quero que isso que sinto por você atrapalhe o afeto que a gente tem.

— Nada vai conseguir separar a gente, Dalva.

Olho pros lados, incomodada com os olhares de algumas pessoas pra nós duas — principalmente os de dois homens encostados no balcão, um barrigudo de bigode e um calvo de cavanhaque, que dividem sua atenção entre a tevê e a gente.

— Vamos pedir a conta? Tô achando o clima desse bar meio pesado… — Indico discretamente os homens com a cabeça.

— Tem razão — você fala e faz sinal pro garçom.

Pegamos nossa comida e saímos do bar após pagarmos a conta. Vamos andando abraçadas tranquilamente, como sempre fizemos, por cerca de um quarteirão. A violência nos encontra ao virarmos a esquina e nos deparamos com os dois homens que estavam no bar. Estacamos atônitas na calçada, sem saber o que fazer. Você segura a minha mão e me puxa pra voltar, mas os homens são mais rápidos e nos impedem de escapar.

— Onde as velhas safadas pensam que vão? — o barrigudo de bigode fala e puxa o seu braço, encostando o corpo em você enquanto o calvo me empurra contra um muro.

— Elas tão achando que podem andar abraçadinhas por aí… Isso aqui é terra de macho!

Ele tenta enfiar a mão debaixo da sua saia. Eu puxo você pro meu lado, e os dois riem.

— Olha só! Agora já sabemos quem é o homem do casal! — zomba o calvo. — Fica tranquila, nós só vamos ensinar uma liçãozinha pra vocês!

— Isso aí! Essas bucetas velhas devem estar com saudades de um bom pau! — o bigodudo fala e sacode o próprio membro por cima da calça.

Tentamos resistir em uma luta desigual até que um homem se aproxima, vindo das sombras. Ele ataca os dois com golpes precisos, e eles nos soltam ao mesmo tempo que um forte tremor de terra acontece e as janelas das casas tremem nos batentes. Eu e você nos seguramos em uma grade e vemos quando Ava chega correndo, trazendo consigo um pedaço de pau. Ela aproveita a distração dos agressores com o tremor, desferindo um golpe no homem calvo. Ele cai de cara numa poça de lama com um rasgo na testa, onde o sangue jorra.

O bigodudo se levanta, estendendo a mão pra frente com medo de Ava golpeá-lo também, e ajuda o calvo a se levantar. Os dois covardes saem correndo. Nós três nos abraçamos. Você segura o rosto de Ava entre as mãos.

— Querida! Você apareceu na hora certa! — Você se vira e encara o outro homem recém-chegado. — E o senhor…?

Ele se adianta e estende a mão pra cumprimentá-la.

— Meu nome é Saulo.

Saulo… O nome ativa algo em minha mente, mas eu não lembro o que é. Você aperta a mão dele, e eu o cumprimento com um aceno.

— Meu nome é Dalva, e esta é Cecília. — Você faz um gesto pra me apresentar. — Muito prazer e muito obrigada, seu Saulo.

— Eu tava indo pro meu hotel. Quando vi o que eles queriam fazer, eu nem pensei.

— Ainda bem — eu respondo, reparando o porte musculoso de Saulo, o cabelo cortado bem curto e a cicatriz na testa. Na hora, nem penso por que reparo nessas coisas, mas elas chamam minha atenção. — O senhor luta muito bem.

— Eu sou professor de artes marciais. Em momentos assim, a gente vê como é bom saber se defender.

— Ainda bem. — Você dá um suspiro de alívio e vira pra mim. — Você viu o que eles falaram, Ceci? Estupro corretivo, esse é o nome do que eles queriam fazer com a gente.

— Mas a moça também foi rápida e corajosa — Saulo interrompe, apontando pra Ava. — Vocês são amigas?

— Sim, estamos viajando juntas — eu respondo e me viro, intrigada, pra Ava — Aliás, Ava, por que você voltou?

— Eu… — Ava hesita. — Fiquei preocupada com os tremores…

— Vamos pra pousada — você fala e sai nos empurrando. — Não tô a fim de encarar os desgraçados, caso eles voltem.

Em um impulso, eu a abraço. As imagens da violência que sofremos permanecem como fotos impressas no fundo da minha mente. Nem imagino o que sentiria se aqueles homens fizessem algo contra você, Dalva.

O tal Saulo nos acompanha no caminho de volta. Ava entra e vai direto pro bar da pousada. Eu observo o homem, que me dá um sorriso meio encabulado.

— Vejam só que coincidência! Eu também estou hospedado aqui.

Você olha pra ele, intrigada.

— Então boa noite pro senhor e muito obrigada de novo.

Você começa a se dirigir pro elevador e me puxa pela mão, mas eu paro e me viro pra Ava, que já está sentada em um dos bancos no balcão.

— Ava, você não tava cansada?

Ava olha pra mim e sorri.

— Perdi o sono, vou ficar por aqui mais um pouco e tomar uma cerveja. Boa noite, meninas!

O homem se senta no balcão ao lado de Ava. Em outras circunstâncias, eu ficaria preocupada por deixar Ava sozinha com aquele homem, mas, quando o elevador chega, meu primeiro instinto é pegar sua mão pra finalmente ficarmos a sós.

Eu olho pra você, que sorri meio tímida, mas logo me encara de volta. Sinto meu coração disparar de uma forma que não sentia há anos. Não sei se é a adrenalina ou o alívio da tensão, mas sinto um fluxo de energia catártica me empurrando e dou um passo na sua direção. Você se vira de frente pra mim. Ergo a mão e a posiciono na sua nuca, acariciando-a. Depois, puxo você pela cintura, e nos beijamos com intensidade.

Eu nunca vou esquecer esse beijo, Dalva, nem toda a esperança que ele significou pra mim. Meu último grande amor.

Sem soltar uma à outra nem por um segundo, saímos do elevador e andamos aos tropeços pelo corredor enquanto continuamos a nos beijar. Entramos no quarto, tirando nossas roupas e largando as peças pelo chão acarpetado. Alcançamos a cama e nos jogamos nela em um embate de corpos esfomeados. São desajeitadas as minhas carícias, desconhecedoras do corpo de outra mulher, outro volume, outro cheiro. São desacostumadas as minhas mãos em tocar outra mulher que não eu, outro corpo que não o de Pedro. São suaves e intensas as carícias vindas de você, guiando-me pelos caminhos da sua pele e manejando meus volumes e reentrâncias com mãos e dedos hábeis e delicados. A língua e a saliva desenham caminhos na minha pele madura. Nada me prepara pra esse encontro, o melhor e mais importante choque entre corpos e almas que desponta na vida dessa mulher nova que nasce em mim, já tão próxima do fim.

No bar da pousada, o homem que diz se chamar Saulo sorri para Ava, mas ela não sorri de volta e pede uma cerveja para o barman. Saulo a observa enquanto Ava pega a cerveja, anota na conta do quarto e se levanta. Ela acena com a cabeça para ele e se dirige ao elevador. Saulo acena de volta, pega seu copo de uísque, assina a conta e sai do bar, indo até o estacionamento da pousada. Ele põe o copo no capô do carro, tira um dispositivo do bolso da bermuda e se agacha ao lado do veículo de Cecília, acoplando o dispositivo por baixo das ferragens. Saulo se levanta, pega o copo, dá um gole e sorri, entrando novamente na pousada.

 

No dia seguinte, vamos conhecer Salinas Grandes antes de seguirmos viagem pra Puerto Madryn. O dia está claro, e cantamos uma música argentina sentimental que toca no rádio do carro e que nos faz rir. Estacionamos e saímos andando pelo salar, a grande planície desértica formada por depósitos de sal. Eu estreito os olhos frente àquela brancura ofuscante que reflete a luz solar por todos os lados e me arrependo de não ter trazido meus óculos escuros. Andamos pelo local e tiramos muitas fotos, encantadas com a imensidão árida do salar que você queria tanto conhecer. Eu e você nos abraçamos, nos beijamos e nos tocamos sempre que estamos próximas, o que é o tempo todo.

— Vocês duas estão felizes — Ava comenta.

— Você nem imagina o quanto! — você responde e me abraça. — Você tá feliz, Ceci?

— Muito!

Nós seguimos caminhando juntas, mas meu sorriso morre, e eu viro o rosto pra que você não perceba. A proximidade do fim nubla minha alegria, mas não quero estragar nossa felicidade agora.

Voltamos pro carro, eu dirijo e pego a estrada até o próximo destino. Dormimos em Santa Rosa e chegamos a Puerto Madryn no outro dia. Eu e você vamos direto pro quarto depois de passar tantas horas na estrada.

Mais tarde, depois de jantarmos no quarto, estamos abraçadas na cama assistindo tevê, sem prestar atenção na novela em espanhol que passa depois do jornal e que trouxe mais notícias de tragédias ao redor do mundo. Aliás, há tempos que nem olhamos nossos celulares e as redes sociais. A estrada nos descolou e nos jogou em um mundo só nosso.

Estamos felizes, satisfeitas depois de comer, conversando baixinho, aproveitando o momento de tranquilidade… Até que ouvimos batidas fortes na porta. Eu me levanto num pulo e ando em silêncio até lá. As batidas se repetem, ainda mais fortes.

— Quem é? — eu grito, e você se levanta e vem atrás de mim.

— Sou eu, Ceci, abre a porta! — Ava grita em resposta, e eu abro, deixando-a entrar.

Ela irrompe no quarto, os olhos arregalados, torcendo as mãos em um nervosismo que eu nunca vi na garota.

— A gente tem que ir embora daqui!

— Que foi que aconteceu? — você pergunta.

Ava anda em círculos pelo quarto apertado e olha pra você sem parar de andar.

— Sabe aquele homem que ajudou vocês?

— O tal do Saulo? — eu pergunto.

— Eu fui dar uma volta…

— Ai, meu Deus! Para de enrolar e conta logo — eu perco a paciência e falo alto.

Você se aproxima e abraça Ava.

— Calma, Ceci, deixa a menina contar do jeito dela — você fala e segura Ava pelos ombros, fazendo com que ela pare de andar, respire fundo e comece a contar o que aconteceu.

— Eu fui até as falésias, lá eu teria uma recepção melhor pro meu dispositivo.

— É aquele aparelho que eu vi na garagem? — questiono Ava.

— É, esse aqui. — Ela tira o aparelho do bolso da calça e nos mostra, guardando-o novamente. — Eu estava preocupada e queria checar as coordenadas de data e local da próxima abertura da fenda dimensional. Aí encontrei com ele, vi que ele estava escondido atrás de umas pedras, espionando.

— Ai, meu Deus! — você exclama.

— Ele percebeu que eu vi e se aproximou de mim pra me mostrar um vídeo de quando cheguei aqui, caindo do céu no meio da lama.

— O quê?! — eu exclamo. — Como assim?

— Quem é esse homem? Pra quem ele trabalha? — você exclama.

— Não sei, talvez pra empresa mineradora… Ele queria que eu fosse com ele, mas eu fugi, e aí ele me perseguiu. — Ava toma fôlego e continua: — Eu consegui me livrar dele.

— Se livrou? — eu pergunto. — Você matou o cara?!

Ava arregala os olhos e passa as mãos pelos cabelos curtos.

— Não! Quer dizer… acho que não. Eu o empurrei, e ele caiu da falésia. Não sei se tá vivo ou morto. Não fiquei pra ver — Ava explica, e você começa a pegar nossas coisas espalhadas e jogar os itens sobre a cama.

— Que merda! — você diz. — A gente tem que sair daqui.

— Ava, vai pro seu quarto e arruma suas coisas! — eu comando. —A gente se encontra lá embaixo daqui a dez minutos pra fechar a conta.

Ava sai correndo, e eu te ajudo a recolher tudo pra enfiar nas mochilas.

Você dirige, concentrada na estrada, e o carro entra na rodovia com velocidade. Sentada no banco de trás, Ava olha pelo vidro de minuto em minuto. Eu observo a estrada que corta a paisagem desértica da Patagônia Argentina, e você diminui a pressão no acelerador ao olhar pelo retrovisor e ver que ninguém nos segue.

— Pode ficar tranquila, Ava, não tem ninguém atrás da gente.

Ava se vira e se recosta no banco. De súbito, lembro da conversa com Maurício, dando um tapa no painel do carro. Vocês duas olham pra mim.

— Tem uma coisa que eu tinha esquecido totalmente… — eu falo, e vocês esperam até que eu continue: — Logo no começo da viagem, Maurício, meu vizinho, ligou pra me avisar que um tal de Saulo tinha aparecido lá na rua, perguntando sobre você, contando uma história de que era advogado da sua família…

Ava dá um pulo, erguendo o corpo e apoiando o braço no encosto do banco da frente.

— Advogado? Família? Eu não tenho família aqui, nem advogado…

— Desculpa, Ava, isso escapou totalmente da minha memória — eu falo.

— Qual será a desse tal de Saulo? — você questiona.

— Não dá pra entender… — Eu olho pra Ava. — Tem alguma ideia do que ele possa estar querendo, Ava?

— Nem imagino. Mas ele deve estar seguindo a gente desde Portinho. — Ela pensa um pouco. — E tinha aquele vídeo. Ele deve saber algo sobre mim…

Eu me viro pra trás e encaro a garota.

— Como assim? — pergunto, e Ava se recosta no banco e desvia o olhar pra janela.

— De onde eu venho.

— Ah… — Eu me viro pra frente novamente.

Você acaricia a minha perna e diz:

— Parece que nos livramos dele. Só espero que o cara não tenha morrido e que a polícia não venha atrás de nós.

Ficamos em silêncio enquanto o carro segue pela estrada vazia, com exceção de alguns caminhões vagarosos que você ultrapassa um a um.

— Sabe o que eu tava pensando? — você fala, meio reflexiva. — É tão estranho estarmos juntas nessa viagem… — Você acaricia minha mão antes de continuar: — É incrível! Em poucos dias, a gente viu e fez tanta coisa. É tudo tão diferente do mundinho da vila… Essa amplidão, o deserto, o céu… Nunca vi um céu com tantas estrelas assim.

Eu olho pra imensidão estrelada e concordo com você.

— É lindo…

— E eu e você… Nunca imaginei que iria acontecer de verdade… — você sussurra, e eu aconchego a sua mão na minha.

— Parece que a gente sempre esteve aqui, na estrada, em movimento… — eu digo, e você olha pelo retrovisor pra Ava, que rói as unhas, mantendo os olhos fixos no borrão da paisagem escura que passa pela janela.

— Se não fosse pela Ava, não estaríamos juntas… — você diz, depois leva minha mão até sua boca e a beija.

— Quem sabe, Dalva… Talvez a gente tivesse ido a uma festa em Portinho e a mesma história tivesse acontecido. Talvez exista uma outra versão da nossa história esperando a gente — eu respondo e me viro pra trás. — O que você acha, Ava?

— Não sei… — Ava responde, ainda um tanto alheia à conversa, mas depois respira fundo pra se acalmar e me encara. — Talvez vocês nunca tivessem coragem de se enxergar com esse novo olhar caso não tivessem saído da vila. Com toda a tragédia se abatendo sobre a realidade das pessoas de lá, talvez vocês desviassem o foco pra outras coisas que parecessem mais importantes.

— Tem sentido — eu respondo, voltando a observar o caminho deserto, as faixas amarelas no centro do asfalto sumindo velozmente sob o carro. — A estrada nos desviou de mais uma tragédia e nos colocou à deriva em uma viagem onde tudo pode acontecer. A gente rompeu com uma rotina cristalizada na dor de anos…

— As suas escolhas trouxeram vocês pra esse tempo e lugar onde o amor de vocês pode fluir — Ava fala, os olhos perdidos na paisagem que se move velozmente enquanto passamos. — Mas, no fim, nada disso importa muito. Quase nada mesmo…

Você lança um olhar intrigado pra ela.

— Como assim?

— Sabe, um indivíduo… sozinho… As decisões dele não importam muito, mas um grupo grande de indivíduos tomando decisões o tempo todo…

— E quase sempre sem saber por que estão escolhendo “A” ou “B”… — eu completo.

— Todo mundo se achando muito livre pra escolher entre diet ou light… — Você dá uma gargalhada sonora. — Ninguém é livre de verdade, né? Todo mundo é impulsionado prum lado ou pro outro pelo sistema.

— Pode ser… — Ava continua. — Todas as pessoas reagindo e pensando que estão tomando decisões, quando geralmente têm alguém tomando decisões por elas.

— Ah, Ava… — Você suspira, desgostosa. — Tenho uma pena quando ouço você falando assim… Ainda acho que você é muito jovem pra ser tão pessimista. O que foi que te deixou desse jeito, garota? Do modo como você fala, parece que nada do que fazemos com a nossa vida causa a menor diferença.

— Não sei, Dalva… — Ava suspira. — Só sei que eu não tenho mais tempo, e, se a gente não chegar logo em Ushuaia, a passagem vai fechar e eu vou ficar presa aqui nesse mundo desabando.

— Quanto tempo a gente tem?

— Pouco, Dalva, bem pouco…

Ficamos em silêncio, as palavras pesando sobre nós. Todas as escolhas que nos trouxeram até ali e que continuam a nos impulsionar e nos levar sempre em frente — até o fim do mundo — fomos nós que fizemos?

Você vê um posto de combustível e segue com o carro pra lá. Estaciona e sai, falando conosco pela porta aberta:

— Preciso ir ao banheiro e tomar um café.

— Deixa que eu levo o carro daqui pra frente — eu ofereço.

Dalva sorri.

— Ótimo! Abastece pra mim, Ceci?

— Pode deixar.

Você sai andando, e um frentista do posto vem nos atender. Entrego a chave e peço pra encher o tanque, remexendo na bolsa no banco de trás pra pegar a carteira. Quando eu a puxo, meu frasco de remédios cai no banco bem ao lado de Ava, que pega o vidrinho. Eu tiro o frasco das mãos dela com um movimento brusco e o guardo na bolsa.

— Você está doente?

Eu solto o ar, confirmando com a cabeça.

— É sério? — ela insiste.

— Não, é só coisa de velha.

— Dalva sabe?

Volto a me virar pra frente e não respondo, ouvindo o tambor do meu coração acelerado dentro do peito. O frentista me entrega a chave, e eu dou pra ele o cartão de crédito. Respiro fundo e falo, olhando pra Ava pelo retrovisor:

— Eu não quero que essa viagem vire um drama.

— O seu mundo também não tem muito tempo, Cecília. Vocês podiam vir comigo.

— Lá vem você…

O frentista me devolve o cartão. Nós saímos do carro e andamos em silêncio até a loja do posto. Penso que minha decisão já está tomada. Sei que não tem mais jeito pra mim, mas você ainda pode se salvar.

Estou do lado de fora do carro olhando a paisagem rochosa atravessada pelos raios do sol nascente. É um dos lugares mais bonitos que já vi na vida, e aproveito o momento de solidão, sem ter que dividir meus pensamentos ou meu olhar com vocês, pra escrever um pouco mais do meu relato antes que vocês acordem. Guardo o caderno na mochila e pego a câmera pra tirar algumas fotos das estranhas formações rochosas que parecem me acolher no silêncio do raiar do dia, criando um ninho de paz em meio à confusão do mundo.

Vocês ainda dormem no carro. Eu tiro mais uma foto da paisagem, abro a porta pra guardar a câmera e me surpreendo com seus olhos abertos em minha direção.

— Já acordou? — Acaricio seu rosto, e Ava desperta no banco de trás, erguendo-se e olhando ao redor.

— Onde a gente tá?

— No Parque Nacional dos Bosques Petrificados.

— Você deve estar cansada, dirigiu quase a noite toda — Ava murmura com a voz sonolenta.

— Tô ótima! Adoro dirigir na estrada! Pega aquela sacola ali, Ava, tem umas coisas pra gente comer.

Ava alcança a sacola, e vocês saem do carro. Arrumamos as coisas no capô.

— Que lugar maravilhoso! — você fala entre uma mordida e outra do sanduíche de queijo.

— Sabia que você ia gostar — eu sorrio, e a gente se beija com a boca suja de pão.

Depois que terminamos e guardamos as coisas no carro, saímos pra dar uma volta a pé pelo parque. Ava pega a câmera e tira várias fotos nossas.

— Ava, você tá muito quieta hoje… — você comenta enquanto ela nos mostra as fotos.

— É que… eu comecei a gostar muito de vocês. Queria que fossem comigo.

— Nós também gostamos muito de você, querida — você fala e começa a rir. — Não vou dizer que acreditamos em tudo o que você conta, mas a gente gosta de você mesmo assim.

Ava abaixa os olhos e mexe na câmera, tímida.

— Sei disso. Tive muita sorte de encontrar vocês.

— Mas, acreditando ou não, queria saber se, quando você diz que o mundo vai acabar, você acha que isso é definitivo, Ava.

— Não sei, Dalva, penso que nada é definitivo em lugar nenhum…

— Bom, então acho que só nos resta aproveitar o tempo que falta. Pelo menos eu encontrei a única mulher da minha vida. — eu digo, e você sorri e me dá mais um beijo. Ava nos fotografa.

— É, mas eu precisei dar um chilique pra isso acontecer, né, Ceci? Se eu soubesse, teria roubado você do meu irmão bem antes.

Caímos na gargalhada e voltamos a andar pelo lugar, observando as pedras e suas formações entrecortadas pela ação milenar do vento e de outras forças da natureza. Ava volta a ficar em silêncio e diminui o passo. Nós duas seguimos abraçadas, e, por cima do ombro, vejo que Ava tira seu aparelho do bolso.

Mais tarde, paramos na porta do hotel. Eu não estou me sentindo bem — a dor vem se anunciando, mandando seus sinais. Eu digo pra vocês que estou cansada e que vou mais cedo pra cama.

— Vou ficar com você. A gente pede uma comida no quarto — você fala, mas eu preciso ficar sozinha, então digo que dirigi demais e que quero dormir.

Você concorda e me dá um beijo. Eu entro no hotel, fazendo uma careta pela dor, e você sai andando pela rua com Ava. Eu corro pro quarto, abrindo a porta com as mãos trêmulas e deixando-a destrancada. Vou pro banheiro, levando a bolsa, e pego uma garrafinha de água no frigobar. Espero que a química da droga poderosa possa inundar minhas células, aliviando as dores excruciantes.

 Eu me apoio na pia e abro a tampa do frasco. Tiro um comprimido e o engulo com um gole de água direto do gargalo. Olho minhas feições no espelho, mas então vislumbro seu rosto na fresta da porta. Eu me assusto, deixando cair o frasco de remédios no chão. Você entra no banheiro e pega o frasco, franzindo a testa ao ler a bula.

— São os remédios pra dor do Pedro… Por quê…?

— Não são os remédios do Pedro.

— Como assim? Você… — você levanta os olhos, encarando meu reflexo no espelho.

— Eu estou muito doente, Dalva… — Eu me viro de costas pra não olhar você. Apoio a mão no batente da porta e ando até o quarto com você me seguindo de perto.

Vou me sentar na cama e me recosto no travesseiro, respirando fundo com os olhos fechados. Você coloca o frasco de comprimidos na mesinha ao lado da cama e se senta na beirada.

— Essa é a minha última viagem… — falo, ainda com os olhos fechados, sentindo seus dedos acariciando meu rosto.

— Eu não vou deixar…

Faço um esforço e abro os olhos, respirando fundo pra segurar a dor antes de conseguir falar:

— Eu tô muito feliz de estar com você, mas agora sai daqui, por favor…

— Eu quero ficar do seu lado! — Você tenta me abraçar, mas eu a empurro com delicadeza.

— Preciso dormir um pouco, Dalva… Por favor, vai! — eu gemo entredentes. — A gente fica aqui uns dias, tá bem? Vamos ter tempo de conversar, e eu vou contar tudo pra você…

Lágrimas escorrem do seu rosto transtornado, mas eu a empurro novamente.

— Agora vai, por favor…

Não quero ver seu rosto, que transborda tanta dor. Você fica por mais alguns instantes antes de se levantar e sair do quarto.

Muito mais tarde, eu abro os olhos quando ouço a porta abrindo. Você entra no quarto meio cambaleante, e eu levanto meus braços pra você se aninhar.

— Desculpa, eu te acordei — você fala com a voz meio pastosa.

— Não tem problema…

Você deita no meu colo e me conta como foi a noite. Diz que você e Ava foram a um bar de karaokê, que beberam muito e que agora você está bêbada. Eu rio de você, que me dá um tapinha, mas também ri de si mesma. A gente se beija, e, por um instante, parece que tudo vai ficar bem. A luz azulada da lua entra pelas cortinas entreabertas, iluminando seu rosto, e a gente se acaricia e se ama e conversa sobre a vida, sobre nossos desejos, sobre o tempo e sobre coisas que importam muito pouco agora que o mundo caminha pro fim, e eu também.

— E se a gente fosse com a Ava? Talvez lá do outro lado você tivesse alguma chance…

— Não.

Você levanta a cabeça do meu ombro pra me encarar.

— Por que não, Ceci?

— Eu continuo sem acreditar nessa história, Dalva. Não existe milagre, e também não quero que você fale com ela sobre a gravidade da minha situação.

Seus olhos permanecem em mim, esperando por uma solução que não existe. Você se dá por vencida e volta a deitar a cabeça em meu ombro. Acaricio seus cabelos cacheados e molhados de suor.

— Sabe, Dalva, a Ava me disse que, no mundo dela, as pessoas se dedicam à criação da vida em todos os sentidos. — Eu enrolo um dos seus cachos no meu dedo e sinto o cheiro de suor misturado com o shampoo que você usa. Continuo falando pra não me engasgar com a emoção que sobe pela garganta: — Ela me disse que essa é a nossa diferença. A nossa humanidade escolheu a morte, e isso fez com que a gente adoecesse como espécie, e é por isso que tudo está desmoronando. Às vezes, ela acerta no que diz, mas esse outro mundo não existe, meu amor. Esse tempo que a gente vive aqui é só o que nos resta.

Dessa vez, meu corpo demora pra se recuperar. As crises estão cada vez mais frequentes, e o remédio quase não faz mais efeito — os momentos sem dor escasseiam, espremidos entre longos períodos de agonia. Decidimos então ficar mais alguns dias em Puerto Deseado até que eu consiga me estabilizar um pouco pra seguir viagem. Ava não está muito feliz pela demora, mas respeita o pedido.

Você está apavorada, eu sei, embora você ainda não saiba qual é o meu desejo e nem como vou realizá-lo. Apesar de tudo e das dores frequentes, temos alguns momentos agradáveis. Passeamos na praia, mesmo com o tempo frio que faz mais ao sul do continente, comemos e bebemos bem e nos amamos quando é possível.

Na última manhã que passamos na praia, Ava caminha pela beira do mar, olhando os navios atracados no porto. Estou deitada em seu colo, e você acaricia meus cabelos.

— Você tá bem?

— Tô sim, sem dor, o remédio já fez efeito — eu murmuro e respiro fundo. Olho pra cima e vejo seu rosto recortado contra o azul frio do céu. — Você me fez muito feliz nesses dias aqui.

Você abaixa a cabeça e olha pra mim. Levanto a mão e seguro um dos seus cachos entre os dedos.

— Você também me fez muito feliz, Ceci — você diz, abaixando-se pra me dar um beijo.

Eu me sento. Você me abraça, e eu encosto a cabeça no seu ombro. Nós ficamos olhando o mar e observando Ava caminhar pela praia. Ela se vira e acena pra gente. O corpo da garota é uma silhueta escura contra a luz do sol que ilumina o porto e os navios, refletindo feito ouro líquido em pontos brilhantes lançados no ar frio.

Nós duas choramos em silêncio…

Você não sabe ainda, mas nosso tempo acabou, Dalva, me perdoa… Eu sei que não tenho esse direito de arrastar você pra minha morte. Eu sei, mas, porra, a decisão é minha, e eu escolhi acabar com a dor.

Hoje eu vou sozinha pros Miradores de Darwin, e esse relato do nosso amor é a minha despedida.

Por favor, meu amor, vá e viva! Se precisar e quiser ir com Ava, siga adiante e me esqueça. Uma nova vida te espera, então viva, Dalva!

Dalva acorda assustada do cochilo depois do almoço. Em um sobressalto, ela dá um pulo da cama, olhando o ambiente ao redor. Ela está sozinha no quarto. Dalva vê o caderno de Cecília aberto sobre a mesa e se aproxima dele, sem saber por que suas mãos tremem ao segurá-lo. Lê a primeira frase.

“Pra você, meu amor.

Viva e me perdoe, se puder.”

Lágrimas escorrem pelo rosto de Dalva, que abre a boca e grita.

 

É, Cecília, agora a história é minha, e é uma história de esperança. É óbvio que você ficou puta. As coisas não aconteceram como você previu na sua longa carta de despedida. Você queria acabar com tudo no alto dos Miradores de Darwin, do jeito que planejou, mas eu e Ava impedimos.

Evidente que só li o fim da carta, onde você mencionava os Miradores de Darwin. Corri até o quarto de Ava, esmurrando a porta. Nós voamos com o carro pra lá, meu coração querendo sair pela boca.

Na subida até o paredão, rezei pra todos os santos e orixás que conseguia lembrar, e nem reparei no pôr do sol alaranjado sobre as águas rasas do rio quase seco lá embaixo. Só depois que te surpreendi, peguei seus remédios de dor e os joguei pra Ava segundos antes de ser tarde demais foi que percebi que era o mesmo lugar daquele folheto que você me mostrou na sua casa. Será que você já tinha planejado tudo desde aquele dia? Não sei, mas prefiro pensar que não.

Eu abracei você, que se debatia e queria se atirar no abismo, mas não deixei. Seguramos você e esperamos que se acalmasse enquanto o sol descia, avermelhando tudo no alto daquela desolação crua e bela.

Voltamos pro hotel e dormimos enrodilhadas.

Nunca mais falamos sobre o que aconteceu.

Eu decidi que vamos com Ava, seja lá onde for esse tal lugar de onde ela veio. Se há alguma chance disso ser verdade e de existir uma cura, nós vamos buscar essa chance, porque não é a morte que nos guia no nosso mundo, Ceci, é a vida. Ava estava errada. A morte só anda ganhando todas até agora. Sei que você está cansada de lutar, mas, juntas, a gente pode virar essa chave.

No dia seguinte, nós pegamos o carro e fomos pra Ushuaia.

Você quis dirigir um pouco. Acho que queria se concentrar no trajeto e não ter que falar nada. Eu aproveitei e li a sua carta. Fiquei refletindo que você quase se foi, e me pergunto, agora, o que seria de mim sem você. Eu não sei, mas vamos continuar seguindo até onde der e estaremos juntas até o final. Essa foi a escolha que eu fiz.

Saulo está sentado no carro em um posto de combustível. Ele olha para um mapa na tela do laptop e vê uma luz piscando e se movendo. Ele liga o carro e segue pela estrada.

Debaixo do carro de Cecília, uma luz vermelha pisca.

 

Dalva estaciona o carro em Ushuaia, em frente à placa onde está escrito “Fim do Mundo”, e, por um instante, elas ficam em silêncio.

— E agora? — Dalva pergunta.

Ava pega o aparelho na mochila. Gráficos luminosos correm pela tela.

— O lugar é bem atrás da placa, mas ainda não está na hora.

Cecília olha para trás e dá um sorriso irônico.

— O que você vai fazer quando chegar a hora, Ava? Como funciona esse negócio de portal?

Ava estica o braço por cima do banco e mostra o aparelho para elas.

— Esse dispositivo é uma chave — ela explica. — Sei que você ainda não acredita, mas ele abre o portal na hora certa, nem antes nem depois.

Cecília ri, mas não fala nada.

— Você vai ter que ver com seus próprios olhos, Ceci.

Elas se assustam com uma batida no vidro da janela do lado de Dalva. Elas se viram e veem Saulo apontando a arma e fazendo sinal para que saiam do carro. As três se olham. Ava guarda o dispositivo no bolso, e elas saem.

— Onde está o seu aparelhinho, moça? — ele pergunta para Ava.

Cecília dá um passo à frente.

— Saulo, né? Ou será que é outro nome? O que você quer com a Ava? — ela pergunta para tentar distraí-lo e ganhar tempo.

Ava respira fundo e observa a placa do Fim do Mundo. Saulo percebe a inquietação da garota e segue o olhar de Ava.

— O fim do mundo… O que é tão importante nesse lugar pra vocês virem de tão longe até aqui?

Elas não respondem. Saulo faz sinal para que Cecília dê um passo para trás. Dalva implora com o olhar para que ela não faça nenhuma besteira, e Cecília se afasta. Saulo aponta a arma para Ava.

— Anda, moça, não tenho todo o tempo do mundo, me entrega o aparelhinho e vem comigo que eu deixo as suas amigas irem em paz.

Ava olha para as outras duas e abaixa a cabeça, desolada, sabendo que o tempo está acabando, mas que não pode colocar a vida de Dalva e Cecília em risco. Ela resolve entregar o dispositivo para Saulo e ir com ele pela segurança das amigas, pensando que lutou tanto para, no fim, tudo terminar dessa maneira, mas que não tem mais jeito.

Ava enfia a mão no bolso, trazendo o aparelho para fora.

— Ava, não… — Dalva fala, mas Ava balança a cabeça, decidida.

A garota levanta a mão com o dispositivo, e Saulo se aproxima para alcançá-lo.

De súbito, Cecília pega impulso e joga o próprio corpo sobre Saulo, batendo com o ombro no braço do homem. Ele se desequilibra e solta a arma, que cai ao lado dos pés de Dalva, que, por sua vez, chuta o revólver para debaixo do carro. As três aproveitam que Saulo se abaixa para tentar recuperar a arma e saem correndo na direção da placa do Fim do Mundo.

Saulo se estica e alcança o revólver debaixo do carro, mas, quando se levanta, o sol bate em seu rosto, ofuscando-o de tal forma que ele não consegue mirar. Ele corre atrás delas.

Ao chegar perto da placa, Ava aciona o aparelho, que emite um som alto e agudo. De repente, um tremor fraco se espalha pelo chão, aumentando aos poucos conforme a frequência de vibração do dispositivo também cresce. Dalva e Cecília colocam as mãos nos ouvidos, mas o som é estridente.

Ava se concentra no dispositivo, ignorando o ruído e os tremores. Um brilho muito intenso se espalha à frente delas, bem no lugar para onde Ava aponta o aparelho. Saulo se aproxima em meio aos tremores e começa a atirar. As três se encolhem enquanto as balas passam raspando, estilhaçando a placa do Fim do Mundo. Saulo para e grita, apontando a arma para Ava. Ela se vira para ele e sorri, triunfante. O chão treme com mais força, e, entre elas e Saulo, uma fenda se abre no asfalto. Saulo se desequilibra, seu pé resvala na beirada da fenda. Ele escorrega, tentando se segurar em uma árvore para não cair no buraco profundo que se escancara mais a cada momento.

A luz cresce, e o barulho se torna ainda mais ensurdecedor. Dalva e Cecília olham para Ava, mas a luz as envolve, e as três somem em meio ao brilho intenso enquanto a terra treme violentamente e uma onda gigantesca se forma no mar e corre em direção à terra.

Saulo vê a luz engolindo as mulheres e a onda se aproximando, mas não há mais tempo de se salvar. Ele grita em desespero no momento em que o paredão de água gelada desaba, levando-o para o abismo.

Silêncio… Silêncio total na calmaria que as envolve após a tormenta.

Dalva e Cecília seguem Ava, que caminha na amplidão em um espaço vazio sem fim nem começo, onde cores iridescentes se hibridizam com seus corpos. Dalva e Cecília se olham, assombradas, sem acreditar no que estão vendo.

Ava se vira e estende as duas mãos para elas, que seguram uma em cada lado.

Elas dão um passo além e já não estão mais lá.

FIM

“Três desejos para o fim do mundo” se inspira na tragédia do crime ambiental do rompimento da barragem de mineração de Fundão no estado de Minas Gerais, que também afetou Regência no Espírito Santo, onde se encontra a foz do Rio Doce, destruindo e provocando o fim do mundo para a população local. Quis contar uma história que fala de um mundo desabando sobre as vidas de mulheres mais velhas e sobre a amizade e o amor entre elas. Ao mesmo tempo, quis pensar que o mundo sempre sai do lugar quando damos um passo em outra direção.

A foto, que na verdade foi editada de modo a parecer uma ilustração, mostra uma mulher branca de cabelos cor-de-rosa presos em dois coques, um de cada lado da cabeça, óculos de aro grosso e escuro com lentes verdes e batom vermelho. O fundo, claro, tem uma mancha abstrata em azul claro.

Invento narrativas para vislumbrar universos fantásticos em diálogo com o real, nas quais gosto de criar mulheres em deslocamento nas bordas de mundos imaginários. Sou roteirista e diretora audiovisual em projetos da minha produtora Horizonte Líquido. Agora estou produzindo meu primeiro documentário de longa-metragem Garotas do Game sobre mulheres neste universo que estou amando desbravar. Além disso, quero continuar viajando, cozinhando, plantando e criando mundos fantásticos com arte e afeto. 

Dante Luiz é ilustrador, quadrinista e escreve nas horas vagas, além de trabalhar como diretor de arte da revista anglófona Strange Horizons. É o desenhista da graphic novel Crema, que será lançada em 2022 pela Dark Horse, editor da antologia As artes mágicas do Ignoto, e capista de diversas ilustrações nacionais. Mora em uma casa que mais parece um antiquário com sua esposa e pilhas intermináveis de trabalho por fazer.

A ilustração quadrada, desenhada no mesmo estilo da capa, mostra uma homem branco de cabelos castanhos curtos e arrepiados para cima. Ele está olhando para frente, mas com os olhos meio desviados. Ele veste uma camisa de um cor-de-rosa queimado, meio pastel, com um padrão vegetal verde, e óculos de grau com armação clássica estilo Ray Ban. O fundo é de um verde queimado, meio pastel, com um padrão vegetal rosa.
A foto quadrada mostra um homem de pele branca, cabelos morenos encaracolados e cavanhaque também moreno. Ele usa um óculos com armação grossa e fones de ouvido.

João Pedro “JP” Lima escreve há anos mas é daqueles que vive empacado para lançar livro. Foi co-editor e escritor para o Tempo fantásticos, ajudou a fundar a Mafagafo e paga as contas avaliando conteúdo escrito e audiovisual. Também trabalha com RPG, jogos de tabuleiro, traduz e é leitor crítico. 

Fernanda Castro escreve, traduz, prepara, revisa e mata um leão por dia como freelancer no mercado editorial. Em 2020, publicou a noveleta Lágrimas de carne pela Editora Dame Blanche. Mora em Recife, cercada de passarinhos.

A foto quadrada mostra uma mulher branca, de cabelos morenos e encaracolados cortados na altura do ombro, meio bagunçados. Ela está sorrindo levemente e olhando para o lado direito. Usa óculos de armação escura e um pouco mais grossa e está com uma camiseta vermelha, sentada em um sofá.
A foto quadrada mostra uma mulher de pele negra, sorrindo, com os braços apoiados sobre uma cerca. Ela tem os cabelos morenos trançados, e usa uma bata estampada em tons de laranja e amarelo. Ela também usa um colar com pedras azuis, maquiagem leve, e sorri, olhando para a câmera.
Foto de Rafael Ferreira

Lorrane Fortunato é escritora, revisora e criadora do Resistência Afroliterária, um portal focado em divulgar livros escritos por pessoas negras. É autora de “A rota que me levou a você” e “As promessas que você me fez”. Também participa das coletâneas “Confetes e serpentinas”, com “As fantasias que eu criei de você” e de “Flores ao mar” com “Lírio”, todos publicados na Amazon

Juliana Pinho é uma historiadora e ilustradora Recifense apaixonada por arte e literatura. Atualmente mora nos Estados Unidos com sua esposa, dedicando a parte do cérebro que não foi engolida pela pandemia ou pelo processo de imigração à leitura e à produção artística.

A ilustração quadrada mostra dois passarinhos: um amarelinho, com um ramo verde na boca, e outro laranja, com um chapeuzinho de bruxa. Eles estão contra um fundo meio rosa.