A capa, cujas cores principais são verde escuro, vermelho queimado e amarelo, mostra uma cobra enorme, vermelha com pintas verdes, se enrolando ao redor de algumas construções de Belém. Em cima e embaixo há sugestões de folhagens. Acima da capa há a logo da Mafagafo em amarelo. O título ("Debaixo dos nossos pés"), também em amarelo, sobre um círculo verde, aparece abaixo do nome da revista, à direita. Nessa mesma bola, há as informações "Escrito por Maria Eloise Albuquerque" e "Editado por Dante Luiz). Na base da capa, consta a informação "Ilustração: Maria Carvalho". No canto superior esquerdo há o logo da Mafagafo com a informação: Temporada 004, Dezembro de 2021.

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O TERCEIRO TREMOR

Pela janela do apartamento abandonado no terceiro andar de um edifício colado ao antigo Shopping São Brás, Luiza via o que restara de Belém depois do primeiro tremor. Passara a manhã vasculhando o prédio à procura de mantimentos, pois embora a PM estivesse entregando suprimentos para a população regularmente, nunca era o suficiente. O prefeito da cidade, conhecido como “Nada”, parecia fazer questão de sufocar o povo com migalhas.

O bairro de São Brás, apesar da devastação, continuava de pé. Não se podia dizer o mesmo do Centro Histórico: Cidade Velha, Estação das Docas, avenida Presidente Vargas… Luiza mal sabia a extensão da destruição, mas parte da história de Belém agora jazia nas águas da Baía do Guajará.

Ela desceu do prédio e foi caminhando pelas calçadas pouco sombreadas da Almirante Barroso. O mormaço úmido de fim de janeiro ameaçava chuva forte na tarde que entrava, mas nos últimos tempos o clima não era uma certeza. Nada mais era certeza. Sentiu o peito apertar ao lembrar de Liz e Valério. O ar abafado e quente por um momento lhe remeteu à procissão do Círio de Nazaré, que eles adoravam acompanhar pessoalmente. Valério era o mais religioso e seguia a peregrinação orando e cantando, o rosto sempre sorridente e corado de calor sob o suor. Já Liz aproveitava o momento do almoço tradicional para contar histórias e relembrar a famosa lenda sobre a cobra adormecida nos subterrâneos do trajeto da procissão.

Luiza respirou fundo para conter as lágrimas de saudade e acelerou o passo para chegar ao abrigo no Teatro do Sesi, onde estava agrupada com os amigos desde o primeiro tremor. O espaço estava fechado havia anos, malconservado devido a cortes de gastos, mas era seguro o suficiente — a maioria das pessoas buscava moradias tradicionais em vez de espaços recreativos para se abrigar. Ricardo e Penélope estavam terminando de cozinhar e Edgar organizava alguns itens recém-adquiridos. Ela os cumprimentou brevemente e se sentou num canto, sobre uma cama improvisada com um colchão. Esvaziou a mochila e separou o que achara de útil — alguns alimentos perto de vencer, cordas de varal e garrafas. Comeram reunidos, como faziam quase todos os dias. Retomavam assuntos antigos, da época da escola e faculdade, e imaginavam o futuro longe dali, com casas de praia, apartamentos confortáveis e carreiras no auge. Penélope sempre ia longe em suas fantasias onde se via como atriz e roteirista internacional. Enrolavam de propósito nas conversas durante as refeições, pois depois sempre tinha mais alguma coisa para resolver na rua — o presente já tomava tempo demais e eles precisavam manter algum fiapo de esperança, precisavam de um motivo para sorrir.

Terminavam de estômago cheio e papo em dia.

— Como conseguiu aquelas facas? — Luiza perguntou a Edgar quando saíram de novo.

— Tenho uns contatos — respondeu ele, secando o suor que escorrera sobre a pele negra retinta.

— Ah, tá. Me engana que eu gosto.

— É sério. — Ele riu e deu um tapa na cabeça careca de Luiza. — Conheço umas pessoas da época do serviço militar e faço uns favores. Os soldados têm coisa demais estocada. E como ninguém além deles faz contagem daquilo, os de cima não ficam sabendo. É bom ter alguns deles por perto.

— Só não inventa de confiar demais que tu te lasca.

— Certo. — Edgar riu de novo e ajustou o alarme no relógio digital. — Vou encontrar mais um grupo agora. Já decidiu se vai com a gente?

— Ainda tô vendo isso… Mas qualquer coisa apareço hoje de curiosa.

Ela se virou de costas para partir.

— Ei Lu! — chamou ele, jogando algo em sua direção. Luiza se virou a tempo de agarrar o peso no ar: um canivete militar travado. — Toma cuidado.

Eles se separaram na esquina da travessa Mauriti com a avenida Almirante Barroso. Os galhos das árvores floridas de uma casa antiga tomavam quase metade da rua. Um sereno caía insistente e levantava o cheiro forte do asfalto aquecido pelo sol. Poucas pessoas se aventuravam pelas ruas com um clima daqueles sem necessidade. Edgar foi fazer seus favores em troca de equipamentos. Luiza foi mais uma vez vasculhar os escombros do bairro de Nazaré.

Girava o canivete pela argola, pensativa. Tinha conseguido encontrar seu prédio alguns dias antes. Talvez agora fosse capaz de entrar no andar em que costumava morar. Quem sabe até achar o corpo de alguém para se despedir direito. Era o mínimo, uma vez que não estivera presente no dia em que tudo aconteceu.

Luiza trabalhava como instrutora de escalada numa academia e havia conseguido uma folga naquele dia 29 de outubro. Comemorava com os amigos fazendo compras no Shopping Bosque Grão Pará, na avenida Centenário, e aproveitou para raspar a cabeça na máquina zero, planejando surpreender Liz e Valério — como os dois estariam ocupados, ficara acertado que teriam um jantar romântico em casa para comemorar seus vinte e três anos.

Mas a reunião nunca acontecera.

Naquela tarde, houvera o primeiro e mais violento tremor de terra. Mesmo os pontos mais distantes do epicentro da catástrofe tinham sentido ao menos um abalo incomum. As águas da baía haviam se agitado e inundado a área à beira do rio e os bairros próximos. Todos que tinham carros haviam partido da cidade. Muitos ônibus tinham partido com quem conseguira pagar para entrar. O resto do povo… era apenas o resto. Ninguém sabia exatamente quantas pessoas haviam morrido quando o monstro se levantara… Mas Luiza desmaiara ao saber que seus namorados queriam lhe fazer uma surpresa e a esperavam em casa.

Na avenida Nazaré. Ao lado da cauda da cobra gigante.

O sereno finalmente cessara, deixando o chão úmido e até liso em alguns pontos. Luiza pulou algumas pedras de concreto do que restava de calçada. O cheiro de terra, lama e esgoto ficava cada vez mais fortes. Podia ver os destroços do seu prédio antes da esquina da 14 de Março com a avenida Nazaré. Tropeçou num pedaço de encanamento solto. Equilibrou-se praguejando. É ruim d’eu voltar agora! Seguiu em frente por mais uns passos e caiu de novo. Não era ela o problema.

O chão estava tremendo. O terceiro tremor. O pânico tomou seu peito e suas pernas travaram. Um som intenso de entulho sendo arrastado ficou mais forte. Ela começou a correr o mais rápido que conseguia, saltando pelos pedaços de chão. Quando voltou a pisar em terra firme, olhou para trás.

Sentiu a pressão cair quando viu as escamas escuras brilhando verde-acinzentadas e úmidas, empurrando árvores, paredes de prédios e blocos de concreto enquanto rastejava pela avenida. A língua bifurcada, grossa como um galho de mangueira, tremulou escapando da enorme cabeça serpentina com a altura de um andar de apartamento. A causadora de toda aquela destruição: Boiuna.

Suando frio, Luiza correu de volta até a José Malcher, seguindo pela direita, em direção à São Braz. Boiuna continuou na transversal, pela 14 de Março, destruindo tudo que atingia com o corpo. O chão desapareceu debaixo dos pés de Luiza, e ela precisou saltar para o que restara de terra firme. Olhou para trás e viu água e lama correrem pelo caminho aberto pela serpente. Levantou-se, ignorando os arranhões nas mãos e no rosto, e correu mais do que os pulmões e as pernas aguentavam.

O bairro de Nazaré estava afundando mais ainda. Com ele, iria também o Umarizal. Não demoraria para a cidade toda se tornar um lamaçal de esgoto e entulho.

Chegou na Mauriti e viu Edgar subindo a travessa em sua direção. Várias outras pessoas corriam com mochilas e trouxas pela Almirante Barroso, seguindo para a saída da cidade.

— Ela tá chegando perto, Edgar! — Luiza gritou, ofegante.

— A gente tem que adiantar isso o máximo possível. E quem quiser ir embora daqui de uma vez deve conseguir chegar pelo menos em Castanhal em uns dois dias de caminhada deve. Não é impossível.

Luiza apertou os lábios, entendendo exatamente o que ele queria dizer.

O chão já tinha parado de tremer, mas ninguém diminuiu a velocidade. Chegaram ao Sesi e encontraram Penélope e Ricardo chorando abraçados nas escadas, as mochilas arrumadas. Ricardo largou a amiga e saltou sobre Edgar, beijando-o ansioso.

— Amor, vamos embora! Por favor, vamos embora daqui! — Ricardo gritava, derramando lágrimas no rosto do marido.

— Pê? Penélope! — Luiza chamava. — Mana, eu tô aqui, fala comigo!

Por mais que Luiza sacudisse a amiga, não havia resposta. Penélope estava trêmula, as lágrimas caindo sem parar. Seus olhos arregalados indicavam que ela não estava mais ali, mas a hiperventilação dizia o contrário.

— Ela tá tendo aquele ataque de novo, Edgar.

— De novo isso. Ricardo, meu bem… — Edgar o afastou segurando seu rosto pálido com carinho. — Presta atenção: lembra o que fizeste que deu certo no mês passado? Consegue fazer de novo?

Ricardo assentiu. Podia estar apavorado, mas ainda estava ali, no presente. Penélope não: perdera-se em suas memórias mais dolorosas, de quando vivia com os pais numa cidade do interior. Ricardo se aproximou dela e segurou firme seu rosto, tentando fazê-la focar o olhar no dele.

— Pê, respira fundo — começou, limpando as lágrimas dela. — Você tá com seus amigos. Ricardo, Edgar e Luiza.

— Ri… Rick… — Ela encontrou os olhos dele e não tentou se desvencilhar. Continuava trêmula.

— Respira, amiga. Sabe onde a gente tá?

Penélope puxava o ar com dificuldade, mas tentava ouvir e entender as palavras de Ricardo.

— Estamos em Belém, lembra? Você mora aqui agora. Na capital.

Penélope olhou ao redor e encontrou os outros dois amigos observando ansiosos. Estava de volta, cercada de pessoas que a amavam e respeitavam. Não precisava se esconder deles.

Com a amiga mais calma, os quatro se focaram em arrumar as coisas no abrigo. Não tinham muito, e talvez tivessem que se separar em breve. Ali não era mais seguro, não queriam ver Penélope naquele estado outra vez. Era melhor que saíssem da cidade, mas não tocaram no assunto. Depois da organização, jantaram algo simples. Edgar e Ricardo se despediram e saíram do abrigo antes de escurecer.

O LEVANTE

— Lu? Tu ainda vais lá? — Um resmungo surpreendeu Luiza, que se arrumava com cautela. — Era pra ter ido mais cedo com os meninos então.

— Tu fingiu que tava dormindo, Pê?

— Não consegui dormir — Penélope respondeu, afastando o lençol. — Tava matutando se ia ou não pra essa reunião.

— Tô indo mais pra saber quais são os planos. Mas já tá decidido que vamos embora ao amanhecer, né?

— O amanhã é um mistério. Essa reunião pode mudar muita coisa, e não vou te deixar ir sozinha.

Fazia tempo que Luiza não saía à noite, então por precaução levou o canivete que Edgar havia lhe dado. Penélope tinha um soco-inglês desde que chegara a Belém para se defender. Vai que eu encontro algum transfóbico por aí, pensava, mas felizmente nunca o usara.

Na semana anterior, enquanto as duas verificavam em seus pacotes o que mais fora racionado pelo prefeito, Ricardo se aproximara casualmente e se sentara ao lado delas no gramado malcuidado do Hangar, na avenida Dr. Freitas. Parecia incomodado com algo, os olhos cor de mel observando o ambiente. Como Edgar estava longe, falando com outro grupo, elas tinham imaginado que uma discussão de casal poderia ser o motivo do abatimento. O amigo negara e se apressara em explicar:

— Estamos reunindo pessoal de novo.

— Como assim? — Penélope indagara. — Quer dizer o…?

— Qualquer um que queira fazer algo antes que esse prefeito nos mate de fome. Vamos nos reunir no Bosque da Almirante na semana que vem, às oito da noite. Se resolverem ir, digam que a “Vitória” mandou vocês. — Ricardo falava baixo e sem encarar, não tinha o costume de impor a voz. Depois dera um pequeno sorriso e olhara para as amigas. — Espero que estejam com a gente, mas vou entender se escolherem um caminho mais seguro.

Luiza e Penélope tinham ficado um pouco desconfiadas a princípio, mas o que tinham a perder? Ficava cada vez mais difícil sobreviver naquela cidade destruída e praticamente abandonada por sua administração; o que poderia tornar a vida pior?

Era pouco mais de um quarteirão do Sesi até o Bosque Rodrigues Alves, mas ainda assim precisavam ter cuidado. O elevado que ligava a Doutor Freitas à Almirante Barroso havia desabado durante o primeiro tremor; os destroços atravancavam o caminho com blocos de concreto e barras de aço de sustentação formando uma barreira que bloqueava parte das duas avenidas. Devido a danos e cortes na iluminação pública, tinha se tornado ainda mais perigoso transitar por Belém à noite, sem enxergar direito onde se pisava ou se havia alguém à espreita. Gritos de socorro eram comuns de madrugada; mais uma disputa por recursos e abrigos seguros. Depois de todas as mortes em desabamentos no centro da cidade, ninguém se arriscava a ficar num prédio de mais de dois andares.

Antes de atravessarem a Almirante, diante da abandonada Delegacia de Polícia do Marco, as duas perceberam o movimento incomum, com mais gente até do que costumava circular durante o dia. Na entrada do Bosque, encostada num dos portões, havia uma mulher disfarçada de indigente perguntando quem havia falado para irem ali, a voz rouca extremamente baixa e soturna. Responderam “Vitória”, e ela apenas assentiu com a cabeça, sem mostrar o rosto.

Dentro do Bosque, a luz do luar quase não atravessava as copas das inúmeras árvores. Apenas uma discreta iluminação vinda de luminárias sem fio indicava o caminho a ser seguido, à direita; o restante do espaço era quase um breu.

Seguiram com cuidado para não tropeçar ou fazer muito barulho, pois cada passo dado agitava as folhas secas acumuladas pela trilha. Mais adiante era possível ouvir um burburinho, e elas logo encontraram o Coreto Chinês, um monumento antigo e malcuidado — como muitos outros, fosse no Bosque ou espalhados pelo restante de Belém.

No meio da escuridão e rodeadas por cerca de cem pessoas, não era possível ver a pintura vermelha e amarela gasta e manchada de limo. Em uma das colunas que sustentavam o teto anguloso, porém, havia mais uma fonte de luz; também fraca, apenas para permitir a visão, pois não podiam confiar nas sombras densas para ocultar completamente a aglomeração. Já era preocupante o som das inúmeras folhas que estalavam com a movimentação.

Às nove horas, cerca de quinze pessoas subiram no Coreto. Luiza logo reconheceu Edgar e Ricardo entre elas. Edgar tomou a frente do grupo e se pronunciou:

— Todos aqui foram chamados por um de nós. Alguns nos conhecem pessoalmente, outros apenas pelo convite. Sejam bem-vindos, bem-vindas e bem-vindes ao Levante. Nós somos a Vitória e, com o apoio de vocês, seremos todos a Vitória do Levante. — Ele deu um sinal para uma garota de dreads verdes que tomou a fala. A pele negra parecia ter o mesmo tom da de Luiza, menos retinta que a de Edgar.

— Acho que todos vocês lembram de como foi a gestão do Governo Municipal nos últimos quatro anos. Praticamente inexistente. Apenas no ano passado, quando seriam as eleições municipais, é que o prefeito voltou a se mexer. Desde antes dessa cobra destruir a cidade, o Nada nos ignorava. Belém tinha um centro histórico, monumentos e espaços importantes que deveriam ser bem mantidos e restaurados. Ruas virando rios insalubres a cada estação chuvosa. Pessoas necessitadas dormindo sob o sereno. Mas, claro, ele desapareceu depois de ser reeleito. Passou três anos indiferente à degradação da cidade e da população.

— No meio do ano passado, o Nada transferiu a Prefeitura e outros órgãos para edifícios menores próximos ao Entroncamento, que é o lugar mais seguro dentro de Belém nesse momento — disse Edgar. — Por “coincidência”, agora aquela área é a que tem iluminação e policiamento mais eficientes, enquanto nós… Estamos por nós mesmos aqui. Aposto que vocês já foram vítimas ou testemunhas, ou pelo menos ouviram sobre assaltos e assassinatos cometidos por pessoas que não tinham mais o que comer. O desespero muitas vezes faz as pessoas colocarem a sobrevivência acima da ética.

Luiza mordeu o lábio ao ouvir a frase. Lembrou do que Ricardo dissera sobre “caminho mais seguro”. O que estão tramando?, indagou em silêncio.

— Notaram que nesses três meses — a moça de dreads voltou a falar — nem o Governo Federal e nem mesmo o Governo do Estado se atreveram a mover um dedo pra nos ajudar? Acham normal que eles não saibam de nada esse tempo todo? Que ninguém tenha informado que uma cobra gigantesca está afundando Belém?

 Três meses. Não era pouco tempo. Mesmo que tivessem ido a pé até Brasília dizer o que acontecera, já teria dado tempo de pelo menos conseguir reforços e evacuar parte da população restante para cidades vizinhas.

— Por isso estamos planejando um assalto à Prefeitura — continuou a garota. Um brado de surpresa se alastrou pelo público, mas em poucos segundos o silêncio voltou. O coração de Luiza se animou. — Sabemos que eles têm transporte terrestre suficiente pra remover pelo menos um quarto do que restou de nós de uma vez, e vamos tomar esses veículos para esse fim.

— Mas, claro… — Ricardo tomou a frente de repente, massageando a nuca meio constrangido enquanto encarava a multidão. — O lugar não vai estar mal protegido. Fora que é lá que também guardam os suprimentos que distribuem. Então vamos antes ao arsenal nos munir de armas e coletes, e na mesma noite vamos render a Prefeitura.

Edgar tocou sua mão, pedindo a palavra de volta. Ricardo concordou e deu um passo para trás.

— E se algo der errado, o plano B é tomar Nádio Couto como refém e tentar uma comunicação com os governos Estadual e Federal. Sei que parece uma medida muito drástica, mas vejam nossa situação! Se a gente depender desse Nada, ele nos deixa passando fome, sem comunicação e quase sem energia até que a Boiuna afunde metade da cidade. Temos que agir agora! Avisem seus companheiros que não vieram hoje, mas apenas se forem de total confiança. E se preparem para lutar, porque quando a gente estiver pronto, ninguém vai poder nos impedir.

Se concordassem com o assalto à Prefeitura, a partida de Luiza com Penélope seria adiada por tempo indeterminado. Era um plano arriscado, mas que inflamava seu desejo de justiça. Ia comentar com a amiga, mas não a encontrou. Não estava ali do seu lado o tempo todo? Começou a procurá-la entre as pessoas, indo cada vez mais fundo nas sombras. Deu a volta no Coreto e voltou ao início. Resolveu tomar o caminho da entrada e se assustou ao ver Penélope sair do meio das árvores.

— Garota, tu tá doida?

— Eu sei, foi mal! — Penélope respondeu sorridente, desviou o olhar e limpou o canto da boca. — É só que…

— Não acredito, Pê! — Luiza adivinhou. — Sua assanhada!

— Mana, o cara me chamou de grandona, elogiou meu cabelo e ficou apertando meus dedos, tu sabes que adoro isso. Aliás… — Ela olhou em volta, estranhando. — Ele tava bem atrás de mim.

Luiza sentiu um arrepio e segurou forte a mão de Penélope.

— Espera, Pê. Por aqui.

Escondidas num nicho de árvores, elas seguiram as duas silhuetas que se afastavam da multidão, saindo na trilha coberta de folhas. Atravessaram rápido para o próximo nicho e se esconderam numa ruína de pedra. Luiza fez sinal de silêncio para Penélope e ambas sacaram as armas. Ouviram o farfalhar se aproximando. Algo pesado era arrastado e colocado com cuidado dentro da água.

— Foi por pouco. E o traveco? — um dos homens perguntou.

— Saiu rápido. Acho que nem viu a gente.

Penélope respirou fundo e tapou a própria boca.

— Melhor assim. Quanto a essa reunião, parece só uma revolta mesmo.

— E o Couto achando que tinham vazado informação… — disse o homem. Luiza ouviu e engoliu em seco. — Ninguém nem lembrava dessa lenda, quanto mais de detalhes de como derrotar o bicho.

— Pior que não é difícil descobrir se olhar as lendas antigas.

Os livros!, Luiza se lembrou.

Muitos livros tinham sido confiscados nos últimos anos. Algumas escolas municipais haviam fechado antes do ataque, e o acervo das maiores bibliotecas e livrarias fora “protegido” pela Prefeitura. Somente leituras leves e “não-subversivas” eram liberadas ao público, mas quem ligaria para livros quando a falta de comida e energia era o que mais preocupava?

— Eu dei uma lida por alto e vi que tem várias versões. Umas até se misturam, quase que não entendo.

— Só a do Honorato conta como desfazer.

A cabeça de Luiza doeu.

Ela conhecia aquele nome.

— Ah tá. E quando chegar a hora, é o frouxo do Couto é que vai desfazer o feitiço?

“Quando chegar a hora?”. Já faz três meses desde o primeiro ataque, o prefeito ainda vai esperar mais? Esse maldito sabia como deter a cobra e não fez nada? Não queria informação vazada?

Luiza encarou Penélope. As duas sabiam o que tinham que fazer.

— O leso quer bancar o soldado de Cametá — respondeu um dos homens. — Bora rasgar logo daqui. Quem sabe peguem eles na saída dessa festinha.

Cobra-Grande. Feitiço. Soldado de Cametá. Honorato… Qual versão é essa?

Mas Luiza não tinha tempo para pensar naquilo. Esperou ver um deles de costas para saltar com o canivete em sua garganta. O homem tentou se soltar e se feriu sozinho. Luiza não teve alternativa a não ser terminar o serviço, tapando a boca que cuspia sangue. Movia a lâmina para abrir mais a ferida e estocava algumas vezes, ignorando os puxões na blusa.

— Mas que porr…! — O outro foi para cima de Luiza. Penélope acordou do choque e se moveu quase sem pensar, acertando-o com o soco-inglês. No chão, ficou por cima do homem menor que ela, golpeando e fazendo sangue espirrar antes de sufocá-lo com as próprias mãos. — Espera, não me matem! O que vocês querem?

Penélope estava congelada de medo. Luiza engoliu em seco. Revistou rapidamente o cadáver fresco e encontrou a faca que eles tinham acabado de usar. Atirou-a no laguinho próximo e abandonou o corpo. Limpou o sangue que espirrara em seu rosto, aproximou-se do outro espião e segurou suas mãos para cima, olhando-o de ponta cabeça.

— Eu sei que tu não queres que o pessoal da “festinha” te pegue — debochou. — Como se desfaz o feitiço da Boiuna?

— Vocês tão brincando, né?

— Aperta, Pê.

Penélope não sentia mais o coração batendo. Sentia apenas o pulsar sob os dedos.

— Nã… Espe…

— Como se desfaz a porra do feitiço?

— Leite… e sangue…

— Para, Pê — A voz de Luiza cortava mais que o canivete. — Explique melhor.

— Me deixa ir logo, seu traveco — o homem pediu e sentiu o ar faltar outra vez.

— Palavras erradas, moço — Penélope avisou entredentes, sentindo o peito queimar.

— Eu conto…

Luiza soprou um riso.

— Então conta. — E tocou o ombro da amiga para trazê-la de volta.

O sujeito mal acreditava que estava sendo rendido por aquelas duas. Iria morrer de vergonha depois, quando contasse aos colegas, mas preferia não morrer naquele momento.

— Tem que ferir a cabeça da cobra até sangrar — ele revelou. — E também dar leite pra ela. É isso que diz a lenda.

“Os irmãos Honorato e Maria Caninana”… As palavras impressas nas páginas amareladas de um livro antigo, esquecido em um canto da biblioteca, clarearam na memória das duas. Quase sorrindo, Luiza respirou fundo para voltar ao presente.

— Jura pela tua vidinha que é isso que sabes?

— Juro por Deus.

— Eu disse pela tua vidinha.

— Juro, caralho!

— Pê — chamou. — Afasta as mãos. Não precisa olhar.

Luiza ergueu o canivete acima do homem. O sangue do colega morto gotejou sobre a testa do refém. O homem se debateu, tentando se libertar. Penélope mordeu o lábio e fechou os olhos. Luiza deu o primeiro golpe na garganta do espião. Suas pernas se agitaram em espasmos. Luiza continuou, girando e estocando a lâmina. O sangue verteu ensopando as mãos de ambas até o homem parar de se mexer.

Elas arrastaram os corpos para dentro da ruína de pedra. Limparam as mãos, o rosto e as armas do jeito que conseguiram. Embolaram as blusas de capuz para esconder as manchas e ficaram apenas de camiseta. Cerca de vinte minutos depois, a concentração começou a dispersar — a reunião finalmente acabara. Deram um jeito de se misturar e saíram do Bosque fora da vista de Edgar e Ricardo, sentindo o peito mais pesado que a cauda da Boiuna.

Caminharam quase sem olhar para trás, tentando esconder as mãos trêmulas e controlar a respiração pesada mesmo sem ninguém próximo para perceber.

Penélope caiu no chão abraçada ao corpo ao entrar no hall do Sesi.

— Porra, eu… eu… Caralho, a gente matou dois homens, Lu! Por que a gente fez isso, merda?

— Não pensei direito, só… — Luiza sentia o sangue gelado. — Eles não podiam denunciar o Levante.

— O que eles poderiam fazer, Lu? Dispersar? Prender o pessoal?

— Talvez mais que isso.

— O quê?

— Tu lembra dos opositores dele que desapareceram no início do ano passado. Dos “acidentes” e “assaltos”. O Nádio não liga se mais da cidade for pra lama, se mais gente morrer. Por que não daria cabo de alguns rebeldes por ele mesmo num momento como esse? — Luiza declarou para Penélope, que estava chocada demais para pensar em sair do chão. — Bom, pelo menos agora também sabemos o que fazer com a cobra. Vamos, Pê.

Penélope mal conseguia piscar.

— Tu tá doida? Comeu manga com leite?

— Que foi já, lesa?

— Tu vais atrás dessa cobra gigante pra testar uma lenda que ouviu de uns pau mandado do prefeito?

— Há três meses, todo mundo achava que a Cobra-Grande era só lenda, e agora Belém tá ruindo debaixo dos nossos pés. Eu sei o que preciso fazer, e vou fazer, Pê. Mas vou precisar de ajuda.

DUAS COBRAS

A manhã chuvosa atrasou por algumas horas o encontro com Edgar e Ricardo, mas enfim Luiza e Penélope saíram. O sol agora castigava a cabeça de ambas como se pouco antes não estivessem se agasalhando do frio que vinha pelas fissuras nas paredes e portas do teatro.

— Honorato e Maria Caninana — Penélope comentou, relembrando a explicação da amiga. — Devo ter ouvido essa história quando era criança, nem lembrava mais.

— Eu ouvi criança também. E acho que li de novo num livrinho muito velho de lendas amazônicas, na biblioteca do Centur, com a Liz e o Val… — Luiza se interrompeu. Não esperava que dizer o nome deles em voz alta doeria tanto. As lágrimas escaparam antes que percebesse que estavam vindo.

— Ai, mana, sinto muito.

Luiza não respondeu logo, limpando o rosto com pressa. Já haviam se passado três meses; não era como se fosse fácil superar a morte dos namorados, mas ela sequer tivera tempo de encontrar os corpos. As camisetas favoritas, os sapatos gastos, os livros lidos e não lidos, as cobertas que compartilharam, os filmes que viam juntos em várias noites alegres — tudo estava perdido para sempre no meio dos escombros e da lama. Precisou de uns momentos para se recuperar.

— Tudo bem, eu tô legal — fungou. — Pena que essa versão das cobras gêmeas não se espalha tanto, a gente teria pensado numa saída bem antes.

— Verdade. Falam mais da cobra dormindo embaixo de Belém.

Luiza riu com saudade. Valério adorava o Círio de Nazaré. Liz adorava histórias de monstros gigantes. Muitas pessoas em Belém, especialmente em outubro, lembravam-se da lenda da cobra gigante que seria mantida adormecida pela peregrinação anual da Imagem Santa.

Mesmo com as desgraças dos últimos anos, o povo mantivera a fé e a admiração pela festa cultural, e a procissão ocorria normalmente — mas aquilo não fora suficiente para impedir o despertar.

O Bosque Rodrigues Alves pareceria completamente abandonado não fossem pelas correntes novas selando o portão enferrujado. Embora a calçada estivesse mais suja de lama e folhas, a entrada não parecia tão diferente do que era antes da cobra atacar. Na verdade, Luiza pensou enquanto olhava para dentro, o fedor de urina nos bancos colados às muretas não estava tão forte. Era comum passar por ali a qualquer hora do dia e torcer o nariz.

Penélope vigiava a avenida, mas via apenas algumas pessoas com trouxas e mochilas indo embora a pé. Luiza apertou os olhos, sem conseguir enxergar ninguém ali dentro. Podiam facilmente pular a mureta, mas não queria que fossem confundidas com espiãs.

— Ô de casa! — gritou com a cara enfiada na grade.

Aguardou uma resposta, mas ouviu algo que parecia um suspiro e se assustou. Havia alguma movimentação na cabine da bilheteria à sua direita. Tentou olhar por uma minúscula janela gradeada ao lado do portão, mas, com a porta de atendimento fechada, a cabine estava escura demais para distinguir qualquer coisa.

— Tem alguém aí…? — perguntou, forçando os olhos na escuridão.

— Tem, sim — uma voz rouca ressoou arrastada de dentro da pequena cabine. Luiza quase caiu para trás. Era a indigente.

— Caralho, que susto!

— Lu? — Penélope veio rápido para perto da amiga.

— Desculpe! — Luiza disse para quem estava na cabine e voltou a se aproximar. — Falaste de repente, e não consigo te ver daqui.

— É melhor que não veja — a voz respondeu. Parecia estar sentada logo abaixo da janelinha gradeada.

— Já que prefere assim, só me responda: o Edgar tá aí? Posso falar com ele? Ou com o Ric…

A mulher deu uma risada, e Luiza se arrepiou.

— Ele tá aqui, na Administração, à direita.

— Vai deixar a gente entrar? — Penélope perguntou.

Ela deu um longo suspiro. Ficou em silêncio por uns segundos e saiu pela porta de trás da bilheteria. Em vez dos lençóis e trapos da noite anterior, usava um sobretudo marrom com um capuz que cobria quase todo seu rosto. O pouco que sobrava era escondido pela máscara improvisada com uma bandana. Luiza percebeu os dedos ansiosos soltando as correntes.

— Tá tudo bem? — perguntou.

— Tá sim — a mulher respondeu, assentindo. Deu passagem às duas e enrolou novamente as correntes no portão. — Esperem aqui atrás um instante — orientou, apontando a direção e correndo de volta para a cabine.

Luiza e Penélope se olharam desconfiadas e obedeceram. “Aqui atrás” era um pouco distante da bilheteria. Ouviram baixinho um chiado de rádio — ela estava falando com alguém de dentro. Não precisaram esperar muito para saber do que se tratava. O farfalhar das folhas pelo chão se aproximava, e logo chegou a moça de dreads que tinham visto na noite anterior. Estava armada com uma pistola por baixo da jaqueta, dizendo que ia levar as amigas em segurança até Edgar. A mulher rouca voltou a ficar em silêncio em seu posto, como uma visagem.

Seguiram pela direita. Passaram pelo Coreto e por um laguinho rodeado de pedras. As placas de orientação e de indicação de monumentos e espécies de árvores estavam completamente enferrujadas, quase ilegíveis. O Museu Emílio Goeldi deve estar nas mesmas condições, senão pior, Luiza refletiu, lembrando que o Museu era bem mais próximo do lugar de onde a Boiuna emergira. Ao fim da curta caminhada, tiveram um vislumbre da edificação de dois andares, o Chalé de Ferro, por entre as árvores frondosas que ainda pingavam água da chuva da manhã.

— Aqui, o Edgar vem já, já.

A guia abriu a porta de madeira e as janelas de vidro para as duas entrarem na pequena sala, na antiga Administração do Bosque. Ou pelo menos parecia pequena com as estantes repletas de livros e documentos que quase não davam espaço para passar. Os membros do Levante pareciam saber da importância de se manter em segurança livros e registros históricos e artísticos, principalmente em momentos de crise.

— Já pensou no que a gente vai dizer? — Penélope sussurrou enquanto puxava uma cadeira para se sentar.

— Mais ou menos.

— Mais ou…? Mana, nem te faz de doida. Tu sabe o que a gente…

— Eu sei, Pê — Luiza cortou, apertando os dedos.

Edgar apareceu depois de uns minutos, sorrindo em um cumprimento, mas com certo cansaço no olhar.

— Parece que não vejo vocês há um mês. Já estão com saudade?

— Égua, pior que deu falta de cozinhar com o Rick também — Penélope admitiu. — Cadê ele, aliás?

— Continuou o que a gente estava olhando lá atrás, coisa do plano do assalto. — Edgar puxou uma cadeira para si e olhou para Luiza. — Pode se sentar, Lu. Aqui não é um quartel.

Luiza respirou fundo e se sentou. Seu olhar sério alarmou Penélope, que passou a brincar nervosa com um cacho comprido de cabelo da nuca, fazendo um bico infantil com os lábios grossos.

— Querem me contar alguma coisa? Decidiram ficar e entrar pro Levante?

— Melhor chamar o Ricardo aqui — Luiza avisou. — Quero que ele ouça também.

Edgar endireitou a postura, compreendendo que o assunto era sério, e chamou o marido que estudava papeis no meio das estantes. Ricardo enrolou o que conseguiu dos documentos e veio rápido até o grupo.

O cinza faiscante dos olhos de Luiza não vacilou quando ela disse:

— Eu já sei como derrotar a Boiuna.

Ricardo arregalou os olhos.

Luiza percebeu quando ele apertou o ombro de Edgar.

— E…? — ele começou hesitante. — Já sabe, mas e daí? Tu não vais…

— Vou sim. Só preciso…

— Vais te matar, Luiza! — Ricardo se exaltou, o rosto branco se avermelhando. — Não podes fazer isso!

— Realmente, não posso fazer sozinha.

— Tu enlouqueceu! — As lágrimas surgiram nos olhos cor de mel.

— Meu bem, te acalma. Vem cá — Edgar disse, puxando Ricardo de volta pela cintura. — Diz exatamente quais são os teus planos, Lu, e a gente vê se é praticável ou não.

Luiza respirou fundo e coçou a cabeça. Penélope tomou a dianteira.

— Todo mundo agora sabe a lenda da Cobra-Grande que dormia debaixo de Belém, certo? Acontece que essa história tem várias versões, e só uma delas fala de como desfazer o feitiço que aprisiona um homem na forma de cobra.

— Um homem? — Edgar colocou a mão nos lábios, pensativo. — Minha avó por parte de mãe, que mora no interior, me contou de uma cobra que virava homem em noite de lua cheia. Ele tinha até uma irmã. Eras, tinha esquecido isso já.

— Deve ser a mesma história — ela concluiu. — Ontem à noite e hoje cedo, eu e a Lu ficamos contando o que lembrávamos.

“Uma mulher indígena engravidou da Boiaçú, a Cobra-Grande, e pariu duas cobrinhas que viravam gente: Honorato e Maria Caninana. Os irmãos foram crescendo, só que Maria era cruel. Quando estava na forma de cobra gigante, virava os barcos e matava pessoas movida por puro ódio. Já o Honorato, nos momentos em que era homem, conhecia os vilarejos e se afeiçoava às pessoas comuns. Um dia ele percebeu que era impossível que a irmã deixasse de ser má e a enganou pra que ela caísse num rio profundo e estreito, e ela nunca mais saiu.”

— Acho que entendi. — Edgar coçou os cabelos crespos. — Mas se a cobra que era má morreu…

— Então, Honorato também fazia um estrago sem querer, afinal ele ainda virava uma cobra gigante — Luiza continuou. — Era doido pra ter o feitiço quebrado e viver normal com as outras pessoas, só que quem fosse fazer isso precisava ter muita coragem pra chegar perto. A lenda dizia que um soldado de Cametá tinha conseguido.

— Certo. E, assumindo que isso seja verdade, o que a gente precisa fazer? — Edgar perguntou impaciente.

— Derramar leite materno na boca da cobra e ferir a cabeça dela até sangrar — Luiza explicou. — Temos que conseguir equipamentos e também precisamos de…

— “Temos” é? Tenho umas perguntas, Luiza. Como lembraram dessa lenda agora, do nada? Que conveniente, não?

— Conveniente?

— Desculpe, eu quis dizer que coincidência. Logo quando três pessoas aparecem assassinadas aqui dentro, depois da primeira reunião, vocês surgem com essa informação. — Edgar cruzou os braços, mais como quem tem certeza de algo do que quem está ameaçando. — Vocês têm algo a dizer sobre isso também?

Penélope segurou a mão de Luiza. Ela estava trêmula, mas sua expressão tentava se manter firme. Fez sinal positivo com a cabeça. Precisavam ser verdadeiras com seus companheiros e amigos, não importava o quão ruim fosse. Precisavam manter a confiança um no outro intacta.

Luiza engoliu em seco.

— Dois eram espiões da Prefeitura na reunião de ontem, Ed — falou, olhando de relance para o sangue seco debaixo das unhas curtas. — Mataram um cara que estava lá também. Ele deve ter escutado alguma coisa ou reconheceu os dois, sei lá.

— A gente foi atrás deles, escondidas. — Penélope agora apertava as mãos. — Eles iam delatar a reunião. Os guardas iam chegar e…

— Eu matei os dois — Luiza confessou. — O primeiro foi por acidente, mas o outro… A gente precisava de informações deles. Eles sabiam como parar a cobra. E tinham escutado os planos do Levante, eu tive que…

— Vocês torturaram ele? — Pela primeira vez, o olhar de Edgar vacilou.

Penélope tinha a impressão de ainda sentir o pulso daquele homem em seus dedos. O ar entrava gelado em seus pulmões. E Luiza imaginava quantas vezes mais teria que lavar as mãos até se livrar de cada resquício de sangue.

Ricardo estava aturdido, embora entendesse as motivações das duas. Se simplesmente fugissem, deixariam uma centena de pessoas à mercê dos guardas do prefeito, além dele mesmo e do marido. Já Edgar entendia bem demais a necessidade do ato. Não era como se fosse fácil manter um refém, e seria muito perigoso dar as costas a dois espiões depois do que elas tinham ouvido. Pensava no risco que as amigas correram e agradecia a Deus que estivessem todos a salvo agora.

— Achei que mandariam matar os envolvidos, ou pelo menos os organizadores — disse Luiza, olhando para os dois.

— Provavelmente iam mesmo — Edgar concordou, sério, mordendo a unha do polegar. — Eu soube de gente próxima dele que foi torturada e até morta por insubmissão. Com a cidade acabada desse jeito, a última coisa que o Nada vai querer é gente se rebelando. Ainda mais se ele pretende pagar de herói mais tarde.

— Pagar de herói?

— É o que parece. Se o Governo Federal não fez nada até agora, ou o Nádio não deixou a notícia sobre a cobra sair daqui, ou tá de aliança com o Presidente Oranos pra que ele não interfira ainda — pensou alto. — Ele também deve estar estudando o comportamento da cobra pra saber como deve proceder. Mas e se a gente…

— Um ataque simultâneo? — Ricardo sugeriu, depois de minutos em silêncio.

— Meu bem, tu leste minha mente. — Edgar se virou para o marido e lhe deu um beijo na costa da mão.

— Vou trazer os mapas e a gente olha isso junto — falou mais animado antes de se afastar.

— Obrigado por ter se casado comigo!

— E obrigado por pedir antes desse caos!

Todos estavam de pé quando Ricardo abriu rolos e rolos de papel sobre a mesa. Eram mapas em tamanho A1 da cidade de Belém com as divisões dos bairros, as bacias hidrográficas, a densidade populacional e outros dados. Um deles, dividido por bairros, tinha áreas circundadas de vermelho e datas anotadas. Havia também um caderno de anotações avulsas. Luiza não conseguiu evitar ficar boquiaberta.

— Como conseguem essas informações? — Penélope quase se debruçava em cima do mapa. — Quero dizer, seria arriscado ir pessoalmente. Vocês têm um drone por acaso?

— Sim, temos dois.

— E o que vocês estavam estudando antes? — Luiza indagou, embora já começasse a entender o padrão das marcações.

— A gente estava tentando fazer uma previsão do próximo ataque da cobra — Edgar respondeu, parecendo frustrado. — Mas tudo parece aleatório pra mim, não vejo um padrão.

— Pois é, também não vi nada fora isso aqui. — Ricardo voltou ao mapa e apontou as áreas marcadas em vermelho. — Parece que ela está visando mais a parte histórica de Belém.

— Tipo a Cidade Velha, o Ver-o-Peso…

— Isso. Quando a cobra acordou, em outubro, afundou a Cidade Velha, Campina, Reduto e metade de Nazaré. Os arredores foram inundando e erodindo por dois meses até ela atacar de novo, na virada do ano. Dessa vez foram os bairros do Jurunas e da Condor. Pela lógica, achei que ela iria pro Guamá, mas ontem voltou pra Nazaré e levou o Umarizal junto. — Ele parou um instante, analisando tudo que estava no mapa. — Parece que ela espera o solo ficar mais comprometido pra atacar. Ela espera. Nesse caso… — Foi deslizando o dedo pelo mapa, como se reconhecesse algum padrão, até que traçou uma linha reta. Os três em volta prenderam o fôlego. — É um palpite, mas acho que ela volta daqui a um mês. Isso, vem pela Cremação, indo até São Brás mais ou menos, e deve ir embora pelo que já conseguiu afundar de Nazaré.

— Uau — Luiza deixou escapar.

Ricardo sorriu, tímido porém orgulhoso.

— Estudei bastante os processos de deterioração física e química do solo, tipo erosão e poluição. Mas nossa situação é outra: o solo está encharcando, virando lama, e a cobra espera isso acontecer pra avançar mais. Não acho que ela venha para os bairros que pegam a Almirante ou a Augusto Montenegro. Acredito que o foco são as partes mais antigas.

— Entendi, mas uma previsão dessas…

— Um mês… — Penélope pensou alto. — É um palpite, né, Rick?

— Sim — Ricardo confirmou e começou a recolher os materiais ao mesmo tempo em que fazia anotações. — Foram três ataques, em outubro, dezembro e agora em janeiro. Não dá pra ter muita base.

— Podemos levar um mapa desses?

Tiveram que procurar um pouco, mas encontraram um mapa menor com foco nos bairros ao redor de São Brás para que Luiza e Penélope pudessem estudar sua parte no plano.

A ideia era que o assalto do Levante à Prefeitura ocorresse ao mesmo tempo em que a Boiuna aparecesse, aproveitando a distração causada pelo monstro. Luiza e Penélope poderiam seguir com o plano de quebrar o feitiço e libertar a cidade da cobra de uma vez, acabando com o bode expiatório do Nádio Couto.

— Se cuidem! — a mulher rouca gritou enquanto trancava as correntes depois que as amigas saíram, e Luiza conseguiu ver de relance seus olhos escuros e muito estreitos pela grade.

Teriam cerca de um mês para se preparar física e psicologicamente para a caçada. O Teatro do Sesi não era um dos maiores, mas ainda havia as áreas de esportes e outras atividades do prédio do Sesi — com certeza teriam espaço suficiente para praticar o ataque à serpente.

RESULTADOS DE UM MÊS

— No fim do mês passado, dois homens de minha confiança desapareceram após eu pedir que investigassem as ações de um grupo terrorista que iniciou suas ações recentemente. Infelizmente, não conseguimos mais informações sobre eles. Pedimos para que vocês, cidadãos de bem, denunciem quaisquer atividades suspeitas desse grupo. Não podemos deixar que eles aproveitem a situação que nossa cidade enfrenta para uma revolta anarquista.

O discurso do prefeito chegou pelo rádio que Edgar mantinha sintonizado no andar de cima do Chalé de Ferro. A ideia do prefeito chegava a ser irônica. Quantas pessoas estariam escutando a mensagem? E quantas teriam energia para vigiar e se importar em denunciar um bando de arruaceiros? Certamente não gente que ainda vivia naquela cidade destruída e precisava racionar e procurar comida.

Algumas semanas antes, em um encontro do Levante, todos tinham sido avisados de que o próximo ataque da Boiuna seria a distração perfeita para tomarem a Prefeitura. Ricardo explicou suas previsões e Edgar avisou sobre as mudanças no planejamento dos ataques e organização dos grupos. Não teriam brechas para erros, tudo poderia ser fatal.

Naquele mês, Edgar também ajudou Luiza e Penélope a retomarem os exercícios e treinos de escalada. Luiza pensava que, mesmo sendo irritante, talvez a disciplina militar até ajudasse na hora de bater de frente com uma cobra do tamanho de um prédio.

Enfim, chegou a penúltima noite do mês de fevereiro. Se Ricardo estivesse certo, a Boiuna apareceria no dia seguinte. Luiza e Penélope voltaram rápido do Hospital Adventista de Belém, de onde roubaram o leite materno de que precisavam para quebrar o feitiço. Luiza foi arranjou algo para as duas comerem e só então deu por falta da amiga.

— Pê?

Luiza saiu do espaço da cozinha e encontrou Penélope arrumando os cabelos calmamente na frente do espelho do camarim cuja porta estava entreaberta. Entrou devagar, avançando a passos sutis até chegar atrás da amiga e abraçá-la. Penélope sorriu, os cachos balançando de leve sobre o rosto pouco anguloso. Sua pele negra e a dela, de um tom castanho claro, pareciam ouro sob a luz amarelada das lâmpadas incandescentes.

— Tá pensando em quê?

— Na mamãe. — Lágrimas iluminaram seus olhos, mas ela as espantou. — Estava lembrando da foto de casamento dela com o papai. Ela estava tão linda no vestido.

Luiza conhecia aquela história. Notou quando Penélope tocou os próprios braços, protegendo-se.

— Eu ainda tenho vontade de me casar com vestido de noiva. Pena que não vai ser o vestido da minha mãe. Se bem que ele nem deve caber em mim agora — brincou, mas com pesar no olhar.

No início da adolescência, enquanto admirava as fotos de casamento dos pais, Penélope encontrara o vestido da mãe e o experimentara. Só que o pai acabara vendo e tudo terminara numa briga terrível.

— Você pode mandar fazer um parecido — Luiza sugeriu. Era um assunto ao mesmo tempo confortável e delicado.

— Boa ideia — Penélope riu e apertou os braços. — Mas sabe de uma coisa estranha? Não importa o quanto eu me se sinta bonita, feliz ou triste e desesperada, eu pareço tanto com o papai… Às vezes parece que ele ainda grita na minha cabeça. — Ela cobriu as orelhas e encolheu os ombros, quase tremendo — Ou que ainda tá jogando coisas em mim e tá tudo tremendo.

Luiza suspirou. Girou a cadeira de repente e afastou as mãos de Penélope, encarando-a.

— Mana, olha pra mim! Eu tô aqui!

Como sempre. Apoiava a amiga do o fim do Ensino Médio, quando ela ia à escola de turbante para não mostrar os cachos curtos, até a ida para a capital, onde ela pudera passar a usar as argolas que queria, pintar os lábios de vermelho e deixar os cabelos crescerem.

— A gente vai acabar com essa cobra dos infernos e tu vai arranjar um carinha legal que te trate como a rainha que tu és, tá entendendo?

Penélope deu um riso nervoso, mas também aliviado.

— Não falei antes, mas depois do treinamento espartano do Edgar e com esse cabelo curto, tu está parecendo um soldado como ele.

— E tu está parecendo uma amazona. — Luiza segurou o rosto de Penélope e lhe deu um selinho. — Uma mulher guerreira e grandona.

— Eca, sai pra lá!

Penélope empurrou Luiza para o chão, e as duas começaram a gargalhar.

Na manhã seguinte, enquanto o sol ainda não surgia no horizonte de prédios, as duas partiram para São Brás, abastecidas de equipamentos improvisados para escalada, algumas armas — arranjadas por Edgar e Ricardo — e suprimentos, além do leite roubado.

Mesmo com o tremor que sacudira a terra da última vez, boa parte das casas e prédios pelo caminho estava de pé. As janelas e portas de vidro quebradas e os saques durante a fuga em massa, porém, tinham sido inevitáveis. Várias lojas de conveniência, mercadinhos e supermercados haviam tido as mercadorias levadas por desesperados ou pelo Governo de Belém.

O céu já passava de rosa para azul claro quando viram a rodoviária. Andaram mais um pouco, até o Mercado de São Brás, e pararam no monumento coberto da praça em frente para descansar os pés. Embora estivessem expostas e fosse uma possibilidade remota, tinham passado o caminho todo prestando atenção se alguém as seguia. Junto com Ricardo e Edgar, haviam decidido manter a caçada em segredo para não animar outros integrantes do Levante e acabar chamando atenção dos guardas de Nádio. Concluíram que estavam seguras por enquanto.

Não houve movimentação alguma até as dez da manhã. Invadiram um prédio residencial e encontraram um fogão ainda com o botijão de gás. A chama estava para acabar, mas Penélope preparou algo para comerem. Os apartamentos em geral tinham sido abandonados com todos os móveis dentro, porém o rastro da pressa, as teias e a poeira lhes davam um aspecto assombroso.

Comeram e voltaram para o monumento da Praça. O silêncio e o mormaço que anunciava a chuva da tarde começaram a deixá-las sonolentas.

 Quase às três, Penélope encarou o céu, apertando os olhos, e Luiza notou o estranhamento da amiga.

— O que foi?

— Esse toró não vai cair não? — Penélope deu um risinho.

Luiza parou, observando as nuvens no céu. Penélope seguiu em frente até perder o equilíbrio e cair no chão com um baque.

— Cuidado, sua lesa! — Luiza gritou, mas Penélope não se mexeu. Colocou a mochila no ombro e se aproximou. — Pê, o que…?

Luiza parou perto dela ao entender.

Estava tudo vibrando.

— Droga… Pê! Penélope!

Ela não estava mais ali. Estava numa casinha no interior, sentindo o piso de madeira tremer sob a fúria do pai.

— Mana, respira fundo. Tu não vai morrer! — gritou, e a puxou bruscamente pela gola do moletom. Tinham que se apressar. — Me escuta, garota! Tu não tá morrendo!

O som dos escombros chegou mais perto. Podia sentir cada construção que tombava enquanto a cobra passava.

— Penélope! — Luiza gritou.

Ela imediatamente se contraiu, ofegante.

— Eu… — balbuciou, parecendo ficar com ânsia.

— Não, não vai vomitar agora. Engole. — Luiza colocou uma garrafa plástica na boca da amiga. Penélope deu meio gole antes de cuspir violentamente.

— Que porra é essa, Lu?

— Uma cachaça vagabunda que achei no apartamento. Vou servir isso no seu casamento se não se levantar agora.

— Que é vagabunda eu percebi. E ainda não quer que eu vomite… — reclamou.

As duas riram por um segundo ante que a cobra finalmente começasse a sair pelo chão da José Bonifácio.

CAÇADA

Luiza podia jurar que a Boiuna parecia maior do que antes. Mas não tinham tempo para ficar paradas. O Levante já devia ter detectado a aparição, era hora de agir.

— Vamos, Pê! — gritou, correndo em direção à cobra.

— Luiza, espera, merda! — Penélope berrou e a seguiu, apreensiva.

Luiza não olhava para trás. A cobra não era tão rápida, mas o estrago que seu tamanho causava pela Magalhães Barata as impedia de chegar perto demais sem correr o risco de serem esmagadas ou soterradas. Subir numa árvore estava fora de cogitação. Precisava ser um prédio. Alguém teria que pular de um prédio direto na cabeça da criatura e se equilibrar para não cair imediatamente.

— Se ela chegar em Nazaré, a gente perde ela! — Luiza avisou.

— Pior que os prédios até lá não são tão altos.

Tinham conseguido ultrapassar a Boiuna indo pela José Malcher, mas ainda sentiam sua movimentação.

— O chão não vai estar firme mais pra frente… A gente precisa ir agora! — disse Luiza, adiantando-se para dobrar na avenida Alcindo Cacela.

No meio da avenida e sem parar de correr, Penélope começou a atirar para cima na tentativa de chamar a atenção da serpente. Luiza percebeu a intenção e logo procurou um lugar para subir. Encontrou o portão de um estacionamento e gritou para Penélope ir atrás dela.

Depois de atirar três vezes direto contra o monstro, que finalmente entrou com a cabeça na Avenida, sibilando alto e ficando ao lado do que era uma loja de eletrodomésticos, Penélope foi para onde estava Luiza. Jogou algumas bombinhas no chão para chamar a atenção enquanto corriam sobre o ruidoso telhado do segundo piso.

— Tá pronta? — Luiza encorajou.

— Essa bicha tá me fazendo passar o inferno, claro que tô. — Os olhos de Penélope eram como os de uma gata pronta para atacar. Conferiu brevemente o facão e a garrafa de leite na mochila.

— Sei. — Luiza respirou fundo. A cobra estava a poucos metros delas. — Eu fico com isso — disse, tomando a garrafa de Penélope.

— O quê? Não…

— Agora, Pê! — gritou Luiza, saltando na frente.

Penélope viu as escamas escuras e prendeu a respiração antes de pular atrás de Luiza.

Mesmo que a cabeça fosse bastante larga, era escorregadia e móvel. Elas não pensaram duas vezes antes de enterrar a ponta dos facões para se segurarem. Luiza tinha uma corda de nós amarrada ao facão que usaria para se pendurar ao lado da boca e jogar o leite dentro dela. Penélope tirou outro facão da mochila e começou a golpear a cabeça da serpente, que não parava de tentar se livrar das duas, balançando e batendo em prédios e árvores. O sibilar irritado ressoava altíssimo, ecoando e desorientando as duas. Penélope tentava arrancar algumas escamas antes de golpear de novo. Estava começando a achar aquilo impossível. A cobra não sangrava de jeito nenhum! Apenas grunhia e se agitava a cada tentativa de machucá-la.

Luiza se amarrou à corda e tentou descer pelo lado da Boiuna. A cada movimento da cobra, ela pensava que sairia voando. Boiuna notou onde ela estava e se arrastou até prensar Luiza contra a parede. Penélope gritou seu nome, que ela ouviu distante demais. Piscou, forçando a consciência, e percebeu que mal sentia o braço direito.

— Merda… — xingou, amaldiçoando o braço quebrado. Olhou para Penélope e seu pânico e respirou fundo. — Pê! Continua tentando!

Penélope estava quase em prantos, mas suportou o nó na garganta e voltou a arrancar as escamas duras. Eram como placas de aço coladas pela força do ódio. Mas ódio ela também tinha, e muito. Aquele bicho dos infernos ia pagar por tudo: por ter destruído sua cidade, pelos ataques de pânico, pelos braços tão musculosos que precisara adquirir e, principalmente, por quase ter matado a primeira pessoa que a chamara de “Penélope” — o nome que ela mesma escolhera.

Quase caiu quando ficou de costas para a cabeça da cobra. Segurou-se no punho do facão e numa ponta de escama que parecia muito afiada. Podia jurar que a cobra gritou naquele momento.

— É isso — murmurou para si. — É aqui! — Apoiou os pés o melhor que pôde para puxar a ponta solta usando o próprio peso. Sentiu a base da escama deslocar debaixo do couro. — Isso! Solta, desgraça!

A dor era aguda e persistente nos cortes que a escama causava em seus dedos, mas ela se recusava a fraquejar. Queria que seu grito de dor não superasse o da Boiuna. A escama estava quase toda em pé quando a cobra se remexeu de novo e Penélope teve que se segurar para não cair. Seus pés quase acertaram o rosto de Luiza, logo abaixo. Só então viu o estado em que a amiga se encontrava: o ombro direito sangrava muito e o braço, amarrado com força na corda, estava ficando arroxeado. Seu rosto também tinha um grande hematoma.

— Lu, mas que porra…!

— Esse braço agora só presta pra não me deixar cair. Como tá aí em cima?

Penélope gritou ao sentir os dedos rasgarem mais com um movimento brusco do monstro.

— Vou acabar com essa filha da puta!

— Te apoia no meu ombro. — Luiza tirou a garrafa da mochila e a destampou com os dentes. — Vamo fazer isso juntas.

— Tá bom!

Penélope usou o apoio para tomar impulso e voltar para cima da cobra. Agarrou o facão enterrado, pisou na escama para abri-la como uma tampa e viu algo que parecia pele.

Luiza estava de costas para a boca. Sempre que a fera abria a mandíbula, ela estava longe demais. Tinha que ter um controle melhor sobre o quanto se movimentava pendurada daquele jeito. Teve a impressão de ouvir motos se aproximarem, mas seu pensamento foi cortado por uma voz inesperada.

— Lu! — Edgar gritou quando saltou do prédio instável até ela, enterrando uma faca entre as escamas. — Vim ajudar.

— Ed? Tá fazendo o que aqui? E o Levan…

— Dei ordem pra iniciarem. A gente tem que acabar com isso aqui rápido.

Penélope cravou o facão na pele que havia visto. Boiuna ergueu a cabeça e sibilou como se estivesse rugindo de dor. Todos tiveram que se segurar firme para não caírem de mais de quinze metros.

— Mais um pouco! Só mais um pouco! — Penélope gritou.

— Me balança, Ed!

— Certo! Cuidado, pelo amor de Deus!

Edgar tentava levar Luiza para mais perto da boca, mas o bicho parecia saber e não a abria quando ela estava próxima demais.

— Abre a porra da boca, sua maldita! — Luiza berrava, chutando o cantinho que alcançava.

Penélope golpeou de novo, mas ainda não sangrava. Começou a tentar serrar a pele para ver se pelo menos abria aquela carne dura. Estava dando certo. Edgar tentou um tiro, mas a bala ricocheteou como tantas outras.

— Edgar! — Luiza chamou. — Tu precisa soltar a minha corda de lá de cima.

— Tá doida? Eu não vou conseguir te segurar!

— Não precisa segurar muito — respondeu, com um olhar sério. Edgar sentiu a espinha gelar. — Só até eu entrar na boca.

— Luiza, não! Tu só tens que chegar perto e jogar a merda da garrafa. Não vou te deixar morrer, sua caralha!

— Não tem corda o suficiente pra isso, leso! Tu vais ter que me largar.

— Quem disse?

Edgar escalou para a parte mais plana, onde Penélope estava, e encontrou o ponto no qual a corda de Luiza estava presa. Tirou uma outra corda da mochila e a uniu firmemente à primeira com um nó antes de soltá-la. Mas ainda precisava ter certo controle sobre quantos metros a mais teria que manipular no ar. Luiza não poderia ficar muito abaixo do nível da boca. Edgar ainda teria que segurar o excedente por conta própria.

— Não vou demorar aqui! — Penélope avisou.

— A gente também não — respondeu, e voltou a falar com Luiza. — Tô descendo!

Assim como antes, Edgar precisou se segurar com a mão esquerda e balançar Luiza com a direita, mas agora com alguns metros de corda a mais para controlar. Começou a impulsionar a amiga e viu como ela já chegava mais para a frente da cobra. Se conseguisse pegá-la de boca aberta… Luiza chutava para irritar a criatura, mas não surtia efeito. Edgar, então, notou algo estranho.

Algo brilhava na boca de Luiza.

— Luiza!

Ela olhou para cima, e Edgar viu o canivete militar manchado de sangue. Ouviu Penélope gritar quando o sangue finalmente jorrou da ferida. A cobra ergueu novamente a cabeça e abriu a boca num sibilo de dor. Luiza estava chegando até ela na hora certa. Edgar enxergou a corda que prendia o braço machucado — estava partida.

Luiza sorriu e se soltou, bem em cima da boca gigantesca.

— LUIZA, SUA PUTA!

Boiuna fechou a boca e Luiza desapareceu.

RENASCIMENTO

Edgar agarrou Penélope, que estava aos prantos, e saltou com ela para um prédio pequeno. A serpente começou a se contorcer, destruindo a cidade ao redor, enrodilhando-se e diminuindo de tamanho.

Foram até o outro quarteirão onde os prédios não pareciam uma ameaça, mas eram atingidos pela poeira que vinha dos desmoronamentos próximos. Ricardo estava ali, de joelhos, os olhos avermelhados cansados de chorar. Ao lado dele, havia uma figura de capuz.

— Edgar de Souza Rabelo — Ricardo disse ao se levantar, depois se aproximou do marido. De repente lhe deu um tapa estalado e um abraço apertado. — Tá maluco, porra? Tu não pode sair assim pra arriscar o pescoço sem me chamar, seu merda!

Edgar gargalhou, mas era possível ouvir o nó apertando em sua garganta.

— Acho a mesma coisa — a mulher rouca falou e abaixou o capuz.

— Liz? — Penélope afastou as lágrimas para ver direito.

Mesmo com a grande e profunda cicatriz que tomava seu rosto e pescoço, aquele era o rosto de Liz. Seu rosto de traços herdados dos avós japoneses, que geralmente tinha expressões travessas, agora transmitia um profundo lamento. Ela sorriu, chorosa, e correu para onde o feitiço da Boiuna estava sendo quebrado.

Os três a seguiram por reflexo. Alcançaram e atravessaram com alguma dificuldade os destroços causados pela cobra, quase sem enxergar o caminho devido à poeira densa ainda suspensa no ar. O fedor de esgoto e lama podre era forte demais. Vários canos tinham se despedaçado sob o concreto. Porém, mais adiante, havia água limpa. Milagrosamente, havia água limpa.

A poeira branca baixou, e eles viram algo que lembrava uma cápsula de água envolvendo o homem forte e nu que abraçava o corpo machucado de Luiza.

Liz quase caiu, emocionada, chorando em silêncio. Esticou a mão trêmula até penetrar na cápsula. Ao tocar Luiza, ela abriu os olhos. Agarrou a mão da namorada em reflexo e foi puxada para fora. O homem abriu os olhos assim que o corpo de Luiza rompeu o casulo.

Liz segurou Luiza. Ricardo e Edgar, o homem.

Carregaram os dois até solo mais firme e os deitaram. O braço de Luiza parecia irrecuperável, mesmo não sangrando; os demais ferimentos não eram tão graves. O homem tinha apenas um pequeno machucado na testa que vertia sangue. O rosto e o corpo forte traziam alguns desenhos em tinta vermelha e preta. Os dois respiravam regularmente e não pareciam sentir dores.

— Minha Luz… — Liz chamou com a voz embargada enquanto fazia carinho na cabeça de Luiza. — Tu raspou mesmo, hein? Ficou linda.

Luiza sorriu e segurou a mão de Liz.

— A rouca… era tu, Liz… — murmurou, e seus olhos se encheram de lágrimas. — Não acredito.

— Desculpa não ter contado antes. Eu estava com vergonha disso — Apontou a imensa cicatriz. — Até quando o Valério…

— Ele também tá vivo?

— Sim. Ele acabou sendo sequestrado pelo pai, por isso a gente não conseguiu chegar no teu apartamento naquele dia.

O homem nu suspirou alto, recobrando a consciência, e começou a olhar em volta. Encarou cada um deles, depois viu Luiza ao seu lado. Sorriu, sereno.

— Eu te vi, Luiza — ele disse com a voz baixa. — Desculpe pelo braço. Obrigado.

Ninguém parecia entender o óbvio até Penélope dizer:

— Honorato? — Aquilo chamou a atenção de todos, mas principalmente do indígena que estava perto dela e ouviu seu nome. — Cobra Honorato?

— Sim, sou eu. Era eu. — O moço ergueu o tronco até se sentar, sem se preocupar com a falta de vestimentas, e afastou os cabelos ondulados grudados no rosto. — E tu é a Penélope. Ouvi muito a tua voz. Grita como uma guerreira. — Ele baixou os olhos e tocou as mãos ensanguentadas. — E se feriu como uma. Também te agradeço por desfazer o encanto.

— É melhor a gente voltar logo — Ricardo sugeriu. — A gente não avisou ninguém antes de sair, então vão nos procurar.

— Verdade, a gente veio no impulso — Liz disse, depois voltou a olhar para Luiza. — Não consegui me segurar quando vi que ela estava aqui — E abraçou a namorada com cuidado. — Nem acredito que tu sobreviveste àquilo.

— É, mas meu braço direito já era. Será que volto a escalar?

— Gente, ele precisa de umas roupas — Penélope alertou, tirando a jaqueta para improvisar uma saia ao redor da cintura de Honorato. Edgar o ajudou a se levantar e completou a saia com a própria jaqueta. No abrigo teriam roupas mais apropriadas e que servissem no homem.

Ricardo chegou perto do marido e o abraçou, trazendo-lhe conforto suficiente para que libertasse o pranto sufocado até então; e assim ele o fez, permitindo-se ser acalentado depois de todo risco que tinham corrido.

Luiza pediu ajuda de Liz para se levantar, um sorriso vitorioso brilhando no rosto. Em seguida, todos ouviram o som de algo caindo ali perto. Entreolharam-se e, em dois segundos, Ricardo foi ver o que era. Voltou com um drone quebrado, cobrindo a lente da câmera por precaução.

— Liz, esse não é dos nossos, é?

Ela franziu as sobrancelhas finas e foi ver de perto. De fato, não era um equipamento do Levante. Era um modelo diferente, mas…

— É do Valério. Ou estava com ele, pelo menos. — Liz mostrou uma pequena aranha desenhada numa das hélices do drone. — Isso é um código nosso.

— Uma aranha, sério? — Luiza debochou. — Por causa da escalada?

— Sim, algum problema? — Liz deu um sorrisinho e continuou. — Mas é estranho, ele não deixaria isso cair do nada.

— O Valério tá na Prefeitura, não tá? — Ricardo questionou.

— Sim — assentiu Liz. — Ele conseguiu me encontrar no início de janeiro. Passou umas informações, disse que teriam uns trabalhos pra ele lá, mas não sabia o que era. Depois sumiu de novo. Avisou pra não tentar contato, porque podia ser perigoso. Deve estar sendo muito vigiado.

O pai de Valério tinha um cargo de confiança na Prefeitura, possuía vários privilégios. Se tivesse levado o filho para algum lugar, seria para lá.

— Vai ver era ele um dos que estavam monitorando a movimentação da cobra — Penélope supôs.

— Já renderam o prefeito? — Luiza ergueu a voz.

Edgar correu, pulando a fachada de um pequeno prédio caída na rua, para pegar o rádio sob o banco da moto estacionada. Sintonizou e, depois de alguns chiados, ele respondeu:

— Por enquanto, só o plano A tá seguindo bem. Uns vinte seguranças do Couto desertaram e fugiram. Onze se uniram ao Levante. Mas nada dele ainda. E a prefeitura continua fortificada.

— Ah, não! Eu quero a cabeça desse desgraçado.

— Lu, calma aí.

— Calma, Ed? Esse maldito tá com o Valério, e sem as imagens que tavam nesse drone! Se ele triscar um dedo no Val…! Se ele…

Liz abraçou forte a namorada e se virou para os outros.

— Temos que voltar agora.

— Isso, gente, bora adiantar isso aí! — Penélope cortou, dando apoio a Honorato. — Vocês têm armas e pessoas pra chamar. Não é suficiente? Vão logo atrás desse filho da puta.

Precisavam correr contra o tempo, antes que Nádio Couto desse um jeito de clamar em seu nome a vitória sobre o monstro. Iriam invadir a Prefeitura naquela mesma noite, mesmo que isso significasse correr riscos maiores até do que enfrentar uma serpente gigante.

REVOLTA

O Levante organizava as frotas de ônibus com belenenses remanescentes, escoltados para chegarem em segurança às cidades vizinhas. Mas a saída de Belém estava um caos. Vários desertores do prefeito, considerando a desvantagem diante da rebelião, ajudaram no assalto ao arsenal, onde eram armazenados mantimentos e transporte, apenas para fugirem em seguida. Outros realmente se uniram ao movimento, apoiando as intenções de render Nádio Couto para convocar eleições imediatas e entrar em contato com o Governo do Estado e Federal para exigir socorro à cidade.

Mas onde ele se enfiou?

Luiza sentia o sangue ferver. Tinha vontade de socar o prefeito até que a cabeça dele virasse pasta. Seria difícil usando somente a mão esquerda, já que seu braço direito estava completamente enfaixado e inútil, apenas esperando um momento melhor para ser amputado, mas poderia tentar. Isso se Edgar e Penélope não a tivessem proibido de pôr os pés fora do Teatro do Sesi.

— Luiza, tu quase morreste não tem nem duas horas! — Edgar falou com a voz firme de soldado. — Não é hora de ser teimosa e continuar correndo por aí. Olha o teu braço, porra!

— Ainda tenho um braço, duas pernas e meu ódio. Posso fazer muita coisa.

— Mas nem fodendo, sua nanica!

— Lu. — Penélope, que estava cuidando de Honorato até então, aproximou-se e segurou sua mão direita. Os dedos se retorceram em pequenos espasmos por conta dos nervos danificados. — Por favor, pensa na tua saúde. Tu tá acabada, levaste o corpo ao limite. Precisa te recuperar. Não somos só nós duas agora, tem o Levante inteiro pra agir.

— A Liz tá aí, não tá? Deixa eu falar com…

— Ela foi na frente — Ricardo avisou. — Pra garantir que vão resgatar o Valério em segurança.

— Aposto que a Liz não saiu correndo depois de se machucar daquele jeito — disse Edgar, referindo-se à enorme cicatriz da namorada de Luiza. — Por isso ela ainda tá viva. Por favor, Lu, continua viva por eles, Liz e Valério, e por nós, seus amigos. Me promete.

Luiza mordeu o lábio e coçou a nuca. Pensou por uns segundos e disse:

— Prometo.

Edgar deixou duas pistolas com elas, apenas para que tivessem alguma segurança a mais, e partiu com o marido para o ataque. Luiza foi para o camarim que dividia com Penélope e respirou fundo, atenta aos poucos sons no prédio. A amiga continuava no camarim ao lado cuidando de Honorato, que estava exausto e faminto desde que deixara de ser Boiuna — sabe-se lá como o encantamento afetara o corpo do homem.

Mas Luiza estava bem. Guardara consigo uma pistola e o canivete de Edgar, que de algum modo trouxera consigo depois de ser “devorada”. Deu um jeito de apertar mais as faixas em torno do braço para não sentir tanta dor e improvisou uma tipoia. Vestiu-se com um moletom de capuz e saiu pelos fundos do prédio no início da noite, rezando para que os amigos não ficassem muito magoados.

Não estava quebrando promessa alguma.

 — Demorou, hein? — A voz rouca de Liz a surpreendeu enquanto atravessava os escombros do elevado na avenida Doutor Freitas. Ela surgiu de um mercado abandonado numa moto de faróis desligados. Luiza não conseguiu disfarçar o espanto.

— Como você…?

— Lu, tu és teimosa que só o diabo. Depois de ser engolida por uma cobra gigante, o que mais iria te parar? Só a própria Virgem de Nazaré.

Luiza riu e subiu na garupa, apertando o corpo magro de Liz.

— O Ricardo disse que já tinhas ido.

— Não mentiu, eu que menti pra ele. — Liz fez a moto dar meia volta, e o motor deu um ronco barulhento. — Vamos salvar nosso namorado.

De acordo com as informações passadas por Valério, a Prefeitura trocara de sede. O corpo de funcionários avançara pelo Entroncamento, reduzindo-se com o passar do tempo até restarem apenas alguns funcionários e vereadores de confiança e os membros da segurança. Esta fora instalada ao redor do prédio do DEMA, a Delegacia do Meio Ambiente, na Augusto Montenegro, onde o governo se estabelecera em definitivo. As famílias dos políticos em sua maioria haviam sido enviadas para cidades vizinhas logo depois do primeiro ataque da Cobra-Grande.

Mas isso fora no início do ano. O prédio agora parecia completamente abandonado, mas era a última pista que tinham.

Quando encontrou com Liz, Valério estava com vários arranhões e hematomas pelo corpo, frutos de suas outras tentativas de escapar do pai. Mesmo querendo ficar e se juntar ao Levante, provavelmente estava sendo perseguido, então não podia arriscar a segurança do movimento e da namorada.

— Ele disse: “Tenho fé que a Nazinha olha pela Luiza e que a gente vai estar juntos de novo, Liz. Encontra ela, tá?” — Liz concluiu enquanto se embrenhava pelas ruas estreitas da feira do bairro. A escuridão era quase total na rodovia que levava ao distrito de Icoaraci, a iluminação pública limitada aos setores usados pela Prefeitura. — Eu te encontrei. Agora falta ele, aí nós três nos casamos e vamos morar na praia por dois anos.

Luiza riu com a lembrança dos antigos planos para depois que Valério se formasse. Liz então pressionou um ponto no ouvido.

— Merda! — ela rosnou. Seu corpo ficou tenso e ela acelerou a moto antes de atravessar a pista do BRT para entrar na rua ao lado de um colégio católico.

Um pequeno grupo de pessoas se aproximava vindo da ruazinha. Liz reconheceu os membros do Levante; um deles era um guarda uniformizado, porém, o que a fez entrar em alerta.

— Ele que tem um recado pra mim?

— Liz, esse é um dos desertores que tinha contato direto com o Nádio — um rapaz alto de óculos explicou.

O guarda logo se colocou à frente do grupo.

— Vou ser breve. Era um rapaz. Ele disse que era do DEMA. Que “o Nada tá esperando transporte e tem pouca segurança”. Também disse: “Liz, cuida dela por mim”.

Liz cobriu a boca e arregalou os olhos, alarmada.

— Val… — Luiza deu um passo para trás. — Não.

— Não mesmo. — Liz se exaltou. — A gente vai entrar no DEMA agora!

— Vamos sim — o de óculos confirmou, e o grupo todo preparou as armas. — Só não falei antes porque vocês iam inventar de entrar sozinhas, que nem duas pomba lesa. Por aqui.

Se dividiram em dois grupos; um foi para o estacionamento da delegacia e o outro para o do posto de saúde ao lado. Luiza e Liz ficaram com o último. Ouviram a bomba de fumaça ser jogadas do lado oposto do prédio e avançaram. Apoiaram-se numa carcaça de carro abandonada e foram as últimas a pular o muro estreito. Os companheiros que tinham ido na frente se adiantaram para enfrentar os primeiros seguranças que vinham em sua direção.

Liz empurrou Luiza para trás de um carro e sacou a arma, atirando algumas vezes na direção dos guardas. Acabou atingindo dois deles, no ombro e nas pernas.

Eles se dividiram, indo para os portões da frente e da lateral, que agora tinha apenas três guardas. Estes mal tiveram tempo de mirar contra os invasores. Em menor número e pegos de surpresa pela bomba de fumaça, foram rendidos com facilidade.

Amordaçaram os seguranças feridos e recolheram suas armas. Um membro do Levante fora baleado no braço, e foi afastado para receber socorro.

Liz estendeu a mão para a namorada e percebeu sua expressão de agonia. O braço de Luiza latejava de dor como se quisesse se separar do corpo. Ela respirou fundo e se levantou com um grunhido. Não podia ser um peso. Ouviu os disparos na direção do portão da frente e sentiu um calafrio. Olhou rápido para a porta dos fundos. Estaria trancada? Seguiu reto na direção dela até ser detida pelo guarda desertor.

— Não é seguro.

Ele olhou rápido por uma pequena janela e usou uma pedra e o facão para quebrá-la. Não havia mais volta. Nem muito tempo.

— São seis salas ao todo. Não faço ideia de onde ele possa estar. Vamos pedir reforços. Tenham cuidado, pelo amor de deus.

As duas pularam para dentro em alerta, com as armas a postos, mas o cômodo estava vazio. Parecia ser a copa, mas não havia ninguém. Ouviram mais tiros pelo corredor. Depois silêncio.

— Eles ainda estão mirando na porta da frente. — Liz ia se esgueirar para olhar, mas Luiza a puxou de volta, bem a tempo de o tiro pegar apenas de raspão no braço. Sentiu o sangue gelar. Conseguiu calar Liz e a segurou contra a parede atrás da porta.

Alguém abriu a porta de supetão e entrou. Liz não pensou antes de atirar na cara do sujeito. O sangue espirrou na parede, nela e em Luiza, que afrouxou o braço imediatamente. Engoliu em seco quando Liz colocou metade do rosto para fora novamente. Recuou em um segundo.

— Eu vi o Nádio. E uma carnificina lá na frente — falou, tentando recuperar o fôlego. — Vi alguns dos que estavam com a gente. E uns desaparecidos meses atrás.

Luiza quis vomitar. Acertou o próprio braço com a coronha da arma para voltar ao presente e mordeu a manga do moletom para não gritar de dor.

Liz sentia o coração esfarelar, mas não podiam fraquejar agora. Os seguranças deviam estar mais atentos à entrada da frente, mais exposta. Provavelmente achavam que o homem e ela, a invasora, tinham se matado ao mesmo tempo no fim do corredor.

O rádio chiou em seu ouvido.

— Edgar, eu e a Lu estamos escondidas. Peguei um de raspão, mas estamos bem.

Luiza colou o ouvido ao de Liz, onde estava o fone, mas não entendeu muito. “Planta”, “fora”, “sala certa”, “juntos”…

— Entendido. Cuidado, por favor — ela disse, respirando fundo. — Estão vindo pra cá.

O prédio estava em silêncio. O barulho vinha do burburinho da multidão a meio quilometro, amontoando-se nas entradas dos ônibus e nas filas de suprimentos. A fumaça da explosão ainda não cessara completamente e dificultava a visão e a respiração. Luiza sentia a garganta seca. O dedo nervoso pairava sobre o gatilho da arma. Não era tão inábil com a mão esquerda, só não se garantia à distância.

Avançaram com cautela pelo corredor, aproveitando a fumaça para se esconder. O cheiro de pólvora, ferro e fuligem tomava conta do espaço. Viram com dificuldade as manchas de sangue nas paredes e no chão, mais a frente. Todas as portas tinham janelinhas por onde podiam, com auxílio de um espelho, observar a movimentação.

Luiza e Liz andaram rentes às paredes, abaixadas. Liz parou e apontou para a primeira porta à esquerda, do lado de Luiza.

— Lu — Liz sussurrou e fez sinal para que ela fosse mais para frente, um pouco depois da porta. Luiza obedeceu e ficou de costas para a parede. — Quando abrirem aí, tu atira na mão — orientou, gesticulando ao mesmo tempo.

— Quando abrirem?

Liz acenou positivamente e atirou na direção da recepção. Três portas abriram simultaneamente. As duas da direita, com três atiradores ao todo, e a do lado de Luiza.

As balas voavam em direção à recepção, ignorando as intrusas abaixadas; os seguranças atiravam às cegas para a frente vazia do prédio. Luiza prendeu a respiração e, assim que viu as mãos armadas acima da cabeça, atirou para desarmar. Um homem gritou e cambaleou para dentro da sala. Ela sentiu as costas gelarem quando reconheceu a voz. Era…

— Droga… Entra, Luiza! — Liz deu dois passos para atravessar o corredor e a empurrou pela porta, fechando-a em seguida com um chute.

Luiza não conseguiu segurar o grito pela dor excruciante no braço direito, sobre o qual caíra. Liz se levantou de imediato, mas logo estava no chão outra vez, segurando a perna baleada. No meio da onda de dor e com os ouvidos ainda zunindo pelo tiroteio, Luiza reconheceu o rosto desacordado de Valério — estava ao lado dos pés do prefeito Nádio Couto, o homem que lhe apontava o cano da arma.

NA MIRA

— Você foi rendido por duas baixinhas magricelas, Juliano. Acabou de perder seu cargo de confiança — Nádio debochou, falando com o homem que ainda chorava sobre as mãos ensanguentadas.

Ainda com a respiração descompassada, Luiza buscava focar a visão e compreender a cena que presenciava — e na qual estava incluída. Valério não tinha apenas as manchas descoloridas do vitiligo no rosto e nos braços amarrados, mas também arranhões e hematomas recentes, além de um corte já seco no lábio. Seu pai, Juliano, se encolhia junto ao filho, agora inútil para o empregador.

Luiza não esperava acabar atirando no sogro, mesmo sem querer.

Liz apertava a ferida na coxa, tentando estancar o sangramento intenso e reprimindo os grunhidos de dor. Luiza estava agora de bruços por cima do braço direito, quase dormente na tipoia.

Um rádio comunicador chiou na cintura de Juliano. Nádio estendeu a mão, pedindo o aparelho. Com dificuldade, o homem o entregou com as mãos trêmulas e escorregadias de sangue.

— O Juliano foi atingido, mas estamos bem aqui. Sem baixas — Nádio respondeu aos seguranças de fora e colocou o aparelho sobre uma escrivaninha. Por que não disse que estamos aqui?, Luiza se questionou. Depois o prefeito apenas pegou o revólver que Liz deixara escapar das mãos ao levar o tiro e o enfiou no cós da calça.

— O que… O que vocês fizeram com o Valério? — Luiza perguntou de maneira sôfrega, tentando erguer o tronco com cuidado. — Valério!

— Ele se comporta muito mal pra alguém de vinte e um anos. Derrubou meu drone, roubou meu rádio pra mandar recadinho, me olhava torto… — Nádio falou, empurrando de leve o rosto do rapaz com o bico do sapato. — Só fiz ele se aquietar um pouco.

— Não encosta nele! — Liz gritou e forçou a perna para se levantar, o que a fez sangrar mais. — Eu te mato!

— Opa, opa! Calminha, garotas — Ele se agachou e encostou o revólver na têmpora de Valério, por entre os cabelos loiros.

— Liz, não! — Luiza a segurou pelo pulso. Estavam em desvantagem. — Seu Juliano, como deixa ele tratar seu filho desse jeito?

— Valério é um teimoso. — O homem suspirou pesado e encostou a cabeça na parede. — Eu queria que a gente ficasse seguro, mas ele tinha que ficar tentando fugir. Tinha que… escolher esse caminho de vagabundo. Eu sempre suspeitei que vocês duas… fossem levar ele por esse caminho. Onde… Ah, onde já se viu três pessoas namorando? Nunca vi coisa mais absurda!

— Ab… Absurda? — A voz fraca de Valério ressoou no ambiente vazio. — Nunca viu um governante matar o próprio povo de fome, pai? Nunca viu calarem a bala quem grita por justiç…

— Ah! São as namoradinhas no Valério? Há, há, que piada boa! Pra alguém tão irritante, até que tu sabia aproveitar a vida — Nádio interrompeu, gargalhando de modo repulsivo. — Mas volta a dormir se não quiser outro murro na boca, tá?

— Trisca nele pra tu ver só — Luiza ameaçou.

Ele fixou o olhar em Luiza.

— E você não deveria estar morta? Quero dizer, você foi engolida…

— O drone, Lu — Liz a lembrou. — O que a gente achou.

Eles estavam mesmo vigiando os movimentos da cobra.

— Como descobriram o que fazer com a cobra? — o prefeito perguntou em um tom irônico, tombando a cabeça.

— Lendas não são segredo — Luiza disparou.

— E por que só lembraram disso agora? — Nádio riu e pressionou mais a testa de Valério. Luiza engoliu em seco e viu o pai virar o rosto para o outro lado, apertando os olhos em agonia. Desistiu do próprio filho? — Vocês que mataram meus espiões, não foi? E ainda conseguiram informações… Até que trabalham bem.

— E por que você não fez nada antes então? — Luiza interpelou. — Por que deixou que a cidade…?

— É mais barato e convincente dizer que demoramos a achar uma solução. — Ele se levantou, apontando a arma para Luiza. — Numa queimada de grande escala, você apaga o fogo ou espera ele diminuir pra dizer que só então teve condições de fazer algo? — Depois se agachou e encostou o cano de ferro nos lábios dela. — Se um monstro destrói a cidade aos poucos, você pede socorro imediato, como um incapaz, ou aguarda o melhor momento pra salvar o dia? Quem não quer ser visto como um herói, não é mesmo, Luiza?

Ela havia estragado os planos dele. Aquele homem estava doente, cego pelo orgulho e pela vaidade a ponto de não ligar para as milhares de mortes sob sua gestão — pessoas que pensavam estar em segurança, que acreditavam pelo menos ter um solo firme e inabalável sob os pés. Porém, sob o mandato de um inconsequente, até mesmo o chão se tornava algo duvidoso.

— Não tem medo de alguém aqui contar que tu esperou de propósito? — Liz tentou chamar atenção para si, mas se encolhendo contra a parede. — Sou eu e a Lu de um lado, o Valério e o Juliano do outro.

Estavam os quatro nos extremos da sala, no chão. O meio estava livre. O prefeito achou graça.

— Os quatro desarmados, sendo um moribundo, um que não me traiu até agora e duas baleadas.

Liz virou o rosto para gritar, mas Nádio se antecipou e disparou contra o ombro esquerdo de Luiza. O impacto a fez cair imediatamente para trás, agonizando com o ardor e com o zunido no ouvido. Nem podia segurar a ferida com o outro braço inútil. Sentia o sangue sair em profusão e empapar a manga do moletom. As lágrimas saíram antes que percebesse.

O prefeito se afastou e puxou uma cadeira para se sentar ao lado da porta.

— Vocês vão comigo quando meu transporte chegar, assim essa facção de vocês não tenta nada. Vou levar todos pra um hospital, mas talvez não resistam a hemorragia. Acontece muito, sabe? Eu vou lamentar tanto

— Desgraçado! — Valério chorava e se debatia, mas sem conseguir se soltar — Luiza! Liz!

— Luiza! Luiza! — Liz chamava, desesperada, mas sua voz soava distante. — Amor, fala comigo!

— Qual era o plano, Liz? — Luiza conseguiu falar baixo.

Liz se sobressaltou. Ver duas pessoas amadas tão vulneráveis a distraíra. Olhou para Nádio e para a janela com película, depois voltou a encarar Luiza — ela já estava com a mão dentro da tipoia, segurando a pistola escondida. Liz aproximou a boca da borda do capuz e disse:

— Alvo um. Na mira.

Os vidros da janela se estilhaçaram no mesmo segundo. Nádio caiu no chão com as pernas ensanguentadas, parecendo não entender o que estava acontecendo. Um berro inconstante de choque escapava do fundo de sua garganta enquanto olhava as coxas perfuradas de balas. Ao fim dos tiros, Liz voltou a falar, mal contendo o sorriso:

— Desgraçado abatido.

Luiza bradou com o esforço para se levantar e correu até ele, acertando-lhe um pontapé no rosto antes de chutar as duas armas na direção de Liz.

— Eu fui engolida por uma cobra gigante, seu desgraçado, só a Virgem de Nazaré pode me parar agora — falou, mirando em seu peito.

Liz pegou as armas e se aproximou rápido, impulsionando o corpo com a perna boa para agarrar Nádio pelo pescoço num “mata leão” enquanto pressionava um cano de revólver contra suas costelas. O homem pouco resistiu, ainda atordoado por ter sido atingido. Ela pegou uns panos largados no chão para amarrá-lo e amordaçá-lo.

— Pronto, pronto, passou, seu filho da puta — Liz zombou e amarrou os panos com força.

— Luiza, eu… —Valério chamou, aliviado. — Liz…

Luiza sentiu o peito esquentar e as lágrimas ameaçaram cair mais uma vez. Estavam juntos de novo. Vivos.

— Val, agora não. — Ela tentava se manter firme. — Pede pra Liz te soltar e ajuda ela e teu pai, tá?

Ouviu quando ele começou a chorar, mas já obedecendo.

Alô, alô! Todo mundo bem?” A voz chiada vinha do rádio comunicador do próprio Nádio.

Eu te amo, Edgar, Luiza pensou com um sorriso nos lábios. Quem mais se garantiria ao atirar àquela distância no escuro? Liz riu e avisou que estavam com o prefeito de refém, mas que todos precisavam de cuidados médicos. Valério tirou a camisa para amarrar a perna de Liz e a blusa para envolver as mãos do pai. Juliano ainda estava em choque.

Alguém do Levante estava na frente do prédio com um megafone.

— Seguinte, seus guardinhas! — uma voz feminina começou. — O prefeito Nádio Couto tá bastante ferido e precisa ir pro hospital num helicóptero bem bacana que tá chegando aí. Então vocês já podem se render pra ele não ir direto pro necrotério! E sendo preso, ele nem vai ter como pagar vocês mesmo, só facilitem aí pra gente.

— Conseguiram interceptar o sinal do transporte? — Valério indagou, ajudando Liz com o sangramento.

— Ai, pelo visto sim. Se não conseguissem, a gente ia só roubar o helicóptero e é isso aí.

Luiza fez uma careta ao ver o estado das pernas do prefeito. Pelo menos ele não parecia ter intenção alguma de sair correndo da cidade.

EPÍLOGO: NOVA BELÉM

Fazia pouco mais de sete meses que não tinha mais o braço direito, mas Luiza de vez em quando sentia que estava girando o canivete de Edgar pela argola. Em vez disso, o objeto estava pesando no bolso da calça larga, um amuleto do qual raramente se separava.

Foi surpreendida por um afago nos cachinhos curtos. Olhou pelo espelho do camarim e encontrou o olhar gentil de Valério atrás de si, a luz amarelada das lâmpadas destacando os tons contrastantes de sua pele — o bege quente e a cor de creme.

— Tá pronta, anja? — ele perguntou com um sorriso. — O pessoal tá esperando.

Luiza deu um sorriso triste. Queria que seu aniversário não tivesse um clima tão pesado, mas o que podia fazer? Muitas mortes tinham acontecido um ano antes, no dia 29 de outubro, e nos ataques que se seguiram.

— Passou a dor de cabeça do Honorato?

— Sim, a Pê cuidou bem dele. Como uma boa esposinha — Valério provocou e abraçou Luiza pelo ombro sem braço.

— Você quis dizer “como alguém decente que cuida de quem precisa”. — Luiza puxou Valério pela gola da camisa preta, aproximando o rosto do dele em tom de ameaça. — Não é, Val?

— Sim, senhora. — Ele achou graça e cedeu os lábios à namorada.

Ouviram batidas na porta aberta e olharam para trás, pegos de surpresa por quem faltava ali. Um sorrisinho travesso iluminava o rosto marcado pela cicatriz.

— Eu adoraria participar, mas temos que ir, amores. — Liz apontou com o polegar para fora.

Sem contestar, os dois a seguiram para fora do prédio do Sesi, onde encontraram Penélope e Honorato trajando roupas minimamente mais formais naquele fim de tarde. Todas em tons escuros.

Caminhavam com calma pela Almirante Barroso em direção à Paróquia da Santa Cruz. Mesmo sem a certeza de que o gesto seria apropriado, Penélope abraçou Luiza com carinho para murmurar “feliz aniversário”.

Luiza havia passado quase o dia inteiro sozinha com as próprias lembranças. Sabia que devia ser grata por estar viva — quando se lembrava de todas as mortes ocorridas na mesma data, porém, não se sentia no direito de ficar feliz.

Honorato se aproximou um pouco tímido, segurou a mão esquerda dela e a beijou com respeito, como um filho pedindo a benção.

— Feliz nascimento pra gente, Luiza.

Seus olhos se mantiveram secos o dia inteiro, mas naquele momento ela não foi capaz de conter as lágrimas. Honorato tinha sido um monstro, mas também nascera naquele dia. Fora parido da terra como uma criança do útero — com pouquíssima consciência do mundo ao redor.

Luiza secou os olhos e beijou Honorato na testa, sobre a pequena cicatriz.

Honorato, a serpente amaldiçoada, vivia agora como sempre sonhara — como um homem comum que podia amar sem medo. Adotara o grupo de amigos como sua nova família: Ricardo e Edgar eram seus irmãos, Luiza sua mãe 0e, depois de um tempo, Penélope se tornara sua mulher. Por um tempo, Liz e Valério o tinham tratado apenas com respeito por amarem Luiza; não haviam feito parte de seu renascimento. Mas logo a gratidão e o sentimento de dever com cada um haviam se transformado em um amor que ele nunca se envergonhou em demonstrar.

Chegaram à Paróquia em poucos minutos de caminhada. O local estava repleto de membros do Levante, mas também havia outros que não tinham participado da revolta. O grupo recém-chegado tinha lugares reservados próximos ao altar, onde aguardavam para darem início a cerimônia.

O cabelo de Ricardo também havia crescido um pouco e ele o usava penteado e amarrado para trás. Estava à frente no púlpito, usando preto como os outros.

— Obrigada a todos, todas e todes por virem hoje. Pra quem não me conhece, sou Ricardo Dias Rabelo — se apresentou, ajeitando uma mecha da franja. Luiza mordeu o lábio quando percebeu a mão trêmula. — Faz exatamente um ano desde que a decadência de Belém foi agravada por um fator inimaginável, e digo agravada pois a cidade já tinha o declínio decretado pelo último prefeito. E já se passaram oito meses desde que fomos à luta contra um governo indecente e que desprezou a vida dos cidadãos. Em quatro meses de ataque, tivemos muitas mortes, sem dúvidas. Pelo menos parte delas poderiam ter sido evitada. Se não fosse por essa omissão…

Ele precisou interromper a fala, a garganta e o peito apertados.

Poucas semanas antes, Edgar fora vítima de uma emboscada. Fora socorrido a tempo e estava fora de perigo, mas ainda não havia acordado. A segurança em torno dele, assim como das principais vozes do Levante, fora reforçada. Contudo, não tinham deixado que o novo ataque os abalasse a ponto de ficarem paralisados. Não podiam deixar.

— Tem sido muito difícil pra todo mundo — Ricardo retomou a palavra. — Perdemos muitas pessoas queridas nos ataques da cobra e na noite da revolta. E mesmo agora, não estamos em completa segurança.

Na madrugada após a revolta, com o prefeito e seus guardas detidos, tinham conseguiram entrar em contato com o Governo do Estado, com imprensa e outros órgãos, exigindo auxílio imediato aos sobreviventes. Durante os dias seguintes, todos os sobreviventes que não haviam saído da cidade tinham sido realocados para prédios abandonados nas áreas seguras, pois o solo continuara sofrendo de alagamentos e erosão por muitos meses, mesmo sem a ameaça da Cobra-Grande.

— Mas Belém está saindo da lama aos poucos, se erguendo aos poucos. Assim como todos nós — ele recuperou a voz firme, mas o rosto continuava corado de choro. — O Levante inteiro tá trabalhando duro pra garantir nossos direitos. Nenhuma morte vai ter sido em vão. Não vamos esquecer de quem se foi e de quem se sacrificou. Belém tinha um aniversário de fundação. Nova Belém terá um aniversário de renascimento. Nesse dia, lembrem de tudo que aconteceu e sonhem com o que virá. Nós temos esse direito. Sonhem com o futuro, com a vida e com a vitória de finalmente termos um chão firme debaixo dos nossos pés.

FIM

A foto quadrada mostra uma mulher de pele negra clara e cabelos morenos encaracolados. Ela usa óculos de aros grossos e pretos, não está sorrindo, e olha meio de lado para a câmera. Veste uma blusa estampada preta, e está contra um fundo estampado de florido.

Maria Eloise Albuquerque nasceu em 1994, é escritora e ilustradora natural de Belém do Pará. Parte da Associação Boreal desde 2019, fez sua estreia na Amazon em setembro de 2020 com o romance “Armadilha para Lobos”, primeiro livro da coleção Abraqueerdabra. 

Dante Luiz é ilustrador, quadrinista e escreve nas horas vagas, além de trabalhar como diretor de arte da revista anglófona Strange Horizons. É o desenhista da graphic novel Crema, que será lançada em 2022 pela Dark Horse, editor da antologia As artes mágicas do Ignoto, e capista de diversas ilustrações nacionais. Mora em uma casa que mais parece um antiquário com sua esposa e pilhas intermináveis de trabalho por fazer.

A ilustração quadrada, desenhada no mesmo estilo da capa, mostra uma homem branco de cabelos castanhos curtos e arrepiados para cima. Ele está olhando para frente, mas com os olhos meio desviados. Ele veste uma camisa de um cor-de-rosa queimado, meio pastel, com um padrão vegetal verde, e óculos de grau com armação clássica estilo Ray Ban. O fundo é de um verde queimado, meio pastel, com um padrão vegetal rosa.
A foto quadrada mostra uma mulher branca, de cabelos morenos e cortados na altura do ombro, meio bagunçados. Ela está sorrindo levemente e tem a mão estendida na direção da câmera, com os olhos fechados. Ao fundo, que é bem desfocado, é possível ver as luzes urbanas de uma avenida.

Jana Bianchi é escritora, tradutora, editora na revista Mafagafo e cohostess do Curta Ficção. Em português, além de Lobo de rua (2016), publicou diversos contos em revistas e coletâneas. Em  inglês, tem ou terá textos publicados nas revistas Strange Horizons, Clarkesworld e Fireside. É aluna da turma de 2021 do workshop de escrita Clarion West. Jana mora no interior de São Paulo com os pais, duas cachorras e suas várias tatuagens animadas.

Sérgio Motta é designer, escritor e amante de café. Nascido e criado na periferia de São Paulo, a cidade, cheia de fantasias, caos, diversões e diversidades é sua musa. Já publicou “Ciberbochicho”, pela Revista Mafagafo, onde hoje também é editor, “Spider”, pela revista estadunidense Strange Horizons e “Aline na Avenida das Paulistas”, uma releitura de “Alice” pela avenida mais famosa de São Paulo. Também é criador do portal Resistência Afroliterária e editor-chefe da Revista Afroliterária. É dono do Machadinho, autor dos maiores clássicos da literatura canina.

A foto quadrada mostra um homem de pele negra, cabelos morenos em dreads, e cavanhaque também moreno. Ele usa um óculos com armação grossa e uma camisa vinho, e olha ligeiramente para o lado.
Foto de Rafael Ferreira
A ilustração quadrada tem fundo branco meio pixelado e, bem no centro, uma imagem só com linhas grossas, lembrando um carimbo, mostrando uma mostra uma mulher de cabelos e blusa pretos e olhos que são dois círculos vermelhos. O carimbo parece estar rasgado no canto e no terço inferior, sendo que no terço inferior há linhas vermelhas sugerindo uma tentativa de manter as peças juntas com uma costura.

Maria Carvalho é ilustradora, formada em Design pelo Campus Agreste da UFPE. Gosta de histórias que transitam entre o mundano fantástico e o estranho da vida real. Quando não está desenhando, Maria chora assistindo duelos de espadinha laser.