A capa, cujas cores principais são tons de vermelho, vinho e preto, mostra um pote contendo um coração real bem no centro da capa. Um par de mãos bem brancas, se destacando em meio ao tom escuro da capa, segura esse jarro. Ao redor, várias mãos em tons de vermelho e vinho tentam alcançar o jarro com o coração. Acima da capa há a logo da Mafagafo em vermelho. O título ("Não pague pela boa morte"), também em vermelho mas contornado de branco, está logo abaixo e à direita do nome da Mafagafo. No jarro, em branco, há as informações "Escrito por Rodrigo Hipólito" e "Editado por Jana Bianchi e JP Lima). Logo acima do título há a informação de que a arte é de Palloma Barreto. No canto superior esquerdo há o logo da Mafagafo com a informação: Temporada 004, Outubro de 2021.

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— Terezinha de Jesus! O que você foi fazer no meio dessa chuva? — Adélia deixou a irmã entrar, fechou a porta, entregou-lhe o celular com a lanterna ligada e caminhou apressada pelo apartamento. — Fica aí que vou pegar uma toalha. Tira essa roupa logo. Ricardo nem tá em casa. — Adélia voltou com uma toalha e um pano de chão, que estendeu para a irmã pisar.

Enrolada na toalha, com a roupa molhada, as sapatilhas e a mochila no canto da sala, Terezinha não saiu de perto da porta. Virou a luz do celular de um lado para o outro, como se alguém fosse surgir de um dos cantos escuros. A tempestade de raios havia derrubado a energia de todo o bairro, e os trovões continuavam a estourar do lado de fora.

— Que cara de zumbi é essa? Você tá doente? Fala logo! — Adélia cruzou os braços e encarou a irmã como se estivesse dando bronca em criança. Terezinha tinha os olhos fundos, a parte branca invadida por fios vermelhos. Seus ombros estavam tombados. Os cabelos raspados cresciam desiguais. Ela saiu de cima do pano, passou pela irmã e apontou para a porta.

Com um suspiro, Adélia verificou o olho mágico e viu, na penumbra das luzes de emergência do corredor, um velho de terno largo, pele sem brilho e cabelos crespos brancos e bem cortados, parado de frente para a porta com um chapéu na mão, sem piscar. O velho aproximou a cabeça da porta, e seus olhos opacos e vazios cresceram para Adélia.

— Afff! Que merda! — Adélia suspirou e se virou para a irmã. — Mas se preocupa não. Relaxa que ele não pode entrar aqui em casa.

— Como assim ele não pode entrar? — Terezinha continuava a olhar para a porta, nem irritada, nem tranquila, até Adélia lhe tomar pelo braço e arrastá-la para a cozinha.

— Tá! Vem comer alguma coisa e ver se consegue parar de tremer.

Enquanto Adélia servia o café sob a luz da vela fixada em um pires, Terezinha falava devagar, como se já tivesse repetido cada uma daquelas frases dezenas de vezes:

— E já faz mais de uma semana que ele não me deixa em paz. — Terezinha bebeu mais um gole do café recém-passado. Pousou a caneca, esfregou as mãos pelo rosto e massageou a própria testa com a cabeça abaixada. — Eu saio pra rua, ele fica atrás de mim. Eu vou dormir, ele tá no quarto. Eu vou à desgraça do banheiro e ele tá lá! Como é que a pessoa consegue cagar com o próprio pai morto te vigiando? — Ela olhou para a irmã, que se sentou à mesa para encará-la com os lábios apertados em um bico de compreensão. — E agora já faz dois dias que ele não para de gritar comigo do nada, Delinha. Não lembro quando foi a última noite em que dormi direito!

Eu a havia acompanhado em silêncio durante aqueles dias, e posso garantir que o velho era insuportável. Naquela noite, Terezinha correu para a casa da irmã porque não encontrava mais solução para se esconder do fantasma do pai. Ainda que quisesse se mostrar independente aos vinte anos, parecia correto que a única parente viva dividisse aquele sofrimento com ela.

Terezinha rodara pelo bairro, mas não tinha sido capaz de despistá-lo. Se eu precisasse andar, acharia aquele lugar bem confuso. Quando uma rua começava a se curvar, ela podia tanto te jogar para fora do bairro quanto te fazer rodar em círculos. Debaixo da chuva pesada, Jardim da Penha era um labirinto.

— Tá, e por que o velho resolveu começar com isso agora? — Adélia apoiava os cotovelos sobre o tampo bege da mesa de quatro lugares, cheirando o café com a caneca na altura do nariz. — Você nunca nem reclamou de ele ter aparecido pra você antes.

— Pelo jeito que ele tá me chamando de vagabunda, a desgraça do porra rala deve ter descoberto só agora que eu não gosto de homem nem morto e enrolado no bacon. É o único motivo que consigo imaginar pra essa peste resolver me atentar depois desse tempo todo. — Terezinha engoliu um biscoito de maisena enquanto a irmã continha uma risada. — Já é um alívio eu conseguir comer alguma coisa sem ele me encarando igual criança aguada. Mas, vem cá… Como é que funciona isso aí de ele não poder entrar na sua casa?

Adélia ergueu as sobrancelhas, suspirou fundo e foi até a geladeira. Os cabelos crespos desgastados pela química e presos em coque, as sobrancelhas desenhadas e os lábios grossos de preenchimento destoavam do vestido largo e monocromático. Até pouco antes de se casar, ela era menos disciplinada com a burocracia espiritual. Depois, até suas roupas passaram a seguir protocolos. Às vezes, a vida quebra a gente.

Os cinco anos de diferença da irmã mais nova poderiam ser dez ou mais. A sombra de Adélia tremia na parede, projetada pela luz da vela, e o sorriso marcado pareceria sombrio não fosse pelo tom despreocupado da voz.

— Ah… Isso aí já faz tempo. Eu me casei com o Ricardo mais ou menos um ano depois que o pai morreu, certo? E ele só tinha aparecido aqui em casa logo no começo, pra reclamar que tava perdido e que não tinha ninguém ajudando ele com a bagunça dos documentos. — Ela retirou três vasilhas de plástico da geladeira e colocou-as sobre a mesa. — Tem bolo de limão, que eu fiz ontem, bolinha de queijo e o cacho de uva já tá lavado. Mas então… O pai ficou quase um ano sem aparecer, e aí, na manhã seguinte do casamento, não é que o velho tava do lado da minha cama quando eu acordei? — Adélia sorriu ao abrir os potes e empurrá-los na direção da irmã, que havia voltado a pressionar o rosto com as mãos. — Quase que eu morro de susto! Mas fiquei foi com muita raiva. E o pai começou a falar merda comigo, dizendo que eu tinha casado sem falar com ele e que, agora que eu já tinha dado, eu tava perdida pra Deus, sabe?

— Às vezes eu queria tá morta também só pra poder esgoelar um porcaria desses. — Terezinha já mostrava mais sinais de vida no rosto, com os olhos alertas e a testa enrugada de irritação. — Não tem aquele bolo de laranja não? Prefiro tudo de laranja. Menos doce. Tô enjoada só de sentir cheiro de coisa muito doce.

— Ah! Eu só faço bolo de laranja quando sei que você vem pra cá. Mas, voltando… Eu tava com muita raiva. Ai, graças a Deus! — Com um estalo, a luz tinha voltado, e a lâmpada da cozinha se acendera, seguida pelo zumbido do motor da geladeira. Adélia apagou a vela no sopro e continuou, com um sorriso de canto de boca: — E aí, no dia seguinte mesmo, a gente pediu uma ordem de restrição. Eu achei que ia ser complicado, mas foi bem simples e, olha, foi a melhor coisa que eu fiz. Tem gente que não faz isso porque o resto da família vai reclamar. Sinceramente, eu nunca mais nem tinha pensado sobre isso até agora. — Ela bebeu o café.

— Eu vou fazer isso amanhã mesmo. Só preciso de uma noite de sono saudável! — Terezinha ergueu as mãos para o teto e depois pegou um pedaço de bolo.

— Vai mesmo? — Adélia voltou a apoiar os cotovelos na mesa e estalou os nós dos dedos, com o riso leve transformando-se em uma torção dos lábios.

— Ah não, Delinha! Hoje não, vai! Eu tô quebrada demais pra discutir isso.

— Eu não quero discutir. Tô falando sério! Eu só quero saber se você tá em dia com seu Plano Pós, ué! Porque se não tiver voltado a pagar, nem adianta tentar fazer pedido de nada.

— Não, eu não voltei a pagar e eu sequer lembro quando foi que eu parei de pagar essa porcaria! — Terezinha parecia ter acordado. Segurava a caneca de café com força e gesticulava com a outra mão, seus ombros rígidos e o pescoço meio inclinado para frente. — Previdência espiritual tinha que ser direito básico, Delinha! Eu não vou defender uma coisa e fazer outra, ô caralho!

— Você tá dizendo que eu sou hipócrita, é isso? — Adélia inclinou a cabeça e colocou uma mão sobre o joelho.

— Não, Delinha. Eu não tô dizendo isso. Eu tô dizendo que eu me recuso a pagar pra poder morrer e continuar na merda. Porque é isso, você paga um plano, morre e continua pobre depois de morrer. Eu não vou pagar pra continuar na merda. Só isso.

— Terezinha do céu! Você não sabe do que tá falando. — Adélia cruzou os braços, respirou fundo e apontou por cima do ombro. — Olha a menina aí do 302. Olha o que aconteceu com ela. A moça tava casada tinha uns dez anos e tinha deixado o fudido do marido tomar conta do Plano Pós deles esse tempo todo. Ano passado, ele morreu de acidente. Ficou todo arrebentado, um monte de osso pra fora da carne, pulmão perfurado e cabeça amassada. Ela ficou uma semana esperando o sujeito aparecer depois do enterro. Aí foi procurar informação na seguradora e descobriu que o desgraçado não tinha quitado uma só parcela do seguro desde que eles se casaram. Ela foi xeretar e ficou sabendo que ele tinha se envolvido com uma dessas seitas malucas aí. Deus me livre, Terezinha! Você não me caia numa dessa não! — Adélia ergueu as duas mãos e arregalou os olhos por um instante de silêncio, até que a irmã a encarou de volta. — Essa vizinha demorou pra saber onde o finado tinha ido parar, e sabe como que ela ficou sabendo? Porque chegou o boleto pra pagar. Mandaram o estrupício pra um Purgatório no caralho-a-quatro e agora ela nem consegue pagar o próprio seguro porque é obrigada a cobrir os custos dele. — Adélia esperou alguma reação da irmã, mas encontrou apenas um olhar de peixe morto e uma boca que mastigava uva. — E você não tá nem aí pra ninguém e vou ser eu que vou ter que pagar pela sua purgação, né?

— É só ela não pagar. — Terezinha balançou a cabeça em negativa. — Deixa acumular a dívida até caducar, como qualquer pessoa esperta faz, ué!

— Você realmente acha que tem jeito de não pagar pela vida, né? — Mais uma profunda inspiração e Adélia seguiu, com certa lentidão na voz: — A praga do falecido… Você faz ideia do que aconteceu com ele depois que morreu? Sabe como que a vizinha encontrou o metido a esperto quando fez uma visita lá no Purgatório? Ele tá do mesmo jeitinho que tava quando tiraram ele do meio do acidente. Pedaço de osso saindo pela carne das pernas, o braço mole e cortado de cima até o pulso, uma mão que é só uma bola vermelha de sangue, a cabeça amassada e rachada, sem a pele de metade do rosto. O olho que sobrou é um desespero só! E ele não grita, só geme, porque tem um buraco no peito e outro na garganta. — Adélia esperou ouvir alguma resposta, mas só recebeu um olhar desviado para o chão. — E ninguém lá sabe dizer pra ela quanto tempo o sujeito vai ficar assim. Ninguém diz nada. Ela deve morrer e o infeliz vai continuar lá, sem nem ter boca pra gritar.

— Valeu pelo recado de final de noite. Eu realmente precisava desse tipo de imagem pra dormir melhor. — Terezinha se levantou e começou a tirar a mesa. — Aliás, como se eu não conhecesse nenhum caso tipo esse daí. — Ela voltou a se agitar e a gesticular, encostada na pia. — A propaganda, ou melhor, o terror que esse pessoal enfia na cabeça da gente todo dia, tipo os drones com aquela porcaria de luminoso da Divina, já dá medo suficiente de morrer. Dá medo até de viver! Ahhhrrr… — Os gestos pararam numa arfada súbita, sem fôlego.

Sob a luz branca da cozinha, as veias saltadas na lateral da cabeça da jovem eram nítidas. Suas narinas largas se dilataram, e ela inspirou com lentidão, sem conseguir disfarçar a dor.

— Que foi? Você tá passando mal, né? — Adélia se preparou para ficar de pé e seguir na direção da irmã, mas parou quando esta levantou a mão.

— Não, não, eu só me engasguei mesmo. Acho que grudou uma casca de uva na garganta. — Terezinha tentou pigarrear e forçou um sorriso triste. — Desculpa a irritação, Delinha. Eu tô cansada demais pra raciocinar agora. E eu não consigo parar de pensar no que eu vou fazer amanhã pro velho sumir e parar de me infernizar. Eu já não aguento mais isso.

— Tá, você não vai conseguir o termo de restrição mesmo, porque tá com o nome sujo. — Adélia se levantou e mostrou a palma das mãos para a irmã, que já ameaçava esbravejar outra vez. — Calma! Eu ia dizer que a gente vai pensar em algum jeito de você ficar em paz por uns dias, e aí você vê o que faz. Vê se fica calma porque eu também não tô com paciência pra chilique não. Vai tomar um banho e esfria a cabeça que eu vou improvisar uma ideia rapidinho. E não dorme ainda.

Com os cabelos bem raspados e uma camiseta larga, estampada com os dizeres “A Glória, A Santidade, A Salvação”, Terezinha voltou do banho para a sala, deixando a mochila ainda molhada ao lado do sofá e seguindo com a toalha para a área de serviço.

O som alto no apartamento vizinho anunciava o fim do jornal das oito. Se conseguisse dormir cedo assim, compensaria a privação de sono das noites anteriores.

— Só espero que você não tenha ligado pra Assistência Moral e reativado meu seguro. — Ela passou pela irmã, que esperava sentada no sofá com um cordão feito de bolinhas peroladas enrolado no antebraço. O cordão dava cinco ou seis voltas até chegar a um pingente circular, do tamanho de uma moeda, que ela segurava entre o polegar e a falange média do indicador.

— Não, Tereza. Eu não fiz isso. — Adélia ajeitou as voltas do cordão, a coluna reta, o braço afastado do corpo. — Agora volta aqui que eu vou consultar uma amiga pra saber se vale a pena.

— Vale a pena o quê? — Terezinha voltou para a sala, alongando o pescoço. Foi se sentar no outro sofá. — Delinha, eu não quero pedir favor pra ninguém nem envolver gente que eu não conheço na minha vida pessoal, tá?

— Fica quieta pra não atrapalhar o sinal. Eu vou falar com a Lúcia, lembra dela? Ela fez direito espiritual e especialização em condutas do bem-morrer, sabia? Agora ela tá trabalhando na Comarca de Jaburuna. Começou faz uns seis meses. Ela avisou que ia atender em um minuto.

Após bem mais de um minuto de silêncio, durante o qual Terezinha pescou algumas vezes e Adélia continuou imóvel, uma voz cheia de eco se fez ouvir. O som vinha de alguma direção variável ou de todas as direções, uma reverberação aguda que entrava mais pela testa do que pelos ouvidos.

— Oi, Adélia! Desculpa a demora. O Caio agora resolveu que não dorme sozinho de jeito nenhum. Eu não sei mais o que faço com esse menino! Toda semana é uma frescura diferente. Deus me perdoe! Honestamente, assim, eu sei que não é certo pensar desse jeito, mas, às vezes, eu até me arrependo de ter tido ele cedo assim.

— Isso passa, Lúcia. Quando você menos perceber, ele já vai estar se virando sozinho e você vai é sentir falta dessa fase. — Adélia continuava com o braço afastado do corpo, mas relaxou a coluna. — E eu é que peço desculpas. Te incomodar de noite desse jeito…

— Que isso! — Aos poucos, a voz se acomodava, adensando, e, quase sem eco, soava como se Lúcia estivesse sentada logo ao lado de Adélia. — Eu ainda vou preencher uns dez requerimentos diferentes hoje. Mas, vai lá, conta! Tá precisando de ajuda com alguma coisa? Decidiu se separar de vez? — Adélia não resistiu a desviar o olhar para Terezinha, que arregalou os olhos e levantou as sobrancelhas antes de ensaiar um sorriso. — Ou pediu demissão? Sabe que por mim, assim, você já tinha feito isso faz tempo e ia ser tranquilíssimo te arranjar uma vaga…

— Não, não, Lúcia. Não é isso — Adélia a interrompeu, mas sem elevar o tom de voz. — Quer dizer, é um favor sim, mas não é pra mim. É mais uma dúvida pra resolver uma coisa da minha irmã mais nova. É que ela ficou desempregada e tá há alguns meses sem pagar o Plano Pós dela. Aí, bem nessa hora, nosso pai resolveu infernizar a coitada. Ela não consegue mais nem dormir em paz. Tem alguma possibilidade de pedir uma ordem de restrição mesmo com o seguro atrasado?

— Espera. Me dá um instante. — Embora Lúcia estivesse calada, sua respiração continuava nitidamente audível na sala, assim como seus estalos de língua. — Certo, nem é bom que ela procure a Assistência agora. Porque pode ser que ninguém tenha colocado o nome dela na lista de observação. Já que ela tá desempregada, é bem provável que o nome dela tenha passado batido. O ideal seria vocês conseguirem sanar a dívida com o seguro. Mas, caso não seja possível fazer isso rápido e o pai de vocês esteja incomodando muito ou causando algum risco, teria uma solução bem simples. Na verdade, é simples, mas depende de como tá a relação entre vocês duas. Eu digo isso porque, se ela não tiver tentado contratar nenhum serviço nesse tempo de inadimplência, se não tiver alguma outra dívida com reclamação, como aluguel atrasado ou corte de água e luz, seria possível estender a sua ordem de restrição pra abarcar sua irmã também.

— Olha, Lúcia, eu acredito que, nesse sentido, ela tá com tudo certo. — Adélia sinalizou com a mão livre, e Terezinha confirmou com a cabeça. — Ela me disse mais cedo que, fora esse incômodo com nosso pai, tava tudo em ordem e ela até tinha conseguido umas entrevistas, sabe? — Adélia esticou os olhos para a irmã, que retomou a cara forçada de tédio.

— Certo. Então eu acredito que um ritual simples de pactuação já deve resolver o problema. Se estiver tudo direitinho com o nome dela, imediatamente os direitos da ordem de restrição vão ser estendidos. Mas, amiga, só presta atenção e verifica se está mesmo tudo em ordem. Porque, depois que vocês efetivarem a pactuação, vocês passam a ser responsabilidade legal uma da outra, e isso passa por cima até do Ricardo. Deu pra entender?

— Entendi. Mas pode deixar que eu vou conferir de novo com ela como estão as coisas antes de firmar isso. — Adélia travou os lábios e apontou com o indicador da mão livre na direção da irmã, depois para o próprio ouvido. — E isso deve dar tempo pra ela refrescar a cabeça e acertar as contas. Porque procurar trabalho com um estorvo te perseguindo o dia inteiro é dose, né?

— Nossa! Nem te conto a montanha de casos que passam lá na Comarca só em cima disso. Pelo menos, nesse caso, é o pai de vocês. Se você visse a quantidade de situações envolvendo marido que nem aceita que morreu! Mas faz o seguinte, então: eu vou te passar a linha de registro de pactuação, pra facilitar. Amanhã você me avisa se deu tudo certo. E eu vou correr lá pra acertar esses requerimentos antes que o Caio acorde de novo, tudo bem?

— Ótimo! E muito obrigada mesmo, Lúcia. Desculpa de novo te incomodar com isso.

— Que nada. Só me avisa se deu tudo certo amanhã. Fica com Deus, amiga. E, sério, se precisar voltar àquele assunto do Ricardo, sabe que não precisa nem pensar duas vezes em me chamar, né? Nem precisa responder, que eu sei que você vai desconversar de novo. Só fica com Deus.

— Que bom que você me conhece. Fica com Deus. — Adélia deixou o cordão de bolinhas desfazer as voltas em torno do antebraço até ficar folgado, segurando-o apenas pelo pingente entre os dedos. — Você ouviu, né? É bom você resolver logo isso e não ter mais problema nenhum. Porque se acontecer alguma coisa, o Ricardo vai me encher o raio da paciência.

— Você não vai ter problema nenhum comigo não, Delinha. — Terezinha falava de cabeça baixa, a testa apoiada nos dedos, as sobrancelhas franzidas. — Eu só preciso que o pai me deixe em paz por uns dias, e aí eu resolvo tudo. Sério, em menos de uma semana isso tá acertado, e você não vai precisar se preocupar.

Adélia se empertigou na ponta do sofá, mas, antes que dissesse alguma coisa, o cordão de contas peroladas brilhou como se composto por várias pequenas lâmpadas redondas. Depois da primeira luz branca, as bolinhas começaram a cintilar em uma sequência de cores que variava entre amarelo, azul e verde. Algumas bolinhas permaneciam acesas por um instante, e depois um novo conjunto se iluminava com outra cor.

— Tudo bem, vamos fazer isso rápido pra gente poder descansar, e amanhã eu realmente espero que você já comece a se movimentar pra acertar suas contas, tá bom? — Adélia esticou o cordão com uma das mãos enquanto segurava o pingente entre os dedos da outra. — Agora vai lá na despensa e pega a caixa que tá na prateleira do meio, em cima. Acho que tá no canto direito.

Terezinha se levantou e foi em direção à cozinha enquanto Adélia terminava de enrolar o cordão no antebraço. Antes de cada volta, ela contava um certo número de bolinhas, que se iluminavam com seu toque. Ao terminar a última volta, o cordão se ajustou sobre a pele com uma leve pressão. Todas as bolinhas peroladas se iluminaram por um instante, e um ruído de papéis, passos e claques ecoou pela sala. Após uma leve acomodação do som, surgiu uma voz fanha e acelerada:

— Registro de Pactuações, sala 209, Emília. Com quem eu falo?

— Boa noite, Emília. Meu nome é Adélia Achebe Antonino — ela falava mais alto, pausadamente. — Eu gostaria de informar a realização de um ritual de pactuação e requisitar o registro.

— Vou coletar sua identificação e preciso também dos dados da contraparte, é possível?

— Um instante. — Adélia sinalizou para a irmã, que voltava à sala com uma caixa de papelão e um copo d’água, depositando-os sobre a mesa de centro. — Pronto. — Ela segurou o pingente com a ponta dos dedos da mão livre, sem retirar o polegar da superfície do objeto, enquanto Terezinha se apressava em pressionar o dedo no outro lado da pequena peça de metal.

— Coletado — disse Emília em uma voz anasalada, como se estivesse sentada no colo de Adélia. — Vocês têm uma margem de vinte minutos para realização do ritual. Caso o tempo seja excedido, será necessário realizar uma nova requisição. A taxa de registro é de cento e vinte e dois pesos-reais, de acordo com a tabela vigente, a qual pode ser confirmada pela linha do Serviço de Informações Municipais. Posso confirmar o pedido?

— Sim, por favor.

— Pedido confirmado, senhora. Um agente do setor de Transmutação Documental requisitará acesso ao ambiente tão logo o ritual for efetivado. O acesso do agente é obrigatório para a finalização do registro. No caso de impedimento da presença do agente, o ritual será considerado sem vigor, e o pedido será cancelado em até vinte e quatro horas, sem devolução de taxas. A senhora tem alguma dúvida?

— Não, não. Obrigada pelo atendimento.

— Peço que aguarde para a avaliação do atendimento. Pela atenção, obrigada.

Um agudo oco se fez ouvir na sala, e uma voz grave pronunciou um “olá”, mas foi prontamente engolida pelo vácuo quando Adélia soltou o pingente e desenrolou o cordão.

— Pronto. Nem lembro da última vez em que usei essa coisa, mas não deve dar nada errado.

Adélia se ajoelhou na frente da mesa de centro, abriu a caixa de madeira e retirou algumas peças de lá. O item mais chamativo era um cachimbo escuro, de cerâmica esmaltada e com uns vinte e cinco centímetros de comprimento, que se mantinha apoiado no tampo da mesa pela base reta do fornilho. Havia seis pequenos copinhos de madeira encaixados em um suporte retangular, que Adélia deixou de lado. Ela retirou mais de dez potinhos cilíndricos de vidro até encontrar aquele que procurava. Abrindo a tampa, cheirou seu conteúdo.

— É… Torce pra isso aqui tá bom ainda, né? — Ela posicionou o potinho perto do cachimbo, vasculhou o interior da caixa, pegou um isqueiro e deixou de lado um estojo de metal acobreado, um feixe de palitos de incenso em uma embalagem plástica, um rolinho de tecido púrpura e uma escultura de tartaruga. Por fim, ela separou um maço de papéis pouco maiores que cartas de baralho. — Agora sim! Porque se dependesse de mim pra lembrar disso daqui, a gente tava danada.

Terezinha contraiu os lábios enquanto observava a irmã guardar os outros itens de volta na caixa. Quando a mesa ficou pronta, a jovem ainda seguia com o olhar perdido e as duas mãos juntas sobre o peito, até que Adélia estalou os dedos.

— Acorda. Eu não quero ter que pagar de novo pra pedir outro registro não! — Adélia colocou um dos pequenos cartões entre as duas, de modo que ambas pudessem ler os versos ali impressos. Abrindo o potinho, retirou alguns pedaços de erva seca e colocou-os dentro do fornilho do cachimbo. Hesitante, ela fechou e afastou o pote, depois arrastou o copo d’água mais para o meio da mesa. — E com certeza o Ricardo vai vir perguntar que cobrança foi essa. Mas eu ia contar pra ele de qualquer jeito mesmo. Posso?

— Pode, pode sim. — Terezinha assentiu, piscando com força e esticando o braço direito para segurar a mão esquerda da irmã.

Com a própria mão esquerda, a jovem levou o cachimbo à boca. Adélia acionou o isqueiro para tentar acender o fumo. Duas, três, quatro vezes. Demorou quase um minuto para que a fumaça se avolumasse e envolvesse suas cabeças.

Terezinha tragou, fechou os olhos, prendeu a fumaça e passou o cachimbo para a irmã, que repetiu a ação. Elas trocaram o cachimbo de mão novamente e, na terceira troca, Adélia deixou o objeto de lado. Com um sopro forte e sonoro, as duas soltaram a última baforada do fumo, abaixando a cabeça antes de começarem a ler os versos da carta:

Mãe, olhai por suas Filhas

Mãe, olhai por suas Filhas

Mãe, aceite essa União

Nós te pedimos, ó Mãe

Pois tu nos ouves, ó Mãe

Aceite nossa União

E que as mãos que se apoiam

Sejam um só peso

Sejam um só nome

Mãe, olhai por suas Filhas

Mãe, olhai por Nós.

Ainda de mãos dadas, as duas irmãs se encararam fixamente. Estenderam cada uma a mão livre para o copo e, juntas, tocaram a água com o dedo indicador. Foi como se um balão estourasse. A explosão de vapor afastou toda a fumaça que ainda restava na sala. Por um momento, o ar ficou úmido e pesado, e, logo depois, frio e estático.

As duas se afastaram do copo vazio, soltando as mãos, e foram se ajeitar no chão da sala para esperar. Não se passou nem meio minuto até que alguém batesse à porta. Não na porta da sala, porém: o toc toc toc foi alto e vinha de todos os lados.

— Pois não? — Adélia falou com voz fraca, e quase tossiu.

— Setor de Transmutação Documental. Precisamos da sua autorização para conferência e coleta, por favor. — A voz grave parecia tediosa, porém educada.

— À vontade. — Adélia se levantou e fez sinal para que a irmã também ficasse de pé.

Sem qualquer outro aviso, surgiu diante delas, no meio da sala, um homem com mais de dois metros de altura, a careca a poucos centímetros do rebaixamento de gesso. Se estivesse vivo, não passaria pela porta, dada a largura. Ele vestia um terno de veludo azul e apertado, com botões verdes que pareciam limões cortados ao meio e encapados com tecido. Suas calças folgadas terminavam em sapatos marrons de bico quadrado. O homem as encarava com enormes olhos opacos e sem esclera. Trazia uma folha grossa de papel em uma das mãos enluvadas, e, na outra, uma lanceta de sangue afixada a um suporte de metal, como se fosse uma campainha de recepção com uma agulha no topo.

— Boa noite. — A voz do homem parecia um trovão. — Estes são os termos do registro de pactuação, atualizados em conformidade com o mais recente acordo entre as Comarcas, o qual pode ser conferido através da linha do Serviço de Informações Municipais. Ao realizarem a marcação sobreposta ao fim da folha, vocês concordam com os termos e efetivam o registro do ritual requerido. Por gentileza.

Adélia recebeu a documentação junto com a lanceta e, somente ao segurá-las, percebeu o real tamanho dos objetos, apequenados em comparação ao funcionário fantasma. Ela balançou a cabeça para o homem e sentou-se no sofá, acompanhada pela irmã. O documento, emoldurado por ornamentos retilíneos e rebuscados, continha os nomes das duas, a data e um vago indicativo de concordância com os termos mencionados.

Adélia apoiou a lanceta sobre o tampo da mesa e, sem hesitação, pressionou o polegar de encontro à minúscula ponta. Com uma carnuda gota de sangue pendente, Adélia marcou a digital no papel e passou-o para Terezinha. A mais nova esticou o polegar na direção da lanceta, mas a ponta do dispositivo se retraiu.

— Aguarde a higienização, por favor — soou a voz de trovão do homem de terno azul.

Com um bico de concentração, Terezinha observou o papel por alguns segundos, até que a ponta da lanceta reapareceu no suporte. A jovem depositou a segunda digital de sangue em cima da primeira e devolveu o documento marcado para o homem, que não se movia e nem piscava. A lanceta se retraiu para a base de metal, e ele a guardou no bolso do terno. Com as duas mãos, segurou o documento bem diante do rosto e, sem sequer inspirar, soprou a folha. A partir do centro, o papel incandesceu em um círculo crescente que, instantes depois, deixou apenas uma nuvenzinha de cinzas.

— Considerem a pactuação efetivada e registrada. — Ele abaixou os braços com tanta rigidez que estes mais pareciam cancelas. — O número de protocolo será enviado junto à nota de quitação da taxa em no máximo vinte e quatro horas. Pela atenção, obrigado.

O homem desapareceu do mesmo jeito que havia surgido, e a sala voltou a aparentar proporções menos claustrofóbicas. Adélia se adiantou até a porta e conferiu o olho mágico. O corredor estava vazio.

— É isso. — Ela se virou para a irmã, que roçava o polegar pelos dentes. — Resolvido, por enquanto. E eu espero, de verdade, que você não demore a cancelar esse pacto, viu?

— Pode relaxar — Terezinha falava cada palavra espaçada da outra. — Eu vou acertar tudo. Você pode ficar tranquila. Nem acredito que vou dormir em paz agora e acordar com a cabeça descansada.

A chuva parou no começo da madrugada. Ouvia-se apenas o coral de pingos que caíam dos beirais. Terezinha dormia em um colchonete no chão de um cômodo sem móveis e com uma tábua de passar encostada na parede, ao lado de um cesto de roupa e quatro caixotes de feira cheios de sapatos. Um neon magenta e ciano passou do lado de fora da janela e iluminou a parede com os dizeres “Não pense na Morte. A Divina Pensa por Você. O Plano de Pós-Vivência da sua Vida”.

Ela ouviu a porta abrindo, viu os pés caminhando até perto do colchão. Terezinha virou a cabeça para cima, e uma mão desceu em seu encalço. Zonza de sono e com as vistas embaçadas, ela não conseguiu reagir ou impedir que Ricardo puxasse a mochila de debaixo do travesseiro.

Antes mesmo de se pôr de pé, Terezinha segurou uma das alças da mochila e gritou:

— Que isso? Devolve minhas coisas! O que você tá fazendo, ô caralho? — Ela sentiu o cheiro de cachaça barata, mas logo caiu sentada com a dor de um tapa que pegou em seu olho esquerdo.

— Fica quieta, porra! — Ricardo gritou, a voz arrastada, a língua meio embolada. — Tô procurando uma coisa que seu pai me contou que você anda escondendo. Bandidinha burra do caralho.

Apesar da queda, Terezinha não largou a alça da mochila e partiu para cima de Ricardo, que tentou segurá-la enquanto levava vários socos no rosto.

O sujeito já era um otário nato, que costumava pagar de bonzão depois de um conhaque e uma lata de cerveja. Mas, depois que ouviu do sogro que Terezinha havia feito um ritual ilegal para apagar o próprio espírito e que agora estava escondida na casa dele, o bichão ficou virado no diabo.

Se eu senti vontade de interferir quando Ricardo se tornou violento? Sim. Sempre quero pendurar esse tipo de cara pelo saco e deixar chorando. Mas não funciona assim. Nesse caso, o que mais me surpreendeu foi o velho cagão ter tido coragem de passar por cima da lei dos homens. Fantasmas não podem sair por aí comentando a vida alheia. Pelo visto, o desejo de prejudicar a filha estava muito acima da lei e da ordem.

— Bêbado desgraçado! Encosto do inferno! Você vai se arrepender, ô seu merda!

— Que isso, vocês dois?! — Adélia apareceu na porta do quarto e, com três passos, já estava no meio da confusão. — Ricardo, larga a minha irmã! Ricardo, você bebeu! Larga ela! Terezinha, sai pra lá você também! Não tá vendo que ele tá bêbado?

Sem dar ouvidos a Adélia, Ricardo acertou um soco no rosto de Terezinha e empurrou a esposa contra a parede. Com as duas caídas, abriu a mochila e despejou seu conteúdo no chão.

Antes que silenciasse o retinir dos objetos espalhados pelo quarto, Ricardo acendeu a luz, e tudo ficou branco por alguns segundos. Mesmo sem enxergar, Terezinha se arrastou pelo chão e recolheu suas coisas, mas não teve chance de pegar tudo. Ricardo se abaixou e segurou apenas um dos itens expostos.

Cambaleante, ele mostrou para Adélia um pote de vidro. Dentro do recipiente, vermelho-escuro e no meio de um líquido turvo, pulsava um coração.

— Seu pai tinha razão! — Ele se virou para Terezinha, que ainda recolhia as coisas do chão, agora com a mochila nos braços. — Você perdeu a cabeça de vez! E vai fazer todo mundo aqui levar pedrada até morrer, ou pior! — Ele balançou o pote com o coração na direção da esposa. — Você sabe quanto tempo demora pra julgar esse tipo de coisa, Delinha? Sua irmã vai fuder com a gente mesmo, e a culpa é sua também!

— Aquele velho desgraçado da porra! — Terezinha se levantou e encarou Ricardo de frente. — Você sabe que não devia dar ouvidos pra nada que aquele bosta fala! Bêbado burro do caralho! Isso também é crime! Ele vai ficar amarrado até não ter mais nenhum conhecido vivo! — Terezinha gesticulava, abanando a mão na direção do rosto do cunhado. — Mas não! Os dois são tão burros que acham isso melhor do que me deixar em paz!

Antes que Terezinha encostasse em Ricardo, Adélia se levantou e empurrou a irmã. As duas se embolaram em agarrões até que a blusa de Terezinha rasgou. Adélia puxou o tecido e levou as mãos à boca quando viu, entre os seios da irmã, o longo corte suturado, inchado e preto.

Terezinha continuava de pé, sem qualquer menção de se cobrir. Parecia exibir o corte, com um esgar dos lábios e os punhos fechados. Fora esse um dos traços marcantes que fizeram com que eu começasse a seguir os passos daquela baixinha de pele escura. Não era apenas o ímpeto da juventude, mas uma promessa de coragem que se cumpria quando eu mesma já começava a duvidar.

— Você estragou sua morte! — Adélia caiu de joelhos, e suas palavras se misturaram a arquejos e soluços. — Acabou com nossa vida!

— Eu vou ligar agora mesmo pro posto da Vigília, tá entendendo? — Ricardo segurou Terezinha pelo pulso e começou a arrastá-la para a sala. A jovem se debatia, mas não conseguia se soltar. — Eu não vou pagar por nenhuma merda sua não. Você vai confessar e vai tirar minha família dessa confusão. E você vai embora dessa casa, sua demônia!

Quando Terezinha conseguiu se libertar, tentou tomar o pote das mãos de Ricardo, mas ele a derrubou novamente com um empurrão. Com os dentes cerrados, ela olhou em volta enquanto o homem pegava o cordão de contas peroladas em cima da mesa e segurava o pingente redondo entre os dedos.

— Espera! — Terezinha se arrastou para perto da mesa, de joelhos. — Eu vou sumir da vida de vocês! Sério! Eu vou embora agora! Ninguém vai saber que eu passei aqui. Ninguém vai saber que meu pai fez revelação nenhuma pra você. Você vai continuar limpo, Ricardo! Eu vou sumir! Me deixa ir embora! Por favor!

— Mentirosa! Desgraçada! — Adélia gritou do quarto, levantando-se e correndo para a sala. — Você é muito mentirosa. Como é que consegue ser desse jeito? Como é que consegue viver assim? Não acredito que fez isso com a gente. A gente marcou um contrato mais cedo, Ricardo. A gente fez um pacto de sangue. Não adianta ela sumir, que isso vai cair nas costas da gente do mesmo jeito!

— Vigília. — Ricardo balançava a cabeça, os lábios formando uma careta enquanto o cordão se enrolava no antebraço e piscava em vermelho.

— Vigília de Jardim da Penha, boa noite, com quem eu falo? — A voz cheia de ruído pesou por toda a casa, de modo que os vizinhos que ainda estivessem dormindo com certeza acordaram.

— Boa noite, meu nome é Ricardo Antonino. — Ele forçou a voz para não demonstrar a bebedeira. — Estou com uma criminosa dentro da minha casa neste momento. Ela está no meio de algum ritual ilegal que eu não entendo direito e não deve estar agindo sozinha.

— Senhor Ricardo, o senhor pode, por favor, dar mais detalhes sobre a situação? O senhor precisa de ajuda urgente?

— Sim, sim. Eu estou meio nervoso, encontrei o que parece ser um coração guardado em um líquido nas coisas dela, e minha esposa também está bem assustada. Precisamos de ajuda.

— Seu merda! — Terezinha avançou sobre o cunhado em um salto e derrubou-o de costas.

Quando Ricardo bateu na lateral do sofá, o cordão de contas afrouxou, o móvel deslizou pelo chão e os dois se embolaram em uma confusão de braços e pernas. Ricardo mantinha a mão com o pote afastada de Terezinha, e ela desferia tapas e socos no rosto do homem. Sem evitar os golpes, Ricardo segurou a jovem pelo pescoço enquanto ela chutava e se debatia.

— Putinha do caralho! Você vai cancelar essa desgraça desse contrato agora. — Ele tentava se levantar sem soltar o pescoço de Terezinha, que já mudava de cor e parava de socar o ar.

— Ricardo, pelo amor de Deus! — Adélia correu na direção dos dois, segurou o braço do marido e tentou, sem sucesso, separar os dedos dele do pescoço da irmã. — Você vai matar ela assim, Ricardo! Solta ela! Pelo amor de Deus, solta ela!

Com um chute na barriga, ele enviou Adélia de volta ao chão, que caiu dobrada sobre o próprio corpo. Ricardo soltou Terezinha no sofá e atirou o cordão por cima da esposa.

— Você não devia ter deixado essa vagabunda entrar na minha casa. Eu sempre disse que ela ia meter a gente em confusão. Não deu outra. — Ele se aproximou de Adélia, que continuava a segurar a barriga, ofegante, e apontou para o cordão. — Agora chama o Registro de novo que vocês vão desfazer essa merda antes da Vigília chegar aqui.

Do sofá, Terezinha viu Ricardo de costas. Ainda com a cara arroxeada, a vista turva, o pescoço vermelho e a respiração travada, ela aproveitou a distração do homem e se levantou. Com dois passos e o máximo de força que conseguiu reunir, acertou um chute em cheio no saco de Ricardo, que desabou sobre as próprias pernas com um gemido fino e arrastado.

Com a mesma vontade e um pouco mais de ar nos pulmões, chutou a cabeça e o tronco do cunhado até ele parar de gemer e a irmã pronunciar um abafado “não”. Adélia esticou um braço em direção ao marido, mas ainda não conseguia se mover mais do que isso.

Sem esperar a conclusão da cena, Terezinha tomou o pote da mão de Ricardo, pegou a mochila e foi até a área de serviço. Arrancando a camiseta do varal, pegou os sapatos e correu para a porta da sala. Antes de sair, arriscou um olhar para as duas pessoas estiradas do outro lado do cômodo.

— Você não faz ideia, Delinha. Espero que consiga me perdoar um dia. Porque um dia, Delinha… um dia, você vai cair na real e entender.

Do lado de fora, havia cabeças bisbilhoteiras encarapitadas em todas as portas semiabertas do corredor. As portas se fecharam em sequência assim que Terezinha se virou, o busto nu, o corte mal suturado.

Em segundos, ela vestiu a camisa, calçou os sapatos e partiu apressada pelo corredor, que acabava em uma escada larga, meio circular, com finos basculantes verticais de vidro azul e vermelho. Terezinha começou a descida acelerada de dois em dois degraus, mas logo escutou o splac splac splac das botas que subiam em sua direção. Ela quase viu os ornamentos de cabeça em forma de coco dos agentes da Vigília antes de dar meia-volta e correr para o apartamento de Adélia.

Por sorte, a porta ainda estava destrancada. A irmã continuava caída e chorosa ao lado do marido, que tentava se levantar. Terezinha bateu a porta e puxou o trinco, partindo na direção de Ricardo e acertando uma bicuda no queixo do homem, que caiu de costas. Ignorando o lamento de Adélia, Terezinha atravessou a sala rumo ao quarto no qual dormira. Alguém bateu na porta de entrada.

Com um trovão, a chuva voltou a cair forte. Terezinha segurou a tábua de passar encostada na parede do quarto e investiu contra a tela de náilon da janela. Abaulou a tela com o primeiro golpe. Com o segundo, a rede se soltou dos batentes de madeira. Em resposta aos oficiais da Vigília, Adélia e Ricardo começaram a gritar.

Terezinha olhou para baixo e colocou as pernas do lado de fora do apartamento. Estava no terceiro andar. As janelas do apartamento de baixo possuíam grades que se projetavam cerca de trinta centímetros para longe da parede.

Pá! Pá! Pá! A porta da sala estava prestes a cair.

Terezinha nem fez menção de mirar: soltou o corpo e se deixou cair. Suas pernas passaram pela frente da janela de baixo, e ela agarrou as verticais das grades, deslizando alguns centímetros até apoiar os pés na parede e firmar o corpo. Seus braços tremiam, e ela começou a se soltar. A chuva fazia as mãos deslizarem.

O apartamento do primeiro andar tinha grades grudadas nos vidros da janela fechada. Ela deixou o corpo pender o mais lentamente possível, mas não havia onde apoiar os pés. Trincou os dentes, os tendões da mão repuxados até o limite, mas os dedos não aguentavam.

Terezinha foi ao chão. O pé esquerdo bateu primeiro no concreto molhado do pátio dos fundos e recebeu todo o peso. Ela virou o corpo para não cair sobre a mochila, batendo as mãos, o peito e depois o rosto. A cabeça tremeu, mas não se chocou com tanta força.

O vermelhão na bochecha ardeu em contato com a água. Sem mais um segundo de espera, ela arquejou, rolou o corpo de lado e forçou a palma das mãos arranhadas para se levantar. A perna falhava.

Diante de Terezinha, nos fundos de dois prédios do mesmo condomínio, havia um pequeno trecho de muro não muito alto. Ela se obrigou a dobrar a perna, gemendo com as primeiras pisadas, mas chegou ao muro. Lá de cima, alguém gritava às suas costas. Ela demorou para conseguir içar o próprio corpo, e, pela pontada, soube que devia ter rompido um dos pontos do peito no atrito contra a superfície de chapisco.

Quando conseguiu se sentar sobre o muro, a jovem olhou na direção da janela do apartamento de Adélia e viu, através da cortina de água, os oficiais que gritavam para ela. Terezinha saltou para a rua e mancou o mais rápido que pôde. Mal chegava à quadra seguinte quando identificou as luzes de mais um carro da Vigília dando a volta na praça no fim da rua.

Terezinha se escondeu atrás de uma caçamba de entulhos de construção, perto de uma árvore na calçada. Entre o tronco da árvore e o metal da caçamba, com a iluminação encoberta pela copa frondosa e a chuva pesada, ela estava camuflada em uma sombra densa.

Alguns carros passavam, espalhando a água da rua, que já estava cheia de poças. A viatura da Vigília se aproximava com lentidão, sirenes desligadas e giroflex piscando. Terezinha conseguiu ver o veículo chegar até a esquina e encontrar com os outros dois oficiais que deixavam o prédio de Adélia.

Os oficiais conversaram com os recém-chegados. O motorista apertou o pingente do cordão de contas. Fazia tempo que eu não sentia tanta gana de interferir nesse tipo de situação. Não tentei esconder de mim mesma que eu já estava envolvida. Ainda assim, deixei passar. Ele abriu chamada com a central, e, a partir daquele momento, seria muito difícil Terezinha sair viva da perseguição.

— Irmão Claudiomar comunicando ocorrência em Jardim da Penha. Solicito atenção. Mulher desajustada em fuga. Desarmada. Descrição de testemunha aponta ritual ilegal de impedimento pós-vida. Alerta local. — Ele soltou o pingente e se virou para o colega que estava ao lado da viatura. — Que maluquice é essa de coração no pote, irmão?

— Te dizer que me falaram de quatro ocorrências desse tipo no mês passado. — Ele se apoiou no teto da viatura e falou como se contasse um segredo: — Porra, irmão! Isso aí é uma molecada burra demais. É meio golpe, sabe? Um pessoalzinho aí apareceu com umas histórias de ritual pra zerar dívida de seguro, bloquear envio de alma pra Purgatório do Estado, incorporar alma penada, umas paradas sem sentido nenhum. Assim, tem um ou outro que até pode ser. Mas esse de tirar o coração é golpe, com certeza! Pessoal acreditando que vai apagar a alma, morrer e, tipo, sumir…

— Quando a gente acha que já viu de tudo… Vai lá pegar o carro, bora encontrar essa peste logo pra não estragar a noite.

Eles apontaram na direção onde Terezinha estava escondida, e ela não tinha esperanças de que eles passassem novamente pela rua sem notá-la. Quando a viatura iniciou a manobra de retorno, Terezinha saiu de trás da caçamba e correu o mais rápido que a dor no pé esquerdo lhe permitia.

Ela não olhou, mas escutou o aviso da sirene e o barulho de aceleração sobre o asfalto cheio d’água. Ao chegar na esquina, a jovem seguiu para a esquerda, caçando um esconderijo com os olhos, mas a escolha foi ruim. A rua era mais movimentada e a iluminação era mais intensa, e a viatura já fazia a curva.

Do outro lado da rua, havia uma hamburgueria que funcionava no lugar de um sobrado reformado. Terezinha correu para a entrada, localizada em um beco que terminava no que um dia já fora um quintal. A viatura freou, e os homens saíram aos gritos e xingamentos, as pistolas em punho.

— Parada! Não tem saída! Acabou! Acabou! Acabou!

Ela chegou ao quintal lotado de mesas e cadeiras coloridas. As pessoas olharam assustadas, algumas se levantando e se afastando na direção do muro dos fundos. Do lado oposto, ficava o caixa, uma porta para o térreo e uma escadaria para o segundo andar.

Terezinha empurrou duas mesas, derrubou um garçom e um cliente que levantava o copo, e subiu as escadas aos gritos e tropeções. Os oficiais já pisavam no primeiro degrau antes que ela terminasse a subida.

— Segura! Segura! A gente vai pegar agora! — gritava o agente que liderava, a arma em punho.

— Não atira! Ninguém fez nada! Não atira! Tem criança! Criança aqui! — respondiam os clientes.

Terezinha atravessou uma área ainda mais apertada de mesas lotadas por pessoas sorridentes. A maioria dos clientes demorou para perceber a confusão devido ao volume da música.

Mais um balcão, outras quatro geladeiras vintage, lanternas japonesas penduradas no teto, engradados com garrafas vazias de cerveja, a portinhola para o banheiro, gritos de “ai, meu Deus” e o splac splac splac das botas molhadas. Terezinha derrubou os engradados e chegou a uma pequena varanda com balaustrada de madeira.

— Acabou! Acabou! Sai todo mundo da frente! Abre caminho! — Os oficiais perdiam tempo com os clientes em meio à confusão e à bagunça das mesas e garrafas caídas.

Havia mais um homem da Vigília logo abaixo, na rua, ao lado da viatura de portas abertas. Ele apontou a arma para cima e gritou para que Terezinha parasse, mas a jovem se jogou da sacada e caiu por cima do vigilante.

Os dois corpos tombaram na direção do capô do carro e rolaram para o meio da rua. Dois tiros estouraram, vindos de cima. O oficial arfou com um grito de “Caralho!”, e Terezinha soube que apenas ele fora atingido. Ela se levantou em um piscar de olhos e se preparou para correr, mas caiu novamente quando o homem a segurou pelo pé.

— Não levanta! Deita de cara no chão! — gritavam os agentes da sacada, fazendo mira.

— Fica quieta e vira a cara pro chão, porra! — ordenou o oficial atingido. Ele se levantou, já com a pistola apontada para Terezinha, que parou de se debater. Na sacada, os outros homens abaixaram as armas. — Vai! Mão na nuca!

— Imobiliza que a gente tá descendo, irmão! — falou um dos oficiais da sacada, guardando a arma e voltando pelo mesmo caminho por onde havia entrado.

— Vai! Cara no chão! Mão na nuca! — Ele mantinha a arma levantada. Fez um movimento para apoiar o joelho nas costas de Terezinha, mas sentiu a dor na perna baleada e preferiu permanecer de pé. Foi bem quando ela se virou e colocou as mãos atrás da cabeça que veio o ronco, a freada e o baque surdo feito tora de madeira jogada na terra.

Por um instante demorado demais, Terezinha escutou o barulho dos ossos do homem se partindo. O oficial voou quase um metro para cima, chocou-se com o para-brisa da viatura e caiu para o lado, por cima do retrovisor. O carro que o atropelara deu ré sobre a calçada oposta, depois acelerou outra vez e abriu a porta bem perto da cabeça da jovem.

— Sem frase de efeito. Entra logo! — Dalmo estendeu a mão para Terezinha, puxando-a para dentro do carro.

Com a porta fechada, ele acelerou e virou na primeira esquina à direita. Passaram pela primeira quadra e viraram novamente. Em uma rua de paralelepípedos, com árvores que cobriam os postes, Dalmo dirigiu olhando para as janelas dos prédios até enxergar um adesivo de “vende-se” em um apartamento no segundo andar.

— O que você tá fazendo, cara? — questionou Terezinha quando Dalmo estacionou o carro, mas ele já abria a porta para sair. Ela o seguiu pelo outro lado da rua até um edifício sem guarita, aquele com o adesivo na janela.

Dalmo tirou um molho de chaves do bolso da jaqueta enquanto caminhava. Remexeu nas várias etiquetas de imobiliária presas nas chaves até achar a correta.

Eles entraram pelo portão de vidro temperado e pórtico de granito. Uma chave menor abriu uma segunda porta, e os dois foram se esconder no apartamento vazio.

Luzes apagadas, janelas sem cortina, o escuro da copa das árvores pouco acima da vista, o clarão das lâmpadas dos postes sombreado pelas folhas. Uma fina camada de poeira escura recobria o piso de cerâmica branca. O azul e vermelho do giroflex da viatura iluminou a parede, e os dois se arrastaram para debaixo da janela. A Vigília passou pela rua uma, duas vezes.

Já haviam se passado uns vinte minutos. Foi somente na terceira vez que os oficiais pareceram reconhecer o veículo estacionado e pararam do outro lado da rua. Terezinha e Dalmo permaneceram em silêncio, sentados no chão, encostados na parede logo abaixo da janela que dava para a rua. Ela, de olhos fechados, segurava a perna esquerda.

Dalmo mexeu na jaqueta, retirando do bolso uma pequena Bíblia de uns quinze centímetros. Abrindo o zíper da capa de couro marrom, ele pegou uma folha transparente que estava solta lá dentro e a ajeitou sobre a contracapa, onde a folha ficou grudada como um adesivo.

Ele tocou o braço de Terezinha para que a jovem abrisse os olhos. A tela flexível, grudada sobre o couro da Bíblia, iluminou-se de repente e mostrou dezenas de ícones.

Dalmo aproximou o dedo de um deles e abriu o aplicativo de mensagens, que piscava com dezenas e dezenas de grupos — Força-Deus-Força-Nós, AlmaArmada04, VarõesDeFogo, AribiriEmGuerra, RoxoNoFilhoDeDeus, EstrelinhaComanda. Dalmo clicou no grupo que acabara de subir para o topo da tela.

 

PadrãoJPInternas

Irmão Élcio da Central 02:18

Confirmei o registro do carro. Roubado. Abandonou. Certeza.

Irmão Cláudio do Romão 2:19

Fugiram a pé. Nessa chuva vai ser dose.

Comandante Irmão Tonin 2:19

Pegaram outro veículo. Certeza. Vou dar ordem pra fechar.

Irmão Cláudio do Romão 2:19

Fecha. Fecha tudo. Com roda eles não saem daqui.

Irmão Élcio da Central 02:20

Seguem dados fornecidos pelo denunciante.

A imagem na tela era desbotada, mas dava para reconhecer a foto de Terezinha junto com nome completo, número de registro, endereço e o nome dos parentes. Cada item era um botão que dava acesso a mais informações. Terezinha estreitou os olhos e socou a própria coxa para conter a irritação. Mesmo sabendo que a irmã passaria todos os seus dados, era frustrante se ver exposta na tela.

 

Comandante Irmão Tonin 02:21

Já enviei dois Irmãos para o endereço indicado.

Irmão Assunção 02:23

Todas as saídas de JP fechadas agora.

Comandante Irmão Tonin 2:23

Pronto. Até de manhã a gente pega.

Irmão Élcio da Central 02:24

Irmão. Segue para o grupo fechado. Por favor.

Dalmo voltou para a tela inicial e abriu outro aplicativo. Diferente do anterior, havia pouca movimentação ali — as últimas mensagens eram de dias antes —, e os grupos não tinham nome. Um deles subiu para o topo da lista ao receber uma nova mensagem.

Irmão Élcio da Central 02:24

Acho que vocês não vão dormir até achar essa aí, viu?

Comandante Irmão Tonin 02:24

Sem paciência, Irmão! Fala logo!

Irmão Élcio da Central 02:24

A menina aí de vocês. Então, achei uma parada dela aqui que deve fuder o rolê bonito!

Comandante Irmão Tonin 02:24

Tá chovendo o caralho aqui e eu quero vazar. Expõe logo a situação, Irmão!

Irmão Élcio da Central 02:25

Tem uns vídeos aqui do mês passado que batem com o reconhecimento dela e tal. E pelo que o denunciante falou, confirma a suspeita que tá anotada aqui. Vocês se danaram bonito! Nem vão dormir amanhã!

Comandante Irmão Tonin 02:25

Caralho, Irmão! Fala logo essa merda!

Irmão Élcio da Central 02:25

A vadia tava pra entrar na lista do MoRRA.

Comandante Irmão Tonin 02:25

Não tenho conhecimento sobre isso, Irmão. Sobre esse MoRRA.

Irmão Élcio da Central 02:25

Vou passar pra Superintendente e ver se tiro você daí. Vai subir com essa parada. Espera um minuto.

Comandante Irmão Tonin 02:26

O que porra vem a ser isso?

Irmão Élcio da Central 02:33

Movimento Revolucionário Resistência Antimetafísica… MoRRA. Parada do pessoal do Comando de SP. Pessoal fez reunião mês passado e avisou que ia ter problema por aqui. Pediram pra segurar vídeo de todo lado. Depois pesquisa aí, rapaz.

Comandante Irmão Tonin 02:35

Não vou nem procurar. Se é coisa de paulista, eu tô fora disso. Dá um jeito de tirar a gente daqui na hora de levar o veículo.

Irmão Élcio da Central 02:35

Nem precisa procurar, irmão! Vou adiantar seu trabalho aqui, ó!

 

Um arquivo de vídeo foi enviado. Na parte inferior da tela, um ícone em forma de olho aberto, seguido pelo número 2, indicava a quantidade de pessoas do grupo que assistiam ao vídeo naquele momento.

— Apesar de se autointitularem como um movimento, é preciso deixar nítido que se trata de um grupo terrorista. — O vídeo começava com a entrevista de uma mulher de cabelos brancos, longos, vestida com o uniforme lilás desbotado do alto escalão da Vigília. A tela estava dividida em duas. Ao lado da imagem da oficial, a repórter fora parcialmente cortada da cena. — Uma sigla ridícula como MoRRA é outro ponto que contribui pra que muita gente tire por menos o que esse pessoal tem feito. É assim com todo grupo terrorista. Eles começam pequenos, ninguém dá muita atenção. Esperam que as Vigílias locais deem conta e aí depois se perguntam como as coisas chegaram a esse ponto.

— Uma coisa que a senhora já comentou em outras declarações — interrompeu a repórter — é que essa organização não é tão recente assim, como muita gente pode ser levada a pensar, principalmente por nunca ter ouvido falar sobre eles.

— É exatamente assim que eles trabalham — continuou a entrevistada. — Eles não vão chamar atenção até terem condições de bancar e bater de frente. No caso do MoRRA, o que a gente tem é uma organização que começou a se formar bem antes de adotar esse título. Eu diria que dá pra colocar uns trinta ou trinta e poucos anos aí nessa conta. E aí você imagina: só nos últimos cinco anos é que essa sigla começou a circular e a se tornar mais popular. Aqui em São Bernardo, eu me lembro de começar a atender ocorrências que considero trabalho do MoRRA há pelo menos uns sete ou oito anos. E aí você pode me perguntar “em que tipo de ocorrência eles estão envolvidos?”. A gente pode falar disso melhor mais pra frente. Mas o tipo de atividade do MoRRA vai de pequenos golpes de seguro até invasões de Purgatório. No ano passado, não me pergunte como, eles conseguiram esvaziar metade do Purgatório de Jardim Nascimento. Outra ação que ficou bem conhecida foi uma quebra de sigilo em massa dos dados da Além ABC. Tem espírito nessa história aí que a gente não sabe a situação até hoje.

— Parecem ações bem variadas — sugeriu a repórter. — Apesar do nome e da necessidade de compreender o MoRRA como grupo terrorista, acredito que, pra muita gente que nos assiste e que vai assistir a esse material depois, não fica muito nítido qual é o foco desse grupo…

— Mas o foco deles não é nítido mesmo! — A entrevistada pareceu se exaltar. — E eu acredito que fazem isso de propósito. Atacam uma seguradora aqui, derrubam um sistema de Vigília local ali, depois liberam umas almas e apagam uns dados e assim segue… Até o dia em que fizerem algo realmente grande! O que me parece que eles querem, e isso não vai fazer o menor sentido, é acabar com o pós-vida. — Tanto a entrevistada quanto a entrevistadora esboçaram um sorriso. — É esse o nível da coisa. Não faz sentido! Agora, isso não tem a menor importância, ao menos quando a gente sabe que eles vão continuar cometendo crimes até serem levados a sério. O que acontece é que esse povo vai dizer que o sistema de gestão pós-vida é ruim, que é injusto, que deve acabar e coisa e tal, mas eles não vão dizer como daria pra ser melhor. Isso não! No fim das contas, eles atacam é o nosso modo de vida. E tem muito jovem sendo arrebanhado e alienado por esse pessoal. Se parar pra pensar, você percebe o quanto essa ilusão é convidativa. Essa ideia de que você não vai precisar mais se preocupar com nada. Morri! Não preciso mais pensar em nada! Acabou responsabilidade! Acabou compromisso! Não ter mais conta pra pagar, não ter mais horário, não precisar respeitar ninguém… Esse sonho envolve muita gente, principalmente quem tá revoltado. E o jovem é revoltado…

— Mas se eles são tão eficientes assim nesse aliciamento, é de se imaginar que o grupo esteja muito bem organizado. A gente já consegue dizer como é essa organização, quem é a liderança ou…?

— Muito por alto! — A oficial passou a gesticular depressa, saindo e voltando para a tela. — Tem muita coisa que é óbvio que eu não vou comentar, porque tá sob sigilo. Eu me aposentei, mas continuo pactuada com a corporação. E não seria diferente. O que a gente pode falar com certa tranquilidade é que, hoje, o MoRRA tem células em atividade por quase todos os estados. O aliciamento acontece muito no boca a boca, no presencial. Quando eles usam transmissão, eles sabem fechar bem o espelhamento. É tudo bloqueado. Mas isso é raro. Agora… liderança? A gente até tem uns nomes. Eu não tenho certeza se essa informação tá liberada. Mas, se não tiver, eu vou cair da transmissão assim que eu disser Ferreira…

O vídeo terminava quando a tela da oficial era apagada. A entrevistadora talvez continuasse falando, mas o material havia sido editado. Depois de assistir ao vídeo, os oficiais seguiram trocando mensagens no PadrãoJPInternas, mas nada que fosse além do forte desejo de encerrar a jornada de trabalho antes que precisassem resolver algo mais complicado do que a mera apreensão de um veículo roubado.

O guincho demorou a aparecer. A chuva estiou. Mesmo com a janela fechada, Terezinha e Dalmo conseguiam ouvir a movimentação na rua. Perto do amanhecer, o carro no qual tinham fugido fora guinchado, e a última viatura da Vigília partiu. As mensagens mais recentes deixaram os fugitivos menos tensos.

Irmão Cláudio do Romão 04:49

Sem movimentação de outros veículos.

Irmão Assunção 04:51

Os dois seguiram a pé, então. Vê se mantém o bloqueio até de tarde.

Irmão Cláudio do Romão 04:51

A essa altura, já devem tá pra lá de Nova Palestina. Certeza.

 

Quando o dia clareou e os sons do bairro começaram a acordar, eles se arrastaram da sala para a cozinha e ficaram de pé no espaço sem janelas. Terezinha abriu a torneira da pia sem filtro e deixou a água correr por uns minutos antes de molhar o rosto e beber com as mãos em concha. Dalmo olhou os armários, que abrigavam apenas potes vazios e panelas amassadas, e verificou a despensa e a área de serviço.

— Só pra garantir que tá tudo vazio mesmo. E vamos torcer pra nenhum cliente vir visitar isso aqui logo hoje. — Ele retirou uma cartela de plástico do bolso da jaqueta e destacou um comprimido. — Toma. É pra segurar a fome.

— Alguém vai aparecer pra buscar a gente? — Terezinha engoliu o comprimido, foi até o canto da cozinha e se sentou em uma cadeira empoeirada, de estrutura de metal e assento rasgado. — Tá doendo muito já. — Ela tocou o peito sob a camisa, na região do corte.

— Não tem como não. — Dalmo balançou a cabeça, cruzou os braços e se apoiou na pia. — Até a gente ter certeza de que não tem mais nenhuma batida da Vigília, é sem condição de sair daqui. Aliás, é até melhor esperar ficar de noite também, saca? Ninguém vem buscar a gente.

— Cara, não tem condição isso. — Abraçada à mochila, Terezinha fechou os olhos e baixou a cabeça. — Eu tô muito cansada. Alguém precisa tirar a gente daqui. Cadê a porra da conversa de ninguém fica pra trás? E o papo de comunidade? Agora ninguém vai aparecer? — Algumas das palavras já se arrastavam, e a língua de Terezinha ficava preguiçosa e mole.

— Vai com calma aí. — Dalmo olhava para o piso, sem apresentar qualquer contração no rosto, quase como se não estivesse ali. — Você ainda nem completou sua iniciação na parada. E ninguém te convidou pra nenhum clube de vantagens, meu bem. Daqui pra frente vai ser só trabalho. E agora que você tá na mira, nunca que vão mandar mais alguém pra se danar junto. Já agradece que, se a gente sair daqui e eles lá decidirem te ajudar a sumir, você finaliza esse processo e fica livre da burocracia espiritual, beleza?

— “Eles lá” de onde, Dalmo? — Com a lateral do rosto apoiada na mochila, a voz de Terezinha saía meio abafada e lenta de sono. — Cara, você nem sabe o que tá falando. Tem mais alguém aqui do estado dentro do Movimento? Você só me apresentou uma galera de São Paulo. Faz quanto tempo que você entrou, sério?

— Ah, pronto! Agora vai dar pití? — Ele se afastou da pia e começou a balançar as mãos enquanto falava. O volume da voz se mantinha baixo, mas era como se estivesse gritando. — Eu não tenho disposição pra isso não, hein? Você acha que alguém vai se arriscar a parar numa porcaria de Campo de Penitência pra livrar a cara de quem nem entrou no rolê ainda? Se toca! E esse peito costurado aí não foi barato não, tá? Então segura a onda que você tá me devendo ainda.

Terezinha ficou em silêncio, mas não por medo ou por se sentir intimidada pelo homem. Seu olhar estava duro. Ela mantinha uma das mãos sobre o peito. Os pontos pulsavam. Se não cuidasse logo da ferida, pegaria uma infecção. Talvez ela já previsse que aquele seria um problema pequeno.

— Você disse que a moça que me cortou era de dentro do Movimento, que era ritual padrão já. — Terezinha não se levantou, não ergueu a voz. Apenas tensionou os lábios de modo que cada palavra saía cheia de raiva. — Agora mudou a história? Puta merda, bicho! Quantas vezes você viu essa porra desse negócio funcionar? Nenhuma, né? Você nem faz ideia. — Ela mordeu os lábios, desviando o olhar e apoiando os cotovelos nos joelhos. — Eu não devia ter te escutado. Como é que fui achar que você sabia o que tava fazendo? Não sei mais. Sério. Quando a gente sair daqui, acho que quero desfazer essa parada. — Como se erguesse um grande peso, Terezinha levantou a cabeça e se forçou a olhar para Dalmo. — Só me diz que você vai me levar lá e fazer aquela açougueira colocar meu coração de volta. Você vai, não vai?

Dalmo não respondeu. Apenas franziu as sobrancelhas, balançou uma das mãos no ar, virou o rosto e saiu da cozinha, como se Terezinha o tivesse ofendido. Sem energia para discutir, a jovem deixou que ele saísse e se arrastou de volta para a sala. A dor no estômago competia com a dor dos pontos no peito, mas ambas perdiam para a necessidade de dormir.

Ela poderia ter desconfiado muito antes. Mas, encantada com tudo o que havia lido sobre o MoRRA, Terezinha queria acreditar. Dalmo a convencera de que, para participar do grupo, ela precisava fazer um ritual que apagasse sua alma. Parecia fazer sentido. Afinal, essa ideia já estava no nome do Movimento.

O mesmo ímpeto corajoso que eu admirava fizera com que ela caísse no golpe. Se existem modos eficientes de escapar do pós-vida? Sim. Mas nenhum deles envolve um coração no pote. Aquilo ali era outro tipo de merda.

Eu não queria deixar que ela dormisse, mas fiquei na dúvida. É provável que essa tenha sido a desculpa que inventei para mim. As nossas vontades vivem de contornar ou ignorar sinais de “pare”. Eu precisava que ela percebesse o perigo. Mas, não posso negar, não era somente preocupação com a garota. Se ela deixasse de dormir, talvez fosse pior. Se ela não recebesse um sinal, talvez nós nunca fôssemos nos encontrar.

Uma parte de mim, ainda mais constrangida, morria de medo de que Dalmo pudesse me tirar a chance de ter uma companhia, mesmo que passageira. Isso era tão raro. Foi essa parte que não resistiu à tentação.

Um carro buzinou, cachorros latiram ao fundo, um alto-falante anunciou camarão, sururu e caranguejo, o vento assoviou pela fresta da janela, dois homens discutiram, um helicóptero passou.

Quatro ou seis mãos seguravam Terezinha pelos braços e a arrastavam. Ela tentou olhar ao redor e resistir, mas seu corpo não se mexia. Suas pernas continuavam esticadas, e seus calcanhares deslizavam na superfície lisa demais, escorregadia demais. As mãos que a carregavam passaram a pressionar com mais força, depois suspenderam seu corpo e o soltaram em cima de um bloco de concreto.

Uma linha de contrabaixo começou a tocar, e uma soprano acompanhou a melodia, mas em algum idioma desconhecido para Terezinha. Ela viu as figuras em uniformes da Vigília passando velozes à sua frente, mas não conseguiu mover o pescoço para acompanhá-las ou abrir a boca e gritar.

Ela ainda tentou fazer barulho quando o formigamento doloroso percorreu seu corpo, bem entre o pé e a mão esquerda. Sua blusa estava molhada na altura do peito, e o vento gelado atiçava o coração, que pulsava com um som grave e úmido.

Sua cabeça foi bruscamente empurrada até o queixo encaixar no esterno. A blusa rasgada, o peito aberto. Três fios orgânicos, grossos, brancos e rendilhados de vermelho saíam de seu coração como artérias. Ela seguiu os fios com os olhos até onde pôde. Eles percorriam o chão, separavam-se e terminavam afundando nas vértebras expostas de três pessoas nuas, de costas para ela.

O primeiro que conseguiu identificar foi seu pai, o corpo enrugado, as pernas curtas e grossas. O segundo foi Ricardo, seu cunhado, alto e magro, as pernas muito separadas. O terceiro era um corpo sem pele, que começou a se virar para olhá-la. Mas, antes que o rosto aparecesse, o coração de Terezinha queimou forte no peito.

Ela arquejou e acordou. Deitada no chão da sala, levou a mão ao tórax e respirou fundo. Sentiu os pontos inflamados e esperou para ter certeza de que não havia nenhum batimento lá dentro. A sensação do sonho ainda permanecia, como se uma mão invisível ocupasse o vazio.

Ela procurou em volta e não encontrou a mochila. Seu estômago roncou alto. Já era noite outra vez. Agachada, foi até a cozinha procurar pela mochila e por Dalmo. O cômodo estava vazio, assim como a despensa. Sem se abaixar, ela passou rápido pela sala e seguiu para o corredor de portas abertas.

Já no primeiro quarto, a jovem encontrou Dalmo de joelhos, nu, olhos fechados, com um braço a escorrer sangue para dentro de um pote de vidro e o outro com a mão enfiada no pote que guardava o coração de Terezinha.

Com um choque que lhe atravessou dos pés até a ponta dos dedos da mão, ela quase caiu, mas conseguiu se firmar. Dando a volta em Dalmo, segurou o pote com seu coração e girou a tampa para fechá-lo. Terezinha começou a se afastar enquanto Dalmo se levantava e se virava, calmo.

— Era pra você ter dormido um pouquinho mais, só isso — ele falou rápido, abaixando-se e pegando o pote com seu próprio sangue.

— Que merda é essa, Dalmo? — Terezinha deu um passo em direção à porta, mas ele bloqueou o caminho. — Dalmo, eu sei o que você tava fazendo e isso me dá nojo. Sai da minha frente.

— Você entende muita coisa, meu bem. — Dalmo deu um passo curto para perto de Terezinha, e ela não se moveu. — E você é corajosa. Eu sempre te achei corajosa. Tendo a concordar com você em quase tudo, sabe? Mas tem coisas que são erradas, e você não pode negar a natureza, certo? Você acha que isso aqui é uma brincadeira da qual você pode pedir pra sair quando ficar com medo ou se machucar? Não tem disso! Não tem volta! O coração aí é seu, mas é o meu nome que tá na roda. Se você tentar pular fora, vão me chutar junto. Então, assim, deixa eu fazer as coisas do jeito mais fácil…

— Você vai sair da minha frente. — Ela deu um passo firme para ficar cara a cara com Dalmo. — Ou você sai da minha frente ou alguém vai ouvir essa confusão! — gritou ela. — Porque vai ter confusão, seu monte de merda! Sai da minha frente ou eu vou socar essa porcaria desse pau até você sentir o que é natureza, seu merdinha do caralho!

— Meu bem, você precisa enxergar a realidade. Anda! — Ele tentava não elevar a voz, mas já tremia. — Ser antimetafísico é defender princípios objetivos. Você sabe disso. Alguns tipos de escolha vão contra a lógica, meu bem. E é responsabilidade minha te trazer para o caminho da razão!

— Porra, bicho! — ela gritou mais alto. — Vai tomar conta da porra do seu cu, ô caralho! É i-na-cre-di-tá-vel como não falta gente burra e escrota no mundo. Não tem diferença nenhuma entre você e qualquer burocratazinho espiritual com a bunda fincada na cadeira. Sai. Da. Minha. Frente! — Terezinha o empurrou, mas Dalmo a segurou pelo pulso. A jovem tentou se desvencilhar, mas não podia arriscar soltar o pote com o coração.

— Não, meu bem. Tem muita diferença entre uma coisa e outra. O Movimento é que se perdeu, começou a aceitar de tudo. Eu sei o que tô fazendo! Era pra você confiar em mim, porque sou eu que tô te levando pro caminho que você escolheu! E agora quer dar pra trás e a culpa é minha? Não faz sentido!

— Você é um fudido de um moleque de merda, Dalmo! — Terezinha gritava, balançava a cabeça e ria, olhando para os lados e tentando encontrar uma brecha para chegar até a porta. — Um moleque de merda frustrado, incompetente e preguiçoso demais pra estudar, aprender, ouvir e deixar de ser burro! São uns bostas como você que estragam tudo!

Do lado de fora, janelas se abriam e fechavam. Algum vizinho gritou que já havia chamado a Vigília.

Com os olhos arregalados e o corpo tremendo, Dalmo avançou sobre Terezinha.

— Você só pode tá doente! — Ele a pegou pelo pulso, e ela afastou a mão que segurava o pote. — Vamo acabar com essa história, e aí a gente corre daqui!

Sem equilíbrio e com a atenção focada em impedir que o pote quebrasse, Terezinha não conseguiu evitar os empurrões e foi derrubada. Esbravejou, xingou e tentou empurrá-lo com os pés, mas Dalmo se sentou sobre seu peito, pressionou o braço livre da jovem com um joelho e tentou forçá-la a beber o sangue recolhido no pote que segurava.

— Eu vou acabar com isso pra você! Aceita, Terezinha! Aceita! Você não pode ser tão burra! Aceita o que você escolheu, porra! — Ele apertou os dedos ao redor da boca dela e começou a despejar o sangue.

Terezinha balançou a cabeça até os dedos de Dalmo escorregarem. Seu rosto estava banhado de vermelho-escuro. Ela cuspiu na cara de Dalmo o pouco sangue que lhe havia entrado pela boca.

Com um urro, o homem ergueu a mão e a estapeou no rosto. Salpicos de vermelho sujaram a parede. Devido ao movimento do tabefe, Dalmo aliviou o peso por um momento, e Terezinha aproveitou para girar o corpo e jogar seu atacante de lado. Sem se levantar, ela o atingiu nas costelas com a sola do pé. Com um gemido engasgado, Dalmo rolou para o chão, deixando o pote cair sobre si e derramando todo o sangue.

Ofegante e com o líquido escuro escorrendo por entre as pernas, Dalmo se levantou a tempo de encurralar Terezinha na frente da janela. Ela continuava a segurar o pote contendo seu coração. Com a mão livre, sem se virar, ela abriu as duas partes de correr da janela.

— Você não vai pular, meu bem, eu sei. Não depois de todo esse esforço aí. E isso aqui… — Dalmo passou os dedos pelo sangue que cobria seu tronco. — Isso aqui era o jeito mais fácil de você ficar melhor. Agora eu vou ter que abrir esse peito à força. — Ele se aproximou rápido demais e pressionou o corpo de Terezinha contra a parede, segurando seu braço livre com uma mão e o pescoço com a outra. Ela tentou mover o corpo, mas não havia espaço para chutar sem ficar mais vulnerável. — Você vai entender, meu bem, você vai entender. E aí você vai ver como as coisas vão mudar!

Com a cabeça do lado de fora da janela, Terezinha tentou se distanciar para soltar o pescoço. Lá embaixo, uma viatura estacionou, e dois agentes da Vigília saíram e foram recebidos por um homem que vinha de dentro do prédio.

Terezinha encarou com firmeza os olhos de Dalmo. Eram olhos arregalados, que não piscavam. Suas sobrancelhas não se moviam, mas sua boca se entortara em um esgar de dentes trincados. Sem virar a cabeça, ela tensionou o corpo, deixando o pote com o maior cuidado possível sobre o parapeito e se segurando como conseguia entre o caixilho e a soleira da janela. Ao notar que a jovem parara de afastar a cabeça e começara a se aproximar dele, Dalmo sorriu.

— Você vai ver como a vida é bem melhor quando você faz o que é certo. — Ele afrouxou o aperto no pescoço de Terezinha e alargou o sorriso conforme ela se aproximava.

Com um impulso, Terezinha jogou o corpo para trás e levantou Dalmo. Sem conseguir forçar o peso de volta, o homem também foi elevado para fora da janela, em direção ao vazio. O peso de Dalmo deslizou primeiro.

Quando percebeu que ela não ia parar, Dalmo soltou o pescoço de Terezinha e tentou se segurar. Foi bem nesse momento que ela virou o corpo por completo, prendeu todo o antebraço por dentro da janela e atirou os dois para o lado de fora, sem se soltar da soleira.

Por um instante, os dois ficaram no ar, e, em seguida, veio o baque. Terezinha gritou, e a articulação do seu cotovelo estalou quando o peso de Dalmo a puxou para baixo. Eles se chocaram contra a parede do prédio. Ele continuava a segurá-la, balançando os pés à procura de apoio. Entre arfadas de dor, Terezinha chutou o rosto de Dalmo uma, duas, três vezes, até que ele a largou e caiu de lado no canteiro do prédio.

Ela não podia esperar pelo resultado da queda. Lutou para esticar uma das pernas e buscou apoio. Com mais força do que parecia ter lhe sobrado, Terezinha encaixou o pé entre o caixilho e o montante do lado de fora da janela, pegou impulso, ajeitou o apoio entre o braço e o tronco e conseguiu jogar a perna para dentro.

Ela lacrimejava de dor, a respiração falhando. O braço começava a inchar. Recolheu o pote com o coração, que continuava no canto do peitoril, e encontrou sua mochila perto da pilha de roupas de Dalmo. Guardou o coração e vasculhou os bolsos da jaqueta do homem até encontrar o molho de chaves. Com apenas uma mão trêmula e a mochila apoiada no ombro, todas as ações ficavam mais lentas.

Terezinha chegou à porta da sala, mas precisou jogar o molho de chaves no chão e demorar uns bons minutos até encontrar a etiqueta certa. Quando conseguiu abrir a fechadura, os oficiais da Vigília já surgiam pelo elevador. Terezinha correu na direção oposta e atravessou a porta vermelha e sem tranca do corredor que dava para as escadas.

Ao ouvir a Vigília informando sua localização e pedindo o fechamento da rua, Terezinha já estava subindo os degraus. Outros passos podiam ser escutados nos andares logo abaixo. Aquilo já era uma rota sem saída. Ela só podia subir, mas não conseguiria ser mais rápida do que aquelas botas.

Também não adiantava entrar em qualquer um dos andares, pois havia apenas uma portaria no prédio. Quais seriam as chances de encontrar um apartamento aberto? Daria tempo de tentar se esconder antes de ser vista? Ela não conseguiria saltar de nenhuma janela do segundo andar, não naquelas condições.

Quando chegou ao terceiro piso, seu fôlego falhava, e as batidas das botas se aproximavam. Os oficiais gritaram avisos para que a mulher se entregasse e não tentasse reagir, mas não pareciam correr tanto — afinal, era um beco sem saída. Terezinha arquejava e continuava mancando do pé esquerdo. O braço latejava, e, a cada passo, era como se ele inchasse e ficasse mais pesado.

O quarto andar era o último — depois dele, vinha apenas o terraço. Mesmo que houvesse mais andares, ela não conseguiria continuar. Não existia raciocínio no desespero. Uma parte dela era consumida pela repulsa, enquanto outra parte tentava ignorar as dores no corpo. Havia ainda o coração no pote e o cheiro rançoso de suor e sangue, misturado com chuva seca. As vozes ecoavam pelas escadas, e o ar abafado escapava de seus pulmões.

Terezinha atravessou a última porta vermelha de metal e se viu em uma área pequena. Não chegava a ser um terraço. Entre a porta e o guarda-corpo, que indicava os limites do prédio, não devia dar nem uns quatro metros.

Do lado esquerdo da porta, havia uma escada marinheiro que subia em direção a um aglomerado de antenas. Ela cogitou subir. Mas, além de não ter mais energias, de que adiantaria? A porta de metal não possuía tranca e era a única barreira que a separava das vozes e das botas.

Esbaforida, Terezinha apoiou o peso contra o metal da porta, mas foi empurrada e jogada na direção do guarda-corpo. Os oficiais da Vigília atravessaram, armas em punho e bocas que se moviam irritadas, com ordens para que a fugitiva se abaixasse. Ela não escutou, apenas fechou os olhos e aguardou.

Terezinha demorou para se mexer. Quase um minuto se passou até que abrisse os olhos. Ela piscou e tremeu, a respiração ainda acelerada. Os dois homens estavam parados, braços à frente, seus passos interrompidos.

Sem compreender, ela deu a volta e se afastou devagar do oficial mais próximo. Eles continuavam sem se mover. Um deles retirava um par de algemas, presas na lateral do cinto, e o outro preparava um bastão de choque.

Ela terminou de circundá-los e observou. Seu olhar foi atraído para fora da área cercada, para o espaço aberto, para o céu. Um pombo estava parado em pleno voo.

Com a boca aberta e o peito agitado, sem afastar os olhos do pássaro, Terezinha caminhou de costas, na direção da porta, e a empurrou. A porta se moveu.

— Você não precisa correr. A gente tem tempo.

Ela se virou e me viu. Sobre o estreito peitoril do guarda-corpo, eu caminhava. Enorme, alta e larga, coberta por tecidos que esvoaçavam e se misturavam, como que agarrados ao corpo. Era uma visão impressionante, eu sabia.

Difícil não aproveitar essas raras aparições. Eu devia estar com mais de três metros de altura, os cabelos muito longos, a pele marrom-avermelhada, opaca, os olhos sem pupila e de um branco quase luminoso. Tinha os pés descalços, ornados com cordões de contas vermelhas. Estava satisfeita com a aparência.

— Você pode descer, se quiser. Eu seguro eles aqui em cima até você fugir. — Fiz minha voz aveludada soar a centímetros dos ouvidos de Terezinha: — Mas não sei se vai adiantar. Na verdade, eu sei sim. Não vai.

— Catxuréu… — Terezinha balbuciou meu nome, abandonando o transe no qual havia caído. Baixando a mochila no chão de cimento, ela pegou o pote com o coração.

Ele ainda estava da mesma cor. Continuava a pulsar. Ela virou a cabeça depressa, como se eu pudesse ter desaparecido, e me estendeu o pote.

— Calma, amiga! Você ainda tá bem vivinha. Quer dizer, bem é um exagero. Vamos dizer mais ou menos vivinha. — Enquanto falava, desci do guarda-corpo e, em uma mudança brusca, diminuí de tamanho até ficar com a mesma estatura de Terezinha. — Melhor se sentar. — Estiquei a mão e puxei uma cadeira de madeira, como se esta sempre tivesse existido ali.

Circundei a jovem e toquei-a no ombro. Ela devia estar bastante eufórica para não desmaiar com aquela dor. Seu cotovelo era uma bola escura de inchaço. Não havia por que deixá-la naquela situação.

Todo o braço de Terezinha esfriou como se mergulhado em gelo. O cotovelo desinchou, e a dor desapareceu. Ela respirou e movimentou a articulação curada, olhando em meus olhos brancos. Seus joelhos se dobraram até fazê-la se sentar na cadeira, que agora estava junto a uma mesa, também de madeira.

— Isso é realmente muito criativo — falei de modo manso, tentando manter um meio-sorriso. Peguei o pote com o coração e coloquei-o sobre a mesa. — Infelizmente, não deve dar mais tempo de você completar… como é que vocês dizem? O processo, o ritual, alguma coisa assim. Além disso, esse troço aí não ia dar em nada. Não funciona assim. Se você completasse, o máximo que ia conseguir era escapar da rede de controle de dados do governo. Ia ficar sem CPF depois de morrer, mas sua alma ainda estaria lá. Quer dizer, ainda estaria aqui. — Sentei-me em outra cadeira, bem próxima de Terezinha. Afastei o pote de vidro e estalei os lábios. — Você continua assustada. Vai por mim: eu falei que a gente tem um tempo.

— É que… eu não tava preparada… pra isso… Eu não sei… eu… — Terezinha passou as mãos pelo rosto e, quando olhou novamente, encontrou dois copos sobre a mesa.

— Eu sei que você tem que ir embora daqui a pouco, eu sei. Eu não ia te segurar aqui eternamente. Não me entenda mal. — Abri bem os olhos, sorri e deslizei um dos copos na direção da jovem. — Mas acho que vale a pena dar uma respirada depois dessa correria toda aí, tomar uma bebidinha. Aí sim dá pra ficar em paz. Sem querer fazer trocadilho com essa coisa de “paz”.

— Desculpa… É que… eu não sei como dizer… E realmente foi um dia difícil. — Os olhos de Terezinha se arregalaram ao ver o copo se enchendo de um líquido amarelado e pedrinhas de gelo. — Eu precisava mesmo de ajuda. Muito obrigada por ter curado o meu braço. Eu realmente não sei, não sei o que dizer. Eu não sei se eu acredito no que tô vendo. Eu tô confusa… Isso aqui. — Ela apontou para o coração no pote. — Você disse que não vai funcionar. Mas, então…

— Não tem de quê, amiga. — Ergui meu copo, levei-o à boca e estalei novamente os lábios. — Delícia! Eu prefiro de limão. Fiz a sua de laranja. Você prefere laranja. Mas não muito doce. Pode beber tranquila. Sobre esse ritual que vocês tentaram… Bom, o negócio é que o seu colega lá tava mais interessado em interromper o processo pra te fazer de bonequinha dele, né? Até dá pra fazer a alma de alguém sumir por um tempo quando ela morre, só que definitivamente não é assim que se faz! Mas não fica triste com isso não. Se servir de consolo, vira e mexe alguém cai nessa lorota aí.

— Só que… eu queria tanto… — A voz dela minguou. Terezinha apoiou os cotovelos sobre a mesa e segurou a testa com a ponta dos dedos. — E o Movimento… é de verdade, eu sei! Como é que eles… Como é que eu fui tão burra? Eu só não queria… não queria trabalhar pra sempre!

— Segura sua onda. — Estendi a mão e abaixei seu braço. — Não tem nada de burrice! Isso acontece. E esse pessoal do Movimento… numa boa? Eu gosto deles. São gente fina. O problema é que, toda vez que alguém quer fazer qualquer coisa direito, interessante, bem-feita, aparece um monte de praga em volta pra pegar desavisado. Dessa vez foi você. Não se martiriza por isso aí não! E vem cá, pensa comigo. — Segurei seu queixo. Com um movimento delicado, fiz com que olhasse em meus olhos. — Não querer o pós-vida é uma decisão meio desesperada, né? Assim, o problema aí parece que é menos a parte da eternidade e mais a parte do trabalho… Mas enfim, bebe a caipirinha, que eu fiz com todo carinho!

Um pouco assustada, Terezinha experimentou a bebida. À medida que o líquido descia com um ligeiro arranhão pela garganta, ela abriu um sorriso largo. Sua pele não estava mais suja de sangue e suor, seu estômago estava cheio e o corte no peito não latejava.

— Realmente, tá uma delícia! — Ela estendeu o copo para um brinde, e eu retribuí.

Com os olhos fechados, Terezinha suspirou e deixou que quase um minuto se passasse em silêncio. Ela olhava para o coração, e quase dava para ouvir as pulsações do órgão dentro do pote.

Eu podia ler as dúvidas que se debatiam em sua cabeça. Era como se ela tivesse um letreiro luminoso em sua testa: aquele bem-estar era efeito da caipirinha preparada por uma divindade? Era assim que as almas mortas eram levadas? Mas como assim, se isso era coisa de antigamente? As ideias de Terezinha ainda fervilhavam, mas não na mesma velocidade. Os músculos não estavam mais cansados, um formigamento quente envolvia o estômago e um arrepio engraçado lhe subia pela espinha. Ela abriu os olhos e observou os arredores.

Os oficiais da Vigília, o pássaro, o ar e até a luz — tudo continuava parado. Quando seus olhos bateram em meu rosto opaco, eu a acalmei com um sorriso lento, meu queixo apoiado no dorso da mão.

— Por que eu? — a voz de Terezinha soou leve. — Por que você apareceu pra mim? Você aparece pra todo mundo que morre mesmo?

— Ah, não! É aquela história, sabe como é: na teoria, a prática é outra. — Ergui a cabeça e retirei os cotovelos de cima da mesa. Passei a equilibrar a cadeira nos pés da parte de trás, brincando com o copo. — Eu fico meio indignada com o que fizeram com a morte, pra ser bem sincera. Agora parece que só tem alma sebosa pra lidar, entende? Eu não tenho paciência pra tratar com esse povinho aí não! Triste? Triste. Tudo bem. Mas antes sozinha do que passando raiva. Não vou gastar saliva com essa galerinha chata do caralho que só quer mandar, mandar, mandar. E eles acham que sabem fazer as coisas. Então se vira, mané! Só te digo que já foi bem mais divertido do lado de cá. Ah, mas já foi bem mais divertido! — Voltei a cadeira para a posição normal e debrucei-me sobre o tampo da mesa, na direção de Terezinha. Mantive o sorriso que a acalmava. As palavras, mesmo em tom de reclamação, soavam mais como uma piada despreocupada. — Agora só aparece gente que não bebe, não fode e se acha importante. Você vira pra pessoa e diz “Você tá morto, ô caralho!”, e a pessoa ainda quer ir trabalhar. Que tipo de gente ainda quer ir trabalhar depois que morre? Isso é tipo vício, consome o sujeito, entende? — Bebi mais um gole e olhei para o alto com um balançar negativo da cabeça. Se meus olhos tivessem pupilas, estariam revirados. — E aí, quando eu finalmente encontro alguém com quem valeria a pena ter mais que três dedinhos de prosa, a pessoa só quer passar reto e sumir. Né não? — Lancei um olhar incisivo para Terezinha, que quase abaixou a cabeça. — Tudo bem, mulher! É direito seu. Sua alma, suas regras.

— Mas… você me escolheu. — Ela gesticulou, indicando o ambiente parado à nossa volta. — Eles iam me pegar ou eu ia morrer. E aí eles iam me pegar depois de morta. Você me escolheu.

— Nã-nã-ni-nã-não! — Ergui a palma das mãos no ar e prontamente afastei essa ideia. — Não sou esse tipo de divindade, amiga! Uma interferenciazinha aqui e outra ali é uma coisa. Isso é mais uma questão de entendimento das relações de vida e morte. Vou te dizer que a maioria resolve se esquecer do óbvio, e não sou eu que vou pegar a responsabilidade de sair por aí lembrando todo mundo disso. Aliás, se você chegasse a entrar lá pra o tal Movimento, você ia perceber que acabar com o pós-vida definitivamente não é o objetivo deles. O pessoal lá é até bem realista. E aqui… — Fiz uma pausa e bati com o indicador sobre o tampo da mesa. — Isso continua a ser uma escolha sua. Eu só vim, sei lá, pra um instante de reflexão… Pra aproveitar os últimos momentos e coisa e tal.

Terezinha me olhou de modo diferente. Eu podia sentir as engrenagens se movendo dentro daquela cabeça raspada.

— Você disse que o Movimento não quer acabar com o pós-vida. — Como se lesse minha mudança de expressão, um sorriso de canto de boca surgiu no rosto da jovem. — Você disse que tem um jeito de fazer a alma sumir. Então, será que eu poderia… “sumir”?

Eu gosto de gente esperta. Terezinha era esperta. Mas não sei se aquela foi a melhor decisão. Durante a conversa, até esperei que ela fosse se levantar e sair correndo pela porta. Quando tive certeza de que ela havia compreendido e decidido, apenas desejei encontrá-la novamente, mesmo que fosse pouco provável.

— Posso? — Apontei para o pote com o coração, e Terezinha fez que sim com a cabeça.

Sem esperar qualquer outro sinal, abri o pote e envolvi o órgão com a mão. Retirei-o de lá e o coloquei dentro de uma cuia larga e reluzente. Com as duas mãos, arranquei pedaços do coração e os levei à boca. O sangue não escorria pelos meus lábios, nem sujava meus dedos. O órgão parou de pulsar logo na primeira mordida.

Terezinha percebeu, com alguma estranheza, que a cena de uma mulher mastigando sua carne a acalmava ainda mais do que um sorriso. Ela fechou os olhos e inspirou fundo.

A cada mordida, ficava mais próxima de mim. Não se tratava de uma proximidade apenas física. Era como se ela fosse engolida junto com os pedaços de carne, como se minha língua acariciasse sua pele, molhasse sua boca e arrepiasse seus pelos.

Quando terminei de engolir o último pedaço do coração, Terezinha abriu os olhos e se viu envolta em meus braços. Sorri e sussurrei no seu ouvido:

— Quer mais uma dose antes de ir embora?

FIM

A foto quadrada mostra um homem de pele negra, cabelos morenos e barba mais comprida e escura também morena. Ele usa uma camisa cinza com as mangas arregaçadas, está olhando para o lado esquerdo, sério, e segura um livro. Atrás dele, é possível ver uma estante cheia de livros.

Leitor de ficção especulativa desde criança, Rodrigo Hipólito nasceu no interior de Minas Gerais e se tornou capixaba aos poucos. Escritor, historiador da arte, artista, professor e podcaster (Não Pod Tocar, Pindorama, MIDcast política), ele tem produzido em diversas mídias, com a escrita como horizonte. Seus contos, crônicas, artigos, ilustrações, vídeos, performances e outros trabalhos podem ser encontrados no site Nota Manuscrita.

Jana Bianchi é escritora, tradutora, editora na revista Mafagafo e cohostess do Curta Ficção. Em português, além de Lobo de rua (2016), publicou diversos contos em revistas e coletâneas. Em  inglês, tem ou terá textos publicados nas revistas Strange Horizons, Clarkesworld e Fireside. É aluna da turma de 2021 do workshop de escrita Clarion West. Jana mora no interior de São Paulo com os pais, duas cachorras e suas várias tatuagens animadas.

A foto quadrada mostra uma mulher branca, de cabelos morenos e cortados na altura do ombro, meio bagunçados. Ela está sorrindo levemente e tem a mão estendida na direção da câmera, com os olhos fechados. Ao fundo, que é bem desfocado, é possível ver as luzes urbanas de uma avenida.
A foto quadrada mostra um homem de pele branca, cabelos morenos encaracolados e cavanhaque também moreno. Ele usa um óculos com armação grossa e fones de ouvido.

João Pedro “JP” Lima escreve há anos mas é daqueles que vive empacado para lançar livro. Foi co-editor e escritor para o Tempo fantásticos, ajudou a fundar a Mafagafo e paga as contas avaliando conteúdo escrito e audiovisual. Também trabalha com RPG, jogos de tabuleiro, traduz e é leitor crítico. 

Fernanda Castro escreve, traduz, prepara, revisa e mata um leão por dia como freelancer no mercado editorial. Em 2020, publicou a noveleta Lágrimas de carne pela Editora Dame Blanche. Mora em Recife, cercada de passarinhos.

A foto quadrada mostra uma mulher branca, de cabelos morenos e encaracolados cortados na altura do ombro, meio bagunçados. Ela está sorrindo levemente e olhando para o lado direito. Usa óculos de armação escura e um pouco mais grossa e está com uma camiseta vermelha, sentada em um sofá.
A foto quadrada mostra uma mulher de pele negra, sorrindo, com os braços apoiados sobre uma cerca. Ela tem os cabelos morenos trançados, e usa uma bata estampada em tons de laranja e amarelo. Ela também usa um colar com pedras azuis, maquiagem leve, e sorri, olhando para a câmera.
Foto de Rafael Ferreira

Lorrane Fortunato é escritora, revisora, criadora do Resistência Afroliterária e editora da Revista Afroliterária, focada em promover literatura feita por pessoas negras. É autora de “A rota que me levou a você” e “As promessas que você me fez”, também participa das coletâneas “Confetes e serpentinas”, e “Flores ao mar”, todos publicados na Amazon.

Meu nome é Palloma, sou uma ilustradora digital freelancer de SP. Tenho bastante interesse em histórias em quadrinhos e tiro minhas grandes inspirações dos gêneros de ficção científica e horror.

A ilustração quadrada mostra o que parecem várias cartas colecionáveis de fundo holográfico contendo personagens diversos, com personagens (alienígenas e humanos) de Star Trek e jogadores de baseball. Bem ao centro, há um jogador de baseball de camisa branca e listrada de vermelho, com boné azul com um logo contendo uma bola de baseball, e segurando um taco de madeira.