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O conserto do motor estava levando tempo demais. Michel estava do lado de fora, sozinho, suando no acostamento da BR-381. Só voltaria para dentro depois que o mecânico terminasse o serviço, porque sabia que atrapalharia se ficasse perto demais. Sabia que era azarado. Azarado crônico, de forma indiscutível, irremediável e destruidora. Já tinham se passado dezessete anos de trancos e barrancos, tempo suficiente para que ele parasse de tentar convencer a si mesmo de que o caos que o perseguia era mera coincidência. A única coisa acertada na vida do menino era ainda não ter morrido — ou, o que seria pior, não ter sido expulso do time, já que costumava ficar mais tempo contundido do que em campo. De que adiantava ser ótimo centroavante se dava mais prejuízo do que lucro ao futebol de base do Cruzeiro Esporte Clube? Até o médico do Centro de Treinamento comentou. Sua única sorte na vida era o treinador gostar tanto dele. Ou ter tanta pena.
A cara de Tiago surgiu na janela do ônibus. Ele gritou para Michel:
— E aí, Frankenstein! Tá gamadão no mecânico?
“Frankenstein” por causa da coleção de cicatrizes que Michel carregava no corpo, e “tá gamadão” porque o time havia descoberto recentemente que Michel era gay. A maioria dos meninos tinha recebido a notícia com um sacudir de ombros, mas uma parte tinha reagido como se Michel houvesse revelado que era, na verdade, o ET de Varginha disfarçado de titular.
Michel continuou a ignorar Tiago. De vez em quando, até gastava um pouquinho de energia dando o dedo do meio a ele. Naquele momento, porém, estava preocupado demais para se importar: o técnico havia descido do ônibus e vinha na direção dele com cara de quem tinha alguma coisa chata para dizer. Será que havia chegado a hora da tão temida demissão? Será que tinham percebido que o azar dele era insustentável e que afetava o time inteiro também, até o ônibus? O menino inquietou os pés, dançando com o peso do corpo de uma perna para a outra.
— Fala, Michel, beleza?
— Preciso do emprego, treinador! — Michel se adiantou, esganiçado. — Somos só eu e meu pai lá em casa. O senhor sabe como esse país trata os profissionais da enfermagem da rede pública, né? Eles ganham malzão. E eu não tenho um plano B, tipo, não sou muito esperto, nunca fui bem na escola e tenho certeza que vou zerar o Enem, então nem dá pra sonhar com faculdade…
O técnico espalmou a mão no ar.
— Calma, criatura, não vou te dispensar. Só vim te recomendar uma benzedeira.
Uma carreta passou em alta velocidade na estrada, balançando o ônibus com o deslocamento do ar empoeirado e jogando os cabelos pretos e lisos de Michel para o lado.
— Como assim, uma benzedeira?
— É que a medicina tradicional até trata suas lesões, mas não dá pra prevenir, né? Vai ver essa má sorte aí é mal olhado, encosto, sei lá, alguma coisa assim. Não faria mal um banho pra descarrego.
Michel limpou o suor da testa com o braço.
— Ah. Sei. Ahã. É, pode ser, não custa tentar. Quando a gente voltar pra Beagá, procuro uma benzedeira.
O técnico não saiu do lugar. A conversa ainda não tinha terminado.
— Ouvi dizer que as benzedeiras do interior são melhores — o homem comentou, casual, como quem não queria nada. — Você podia aproveitar a tarde de folga hoje e visitar uma em Catas Altas, quando a gente chegar lá. Um amigo recomendou uma ótima. O nome dela é Adelaide. Até peguei o endereço dela, sabe, só por precaução.
O técnico enfiou a mão no bolso da calça azul do uniforme e tirou de lá um papelzinho dobrado. Michel aceitou o bilhete e tentou esconder a carranca. Por algum motivo, sentiu-se meio ofendido. Era como se o treinador admitisse que estava desesperado por uma solução, qualquer que fosse. Michel quis argumentar, mas o quê? Que não era religioso? Diante de certas situações, o ceticismo não tem vez. O centroavante balançou a cabeça para cima e para baixo, obediente, e guardou o endereço da benzedeira Adelaide dentro do próprio bolso. Recebeu dois tapinhas no ombro e torceu para que chegassem ao destino ainda naquele dia.
✻
Fosse como fosse, atrasaram-se um pouco para o almoço, mas chegaram inteiros. O prefeito recebeu o time na praça central da cidade, que consistia em um monte de casinhas ao redor de uma igreja robusta construída no ponto mais alto, virada para a serra. Vestidos de azul e branco, os meninos pisaram nos paralelepípedos e colocaram a mão na testa para enxergar a Serra do Espinhaço sem a interferência do sol. O paredão de pedra cinza-azulada emoldurava a região, imenso, imponente e majestoso. Mesmo silencioso, parecia prometer proteger tudo que via.
Michel já tinha visitado outras cidades pequenas antes, mas a maioria delas era só meio suja e sem graça. Catas Altas era diferente. Sentiu-se um viajante do tempo, voltando várias décadas no calendário. As construções eram todas pequenas, baixas e quadradas, com fachadas parecidas e janelas e portas de madeira colorida, como as que apareciam nas novelas das seis da Globo. Mesmo assim, a natureza ao redor ainda conseguia ser a parte mais interessante do lugar; verde e inquestionável, pura e mística. Dava vontade de sair sem rumo, explorando cada canto.
Enquanto o resto do Cruzeiro almoçava com o prefeito, Michel digitou no GPS do celular o endereço que o técnico tinha anotado. Abriu o aplicativo do Uber só por desencargo de consciência, mas não havia motorista algum na região. Descascou uma mexerica que tinha trazido na mochila e foi caminhando mesmo. Não era longe, mas ele tomou o cuidado de andar na calçada lisa para não correr o risco de torcer o tornozelo nos paralelepípedos da rua. Já tinha acontecido antes.
A casa da benzedeira Adelaide ficava quinze minutos adiante, logo depois da ponte de madeira estreita e antiga que servia de travessia sobre o riacho com fundo de pedra. Ponte que nunca antes deixara ninguém na mão, mas que tinha partido na madrugada anterior sem mais nem menos, horas antes de Michel precisar atravessá-la. Do outro lado da margem, um grupo pequeno de moradores estava se inteirando do acontecido. Ao enxergar o forasteiro, um deles tratou de informar:
— É raso, patrão. Dá pra atravessar a pé.
Michel cutucou o GPS para descobrir se havia um caminho alternativo. Havia, mas dava uma volta de seis quilômetros no meio de uma trilha em mata fechada. Sem mais delongas, o menino suspirou, arregaçou as barras das calças e se conformou. O que será que estava por vir? Um choque-térmico? Uma mordida de piranha? Deu o primeiro passo, enfiando o pé na água rasa. A correnteza não era forte, pelo menos. Bom sinal, mas ele continuou a dar um passo de cada vez, exalando cautela.
— Precisa ter medo não, sô — o morador incentivou do outro lado da margem, fazendo um gesto apressado com a mão.
Mas Michel se conhecia. Precisava ter medo, sim. Sempre precisava ter medo de tudo. Avançou com cuidado, mas o tombo veio — antes da metade da travessia. Escorregou em uma das pedras, talvez por culpa do lodo, e caiu sentado. Molhou-se até o peito, depois tombou para a esquerda e engoliu água. A mochila era impermeável, mas o celular estava no bolso. Xingando e tossindo, Michel se levantou, só para cair de novo; dessa vez, bateu as costelas e quase se afogou em uma rasura boba daquelas. Patético. Ainda bem que Minas Gerais não era um estado litorâneo, senão ele teria morrido afogado na primeira marolinha que cismasse de pular no Ano Novo. Quando o jogador finalmente saiu do rio, ensopado, o grupinho de moradores estava de olhos arregalados e mão tampando a boca.
— Menino do céu — uma mulher de touca de meia na cabeça disse. — Parecia que você e o riacho estavam lutando, uai! Você levantava e ele te derrubava, você levantava de novo e ele te derrubava outra vez. Machucou?
Michel fez que não com a cabeça, embora ainda estivesse meio engasgado. Tirou o celular ensopado do bolso, já com a tela apagada, e o descartou em uma lixeira de rua antes de seguir seu caminho. Sempre comprava celulares baratos porque não costumavam durar muito; já deveria ter se acostumado com a maneira como tudo parecia descartável à sua volta, mas ainda ficava chateado. Os moradores continuavam espantados quando Michel seguiu caminho, batendo queixo de frio.
A benzedeira Adelaide morava no número 33 da rua Macaé, em uma casinha pequena e quadrada, protegida por grades na parte da frente e por muros nas laterais. Michel bateu palmas e assoviou da calçada, já que não encontrou campainha ou interfone do lado de fora. Uma vizinha curiosa esticou o pescoço por cima do muro para ver o que estava acontecendo. Atrás do portão de grade do número 33, a porta se abriu e uma adolescente saiu para o jardim maltratado.
— Boa tarde — Michel cumprimentou. — A senhora Adelaide está?
A menina abriu um sorrisinho.
— Obrigada pelo “senhora”, mas não precisa dessa formalidade toda.
— Beleza. Mas ela tá aí ou não?
— Tá. Sou eu. — A menina olhou para o lado, bem a tempo de pegar a vizinha curiosa no flagra antes que ela abaixasse a cabeça e sumisse atrás do muro. — Tá boa, Verinha?
Verinha não respondeu. Michel ouviu passos se afastando depressa no chão de cimento do outro lado do muro.
Adelaide destrancou o portão e convidou Michel para entrar. Ela era branca e baixa, tinha cabelos ondulados cortados na altura dos ombros e usava óculos de grau com armação grande demais para o rosto pequeno, fazendo com que ele se lembrasse vagamente do Mister Magoo. Vestia uma camiseta velha e desbotada de Sandy & Júnior, shorts jeans simples e um par de chinelos.
Antes que alcançassem a porta da casa, Michel parou e perguntou, desconfiado:
— Quantos anos você tem?
Adelaide se virou para responder:
— Dezesseis. Mas não esquenta. Sou boa. Padre Graciano já abençoou meus serviços.
Michel não fazia a menor ideia de quem era padre Graciano, mas devia ser alguém importante, porque Adelaide tinha falado com muita confiança. De repente, com a mesma praticidade, ela se abaixou. Bem a tempo de escapar do balde de água que Verinha tinha atirado na direção deles, por cima do muro. O atingido foi Michel, que não tinha pressentido o perigo e quase se afogou de novo. Adelaide, seca, endireitou o corpo enquanto Verinha bradava, com punho no ar:
— Pirralha irresponsável! Não tem idade para fazer benzeção! Padre Graciano tá gagá!
A benzedeira mirim ignorou a ofensa e puxou Michel para dentro, que passou as mãos no rosto e nos cabelos para tirar o excesso de água antes de passar pelo capacho.
— Verinha me odeia, só porque recebi a bênção de Padre Graciano pra benzer quando tinha catorze anos — Adelaide explicou, fechando a porta pelo lado de dentro. — Ela tem uns cem e ainda não conseguiu a carteirinha de benzedeira. Os netos dela viviam empoleirados no muro atirando água em mim com arminhas de plástico. Um dia, Jandira roubou os brinquedos deles e eles saíram chorando. Mas agora tá pior, porque Verinha adotou o balde.
— Quem é Jandira?
— É minha égua. Fica lá no fundo, no curralzinho, mas às vezes deixo ela solta. Vou pegar uma toalha pra você.
A casa da benzedeira Adelaide era atulhada de prateleiras recheadas de remédios feitos de plantas medicinais. Michel nunca tinha sido tratado com pomada de arnica ou creme de eucalipto antes, até porque não confiava muito naquele tipo de coisa, mas ficou impressionado mesmo assim.
Depois que se secou o máximo que pôde, a benzedeira o sentou numa cadeira de madeira no meio da sala e o ouviu relatar sua coleção de azares. Ossos quebrados, quedas de bicicleta, atropelamentos por carrinhos de mão, doenças teoricamente já extintas, despertadores que não tocavam, objetos extraviados pelos Correios, engasgos com vento e incontáveis escorregões futebolísticos. Adelaide, então, tentou de tudo — reza do terço, livramento de encosto, equilíbrio de energia e até análise de aura. Quando nada na probabilidade de bênçãos do menino pareceu mudar, ela se sentou no sofá em frente e adivinhou:
— Você foi adotado, não foi, Michel?
Pausa.
— Logo depois de nascer — Michel respondeu, tentando não parecer alarmado com o fato de que a menina sabia daquilo. Como ela podia ter adivinhado? Não era algo que ele saía contando por aí, até porque ninguém desconfiava: ele e o pai eram tão parecidos que bem que podiam mesmo ser parentes de sangue. Compartilhavam o mesmo tom de pele escuro e avermelhado, os mesmos olhos estreitos, os mesmos cabelos pretos e lisos e até a mesma obsessão pelo Cruzeiro Esporte Clube. — Como você sabe?
— Você é filho de anjo, Michel — Adelaide resumiu, sem mais delongas.
Pouca gente era entendida do assunto, mas Adelaide explicou que tinha aprendido bastante coisa em suas visitas ao tagarela padre Graciano, residente do Santuário do Caraça. Segundo a benzedeira, quando o homem não estava reunindo restos de carne do refeitório para alimentar os lobos-guarás que apareciam toda noite no pátio da catedral, estava sentado em um dos bancos do jardim jogando pipoca para os jacus e compartilhando, com quem quisesse ouvir, todas as suas teorias sobre anjos encarnados, anjos em missão e até mesmo anjos caídos. Michel ouviu tudo aquilo sem realmente prestar atenção, porque ainda não tinha processado a informação inicial. Abobado, perguntou, como qualquer outra pessoa faria:
— Como assim, filho de anjo?
— Filho de anjo, uai — Adelaide repetiu. — Deus coloca umas condições meio malucas antes de autorizar uma visitinha dos soldados dele à Terra. Para começar, anjos encarnados ou em missão não podem revelar o que são a nenhum humano, independente do contexto. Também não podem fazer piadas ácidas, nem tocar gaita, mas a proibição principal é quanto à reprodução. Pra seres divinos, gerar filhos é imperdoável. Nem adianta fazer essa cara, que eu também não sei por que tudo isso é considerado tão grave assim. Anota aí pra perguntar pra Jesus quando ele resolver voltar. Mas a questão é que anjos pecadores são sempre punidos. Deus não perdoa, já dizia minha vó Zezinha. E a punição pros reprodutores é parir filhos sem anjos da guarda. A criança passa a vida toda desprotegida, aos trancos e barrancos. E aí vem o abandono, porque anjos não sabem lidar muito bem com culpa, sabe? Não conseguem ficar por perto sabendo que o futuro do filho promete tanta desgraça. Dão no pé e largam o bebê com alguém. Ou, como diz padre Graciano, picam a mula sem olhar para trás.
Michel precisou de cinco minutos para absorver aquelas palavras, mas não ousou duvidar de nenhuma. Quem inventaria um negócio daqueles? E, para todos os efeitos, ele tinha mesmo sido abandonado antes do sexto mês de vida, na porta de um hospital. Se não fosse Fernando, o enfermeiro recém-contratado, e seu imenso coração, Michel teria ido parar em um abrigo da prefeitura e possivelmente estaria lá até hoje. No mais, não havia tempo para qualquer tipo de questionamento. Michel estava à beira da maioridade. Em pouco tempo, não poderia mais jogar pelo time da base cruzeirense. Era subir para o profissional ou abandonar sua carreira dos sonhos. Além disso, na partida do dia seguinte, um jogo amistoso e beneficente, o técnico do time profissional do Cruzeiro estaria presente a fim de avaliar o desempenho dos meninos da base. Michel precisava impressioná-lo e, para isso, era melhor que não socasse o nariz na trave quando cabeceasse a bola para dentro do gol.
Sacudindo a perna para cima e para baixo, nervoso, ele perguntou:
— Tá, vamos tratar da questão mais urgente primeiro: como resolvo esse trem de não ter anjo da guarda?
— O Conselho de Ética das Benzedeiras me orienta a te sugerir um gato.
— Um gato?
— É, um gato. De estimação.
— Um gato de estimação vai substituir meu anjo da guarda?
— Não. Mas vai purificar o ambiente da sua casa.
— E purificar o ambiente da minha casa vai resolver o meu problema?
— Não. Mas deve te ajudar a quebrar menos pratos quando estiver lavando louça e a não tomar choque no registro do chuveiro.
Michel colocou a mão no joelho para impedir a perna de continuar se agitando. Balançando a cabeça de um lado para o outro, preocupado, rejeitou a solução.
— Não vai servir. Preciso de alguma coisa que me proteja o tempo todo e não que me impeça só de meter o mindinho na quina da minha cômoda velha. Você não tem outra sugestão?
Adelaide admitiu que tinha, e dava para ver que ela estava doida para desembuchar, mas relutou porque aquilo ia contra o manual da benzeção. Ela andou de um lado para o outro, agitada, conversando mais consigo mesma do que com Michel.
— Se Verinha sonhar que estou cogitando receitar isso aos pacientes, vai me esperar na porta de casa pra tacar fogo em mim. E, ainda por cima, vai receber apoio das benzedeiras mais velhas, que também não vão muito com a minha cara, e, se bobear, até de padre Graciano, que vive me alertando para não ser irresponsável nos tratamentos, até porque eu…
Foi quando o pé frontal direito da cadeira em que Michel estava sentado simplesmente se partiu em dois, jogando o centroavante com tudo no chão. Depois de se recuperar do susto e do grito, Adelaide comentou, com a mão no coração:
— Credo, seu caso é grave mesmo, hein! Se você conseguiu quebrar uma cadeira construída pessoalmente por Erivaldo Jambu, o melhor carpinteiro da Zona da Mata, não vai mesmo ficar seguro em nenhum lugar desse mundo. Tipo, nunca. Ai, meu pai. Seja o que Deus quiser, então, porque não posso te deixar passar o resto da vida nessa peleja. Meu coração jamais ficaria em paz. Que se dane o Manual da Benzeção! Ai, Deus, me perdoe por ter dito isso, foi sem querer. — Ela fez o sinal da cruz e jogou um beijo para o teto. — Pegue suas coisas, Michel, pois cavalgaremos!
Adelaide colocou as mãos na cintura e ergueu o queixo, decidida. Os óculos caíram para a ponta do nariz.
Michel ainda estava caído no chão quando perguntou:
— Nós o quê?
— Cavalgaremos, uai. Você não tem carro, tem? Porque eu não tenho. E, mesmo que você tivesse, eu não pegaria carona com você. Sem ofensas.
— Mas eu não sei andar a cavalo.
— Pode ir na minha garupa. Jandira é boazinha.
Michel sacudiu a cabeça de um lado para o outro, já prevendo desgraça.
— Vai acontecer alguma coisa, Adelaide, tenho certeza. O bicho vai disparar, ou me dar um coice na cara, ou empacar em algum lugar perigoso e nunca mais querer andar. Já aconteceu antes.
— A gente leva o Breu. Ele afasta seu azar. Ou um tiquinho dele, pelo menos.
— Levar o Breu?
Como se esperasse a deixa para entrar em cena, um gato preto adentrou sorrateiro a sala e esfregou a testa na perna de Michel, que seguia caído.
— Achei que gato preto dava azar — Michel comentou.
— Achou errado.
— Tá, e pra onde a gente vai?
— Explico no caminho — a benzedeira proferiu.
✻
Se Adelaide tivesse falado antes de saírem, Michel não teria ido, porque o destino era uma fazenda antiga e afastada povoada por quarenta e seis demônios. O menino só não pulou de Jandira quando Adelaide revelou a surpresa porque a égua estava trotando rápido demais, mas, em desespero adiantado, ele agarrou com força a cintura da benzedeira e implorou aos berros que interrompessem a desventura. Breu, que ia entre os dois, dentro da mochila que a dona carregava nas costas, gritava também, irritado com a confusão.
— Demônios são só anjos caídos — Adelaide argumentou, enquanto saíam das ruas vazias de paralelepípedo e desembocavam em uma estradinha de chão batido sob o sol da tarde.
— Tô nem aí! Não quero encontrar criatura nenhuma vinda do Inferno!
— Mas eu posso explicar!
— Prefiro continuar deslocando a clavícula a cada dois meses do que ser chifrado por um discípulo do Coisa Ruim!
A égua acelerou.
— Você está esmagando o Breu nas minhas costas, Michel! Não tá ouvindo o bicho se esgoelando, não?
Michel afrouxou o aperto, relutante. O gato lhe fuzilou com um olhar mortífero de dentro da mochila, enfiou uma pata pela abertura do zíper e, num golpe só, abriu um corte raso e comprido na bochecha do menino. Aquilo foi o suficiente para que Michel tombasse para o lado direito e despencasse no chão de terra como um boneco de pano, aterrizando com força entre duas pedras pontiagudas e levantando poeira. A égua freou poucos metros à frente e Adelaide olhou para trás. Chateado, Michel espanou a terra da roupa e se colocou de pé, tentando ignorar a dor da pancada.
— Ufa! Escapou das pedras. — Adelaide abriu um sorrisinho constrangido. — Tá vendo? Proteção felina! Boa, Breu!
— “Boa, Breu”? Foi ele que me fez cair!
— Deixa de ser ingrato, Michel.
Sem escolha, o menino ajeitou a mochila nas costas e subiu na égua outra vez, com raiva. Se soubesse o caminho de volta, voltaria a pé mesmo, mas era bem capaz de se perder no meio da floresta e ser obrigado a se alimentar de insetos e goiabas bichadas por mais de uma semana. Já tinha acontecido antes. Adelaide pressionou os calcanhares nas costelas de Jandira que, obediente, seguiu viagem, agora em ritmo mais lento.
À medida que a trilha avançava, a Serra do Espinhaço ficava maior, mais íngreme e mais próxima. Tinha chovido nos dias anteriores, o que ocasionara o surgimento de muitas quedas d’águas na extensão do paredão. Era como estar de frente para uma exposição de longínquas cachoeiras.
No final da tarde, quando o sol baixou consideravelmente e insetos começaram a voar para fora da mata (Michel engoliu um vagalume sem querer), Jandira parou em frente a uma porteira. Tinham chegado.
A verdade é que Adelaide nunca tinha ido até ali, coisa que Michel só descobriria mais tarde. A menina havia embarcado nos relatos de padre Graciano sobre o lugar em todas as vezes que o homem puxara o assunto. Apesar de se inteirar sobre todas as fofocas a respeito dos rituais que aconteciam ali, porém, nem o padre tinha coragem de confirmar tudo com os próprios olhos — e, nem em um milhão de anos, aconselharia alguém a fazê-lo. Mas Adelaide não tinha culpa de ter nascido curiosa, otimista e aventureira, não é? O que poderia dar errado?
A benzedeira amarrou Jandira a um tronco de buganvila e tirou da mochila cenouras para alimentá-la, além de um pote vazio que encheu com a água. Michel nunca tinha visto uma nascente de água com os próprios olhos e achou tão místico quanto descobrir que era filho de seres divinos quebradores de regras. O fiapinho de água limpa simplesmente brotava da terra marrom e fofa como se alguém tivesse plantado uma muda de rio ali.
Adelaide alisou a crina da égua e prometeu não demorar. Não que Jandira parecesse ter pressa. Girou uma orelha para espantar um pernilongo e se aquietou.
A porteira estava trancada. Michel hesitou. Adelaide enfiou o pé em um dos vãos entre as chapas de madeira, içou o corpo para cima e pulou para o outro lado, como se nada fosse.
— Anda, sô — ela chamou, espanando a poeira das mãos.
— Isso não é invasão de propriedade?
— E daí?
Silêncio.
— Você esqueceu quem mora aí? — a voz de Michel subiu um tom.
— Bom, caso você não tenha reparado, não tem como anunciar nossa chegada, porque os moradores não instalaram um interfone nessa porteira, assim como Deus não instalou um anjo da guarda em você. Não tá cansado de viver todo arranhado, estrebuchado e torto? Você precisa arriscar. É sua única chance. Eles são anjos.
— Mas são caídos! Esses aí são os anjos ruins. A gente podia pelo menos ter ido atrás dos bonzinhos.
— Bonzinhos? Tipo aquele que te pariu só para te abandonar depois?
— Caramba, benzedeiras não deveriam ser mais sensíveis? Enfim, olha, Adelaide, é que tá na cara que esse cadeado é mais que um empecilho. É um aviso. Uma ameaça. Uma placa de “não entre nem fodendo”, com três exclamações no final.
— Isso é pra padre Graciano não xeretar. Os anjos caídos não gostam muito dele.
— E vão gostar da gente?
— Claro que vão. A gente não é tão careta.
O pernilongo que aperreava Jandira pousou no nariz de Michel. Ele se deu um tapa para espantá-lo, depois mudou a abordagem com Adelaide.
— E como, exatamente, esses demônios me ajudariam?
— Vamo, meu filho, desenvolve! Deixa de faladeira e anda logo! Não quer se dar bem no jogo amanhã? Você já veio até aqui, vai dar pra trás logo agora?
Contrariado, Michel finalmente pulou a porteira e se juntou à Adelaide. Embora ainda não fosse inverno, a mata próxima baixava a temperatura da área no fim do dia. Pelo menos, as roupas dele já estavam secas. Vestiram as jaquetas que tinham trazido nas mochilas e continuaram a trilha, com insetos zunindo nos ouvidos e pios de pássaros noturnos vindo de todos os lados. Por três quilômetros inteiros, parecia que nunca chegariam a lugar algum. A lua apareceu, cheia e amarela. As primeiras estrelas brilharam, e Michel tropeçou enquanto as admirava, porque eram muito mais e muito mais bonitas do que as da capital. Adelaide tirou o celular do bolso e ligou a lanterna para iluminar a trilha por onde andavam. Quando a casa finalmente apareceu à frente deles, Michel desejou que não tivesse aparecido. Parou de andar e ficou olhando de longe. A construção era antiga, clássica, de dois pavimentos e pintada de azul e branco, muito maior do que as residências do centro da cidade. Era retangular, como uma grande caixa de tijolos com telhado, janelas e portas. Também era alta: o gramado era separado do primeiro andar por uma escada de pedra de dez degraus. Do lado de fora, a casa estava escura, sem qualquer iluminação de jardim. Do lado de dentro, porém, era possível ver silhuetas por trás dos vidros das janelas, sob a iluminação bruxuleante que parecia proveniente de velas.
Eles esperaram, sem saber o que estavam esperando. Tocar a campainha era suicídio, na opinião de Michel. Ele não gostou do que viu, nem do silêncio que se instalou. Os grilos, as corujas e as cigarras tinham parado de cantar de repente e, como se não fosse o bastante, a lua tinha se escondido atrás de uma nuvem de chuva, escurecendo a noite. A trilha até ali não tinha sido agradável — por duas ou três vezes, Michel havia pulado de susto ao sentir capim roçando seus tornozelos como mãos saídas das sombras e tentando agarrá-lo. Mas enfrentaria de bom grado todo o caminho de volta naquele mesmo instante se aquilo significasse se distanciar do casarão o mais depressa possível. Adelaide, por outro lado, ainda estava disposta a terminar o que tinham começado.
Michel tentou lutar contra a sensação de estar sendo observado, mas ela foi ficando cada vez mais forte. Era como se ele soubesse que havia alguém bem às suas costas, por mais que não estivesse olhando.
Ele e Adelaide se viraram quando ouviram Breu faiscar com a cabeça para fora da mochila da dona. Michel gritou e recuou. Havia, de fato, alguém ali, e ainda mais próximo do que ele estivera imaginando: um homem alto, de ombros largos, barba no rosto e cabelos grisalhos. Ele sorria, e não havia na humanidade registro de sorriso menos simpático. Era aterrorizante, para dizer o mínimo. Ameaçador. Diabólico. Mas isso não era o pior. O pior eram os chifres pontiagudos saindo do coro cabeludo e as asas gigantes e cinzentas abertas às costas. O coração de Michel disparou como em uma disputa de pênalti em final de Copa do Mundo, e não do jeito bom.
— Boa noite — Adelaide cumprimentou o recém-chegado como se batesse papo com demônios diariamente.
— O que é isso na sua mochila? — o homem perguntou, congelando o sorriso no rosto e falando entre dentes.
— Meu gato.
— Não, o recipiente transparente.
Adelaide puxou para fora um frasco pequeno e cilíndrico que Michel nem tinha se dado conta de que ela carregava.
— É um pouco da água benta que o padre Graciano benzeu pra mim quando…
Antes que ela pudesse terminar a frase, o homem arrancou o frasco da mão dela e o atirou longe. Michel observou, impressionado, o objeto subir na noite e viajar muito rápido e muito alto para o meio do mato. O troço foi parar tão longe que nem o ouviram cair no chão. O sorriso do homem ainda estava lá, mas alguma coisa na posição de suas sobrancelhas mostrava que, agora, ele estava definitivamente puto. Antes que ele pudesse avançar sobre os dois, Adelaide pediu:
— Perdão. Eu não sabia que… Eu não queria… — Mas até ela perdeu a voz naquela hora.
— Graciano… — resmungou o demônio. — Esse velho só serve para atrapalhar minha vida. Enfim, imagino que queiram entrar, supondo que não estejam perdidos.
Soava mais como ameaça do que como um convite.
— Não — Michel conseguiu falar. — Não precisa. Já estamos de saída.
— Espera — Adelaide falou por cima. — Ele é um desprotegido, senhor.
Silêncio.
O sorriso do demônio enfim murchou.
Sem som ambiente, porque os animais noturnos ainda não tinham voltado a cantar, os ouvidos de Michel apitaram de tanta quietude. Ele sentiu que ia morrer. Ou nas mãos do demônio chifrudo ou de infarto, porque o coração estava agora mais desesperado do que antes, já pronto para fugir da caixa torácica com piruetas coreografadas dignas de Rebeca Andrade.
Ao invés de partir para o homicídio sangrento, no entanto, o demônio disse apenas:
— Sejam bem-vindos.
Adelaide e Michel, este com as pernas parecendo geleia, seguiram o demônio para dentro da casa.
A primeira coisa que escutaram, no topo da escadaria de pedra, foram vozes. Muitas. Michel sentiu o coração gelar diante da constatação de que, depois daquela porta pesada de madeira que o demônio agora destrancava, havia mais dezenas como ele. Mas era tarde demais para desistir. Por mais que fosse rápido em campo, especialmente quando a bola estava na grande área, ele não seria páreo para aquelas asas imensas.
Preparou-se para a visão mais aterrorizante que teria em vida e trancou a respiração, mas o que se abriu à sua frente foi uma confraternização animada, quase em clima de festa. Quem conseguisse ignorar os chifres e as asas poderia até achar o ambiente agradável. Na sala de estar espaçosa que se abria logo depois do hall de entrada, doze demônios aplaudiam um décimo terceiro, que estava no centro, tocando na gaita um forró animado usando uma mesinha de centro como palco. O músico tinha olheiras profundas, fios de cabelo grossos e rosto jovem, mas a plateia era composta por indivíduos de todas as etnias, alturas, formatos, idades e gêneros que se podia imaginar. A única semelhança entre todos, além dos chifres e das asas, eram as roupas. Usavam preto da cabeça aos pés.
— O Fabinho voltou — alguém disse, num tom animado, e o som da gaita foi interrompido e substituído por palmas e assovios.
Michel olhou de relance para o demônio alto, mal-encarado e forte que os tinha buscado lá fora e achou difícil processar a informação de que o nome dele era Fabinho.
E, então, todas as vozes se calaram de repente. Os demônios tinham notado os adolescentes.
— Quem são esses aí? — perguntou o demônio da gaita.
— Isso é jeito de tratar visita, Érico?
— Foi mal. Boa noite.
— Boa noite — Adelaide respondeu, fraca. Tudo o que Michel conseguiu foi não chorar.
Breu pulou de dentro da mochila para o chão e sumiu jardim afora, abandonando o barco. Adelaide estendeu a mão para tentar agarrar o rabo do bicho, mas ele foi mais rápido e ela não ousou correr atrás. Ficou, estática, ao lado de Michel, que tinha os olhos escuros esbugalhados. O lugar era espaçoso e pouco mobiliado. Não havia iluminação elétrica em uso — só velas, como se tivessem voltado no tempo uns trezentos anos. O chão velho de madeira rangia sob qualquer passo e, mesmo que escutassem vozes vindas de outros cômodos, o silêncio repentino daquele pesou o clima já fragilizado. Mas Adelaide e Michel não ficaram ali nem por dois minutos: foram apressadamente guiados por Fabinho para o segundo andar. Depois da escadaria, entraram em um escritório também iluminado por velas e mobiliado com uma escrivaninha de mogno tão encorpada e resistente que Adelaide sussurrou para Michel que ela devia ter sido construída por Erivaldo Jambu. Fabinho se sentou na cadeira de encosto alto entre a mesa e uma estante de livros comprida pregada à parede e indicou aos visitantes as duas poltronas à sua frente. As asas dele se recolheram e se assentaram às costas, exatamente como um bem-te-vi teria feito ao pousar. Adelaide e Michel se sentaram em silêncio.
— Como nos descobriram aqui? — Fabinho perguntou.
— Sabe como é, informações correm… — Adelaide tentou livrar a barra do informante.
— Foi Graciano, aquele velho, não foi? Ele adora meter o nariz nas minhas coisas, é impressionante. — Fabinho revirou os olhos, perdendo um pouco da compostura. — E agora também deu para ser fofoqueiro, pelo visto, além de armar crianças com água benta e mandá-las para minha casa.
— Ele não sabe que a gente tá aqui. E o negócio da água benta foi sem querer. Enfim, a gente veio porque fiquei sabendo que os senhores estão procurando desprotegidos. É verdade?
— É, não posso negar — Fabinho admitiu.
— Padre Graciano não confia nos senhores, mas minha mente é mais aberta do que a dele, senhor Fabinho. Até onde sei, vocês nunca fizeram mal a nenhum desprotegido, então eu trouxe meu amigo quebrado pra você consertar.
Fabinho ergueu as sobrancelhas, depois fincou os olhos em Michel e o fitou demoradamente, como se lesse a alma do menino com a facilidade de quem lê um jornal impresso.
— Parabéns pelo diagnóstico certeiro, aliás — Fabinho elogiou Adelaide. — Para demônios, não é difícil identificar a ausência da proteção divina em um ser vivo, mas, para vocês, humanos, seres tão inferiores, insensíveis, rasos e burros, a tarefa é quase impossível. Estou impressionado.
— Hum, obrigada? — Adelaide arriscou.
— Sendo assim, desprotegido — Fabinho abriu um de seus sorrisos demoníacos outra vez, diretamente para Michel —, acho até que já tenho uma sugestão compatível para você em mente.
— Desculpa… — Michel limpou a garganta. — Mas eu ainda não entendi o que tá rolando aqui.
— Explico no caminho de volta — Adelaide sugeriu.
— Não vou cair nessa outra vez — Michel ralhou em resposta.
— Tudo bem. — Fabinho ergueu a mão. — Deixe o desprotegido perguntar. Não estamos com pressa.
Michel resmungou:
— Fui praticamente arrastado até aqui por essa desequilibrada…
— Foi para o seu próprio bem! — Adelaide sussurrou, e ele deu um cutucão para que ela se calasse.
Fabinho resumiu:
— O negócio é o seguinte: abrigamos demônios que escapam do Inferno. Lá não é muito agradável. É pegajoso e abafado e fornece apenas duas opções a todos que adentram os portões: sofrer na mão de outra alma ou fazer outra alma sofrer. Para sempre. Se quer saber minha opinião, a primeira opção é a menos dolorosa, porque dedicar a eternidade à tortura inquestionada e ininterrupta muitas vezes dá azia.
Michel não sabia que almas penadas tinham estômago.
— Uai, então não se divertem sacaneando os outros? — Adelaide perguntou. — Pensei que demônio curtisse uns trem assim. Com todo respeito, senhor.
— Ah, é claro que curtimos umas sacanagens. Outro dia mesmo troquei o xampu do frasco da Amélia por azeite de oliva. — Fabinho soltou uma risada rápida e ficou sério outra vez com a mesma velocidade. — Mas isso é diferente das coisas que acontecem no submundo. Já fomos anjos um dia. Quando se experimenta a sensação de propagar o bem, é difícil se acostumar com o mal indiscriminado. No mais, poucos anjos caem por feitos realmente malignos. Geralmente, são erros bem frívolos. Mas Deus não perdoa nenhum.
Michel precisou reunir coragem, mas perguntou:
— Por que você caiu?
Adelaide chutou a canela dele por baixo da mesa, alertando-o da inconveniência. Recostando-se melhor na cadeira, Fabinho respondeu:
— Que pergunta deselegante… Mas, se te interessa tanto assim, eu ensinei a humanidade a ler.
Houve um momento de silêncio. Fabinho indicou os livros atrás dele.
— Faz tempo, eu sei. Mas foi isso. Pensei que seria interessante que vocês pudessem registrar histórias e aprendizados, mas Deus não gostou da ideia de informações sendo guardadas e passadas entre gerações. Acho que Ele tinha os motivos Dele, não é, se formos analisar o que a humanidade se tornou no fim das contas, esse caos de desinformação viajando na velocidade da luz de tela em tela de celular. Mas, na época, eu achei que estava fazendo uma coisa boa. Ingênuo, eu sei. Enfim, isso não importa. Vamos nos ater ao tópico principal. A questão é que todo humano precisa de uma proteção sobrenatural. São arcaicos demais para cuidar até de si próprios sem ajuda. Sabem como é, tão desajeitados e com reflexos lentos… Mas não te delegaram um anjo da guarda quando você nasceu, não é, azarado? Então, para que você consiga ter uma vida digna, eu te ofereço um dos meus anjos. Contrato vitalício. E, antes que você possa dizer alguma coisa, permita-me frisar o fato de que serem caídos não os torna menos capazes de realizar milagres. A única coisa que fica manchada é a reputação, eu garanto.
— Viu, Michel. — Adelaide sorriu para ele. — Você vai ganhar um anjo.
— Não sei se quero um demônio invisível me seguindo por todo canto — ele admitiu, tentando soar baixo suficiente para que apenas ela ouvisse, mas Fabinho também escutou.
Tratou de explicar, então:
— Anjos e demônios não são invisíveis quando estão no plano terrestre, como você já deveria ter percebido, já que está me enxergando perfeitamente, a julgar pelo grito esgoelado que soltou no jardim ao se deparar comigo.
— Piorou! — Michel respondeu. — Quero menos ainda um demônio visível me seguindo por aí com esses chifres horrorosos e essas asas tostadas no fogo do Inferno. Com todo respeito.
Fabinho não pareceu ofendido.
— Você não precisa ficar grudado no seu demônio, azarado. Nem precisam se encontrar. Ele só precisa estar por perto, numa área de aproximadamente três quilômetros quadrados, para que o campo de energia protetiva te alcance e tome conta de você.
— Sei — Michel comentou, desconfiado. — Não é por nada, não, senhor Fabinho, mas o que o demônio em questão ganha com isso? Não é muito melhor continuar vivendo aqui nesse casarão, tocando gaita e lendo livros de capa dura? Me seguir pela vida não vai ser tão maneiro, e eu não tenho dinheiro para pagar um serviço desses.
— Essa parte é meio incerta — Fabinho confessou. — A intenção é que o demônio designado a te proteger reúna uma quantidade significativa de boas ações para ser reconsiderado por Deus daqui a algumas décadas. Não há relatos de anjos caídos que foram aceitos de volta ao Céu, mas não custa tentar. Dedicar anos a fio a proteger alguém deve render alguma coisa boa. É zero oitocentos, como dizem vocês. Seja lá qual a graça que veem em montinhos de papel remelento.
— E quem o senhor disse que tinha em mente pra oferecer pro meu amigo? — Adelaide mudou de assunto antes que Michel pudesse pensar em outro empecilho.
— Ah, é.
Fabinho tirou um celular moderno do bolso do paletó, destravou a tela e gravou uma mensagem de áudio:
— Érico, sobe aqui no escritório, faz favor.
Um minuto depois, o demônio jovem que pouco antes tocava gaita na sala do andar térreo entrou pela porta.
— Chamou, Fabinho?
— Acho que encontrei um desprotegido para você.
O recém-chegado demorou os olhos em Michel, e o jogador soube que transparecia nervosismo e insegurança. Dava para perceber que emoções humanas eram facilmente lidas por demônios, especialmente se estivessem à flor da pele, como naquele momento.
Érico entrou na sala a passos silenciosos e Michel acompanhou cada um deles com muita atenção, para o caso de precisar fugir de algum movimento brusco e mortal. Fabinho se levantou da cadeira e pediu que Adelaide o acompanhasse de volta para o corredor, para o desespero de Michel, que não conseguiu conter um ganido de pânico. Era assustador ficar sozinho com um demônio tanto quanto era assustador ficar sozinho com um menino bonito, e Érico era as duas coisas.
Quando a porta se fechou, Érico se sentou à ponta da mesa e recolheu as asas — não apenas como Fabinho tinha feito pouco antes, mas até que elas desaparecessem completamente, como se tivessem sumido para dentro das costas. Sobraram apenas duas fendas na traseira da camisa preta, por onde elas haviam passado. Provavelmente estava tentando ser o menos assustador possível. Os chifres também sumiram por baixo dos cabelos grossos.
— Ah — Michel murmurou depois de um pigarro nervoso. — Bem que eu estava me perguntando como vocês andavam por aí sem ninguém reparar nas penas.
— Às vezes deixo verem, principalmente em época de carnaval. Sempre elogiam a fantasia.
Michel sorriu. Só um pouco e ainda assustado, mas foi a primeira vez naquele dia. Uma covinha apareceu em sua bochecha direita. Incentivado pela baixada de guarda, Érico continuou:
— Sei que não confia na gente ainda, mas imagina só quanta coisa poderia conquistar sem esses tropeços te atrasando…
— A Libertadores — Michel pensou alto.
— O quê?
— Futebol.
— Ah. Posso prometer nunca te deixar escorregar quando a bola estiver nos seus pés. Ou na sua cabeça. Ou… Você é goleiro, por acaso? Nesse caso, nas suas mãos.
— Sou atacante. O cara que tá lá pra fazer os gols. Seria bom ter mais sorte nas jogadas. — Michel saboreou o pensamento. Pelas suas contas, nunca tinha jogado uma partida inteira sem ser atendido na beira do gramado pelo menos uma vez. Ele se ajeitou na cadeira, inquieto, e admitiu: — Ainda não absorvi tudo. Aconteceu muito rápido. Até ontem, eu nem sabia quem eram meus pais biológicos, e muito menos que anjos e demônios existiam de verdade.
— É. O ser humano tem um pouquinho de dificuldade de acreditar naquilo que não vê com os próprios olhos. Mas você não precisa decidir nada agora, cansado e com fome. Tem música e vinho de jabuticaba no térreo, aliás. Aqui em cima não é o melhor lugar pra se estar essa noite.
Ansioso para reencontrar Adelaide, Michel acompanhou Érico para fora do escritório e desceu as escadas que tinha subido pouco antes. Foram até a cozinha, onde o cheiro de comida inebriou o cérebro faminto de Michel. Mais uma vez, havia demônios por toda parte, reunidos em uma confusão escura de penas tostadas. Ele aceitou a taça que lhe foi oferecida, permitiu que a enchessem de bebida e se distraiu com a demônia de cabelos curtos sobre a ilha de centro que performava um número de comédia stand-up.
— Dia desses — dizia ela —, saí com um cara muito bonzinho. Até que eu estava curtindo o romantismo… Aí ele me perguntou se eu caí do Céu! Grosso, precisava tocar no assunto?
— Boa, Amélia!
Os demônios aplaudiram.
Michel provou o vinho de jabuticaba, gostou e tomou mais um gole. Depois outro, depois mais outro, depois terminou a taça e aceitou a segunda. Seria a última, prometeu a si mesmo, porque não seria inteligente comprometer os reflexos estando em um casarão com dezenas de seres infernais chifrudos. Além do que, é claro, ele não podia se esquecer do jogo da tarde seguinte — afinal, Edson Jacaré, o técnico do time profissional do Cruzeiro, estaria presente. Quando a primeira fornada de pão de queijo passou por ali, Michel lacrimejou de gratidão por ter nascido mineiro.
Adelaide estava na cozinha também, tentando passar despercebida enquanto analisava bem de perto as asas escuras de uma demônia de cabelos brancos e pele enrugada. Não demorou até que a benzedeira esticasse os dedos e puxasse uma das penas da mulher, provavelmente para estudar suas propriedades milagreiras mais tarde. Indignada, a senhora exclamou um “ai” e se virou. Em posse da pena, Adelaide já tinha sumido do cômodo. Michel, ainda prestando atenção na depenada, virou-se e perguntou para Érico, que havia ficado por perto o tempo todo, felizmente inofensivo até o momento:
— Por que alguns de vocês são jovens e outros não? Vocês, tipo… envelhecem igual a gente?
Érico bebeu de uma só vez o vinho da própria taça, reabasteceu-a e fez um sinal para que Michel o seguisse. Os dois saíram da cozinha, atravessaram a sala de estar e foram parar na varanda, uma das poucas áreas da casa que a festa ainda não tinha alcançado.
— Todos nós aqui fugimos do Inferno — Érico falou.
— É, o Fabinho comentou.
— Existem fugas e fugas. Anjos caídos espertos, como o Fabinho, conseguem sair de lá suficientemente poderosos pra materializar um corpo aparentemente humano, mas essencialmente sobrenatural. Significa que ele até pode envelhecer, dormir e comer, mas só se quiser. Ele tem total controle sobre tudo que o compõe nesse plano, entendeu? Mas também existem aqueles de nós que fugiram sem tanto preparo, como eu. Esse corpo é meu há três anos. É pouco tempo, mas ele já tá envelhecendo. Preciso comer e dormir todos os dias, como qualquer ser humano, e por aí vai. Não consigo frear a deterioração das minhas células. No máximo, sou mais resistente a doenças e impactos.
— E sabe voar — Michel acrescentou.
Érico riu.
— É, e sei voar.
— Ou seja, daqui a algumas décadas, você vai ficar velho como aquela senhora lá na cozinha. E, depois, vai morrer.
— E é por isso que o Fabinho me sugeriu a você. A gente tem mais ou menos a mesma idade fisiológica. Provavelmente vou conseguir proteger você durante toda a sua vida e, quando chegar a sua hora, a minha vai chegar também. E aí, literalmente, será o que Deus quiser. Se minha alma sobe ou desce, é Ele quem decide. Isso é, se você concordar em me levar para casa.
Michel já estava bêbado.
— Falando assim, parece que tô prestes a adotar um cachorrinho.
Érico também estava bêbado.
— Sei fazer xixi no lugar certo.
Michel se deu conta de algo.
— Sabe o que eu reparei?
— Que você não tropeçou, se cortou e nem derrubou nada desde que chegou aqui?
— Putz, você consegue ler pensamentos!
— Não seja ridículo. É que os desprotegidos sempre se surpreendem com a mesma coisa. Mas como é a sensação?
Michel precisou pensar para responder.
— É nova — concluiu. — Mas dá pra acostumar bem rápido.
— Esse é o seu time? — Érico encostou o dedo indicador no escudo cruzeirense bordado na camisa que Michel usava por baixo da jaqueta aberta. Por um momento, o menino pensou que o contato fosse ferir sua pele com fogo ou algo demoníaco assim, mas isso não aconteceu.
— É. O marrom é terra, não faz parte das cores do uniforme. Só o azul e o branco.
— Imaginei. O que aconteceu?
— Caí do cavalo. Antes disso, caí no rio. Não sei de qual dos dois acidentes vem o barro.
— E aquele ali não é o seu gato?
Breu estava parado no espaço gramado que se estendia depois da varanda. Ele chiou novamente, mas se acalmou quando Érico se abaixou no topo da escada e esticou o braço para chamá-lo. Possivelmente confortado pela ausência de chifres e asas, o gato se aproximou e aceitou o carinho.
✻
O que Verinha teria dito se descobrisse que Adelaide tinha passado a noite em um casarão cheio de demônios? Antes de pegar no sono, a menina achou graça do pensamento e o compartilhou com Michel. Estavam hospedados em um dos quartos superiores, um dos poucos vagos. Era uma da manhã. Ambos estavam com as cabeças zonzas por causa do álcool, e os estômagos cheios de queijo, goiabada e torresmo.
— Tá rindo de que agora, Michel? — Adelaide sussurrou para o escuro.
— De nervoso. Meu treinador deve estar achando que eu morri.
— Mande uma mensagem pra ele dizendo que você tá bem.
— Meu celular foi pro brejo.
— O importante é que, quando você reaparecer, não será mais azarado.
Os dois tinham se conhecido naquele mesmo dia, mas, às vezes, intimidade dependia mais de intensidade do que de tempo — e, diga-se de passagem, tudo o que viveram naquele dia tinha sido uma baita injeção de histórias para contar.
Era a primeira vez que Michel experienciava tantas horas seguidas sem que alguma desgraça caísse sobre ele. A sensação de que era possível se divertir sem temer pela própria vida era ainda mais saborosa do que queijo minas. Talvez ter um demônio por perto não fosse tão ruim assim.
Na manhã seguinte, Michel acordou com os primeiros raios de sol, que entraram pela janela e engatinharam pelo travesseiro, ao redor do seu rosto. Sentiu a língua seca e a cabeça dolorida. Quase nunca bebia. Primeiro, por ser menor de idade e ter o acesso ao álcool restringido pelo pai. Segundo, porque o treinador não gostava. “Compromete o desempenho físico”, dizia ele.
Naquela manhã, no entanto, apesar da ressaca, Michel estava se sentindo forte. Era revitalizante não sofrer nenhuma pancada dolorosa por tanto tempo seguido. Para melhorar ainda mais, só precisava beber água. Muita. Imediatamente. Tentando não fazer barulho para não acordar Adelaide, que dormia com a boca aberta e os óculos ainda no rosto, tortos, ele abriu a porta pesada. O corredor estava deserto. Avançou até as escadas, também vazias a não ser por metade de um pão de queijo que alguém tinha deixado cair durante a festa. Quando Michel entrou na cozinha, encontrou a demônia comediante, Amélia, comendo distraidamente um cacho de uvas verdes. Ela sorriu para ele — não como Fabinho havia sorrido na noite anterior, mas como se realmente tivesse ficado contente em vê-lo.
— Opa, beleza? Você é o desprotegido do Érico, né? Deu sorte, viu? Ele é um dos bons. Você vai gostar do serviço dele.
Era a primeira vez que alguém dizia que Michel tinha dado sorte em alguma coisa.
Nervoso, ele declarou:
— Vi seu show em cima do balcão. Você é engraçada.
— Foi por isso que eu caí, sabia? Deus não é muito fã de humor autodepreciativo. Diz que não eleva nosso espírito.
— Deus é bem sistemático, né?
— Você não faz ideia! Mas, fora isso, o cara é gente boa. Dá comida, harpa e cachoeira pra todo mundo que vai parar no Céu. Sem contar as camas de nuvem. Você precisa dormir em uma nuvem algum dia, sério, relaxa a lombar que é uma beleza.
Michel foi até o filtro de barro e usou um copo limpo que encontrou no escorredor de metal ao lado da pia. As palavras de Amélia, sobre Érico ser um dos bons, ecoaram em sua cabeça. Enquanto matava a sede, tomou a decisão final.
✻
Depois do almoço, foi dado o decreto: Érico iria embora. Em uma mistura de luto e esperança, os demônios se revezaram para discursar. A falta que a gaita dele faria foi muito citada, assim como seu pastel de angu e sua risada engraçada. Por outro lado, era empolgante que agora tivessem uma pessoa capacitada para fazer a ponte entre desprotegidos e anjos caídos. Antes de Adelaide levar Michel até ali, os demônios caçavam os azarados por conta própria, o que dificultava muito a aproximação: demônios não eram exatamente poços de habilidades sociais. Apesar disso, até que eram simpáticos quando você os conhecia melhor. Michel não podia reclamar da noite que tivera, mas ainda estava cabreiro e, se tivessem lhe avisado sobre o ritual com antecedência, provavelmente teria dado para trás.
Fabinho explicou que seria como firmar um contrato. Todos os outros demônios moradores do casarão se espremeram no escritório apertado de Fabinho para assistir. Michel e Érico foram colocados no centro, de frente um para o outro, tão perto que as respirações se misturavam. Érico era alguns centímetros mais alto. Michel ergueu o queixo um pouquinho para continuar olhando o outro nos olhos, porque aquela tinha sido a recomendação. Ele reparou que as íris do demônio eram tão escuras que, sob a luz das velas, as pupilas eram indistinguíveis do resto. Os cílios eram longos. O cheiro era uma mistura de chuva e flores noturnas, se é que aquele era um cheiro possível para uma pessoa. Mas Érico não era exatamente uma pessoa.
— Ai! — Michel e Érico reclamaram ao mesmo tempo, levando as mãos à cabeça. Fabinho tinha arrancado um punhado de cabelos de cada um.
— Podia ter usado uma tesoura — Michel resmungou.
— Perderia a graça. Erga a mão direita, Érico.
Érico obedeceu, espalmando os dedos largos e brancos no ar. Fabinho continuou:
— Você, desprotegido, erga a esquerda.
As palmas dos dois se tocaram, mornas, em tons contrastantes. Fabinho juntou as mãos e as fechou, fazendo com que os fios dentro delas se desfizessem em uma chama lilás que lhes escapou pelos dedos e fez os olhos de Michel se arregalarem.
Ela pairou no ar — uma bolinha brilhante que foi se espichando até se enrolar nos punhos dos dois meninos parados no meio da roda. Michel sentiu primeiro um formigamento, que evoluiu para uma sensação de queimadura, começando na mão e depois irradiando pelo braço, ombro, peito, pescoço e barriga. Era desconfortável e doloroso. Ele tentou se afastar por reflexo, mas Fabinho o segurou pelo braço. Quando o fogo pareceu lhe envolver o cérebro, simplesmente foi ao chão, inconsciente.
Michel reabriu os olhos, suado e trêmulo, e encontrou os de Érico logo acima. O resto do cômodo estava vazio.
— Você tá bem?
Em vez de responder, Michel se arrastou para longe.
— Que porra vocês fizeram comigo?
— Foi mal. Geralmente, os efeitos são mais brandos. Algumas pessoas são só mais…
— Fracas?
— Eu ia dizer “sensíveis”.
— Dá na mesma.
— Quem te falou isso? Sensibilidade não tem nada a ver com fraqueza.
Michel baixou os olhos para o punho esquerdo. Havia uma nova cicatriz ali. Fina e circular, como uma pulseira impossível de tirar. Ele olhou para o pulso direito de Érico, para conferir se ele tinha ganhado uma daquelas também. Tinha.
— O que significa? — Michel indicou a própria marca.
— Só significa que eu sou seu. Tipo, seu anjo. Não vai te fazer mal. É diferente estar sob campos generalizados de proteção, como você experimentou essa noite, e estar sob um campo pessoal. Antes, era como se você fosse, pra mim, só mais um livro qualquer no meio dessa estante aqui atrás. Agora, é como se tivesse se transformado em uma coisa diferente de todas as outras, uma coisa maior, mais viva e mais importante… Como o seu gato, que por acaso tá escondido ao lado das Memórias póstumas de Brás Cubas, ali na terceira prateleira. Vou conseguir focar melhor em você. Entendeu?
Michel ainda estava desconfiado. Olhou para Breu, perguntando-se se o bicho pressentia algum perigo. Mas ele não estava faiscando, mesmo que agora os chifres e as asas de Érico estivessem aparentes. Estava apenas deitado na prateleira em posição de esfinge, observando a cena com um vago interesse.
✻
Adelaide cedeu Jandira para que Michel não se atrasasse para o aquecimento antes do jogo. Iria a pé para casa, com Breu de volta na mochila, e buscaria a égua mais tarde. Michel não conseguiu recusar, embora subir sozinho em um cavalo fosse uma péssima ideia para alguém azarado e destreinado. Adelaide já desaparecia trilha afora enquanto ele ainda enrolava para subir em Jandira. Estava acariciando a crina do bicho, tentando ganhar tempo e coragem. Érico, de chifres e asas escuras à mostra, estava de braços cruzados, parado à frente dos dois, esperando. Seria a prova de fogo. Se Michel chegasse são e salvo ao alojamento do time, seria um bom indício de que aquele acordo vitalício, sobrenatural, demoníaco e peculiar tinha sido uma boa ideia. Caso contrário… era melhor nem imaginar.
Michel apoiou o pé esquerdo no estribo, içou o corpo e passou a perna direita por cima da sela. Ajeitou-se e segurou as rédeas. Jandira nem se moveu. Érico sorriu, deu a volta na égua e um tapinha fraco no traseiro dela. Jandira começou a andar, primeiro bem devagar, depois trotando e fazendo Michel subir e descer no assento. O menino estava de olhos arregalados, músculos tensos e com vontade de gritar. Suor lhe brotava na nuca e não era por causa do sol no lombo.
Michel olhou para Érico, que tinha ficado para trás, e o viu levantar voo. As asas dele, quando abertas, pareciam dobrar de tamanho. Era uma visão surpreendente, intimidadora e fascinante ao mesmo tempo, como todo o resto dele. O demônio não voou muito acima das copas das árvores para não perder o protegido de vista. Por conta própria, Jandira decidiu apertar o passo e começar a correr. Michel chegou a fechar os olhos de tensão, mas pelo menos se lembrou de não puxar demais as rédeas para não frear bruscamente o animal. O básico, ele tinha aprendido nos filmes de Velho Oeste que o pai gostava de assistir desde a época das locadoras. Com as passadas aceleradas da égua, o ritmo da andança ficou mais confortável, e Michel se ajeitou melhor na sela. Nos primeiros minutos, ficou com a impressão de que alguma coisa acabaria com a tranquilidade do passeio a qualquer momento — um pássaro colidiria com seu nariz, ou Jandira empacaria de repente e o faria sair voando de cima de seu lombo, ou, quem sabe, um galho de ipê o atingiria em cheio no pescoço e o decapitaria imediatamente.
No entanto, conforme o tempo foi passando e nada de ruim acontecia, o garoto se permitiu relaxar e espiar o caminho. Aproveitou o vento no rosto, a adrenalina crescendo com a velocidade, o cheiro de ar puro e a vista da serra, que estava ainda mais azul do que no dia anterior graças ao céu sem nuvens. Michel sorriu, depois riu, e, pela primeira vez na vida, não morreu de medo de aproveitar o momento.
O destino era o Santuário do Caraça. Michel não sabia o caminho, mas Jandira parecia saber — meia hora depois, atravessaram o portal do parque e viram a placa que anunciava que ali era a Porta do Céu. A trilha de terra deu lugar ao asfalto e a estrada ficou mais íngreme.
Érico voou mais baixo para perguntar, incrédulo:
— Sério? Tá me levando pra um lugar sagrado?
As asas do demônio sobrepuseram cavalo e cavaleiro. Michel olhou para a sombra no chão e enxergou Pegasus, depois ergueu a cabeça.
— Foi mal! Eu me esqueci totalmente desse detalhe!
— “Detalhe”! Tá, só não deixe ninguém jogar água benta em mim, senão você fica sem anjo e eu fico sem Céu.
Érico subiu de novo e Jandira continuou o caminho até a portaria, de onde um funcionário saiu com uma caderneta para anotar a placa do transporte que vinha se aproximando. Mas, é claro, Jandira não tinha placa, só uma cauda longa e marrom. O homem enrugou a testa, mas não disse nada. Talvez nem fosse a primeira vez que alguém chegava ali a cavalo — mas definitivamente era a primeira vez que um jogador do Cruzeiro Esporte Clube chegava ali a cavalo, sobretudo uniformizado, descabelado e sujo de terra. Embora parecesse intrigado, o homem liberou a entrada de Michel, ciente de que o resto da equipe estava hospedada lá dentro, e o menino seguiu caminho.
O que falavam sobre a Porta do Céu não era mentira; Michel sentiu que tinha atravessado um portal para outro universo. O clima ali era mais ameno do que no resto da cidade, o ar era definitivamente mais puro e tudo que se ouvia eram sons de pássaros e o farfalhar de árvores (além do trotar de Jandira, é claro). À medida que subiam para ainda mais perto da serra, a vista bonita os saudava dos dois lados, cada vez mais verde e vasta. Em certo ponto, alcançaram um dos mirantes com vista para o santuário. Jandira parou ao lado da placa que informava que estavam a 1.297 metros de altitude. Ao longe, a catedral era uma construção branca e alta no meio da natureza imponente, um pontinho de concreto claro perdido no meio do verde. Ao redor dela havia duas construções mais baixas onde, Michel descobriria mais tarde, funcionavam um museu, uma pousada e a moradia dos padres. Érico pousou ao lado de Michel e olhou a paisagem com o nariz torcido, desconfiado, mas se poupou de comentários. Seguiram rumo logo depois.
Antes da última subida que levava ao pátio da catedral, havia uma pequena vila de casinhas antigas, como aquelas do centro de Catas Altas. Jandira parou ali e, teimosa, recusou-se a continuar. Michel desceu, então, e procurou Érico ao redor, mas ele não estava por perto. Enquanto prendia as rédeas do bicho na cerquinha em frente à primeira casa, ouviu a voz do treinador saindo da janela mais próxima:
— Graças a Deus!
Ele saiu desembestado pela porta para receber o menino. Um velho de óculos saiu atrás dele, erguendo a batina para não tropeçar nos próprios pés.
— Onde você se meteu, Michel?
— Treinador, é uma longa história…
— Essa aí é Jandira, menino? — perguntou o padre, apontando para a égua.
— Sim, senhor — Michel respondeu. — Adelaide me emprestou.
O padre sorriu e cutucou o treinador com o cotovelo.
— Falei que ele estava em boas mãos.
O treinador inclinou a cabeça para avaliar a situação, mais ou menos como o funcionário da portaria tinha feito — e, assim como o outro homem, reparou que Michel estava sujo, suado e descabelado. Ele não parecia, sob muitos aspectos, ter estado em boas mãos. Mas estava inteiro, pelo menos, o que era um milagre quando se tratava dele. Também havia chegado a tempo do jogo, o que era um milagre maior ainda. Ele foi empurrado para dentro da casa e aconselhado a se banhar e comer alguma coisa leve antes que fossem para o campo.
Os cômodos apertados estavam atulhados de adolescentes cheirando a testosterona. Tiago fez barulho de beijos quando Michel passou pela sala, depois perguntou se ele tinha encontrado algum jogador do Galo para se atracar no meio do mato durante a noite que havia passado fora — o que foi engraçado, porque Michel tinha mesmo beijado o ponta-esquerda do Atlético Mineiro no fim da temporada anterior, depois do último jogo, atrás do vestiário, embora ninguém soubesse.
✻
Não que os padres da região da Serra do Espinhaço compusessem o rival mais difícil que Michel já tinha enfrentado em campo, mas o Cruzeiro estava tímido no começo porque ninguém parecia saber ao certo se era pecado fazer gol em um time de párocos. Para completar, o goleiro adversário era o velho simpático que havia reconhecido Jandira no alojamento — e ele ainda usava óculos dentro de campo. Michel não queria arriscar uma bolada que talvez estraçalhasse vidro no rosto do coitado: ele parecia ser uma pessoa ótima (e até fofa, com perninhas de caniço saindo pelo short vermelho do uniforme, luvas grandes demais para as mãos, pele tão preta quanto a barba era branca e cabelos com textura de algodão crescendo apenas nas laterais da cabeça).
Mas é claro que o time inteiro jogou as preocupações para o alto quando o Edson Jacaré se juntou à modesta plateia que assistia à brincadeira na beirada do campo. Por que diabos o técnico da equipe profissional do Cruzeiro tinha escolhido justo aquele jogo para avaliar os meninos da base permanecia um mistério, mas não era hora de alimentar caraminholas na cabeça. Era hora de mostrar serviço.
Tiago foi o primeiro a arriscar um chute forte contra o goleiro, em cheio e no meio do gol, provavelmente na intenção de partir o padre no meio e fazê-lo esticar a rede junto com a bola. Mas, de maneira surpreendente, o homem defendeu. Tadeu Schmidt, no Fantástico, teria exclamado “Como um gato!”, e o editor teria colocado o barulho de miado na pós-produção ao exibir a cena. Michel não conseguiu não rir do choque de Tiago, que se destacou no rosto branco de bochechas vermelhas e suadas.
Enquanto o time recuava para o campo de defesa, à espera do tiro de meta, Tiago cochichou para Michel:
— Vai rindo, Frankenstein! Jacaré viu na sua fuça que você é viado. Pode desistir do profissional. Camisa nove não é pra bicha.
— Cadê a cláusula no contrato que impede o jogador de dar umas dedadas na bunda de outro cara nos dias de folga? — Michel respondeu. — Não tem, né? Pois é. Tô tranquilo quanto a isso.
A única coisa que assustava Tiago mais do que uma pessoa homossexual era uma pessoa homossexual que falava abertamente sobre a própria sexualidade. Distraído pelas palavras de Michel, Tiago tropeçou na própria chuteira e rolou pelo campo no momento em que o goleiro míope dava um chutão para o campo ofensivo. A bola vazou para o atacante adversário, que estava sem marcação no momento, e foi assim que o Cruzeiro tomou o primeiro gol do FÉ (Futebol Eclesiástico).
A torcida fez silêncio por dois segundos, até entender que aquilo tinha mesmo acontecido, e então comemorou com os braços para o alto e assovios. Michel olhou para o lado e reconheceu mais duas pessoas no meio da plateia: Adelaide e Érico tinham chegado. Vestiam azul, e a camiseta na qual Érico tinha se enfiado era uns cinco números menor do que deveria — o que fez com que Michel achasse graça e ficasse envergonhado ao mesmo tempo, porque dava para ver um pedaço da barriga branca do demônio e um sutil caminho de pelos escuros que se esticava para baixo de seu umbigo. Érico recebia olhares curiosos pela escolha da vestimenta, mas pelo menos não chamava tanta atenção quanto se tivesse deixado os chifres e as asas à mostra, é claro. Ele parecia meio tenso, como se temesse que a qualquer momento um dos padres jogadores sairia de campo para benzê-lo. Ou isso, ou apenas estava se sentindo ridículo com a camisa estrelada que provavelmente tinha saído do guarda-roupas de Adelaide.
Michel não foi agressivo com o goleiro de óculos, mas o driblou e entrou no gol com a bola e tudo menos de três minutos depois de terem tomado o primeiro gol. Por um momento, temeu escorregar no começo da grande área, depois na marca do pênalti e, por fim, na pequena área, mas passou por todas elas sem problemas.
Quando alguns dos colegas se aproximaram sorridentes para comemorar, Michel ainda estava embasbacado consigo mesmo, parado como uma estátua, encarando a bola preta e branca no fundo da rede. Não é que nunca tivesse feito um gol antes, claro que não, mas era a primeira vez que um gol não doía. Olhou de relance para Érico — que, apesar de ainda parecer desconfortável, abriu um sorrisinho pequeno para ele e fez um joinha. Quando o goleiro passou por Michel para pegar a bola, ele leu o nome dele nas costas da camisa: Graciano. Então aquele homem de cabelos de algodão era o famoso padre Graciano, que tinha descoberto sobre o casarão dos demônios e importunado Fabinho com suas intromissões…
De confiança renovada, Michel fez mais três gols ainda no primeiro tempo. O último, de voleio. Depois do apito anunciando o intervalo, Michel foi até a lateral do campo para espremer água dentro da boca. Ao baixar a garrafinha, notou o time do Cruzeiro ainda em campo, ainda posicionado, boquiaberto demais com o desempenho do centroavante para se mover. O treinador tinha a mesma expressão no rosto; o único a dar um tapinha no ombro de Michel foi Edson Jacaré, alheio ao fato de que o desempenho do jogador não costumava ser tão indolor. O menino sorriu de orelha a orelha. Estava prestes a agradecer a Érico pela sorte concedida quando se deu conta de que o demônio não estava mais ali. Adelaide estava parada de costas para ele, de frente para a trilha pequena que saía do campo de futebol cercado por árvores e desembocava em um caminho maior e mais largo. Michel foi até ela.
— Cadê o Érico?
— Cara, aconteceu um trem meio esquisito.
— Que trem?
— Seu demônio saiu correndo desembestado atrás de outros demônios.
— Como assim? O que outros demônios estavam fazendo aqui?
— Isso eu não sei.
— Era o Fabinho? A Amélia? Alguém do casarão?
— Não. — Adelaide olhou preocupada para Michel. — Era um pessoal estranho portando arma.
— Arma?
— Sim, Michel, arma! Espada, machado, essas coisas.
— Meu Deus, Adelaide!
— “Meu Deus, Adelaide” o quê? O que você queria que eu fizesse? — a menina respondeu, nervosa.
— Sei lá! Um exorcismo! Se estavam armados, é claro que não vieram resolver o problema no diálogo! Acha que… Acha que Érico tá tramando alguma coisa ao lado deles?
Adelaide balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Não. Acho que ele correu pra tentar impedir os caras de fazerem alguma coisa, ou para atrair eles para longe daqui. Foi o que pareceu na hora.
— Pra que lado ele foi?
Adelaide apontou para o lado direito da trilha adiante.
Os dois andaram até lá, inicialmente na intenção apenas de espiar, mas não havia movimento algum por perto. Para o lado esquerdo, a trilha ia parar no estacionamento perto da catedral; para o direito, seguia por cerca de dois quilômetros até uma das cachoeiras. Era para lá que os demônios tinham ido. Michel viu Jandira pastando por perto. Adelaide provavelmente havia levado a égua até ali quando a encontrara em frente à casinha onde o time do Cruzeiro estava hospedado. Benzedeira e benzido se olharam, pensando na mesma coisa. Adelaide suspirou e deu o veredito:
— Tá, mas você vai na garupa. E vamos nos armar primeiro.
— Com o quê?
— Tenho andado com umas coisinhas extras na mochila desde que decidi te levar ao casarão. Achou que eu fosse até lá de mãos abanando? Ninguém suspeita de uma menina magrela de dezesseis anos, já reparou? Principalmente se ela tiver sotaque mineiro e astigmatismo. Ah. Aqui. As arminhas de plástico que Jandira abocanhou dos netos de Verinha no ano passado. Fica com a branca, que combina com seu uniforme, que eu fico com a amarela.
— Não estou preocupado com a harmonia das cores, Adelaide, eu só…
— Você reclama de tudo, hein, Michel! Segura as duas arminhas. Vou colocar a água benta dentro.
Michel obedeceu. Adelaide tirou da mochila um recipiente parecido com o que Fabinho tinha jogado fora na noite anterior, desenroscou a tampa e despejou a água no reservatório do brinquedo, que ficou consideravelmente mais pesado. Adelaide devolveu a garrafa vazia à mochila e tirou de lá… um pedaço de pau?
— É a perna da cadeira que você quebrou — Adelaide esclareceu. — Material de qualidade, obra de Erivaldo Jambu. Fica com ele também.
— Não. Você já tá se arriscando demais por mim, Adelaide. Fica com isso você.
Adelaide pareceu genuinamente comovida com o gesto, mas não admitiu em voz alta. Sorriu um pouquinho, posicionou a perna de cadeira no cós das calças jeans e largou a mochila atrás de uma árvore. Montou em Jandira e içou Michel pela mão, que se acomodou na garupa torcendo para não cair. Pelo menos, daquela vez, Breu não estava presente para lhe unhar a cara. Estavam prestes a sair quando padre Graciano apareceu, agora sem as luvas de goleiro, mas ainda vestindo o uniforme do FÉ.
— Ainda falta o segundo tempo — o homem disse para Michel, apertando os olhos, desconfiado. — Vai dar no pé só porque já estão ganhando de seis a um? A gente ainda consegue virar! Eu acredito! — Ele ergueu o pulso no ar, confiante.
Michel abriu a boca para responder, mas Adelaide foi mais rápida:
— É, então, é que o Michel rasgou o fundo do short e a gente vai buscar outro no alojamento rapidinho.
— O alojamento fica pro outro lado. — Padre Graciano apontou com o polegar por cima do ombro.
— Padre Graciano — Adelaide suplicou —, o senhor confia em mim?
Padre Graciano coçou atrás da orelha.
— Olha, minha filha, com todo respeito, às vezes eu não confio nem na promessa dos pecadores de rezar o terço que eu recomendo depois da confissão. E você acabou de mentir, que eu sei. Porque não se armariam para buscar um uniforme reserva. Estamos em um santuário, viu?
Michel escondeu o revólver de brinquedo, como se fosse adiantar alguma coisa.
— É, padre Graciano, o senhor acertou, eu menti — confessou Adelaide. — Depois eu rezo quantas Ave Marias o senhor quiser, mas agora a gente precisa ir. Diz pro treinador do Michel encontrar um substituto que a gente tá indo ali rapidinho resolver um negócio.
E, sem esperar por resposta, Adelaide cutucou as costelas de Jandira para fazê-la andar. Padre Graciano ficou para trás, claramente com a pulga atrás da orelha, e os dois adolescentes seguiram pela trilha de terra, cada vez mais rápido, cada vez para mais longe do campo de futebol e da catedral de Nossa Senhora Mãe dos Homens.
✻
Enquanto galopavam, Michel ficava de olho no céu. Correram por terra batida, por uma ponte frágil de madeira e por um monte de pedra escorregadia até pararem próximos a um coreto de madeira com uma vista bonita ao fundo.
Michel tinha apontado para cima e dado um puxão na camiseta de Adelaide. Os dois olharam para as nuvens e viram quatro pares de asas cinzentas voando em círculo, como urubus gigantes. Estavam algumas centenas de metros à frente, na direção de onde vinha um som de água em movimento. A cachoeira. Um quinto par de asas apareceu de repente e os outros quatro desceram em disparada na direção dele. Michel tomou a liberdade de dar um tapa no traseiro de Jandira para que continuassem a viagem depressa, e ela obedeceu.
A entrada para a Cascatinha era muito íngreme e estreita, então deixaram Jandira para trás. Michel foi na frente, tentando não escorregar as travas da chuteira nas pedras lisas. Camuflado pelo mato alto e pelas pedras maiores que margeavam a água, espiou a cachoeira adiante, que abafava o som de seus passos com o cair barulhento das águas limpas. Elas pareciam vermelhas no poço, por causa das pedras de coloração escura; por um momento de desespero, ele pensou que pudesse ser sangue.
Havia dois demônios voando sobre as águas, embolados em movimentos rápidos; um era Érico, sem camisa, e o outro era uma mulher de cabelos muito lisos, muito loiros e muito compridos. Ela carregava uma espada longa na mão direita e desferia golpes a torto e a direito. O outro só se esquivava.
Michel se deu conta de que nunca tinha visto uma espada pessoalmente antes, um segundo antes de a mulher finalmente atingir Érico com a lâmina. O tronco dele foi riscado de cor-de-rosa por um arranhão felizmente superficial, mas que o fez reclamar e se dobrar ao meio. A loira estava prestes a tentar de novo quando Adelaide atirou a perna da cadeira na direção da dita-cuja, atingindo-a na cabeça. Pareceu ser uma pancada pouco incômoda para sua resistência sobrenatural, mas suficiente para distraí-la. O pedaço de madeira caiu na água e sumiu de vista.
A reação foi muito mais veloz que Michel poderia imaginar. Percebeu o vulto loiro vindo em sua direção, depois sentiu um impacto duro e o próprio corpo mergulhando no chão. Mordeu a língua. Engoliu terra e sangue. Ouviu uma lâmina cortando o ar a centímetros de sua orelha esquerda, em seguida um urro raivoso de Érico. Vozes, vozes que se trombavam e nada diziam. Adelaide gritou.
A espada cortava o ar de um lado para o outro, a centímetros de decepar orelhas e cegar globos oculares enquanto mirava nos adolescentes; era impedida por Érico, que se enfiava na frente. Não demorou para que ele fosse atingido de verdade, bem nas costelas, e o barulho de ossos se partindo foi perfeitamente audível por cima do ruído da cascata. Choveu mais sangue no rosto de Michel. Ele sentiu o gosto metálico e humano do ferimento do demônio se juntar ao gosto metálico e humano do próprio ferimento.
Como uma ave abatida, Érico perdeu o controle do voo. Torto, rolou pelas pedras da margem e desapareceu dentro do poço da cachoeira. Michel gritou de revolta. Se Érico não morresse por causa do ferimento, morreria afogado e inconsciente, literalmente no fundo do poço.
A demônio loira hesitou por um segundo, segurando a espada suja de sangue na mão direita, mas preferiu abandonar os humanos para garantir que o trabalho com Érico estava terminado. Ela voou por cima de Michel e Adelaide, mergulhou na água e desapareceu. Michel foi atrás dela como pôde, tentando não cair no meio das pedras. Não conseguia ver. A água era funda e escura demais. No horizonte, três outros vultos alados aceleravam na direção deles. O maior portava um machado, e, os dois últimos, uma foice cada um.
— Adelaide, corre!
Michel foi para um lado e Adelaide para o outro. Ele continuou nas pedras, margeando a cachoeira, e ela correu de volta para a trilha. Os demônios se dividiram. Dois foram atrás de Adelaide e o primeiro, o que portava o machado, ficou para dar conta de Michel. O maldito deu um rasante com a arma em punho e o menino escapou rolando para o lado, mergulhando no poço também.
Silêncio e calmaria. Ele afundou, pegou o revólver de plástico que lhe escapara do cós e empurrou o corpo para ainda mais fundo; a água estava tão gelada que seus ossos doíam, sua cabeça ameaçava trincar e seus pulmões pareciam, de repente, muito menores do que o normal.
Ele tentou enxergar através da água, mas sua visão humana estava completamente embaçada. Sua mão livre encontrou casualmente a perna da cadeira. Ele a agarrou antes de voltar à superfície para respirar. Emergiu do lado oposto de onde tinha submergido. Não viu ninguém. Nadou até a borda do poço. Gritou o nome de Érico, mas a resposta não veio, e de repente foi erguido no ar pelas costas da camisa de uniforme.
O demônio do machado tinha reaparecido. Michel agitou as pernas no nada e foi atirado de qualquer jeito na margem. Por milagre, o revólver não caiu de sua mão. O demônio pousou ao lado do menino e desceu o machado com força contra ele, mas Michel ergueu a perna da cadeira a tempo.
Erivaldo Jambu fazia mesmo um serviço de qualidade, porque a lâmina do Inferno só atravessou o pedaço de madeira até a metade. Irritado, o demônio puxou a arma para si, arrancou o pedaço de pau que tinha ficado preso e o descartou. Soprou a lâmina do machado para tirar as lascas e, girando a arma em punho, olhou para Michel como se ele fosse um bichinho raro no zoológico. Um bichinho raro e nojento.
— O que pensou que fosse ganhar se colocando em perigo mortal só pra tentar salvar uma merda de demônio?
Os olhos do ser eram azuis, mas havia tanta sede de sangue ali dentro que Michel não se espantaria se, de repente, se tornassem vermelhos.
O menino precisava ganhar tempo antes do próximo golpe.
— Por que… Por que estão atrás do Érico? Não são da mesma turma?
A testa do homem se enrugou. Depois, ele riu. Alto. Tão alto e de maneira tão diabólica que o capim tremulou por toda parte.
— “Érico”? Sitri escolheu esse nome?
O demônio prensou a lâmina do machado contra o pescoço de Michel, prendendo-o ao chão. Com o susto, a arma de plástico escapuliu e foi parar a centímetros de onde o menino alcançava. Embora o sol estivesse forte, seu corpo tremia como se ainda estivesse no fundo da cachoeira. Ainda apostando na estratégia de tagarelar para adiar a execução (porque era assim que os heróis geralmente sobreviviam nos filmes), Michel perguntou:
— Quem é Sitri?
O demônio riu outra vez.
— Quer mesmo saber?
— Não sei do que você tá falando.
— Tô falando do seu amigo! Ele costumava ser o príncipe do Inferno. Você sabe que não tem anjo da guarda, não sabe, desprotegido? Porque consigo sentir de longe o fedor de um abandonado por Deus. Pessoas como você são um pecado imperdoável. Um erro. Um deslize que anjo nenhum cometeria… a não ser sob forte tentação demoníaca. Quando Sitri ainda reinava no submundo, ele era o favorito de Lúcifer pra espalhar a luxúria na Terra. Aposto que ele não te contou isso. Muitos desprotegidos nasceram graças às tentações dele. Éramos muito próximos, Sitri e eu, e se você o visse em sua forma natural, com a cara de fera e as asas de grifo, não entraria em cachoeira nenhuma por ele. Pelo contrário, correria pra longe. Mas aquele rostinho bonito que ele consegue projetar engana muito bem. Nem dá pra imaginar que ele caiu por assassinato. Também não sabia disso, sabia, azarado? Sitri foi expulso do Paraíso por ter matado um arcanjo. Esse é um dos poucos pecados divinos que orgulham Lúcifer. O cara ganhou prestígio lá embaixo com o chefe. E o ingrato fez o quê? Fugiu. Fugiu e aprisionou a própria alma em uma carcaça podre como a sua e como essa que estou sendo obrigado a usar agora, uma carcaça impura e frágil que vaza excremento por todos os buracos. Mas Lúcifer ainda tem soldados fiéis no Inferno, desprotegido. Soldados como eu e meus amigos que você conheceu hoje. E a gente leva de volta para casa os criminosos que ousaram sair de lá.
O demônio aumentou levemente a pressão do machado contra o pescoço de Michel, que ardeu. Ele prendeu a respiração, sentindo o metal afiado prestes a tirar sua vida, e, com um último esforço, projetou o corpo sutilmente para a direita. O movimento fez com que a pele do pescoço rasgasse sob a lâmina, mas, ao menos, ele tinha alcançado o revólver de plástico. Sem mirar direito, Michel apertou o gatilho do brinquedo três vezes na direção do demônio.
O demônio gritou, soltou o machado sobre Michel e recuou. O menino segurou a arma pelo cabo e se levantou. Não sabia o que esperar do resultado de seus disparos de água benta. O que aconteceu, no entanto, foi muito mais violento do que ele poderia imaginar: o demônio soltou um grito gutural, profundo e sofrido, e sua pele queimou como se tivesse sido atingida por ácido. Ele derreteu, aos poucos, agonizante. Michel ficou olhando até acabar, boquiaberto e enjoado. No chão de pedras irregulares, no fim de tudo, sobrou apenas uma poça de gosma fumegante e pedaços retorcidos de tecido preto.
Michel se afastou e passou as costas da mão no pescoço. O sangue escorria, mas ele ainda estava de pé. Cambaleou em direção à trilha, preocupado com Adelaide e arrastando o machado e o revólver de brinquedo consigo. Embora só quisesse se sentar e chorar, forçou-se a seguir em frente. Não precisou andar muito para encontrar a amiga com a arminha amarela em punho, tentando alvejar o demônio que voava ao redor dela.
Havia uma foice caída no chão de terra e uma poça de gosma ao lado, e Michel soube que um dos demônios que disparara na direção da benzedeira tinha ido para o brejo. O menino apertou o passo, mas as chuteiras fizeram barulho na terra batida e o demônio ouviu. Com uma velocidade sobre-humana, a criatura alada se deslocou na direção de Michel, a foice girando no ar impiedoso.
Mal deu tempo de pensar. Michel deu um carrinho para se esquivar. Caiu para o lado, mas a foice afiada do demônio furou o recipiente de plástico que armazenava a água benta no revólver de brinquedo. O líquido escorreu, desperdiçado, nas pernas e nos pés de Michel. O demônio, que tinha passado direto pelo alvo, perdeu o controle do voo e se chocou com uma árvore próxima, fazendo tremer a copa e despencar as folhas secas. Sem pensar muito, Michel correu na direção do monstro prestes a se erguer, imaginando que, no lugar da cabeça dele, havia uma bola na marca do pênalti. Com os pés benzidos, o centroavante meteu a chuteira na bochecha do demônio e o observou derreter aos berros até virar nada.
Michel e Adelaide ficaram em silêncio pelos segundos seguintes, tentando recuperar o fôlego. Foi ela quem reagiu primeiro: aproximou-se dele para compartilhar um abraço trêmulo. Ele a afastou pelos ombros para vê-la melhor, a fim de sondar algum ferimento grave; felizmente, ela parecia bem, apesar de descabelada, sem óculos e suja de terra.
— Cadê Jandira? — Michel conseguiu perguntar.
— Mandei ela de volta pra buscar ajuda.
Dois borrões passaram por eles e sumiram no meio das árvores da mata fechada adiante — o primeiro deles estava despido no tronco e sangrando, o segundo tinha a cabeça loira. O coração de Michel errou as batidas: Érico. Ele e Adelaide correram para dentro da floresta sem pensar, tentando alcançar os anjos caídos. No mato alto interrompido por frequentes raízes, desníveis e animais peçonhentos, era difícil manter uma linha reta. Não havia nenhuma espécie de trilha ou caminho demarcado ali. Nem o sol entrava direito.
Os dois se perderam em pouco tempo. Pararam para respirar e olharam ao redor, sem ter a menor ideia de onde estavam. Naquele fim de tarde, a floresta estava fresca e escura, cheia de coaxares, pios e uivos. Michel estava no meio de uma frase quando escutou o barulho. Passos quebrando galhos. Interrompeu-se e ficou estático, sem coragem de correr ou se esconder. Uma imagem horrível lhe veio à mente: a demônia loira carregando a espada na mão direita e a cabeça decapitada de Érico na esquerda, erguida pelos cabelos cacheados.
Passos e mais passos, sempre vagarosos, cada vez mais próximos, cada vez mais pesados. Demorou até que a criatura se revelasse; quando o fez, era um lobo-guará. O bicho era mais alto que Michel teria imaginado, de patas dianteiras compridas, amarelas da metade para cima e pretas da metade para baixo. O corpo do lobo era esguio, o focinho era comprido, e havia um tufo de pelos escuros no topo da cabeça caramelo. Os olhos redondos estavam fixos nos de Michel, que prendeu a respiração.
Houve um momento de tensão, e então o lobo se distraiu com alguma coisa: sua orelha pontuda (com um ferimento recente, Michel notou) girou para o lado, como um radar, e ele fugiu sem mais nem menos para longe. Michel e Adelaide ouviram mais passos, dessa vez mais rápidos, aproximando-se mais depressa. Poucos metros adiante, um demônio realmente apareceu com Érico no colo — inconsciente, mas inteiro. Michel suspirou aliviado quando reconheceu Fabinho.
O demônio pareceu pesaroso quando se deparou com os dois adolescentes.
— Vocês não deviam estar aqui — foi a primeira coisa que disse.
— Ele morreu? — Michel perguntou, sem ter coragem de olhar diretamente para Érico. Tinha noção do sangue que escorria dele e do quanto seu rosto estava pálido, mas não tinha condições de analisar melhor a situação com os próprios olhos.
— Podemos conseguir outro anjo pra você, azarado — Fabinho respondeu.
— Não é por isso que estou preocupado! — Michel praticamente gritou, sentindo a garganta se fechar.
Por que se importava tanto assim com Érico? Sem ter muita noção do próprio ato, Michel segurou com a mão direita a cicatriz circular recente que marcava seu pulso esquerdo, tentando afastar para longe a história que o demônio do machado tinha contado. Mas era difícil esquecer.
— Érico vai ficar bem, Michel — Adelaide entrou na conversa, embora fosse óbvio que não havia como ter certeza.
Fabinho endossou a possibilidade:
— Possivelmente. Mas a gente precisa sair daqui primeiro.
Iniciaram o caminho de volta para a trilha, com Fabinho puxando a fila.
Depois dos primeiros cem metros, Michel decidiu que precisava tirar a dúvida e reuniu coragem para perguntar:
— É verdade, Fabinho? Érico é Sitri? Ele matou um arcanjo?
Fabinho interrompeu a caminhada, mas não se virou. Retomou os passos poucos segundos depois, mantendo a voz casual ao responder:
— Sim.
Michel sentiu raiva.
— E esqueceu de me contar esse detalhe? Não podia ter me dado um demônio com um pecado menos escroto, tipo ter mijado na sandália de São Pedro ou colado chiclete no cabelo de Jesus? Por que me deu justamente um assassino? Pensei que Érico tivesse, sei lá, acordado Maria às três da manhã tocando forró pé de serra na gaita ou alguma coisa assim! Eu quase morri por ele hoje sem saber por quem estava quase me sacrificando e você ainda tem coragem de dizer na maior casualidade que, sim, ele atirou no Gabriel, como se não tivesse a menor importância!
Fabinho olhou por cima do ombro, meio ofendido.
— Não que seja da sua conta, mas o arcanjo em questão não era o Gabriel, era o que convenceu a humanidade de que Deus pregava a intolerância às diferentes etnias, identidades, religiosidades e sexualidades. E não há armas no Céu, então é claro que ninguém atirou em ninguém. Érico só… Você não entenderia. Ele interrompeu a existência do cidadão de maneira irreversível, digamos assim, mas não com um revólver. É que ele tinha noção da violência da segregação que o desserviço daquele imbecil geraria por milênios no plano terrestre. Tudo bem que fazer justiça com as próprias mãos não é exatamente a melhor forma de lidar com empecilhos, mas tenho certeza de que você entende, já que mirou uma bicuda benzida na cara de um soldado do Inferno agora há pouco. E, enfim, Lúcifer achou engraçado que Érico tivesse chegado ao ponto de condenar a própria alma só pra tentar salvar a tolerância da humanidade e, por isso, o transformou no “demônio mais apaixonado que já existiu”. O trabalho de Érico, no período em que esteve no submundo, envolveu fomentar a luxúria e as paixões complicadas por todo canto, só para distorcer a definição que ele tinha de “amor”. É claro que ele odiava. Se gostasse, não teria fugido de lá, teria?
Adelaide, que não sabia de nada daquilo, muito menos de onde o assunto tinha surgido, decidiu não fazer perguntas. Michel também não falou mais nada, mas continuou meio emburrado. De todo jeito, os quatro chegaram depressa à trilha. Àquela altura, o sol já havia terminado de se pôr, e o frio e a escuridão já tinham caído sobre o Caraça. Havia grilos cantando por toda parte e insetos pequenos voando sem direção. O mundo brilhou de estrelas e vagalumes e esfriou de vento gelado. Olhando para cima, Michel enxergou no céu o rastro leitoso da Via Láctea, fazendo-o perceber, pela primeira vez, que o nome da galáxia fazia bastante sentido.
O celular de Adelaide, que milagrosamente tinha sobrevivido à batalha sem sofrer mais que um mero trincar de tela, foi acionado para iluminar o caminho. Érico continuava desacordado, pálido e marcando a trilha com gotas de sangue. Ninguém falou nada. Mal tinham andado dez metros quando escutaram o trotar de cascos vindo ao encontro deles. Adelaide se adiantou para receber Jandira, que vinha com padre Graciano no lombo portando uma lanterna de acampamento. O facho de luz forte os cegou como um farol, e o padre soltou quinze expressões religiosas seguidas quando enxergou as asas e os chifres dos demônios à frente.
— Adelaide, corre! Você também, menino! Saiam daqui, depressa, os dois!
— Não, padre Graciano. — Adelaide fincou o pé em frente à égua. — Espera aí. Eu posso explicar. O senhor tinha razão sobre os demônios que vivem por aqui, mas errou o motivo. Eles não vieram caçar desprotegidos pra levar as almas deles pro Inferno, vieram justamente porque fugiram de lá. Estão tentando ajudar. Eles ainda são anjos, o senhor esqueceu? São criação de Deus também. A gente… É que houve um probleminha aqui, mas já tá tudo resolvido. Lúcifer mandou uns capangas atrás dos anjos caídos que conseguiram escapar dele, mas, por incrível que pareça, a gente levou a melhor.
— Isso não vai se repetir, Graciano — Fabinho prometeu, ainda com Érico no colo. — Não vou mais permitir que crianças estejam por perto caso isso aconteça outra vez. Érico me avisou que levaria a batalha para longe do campo de futebol, mas não previu que os dois fossem segui-los.
Adelaide interrompeu para perguntar:
— Como assim, o Érico te avisou? Você não estava por perto. Demônios conversam por telepatia?
— WhatsApp.
— Ah.
Michel também deu seu testemunho, embora seguisse contrariado:
— Eu nasci sem anjo da guarda, padre. O senhor deve saber que isso acontece de vez em quando, porque a Adelaide falou que o senhor sabe tudo sobre anjos. Minhas cicatrizes servem de prova. Esses caras apareceram na minha vida ontem e já fizeram uma diferença absurda. Eu nunca tinha conseguido jogar um tempo inteiro de jogo de futebol sem me contundir, ainda mais fazendo um monte de gol. E, obviamente, eu jamais teria saído vivo de uma luta contra demônios se o campo protetivo do meu anjo caído da guarda não estivesse no alcance.
— Por outro lado, você também não teria se enfiado em luta nenhuma — padre Graciano rebateu.
— Como eu disse, não vai mais se repetir — Fabinho ressaltou. — Sei que você benzeu os limites do meu terreno, Graciano. E sei que sua intenção era prender todos nós dentro daquele casarão para sempre. Mas, por algum motivo, nós conseguimos transitar para dentro e para fora daquele campo de bênção, mas os soldados de Lúcifer não. E é por isso que eles armam emboscadas para nós quando estamos do lado de fora, distraídos. Mas eles não terão essa chance outra vez. Não baixaremos mais a guarda.
Michel olhou para Érico, por fim. Ele estava cada vez mais pálido, e o sangue que banhava seu corpo ainda era vivo, brilhante e úmido. O menino teve a impressão de que aquela não era uma boa hora para lavar toda a roupa suja se quisessem salvar o caído, mas padre Graciano não sairia do caminho sem ser convencido.
— O senhor confia em mim, padre? — Adelaide suplicou.
Michel fechou os olhos e suspirou. A benzedeira por acaso tinha se esquecido de que já tinha feito aquela pergunta naquele dia? Para a surpresa de Michel, no entanto, o padre desceu da égua e respondeu:
— Sim, Adelaide. Confio em você.
E, para provar o que estava dizendo, tirou do pescoço o crucifixo que usava e o pendurou no da benzedeira.
— Sem isso, estou desarmado. Pegue a égua e leve Michel pra enfermaria, ele precisa limpar esse corte no pescoço. Vou atrás com os outros dois, porque a pobre da Jandira não consegue carregar todos nós ao mesmo tempo.
Houve um momento de tensão.
— Tem certeza do que está fazendo, Graciano? — Quem perguntou foi Fabinho.
— Só atravessa meu campo de bênção quem tem luz dentro do coração, filho. E se você tá aqui fora agora, é porque não foi detido por ele. Nem você, nem esse jovem ferido. Vamos, que vou dar um jeito de conseguir ajuda para ele lá na paróquia.
✻
De perto, a catedral era ainda mais impressionante do que vista do mirante. Ela era construída em pedra clara, a entrada era adornada por uma escada larga e robusta de pedra, e a torre principal era muito alta. Michel ergueu a cabeça para olhar o sino lá em cima, imaginando como seria soá-lo. A vista devia ser muito bonita. Jandira foi deixada no jardim, perto da grande fonte de pedra, de onde roubou uns bons goles de água. No fundo, havia moedinhas jogadas por visitantes em troca de desejos.
Michel e Adelaide entraram na igreja imensa, que estava completamente vazia. O piso era antigo e decorado, os vitrais atrás do altar eram coloridos e, ao lado dos bancos pesados de madeira maciça, colunas de pedra branca se erguiam até o teto. Na parede esquerda, mais à frente, havia uma pintura grande da Santa Ceia. Para onde quer que você fosse, o olhar de Judas te acompanhava, desafiador e misterioso.
Michel e Adelaide saíram da catedral pela porta lateral e desembocaram em uma varanda comprida que rodeava um pátio pequeno e florido com um grande relógio de sol no meio. Os dois andaram pelos corredores, que se abriam na parte interna em vários outros caminhos e portas fechadas. Adelaide guiou Michel até onde funcionava a enfermaria.
O corte não tinha sido profundo. Michel tomou um analgésico, ganhou um curativo e foi mandado para o banho. Lavou o rosto e o corpo preservando o machucado e esperou enrolado na toalha que lhe foi cedida, sentado na maca. Lucas, um colega de time, enfim entrou pela porta com novas mudas de roupa para o centroavante.
— Quanto ficou o jogo? — Michel perguntou enquanto vestia a cueca e a calça de moletom por cima.
— Sete a cinco — Lucas respondeu. Michel parou de se vestir e olhou para ele.
— Sério? Os caras quase empataram?
— Eles jogam bem. Enfim, seu primeiro tempo foi muito bom.
Felizmente, Lucas havia levado meias quentes e o casaco mais grosso de Michel. Grato, ele continuou a se vestir. A noite no meio da floresta era sempre gelada, não importava a estação. Lucas nem se deu ao trabalho de perguntar sobre a quase decapitação de Michel: já tinha acontecido antes. Estranho seria se o menino tivesse tido um dia tranquilo.
— Você perdeu o jantar — Lucas contou —, mas ainda dá pra ver o lobo.
Os dois saíram juntos da enfermaria, passaram outra vez por dentro da catedral e seguiram até o pátio de pedra que ficava diante da porta de entrada, no alto das escadas. Havia um grupo de pessoas ali, todas sentadas em semicírculo no chão.
Ventava tão frio que a respiração de Michel virava vapor bem à frente do rosto. Estava preocupado com Érico, o que o inquietava o tempo todo. O demônio não estava ali e talvez nunca mais voltasse. O pensamento apertou o estômago do desprotegido, que foi obrigado a admitir para si mesmo que a raiva tinha se diluído e que acreditava nas palavras de Fabinho. Aliás, mais do que acreditar, Michel estava aliviado por poder se apegar àquela versão da história.
Lucas se sentou perto dos outros colegas de time, mas Michel continuou de pé, olhando de um lado para o outro. Então, viu a careca de padre Graciano no meio da escada que dava para o jardim e andou até lá. O uniforme do FÉ tinha sido trocado; ele agora usava batina outra vez e cheirava a sabonete. Segurava a perna da cadeira que salvara Michel da execução. Antes que Michel perguntasse qualquer coisa, o homem respondeu:
— Acalme o coração, filho. Eles estão vindo aí. — Graciano girou o pedaço de madeira nos dedos. — Estou pensando em escrever uma carta pro Vaticano. Erivaldo Jambu precisa ser canonizado, não acha? Mas ouvi dizer que ele é ateu. Será que aceitam santos ateus? Enfim, vá se sentar. Vou buscar o jantar do lobo.
Padre Graciano apontou na direção da catedral, depois subiu as escadas e desapareceu lá em cima. Mais duas pessoas tinham se juntado ao semicírculo: Fabinho e Érico (sem chifres ou asas à vista). O mais novo mancava e ainda estava pálido como um fantasma, mas estava de pé e agasalhado (talvez porque estivesse frio, mas provavelmente para esconder os ferimentos). Michel sentiu o coração inchar de alívio e, assim que seu demônio da guarda se sentou no chão, ele se aproximou e abriu caminho para se sentar ao lado dele.
Érico virou o rosto para olhar seu protegido. Os cabelos grossos e cacheados cobriam a pele branca da testa até as sobrancelhas espessas e escuras. Ele pareceu incomodado ao notar o curativo no pescoço de Michel.
— Não me siga da próxima vez.
— Eu me dei bem. Estava armado.
— Sério, Michel.
— Se eu não tivesse me metido, você estaria no colo de Lúcifer agora.
Érico olhou para os lados, conferindo se alguém havia escutado. Mas estava todo mundo prestando mais atenção em padre Graciano, que tinha voltado com o tabuleiro agora cheio de carne. O velho colocou a oferenda no chão e a arrastou com o pé. O barulho do objeto na pedra do chão era o chamariz do lobo. O padre recuou e se juntou ao resto dos espectadores, paciente.
Érico se inclinou para cochichar no ouvido de Michel:
— Padre Graciano disse que vai abençoar a gente como abençoou o terreno do casarão. Todos nós, eu, Fabinho, Amélia e todo mundo que mora lá. Isso deve manter os soldados do submundo longe da gente, onde quer que a gente esteja. Talvez dê certo. Ele só não pode usar água benta, senão… Bem, você viu o que acontece. Adelaide me atualizou dos acontecimentos.
Michel assentiu, feliz em saber que padre Graciano tinha sido convencido a ajudar os anjos caídos. Demônios deviam ser mesmo bem persuasivos. Então Adelaide apareceu na roda e Michel sorriu. Não eram os demônios que eram persuasivos, era aquela benzedeira mirim destemida e inconsequente. Ela tropeçou antes de conseguir um lugar para se sentar (não devia estar enxergando direito agora que havia perdido os óculos).
E então ele apareceu. O lobo. Subiu as escadas devagar, mas confiante, magro, alto e comprido. As pessoas ficaram tão quietas que deviam ter prendido a respiração. Não queriam espantar o bicho com qualquer movimento brusco.
Michel reconheceu o ferimento na orelha dele — era o mesmo lobo que ele tinha encontrado na trilha. Primeiro, o animal foi certeiro até a bandeja de carne, mas olhou por cima dela quando estava prestes a se abaixar para comer. Enxergou Michel bem à frente e hesitou. Então, contornou o tabuleiro a passos tímidos. Inclinou o focinho para farejar, e se prezou a se aproximar do menino. Nervoso, Michel segurou a mão de Érico quando sentiu o focinho gelado no nariz, depois na bochecha, e então na orelha e no cabelo.
Ele tinha cheiro de mato, cachorro molhado e sol, e farejava. Érico segurou a mão de Michel de volta, com os dedos entrelaçados. E então, como se já estivesse satisfeito com as informações que reunira sobre o menino, o lobo se afastou, abocanhou um punhado de carne e foi embora trotando pelos degraus de pedra até sumir na noite.
As pessoas soltaram risadinhas nervosas. Uma criança comentou com o pai:
— Que menino sortudo!
E Michel percebeu que estavam falando dele. Sortudo. Tinham-no chamado de sortudo! Érico estava sorrindo de leve, o que fez Michel sorrir também.
Tiago, do outro lado da roda, parecia ter levado um soco no estômago. Como assim dois garotos tinham dado as mãos e o planeta não tinha explodido automaticamente?
Para completar, um homem se inclinou para falar com Michel com um sorriso grande no rosto. Era Edson Jacaré — que, até o momento, o menino não tinha percebido que estava por ali.
— Seu primeiro tempo foi impecável, Michel. Pena que não conseguiu jogar a segunda etapa. Mas espero ver você no próximo teste de elenco do profissional. É mês que vem, acha que consegue ir?
Michel soltou a mão de Érico para trocar um aperto de mão empolgado e caloroso com o técnico do Cruzeiro Esporte Clube.
✻
Érico interrompeu a melodia animada e guardou a gaita no bolso.
A lua cheia, recém-saída de trás de uma nuvem, clareou tanto a noite que mesmo os contornos das florestas e das montanhas ficavam visíveis.
— Sabe por que o nome desse lugar é Caraça, Michel?
Michel negou com a cabeça. Érico deu dois passos para trás e tombou a cabeça até ficar com o rosto totalmente virado para o céu. Atrás dele, um pedaço da Serra do Espinhaço contornou seus traços perfeitamente, testa, nariz, boca e queixo, como se aleatoriedade das pedras lá atrás fosse, na verdade, as formas de um gigante que também olhava as estrelas.
— Entendeu?
— Eu… Ah! Ah, entendi! Caraça… Uma cara grande. Caramba.
Érico endireitou o corpo e perguntou, casualmente:
— Você já dormiu ao ar livre?
Os dois estavam em um mirante próximo da catedral, no alto de uma colina marcada por um cruzeiro de madeira no topo.
— Por que eu faria isso? — Michel respondeu.
— Porque não existe teto mais bonito do que um teto de estrelas?
Aquilo era verdade. Michel tinha acabado de localizar a constelação do Cruzeiro do Sul lá no alto, justamente as estrelas que estavam bordadas no uniforme do seu time e que davam nome ao clube.
— Talvez quando não estiver tão frio — Michel desconversou. Érico riu.
— Então, vamos. Te deixo onde o resto do time tá hospedado.
Os dois caminharam lado a lado para baixo da colina e se afastaram da catedral pelo caminho que levava até a casa onde o resto do elenco estava. Érico tirou a gaita do bolso outra vez e recomeçou a tocar animadamente. Os tênis dos dois bateram no chão de paralelepípedos sujos de terra e os levaram adiante. Estavam quase chegando quando Michel tomou coragem para falar o que vinha ensaiando desde que ficara sozinho na enfermaria. Ele parou de andar, esperou Érico se virar para ele e baixar a gaita, e comentou:
— Fabinho me contou sobre quem você é de verdade.
Érico ergueu as sobrancelhas.
— Como assim, quem eu sou de verdade?
— Sitri.
Érico cruzou os braços, desconfortável.
— Sitri não é mais quem eu sou.
— Só quero saber se tá fazendo aquilo comigo. Usando aquele poder em mim.
— Que poder?
— Aquele poder de enfeitiçar as pessoas e deixar elas apaixonadas. Você consegue fazer isso, né? Era o que Lúcifer te obrigava a fazer.
Confusão pura tomou conta do rosto de Érico.
— Primeiro que eu não sou bruxo pra enfeitiçar ninguém. É uma maldição, e é claro que não estou fazendo isso com você. Jamais faria. De onde tirou isso?
— Então como é possível eu ter me apaixonado tanto por você em tão pouco tempo? Amor à primeira vista só acontece em filme. Não na vida real.
Pelo próximo minuto, tudo que ouviram foi o piar de uma coruja próxima e grilos disputando gogó com cigarras. Érico abriu a boca para responder três vezes, mas desistiu em todas. Parecia não conseguir processar muito bem o que tinha acabado de escutar. Por fim, esclareceu:
— Eu… Michel, eu sou um demônio. Eu nunca seria bom o suficiente pra você. Sério, existem criaturas muito melhores pra você depositar seu afeto.
— É, tá, me poupe do discurso autocrítico.
— Não é discurso, é a verdade.
— Demônios não são tão ruins. Eu já beijei um jogador do maior rival do Cruzeiro, o que é muito pior.
Érico não conseguiu conter uma risadinha fraca, mas não mudou de ideia.
— Não faça isso com você. Principalmente não hoje. Seu dia já foi uma merda.
Érico retomou os passos, mas guardou a gaita no bolso. Já estavam chegando. Michel andou devagar para prolongar o momento.
— E onde você vai passar a noite, Érico? Se não pode se distanciar muito de mim por causa do campo de proteção, não vai poder voltar pro casarão hoje.
— Não se preocupe comigo.
— E quando eu voltar para Beagá, amanhã? Você também vai ter que ir, mas…
— Sério, Michel, não se preocupe comigo. Eu me viro.
— Se você precisar de um teto…
— Michel…
— Caramba, só estou tentando ajudar.
— Mas o combinado é o contrário, né? Sou eu que tenho que te ajudar nessa vida.
— Uma mão lava a outra, uai.
— Ó, a gente chegou.
Antes de entrar, Michel tomou a liberdade de puxar Érico para um abraço — mas não forte demais, por causa do machucado nas costelas dele. O demônio beijou a testa do seu protegido, deu um passo para trás e desejou boa noite.
— A gente se vê? — Michel perguntou.
— É claro que a gente se vê. Nunca estarei a mais de três quilômetros de distância.
Os chifres e as asas de Érico reapareceram e ele deu uma piscadela. As penas se alongaram, parecendo se espreguiçar, e então ele levantou voo e se camuflou no céu noturno. Michel levou quase dez minutos para entrar na casa. Ficou reparando no quanto a lua cheia estava bonita naquela noite.
FIM
Maria Clara Lacerda é mineira, fotógrafa, tradutora e autora do romance A Pequena Nuvem de Magalhães, da Faísca Post Póstumo, do conto Pontiagudos da coletânea Cidades Infinitas e de centenas de outras contações que esperam ansiosamente para escapulir da gaveta.
João Pedro “JP” Lima escreve há anos mas é daqueles que vive empacado para lançar livro. Foi co-editor e escritor para o Tempo fantásticos, ajudou a fundar a Mafagafo e paga as contas avaliando conteúdo escrito e audiovisual. Também trabalha com RPG, jogos de tabuleiro, traduz e é leitor crítico.
Jana Bianchi é escritora, tradutora, editora na revista Mafagafo e cohostess do Curta Ficção. Em português, além de Lobo de rua (2016), publicou diversos contos em revistas e coletâneas. Em inglês, tem ou terá textos publicados nas revistas Strange Horizons, Clarkesworld e Fireside. É aluna da turma de 2021 do workshop de escrita Clarion West. Jana mora no interior de São Paulo com os pais, duas cachorras e suas várias tatuagens animadas.
Sérgio Motta é designer, escritor e amante de café. Nascido e criado na periferia de São Paulo, a cidade, cheia de fantasias, caos, diversões e diversidades é sua musa. Já publicou “Ciberbochicho”, pela Revista Mafagafo, onde hoje também é editor, “Spider”, pela revista estadunidense Strange Horizons e “Aline na Avenida das Paulistas”, uma releitura de “Alice” pela avenida mais famosa de São Paulo. Também é criador do portal Resistência Afroliterária e editor-chefe da Revista Afroliterária. É dono do Machadinho, autor dos maiores clássicos da literatura canina.
Shan é ilustrador freelancer com foco em design de personagens e conteúdo adulto. Faz de tudo um pouco – entre pinturas, quadrinhos, fanzines, jogos e material impresso, se é um projeto bacana, pode chamar que ele vem. Vive alimentando fandom com sua arte nas horas vagas, sempre participando de colaborações e antologias. Tempo livre é uma ilusão.