A capa, cujos tons predominantes é o laranja forte e um roxo bem queimado, tem, no centro, uma ilustração composta por três personagens e uma nave especial em um fundo de estrelas em forma de mancha. O personagem da esquerda é uma homem robusto, de braços cruzados, pele negra, barba e cabelo de comprimento médio e cachos pequenos. O do meio é magro, está sentado em uma cadeira, tem pele negra escura, cabelo curto e está olhando para o lado, com os dois braços no apoio da cadeira. A personagem da direita também é robusta, de pele negra, cabelo cacheado na altura do ombro. Todos usam o mesmo macacão laranja e coturnos pretos, sendo que a personagem da direita está com a parte de cima de ela amarrada na cintura. No topo da capa, o título da revista MAFAGAFO e, logo abaixo, o nome da obra, Planeta Quilombo. Na base da capa, as informações escrito por G. G. Diniz e edição por Dante Luiz. Sobre o título, ilustração de DaPenha. No canto superior esquerdo, a data maio de 2022, temporada 005.

17.200 palavras | Aproximadamente 1h20min de leitura

Tudo volta para o planeta Terra. Para o Brasil.

É impossível falar da gente sem falar de onde viemos. Bem, nossos ancestrais vieram da África, e não posso falar mais do que isso. Nosso passado e nossa história foram apagados, mas não nossa força; nós nos juntamos e fugimos dos senhores escravagistas para sobreviver na terra tropical e estranha chamada Brasil. Nós formamos quilombos. Nós sobrevivemos. Nós estamos, e sempre estaremos, aqui.

(Trecho do diário da Fátima)

 

Dandara acordou irritada feito siri numa lata de querosene. Ela puxou o comunicador da prateleira ao lado da rede e confirmou o que já suspeitava: ainda tinha umas boas três horas pro alarme tocar. Tudo na Bom Jardim estava calmo, o que era um péssimo sinal. A estrutura da nave vibrava e rangia em altas velocidades, e o fato de estar tudo tranquilo significava que o motor de velocidade acima da luz tinha dado pau.

De novo.

Dandara pôs o comunicador de volta na prateleira, esfregou o rosto e inspirou com força. Dentre as opções, ela preferia se sentir irritada de ter que ir à casa das máquinas no meio da sua escala do sono, porque se fosse para sentir outra coisa, seria medo. Medo pela nave estar em espaço profundo e o motor de velocidade acima da luz ter começado a pifar com uma frequência cada vez maior.

Depois de alguns minutos processando o fato que, sim, teria que se levantar para consertar o motor e provavelmente alguém a encontraria e jogaria outro problema no colo dela, e ela não conseguiria mais voltar ao quarto para dormir o resto das suas horas, Dandara enfim se levantou.

O quarto dela, como o quarto de todo mundo, era um ovo. Então ela só precisou dar dois passos para chegar no guarda-roupa. Pelo menos não tinha mais muitas roupas; desde que se tornara a capitã, intercalava entre os dois macacões deixados pela mãe, que ficavam um pouco curtos e largos demais. Dandara não conseguia se convencer a mandá-los para a costureira dar uma pinça e ajeitar o arrebanhado. No automático, ela pôs o macacão, colocou o comunicador no bolso, calçou as botas e saiu para o corredor que estava felizmente vazio àquela hora.

A capitã do Quilombo Bom Jardim andou a passos largos até o elevador e apertou o botão para a casa das máquinas, torcendo para que o caminho até lá fosse direto e não aparecesse mais ninguém. O destino não foi tão gentil: o elevador parou no andar do biotério e uma lufada de ar quente e úmido invadiu o ambiente quando as portas se abriram. Dona Gertrudes entrou empurrando um carrinho com caixas de frutas e verduras para as cozinhas.

Dandara roubou uma banana da caixa mais em cima. Ela era a capitã, então ninguém podia reclamar que ela comia fora do horário, se ela sempre tinha que trabalhar fora do horário também.

— Tudo bem, minha filha? — perguntou Dona Gertrudes, responsável pelas estufas e pela cozinha, que não se fazia de rogada na hora de pegar trabalho pesado. Dandara só podia torcer para envelhecer tão bem quanto ela.

Era fofo o jeito que ela ainda chamava Dandara de “minha filha”, mesmo depois de ela ter crescido e se tornado capitã.

— Tudo, Dona Gertrudes. E com a senhora, tudo tranquilo?

— Tudo.

— Massa.

Dandara descascou a banana, jogou a casca de volta na caixa, e deu uma mordida, fazendo uma reza silenciosa para a conversa terminar.

— Mas tu se lembrou de falar com a Helenilce?

Vixe…

— A Raimunda? Falei ainda não, mas vou falar, se preocupe não, viu?

Dona Gertrudes olhou Dandara com desconfiança.

— Pois já vai fazer duas semanas que eu não durmo direito com o barulho dela com o namorado no meu pé do ouvido. Depois ela tá aí reclamando da minha comida. Como é que eu vou cozinhar direito se não durmo direito?

— Pode deixar dona Gertrudes, vou falar pra ela baixar o volume.

Nada poderia ter preparado Dandara para o fato de que ser capitã da Bom Jardim significava apartar briga da tripulação noventa por cento do tempo. Não que ela tivesse recebido muito treinamento para o papel, porque, antes de morrer, sua mãe mal falava com ela. Ainda assim, nem que ela tivesse sido avisada, poderia ter noção de quando tempo gastaria resolvendo briga besta. Depois de tanto tempo trancadas dentro da Bom Jardim, as pessoas já deviam estar subindo pelas paredes.

Pelo menos Dona Gertrudes se deu por satisfeita com a promessa e saiu quando o elevador parou no andar da cozinha, e ninguém mais entrou depois disso. Dandara saiu do elevador e caiu num pequeno corredor da entrada da casa das máquinas. O corredor se findou numa passarela metálica que circundava um calabouço. Lá embaixo, estavam os motores e o modulador de gravidade que impedia todo mundo ou de ser esmagado pela alta gravidade causada pela velocidade ou de sair flutuando por aí por não ter gravidade, o que era até divertido, mas os problemas de saúde advindos disso a longo prazo, nem tanto.

Dandara seguiu para a direita na passarela e depois dobrou mais uma vez, o caminho se abrindo numa plataforma onde estavam os painéis de controle do motor de velocidade acima da luz. O motor em si era uma caixa metálica muito bem lacrada que Dandara não se lembrava de algum dia alguém ter aberto para ver o que tinha dentro. Já o painel, ela conhecia bem. Tinha uma tela e um teclado cheio de botões, ajustes e interruptores, mas tudo o que precisava para fazer o motor pegar era o botão de reiniciar; ela levantou a proteção de plástico e apertou o botão que emitia uma luz vermelha. O motor zuniu em resposta, fez um barulho feio, e em seguida caiu no silêncio de novo. Nervosa, Dandara apertou o botão de reiniciar mais uma vez. O motor engasgou, e, no fim, a tela do painel se iluminou em verde e o motor passou a vibrar só de leve. Estava tudo operacional novamente.

Por ora.

Dandara estava com a péssima sensação de que o motor estava nas últimas. Uma das poucas coisas que sabia era que não deveria utilizá-lo com muita frequência ou por longos intervalos. E ela também sabia que era exatamente aquilo que estava acontecendo. Entre a penúltima e a última vez que estiveram em algum planeta colonizado por humanos, havia se passado cinquenta anos, mas dentro da nave, apenas dez.

E agora fazia quanto tempo que estavam zanzando em espaço profundo? Cinco anos? Deveriam ter se passado no mínimo 25 para quem estava fora da Bom Jardim.

Eles não podiam mais continuar assim, por mais que doesse para Dandara admitir tal fato. Estavam perseguindo leituras de uma sonda que revelou um planeta cheio de silício que poderiam minerar e vender, mas até então não acharam o planeta.

Talvez estivesse na hora de voltar com o rabo entre as pernas e admitir a derrota.

— Encontrei leituras das sondas que indicam um planeta com fontes de silício nessa região.

No holograma, uma versão de mentira da mãe de Dandara apontava para um segundo holograma de mentira em três dimensões: a região espacial que a nave Bom Jardim estava naquele momento. Dandara quase podia se ver naquele holograma, a diferença é que ela era magricela, enquanto a mãe era gorda; e Dandara usava o cabelo crespo raspado bem rente, e a mãe deixava-o crescer como uma nuvem ao redor da cabeça. A pele negra era igualmente escura, o nariz era o mesmo, os olhos pretos, idênticos. Entretanto, Dandara teve uma vida tão distante da mãe que aquela era a imagem de uma estranha.

— Vixe, mas não é longe? — quis saber uma Dona Gertrudes que, naquela época, já parecia tão velha quanto atualmente.

— É sim, mas… Precisamos do silício.

Silício era o novo ouro: ele aparecia em todos os circuitos, chips e peças eletrônicas, e as reservas na Terra acabaram. Quem achasse uma boa fonte de silício estava feito para o resto da vida.

— Se a gente pudesse comprar filtros de água novos seria bom — falou Seu Chico, que cuidava dos sistemas de manutenção de vida da nave e que também estava tão velho ali quanto no presente, apesar dos cinco anos de idade da gravação. Estando de pé do lado da Dona Gertrudes, ele parecia mais magro que de costume. Talvez ele não parecesse ser muita coisa, mas o olhar lúcido e afiado que tinha o denunciava como uma das pessoas mais inteligentes da nave. Ele precisava ser; os sistemas de manutenção de vida da nave eram da época que ela foi construída. Ou seja, muito velhos. E Seu Chico tinha que inventar formas criativas de manter os sistemas funcionando.

— Exatamente — confirmou a mãe de Dandara. — A gente tá sem dinheiro e não tem como pagar os reparos que, se a Bom Jardim não precisa agora, vai precisar daqui a pouco. A leitura da sonda é de fora do espaço mapeado, apesar de que a gente já sabia que ia ter que sair dele algum dia, né? Talvez possamos mapear onde formos.

Mesmo pelo holograma, dava para perceber o silêncio sepulcral que se fez no ambiente.

— É, vendo desse jeito… Bora — disse Seu Chico dos Filtros.

Fátima, que foi capitã da nave antes de Dandara, se inclinou sobre a mesa do centro de comando, a mesma mesa na qual Dandara estava sentada enquanto assistia.

— Bora? Todo mundo de acordo?

As outras três pessoas da reunião aquiesceram com a cabeça, incluindo Carol, que naquela época tinha cara de bebê; mais cedo, no ano daquela reunião, ela fora promovida ao cargo de pilota da nave. Mas antes de ser pilota, Carol era namorada de Dandara. Elas se conheceram na escola e foi amor à primeira vista.

— Reunião encerrada, então. Vou acabar a gravação.

E assim o holograma acabou, e o centro de comando voltou a cair na escuridão. Dandara, sentada à mesa de reuniões, encarou o vazio até que a luz se acendeu, revelando Carol em pé na porta de entrada ao lado do interruptor.

— Dandara? Tá tudo bem?

— Tô só aqui pensando… no porquê que a gente tá aqui. Nessa região do espaço, em específico.

Carol se aboletou ao lado de Dandara e entrelaçou os dedos em cima do tampo da mesa da central de comando.

— Eu lembro. Foi uma das primeiras reuniões que participei. Era só ter me pedido pra contar. Tua mãe disse que achou sinais de silício por aqui e a gente veio porque… não tinha mais para onde ir.

— O motor de velocidade acima da luz tá falhando — disse Dandara, após um momento de silêncio. Carol desviou o olhar com uma expressão amarga no rosto. — Não acho que é seguro a gente continuar por aqui. A gente não achou esse planeta com silício que minha mãe falou, mas… Paciência. Se esse motor pifar de vez, vai ser um Deus nos acuda.

E só algum deus mesmo para acudir à Bom Jardim se ela ficasse presa.

A ideia de voltar para espaço colonizado amargava a boca de Dandara. Ela era jovem, mas não tão jovem para não se lembrar de como a Bom Jardim foi recebida na última vez que orbitou uma lua colonizada. Eles não eram bem-vindos, pessoas como eles não eram bem-vindas. Só que teriam que voltar com o rabo entre as pernas porque a nave estava ficando velha e precisando de reparos cada vez mais constantes.

Como eles iam pagar esses reparos era um grande mistério, porém o que iam fazer se o motor de velocidade acima da luz parasse no meio do espaço profundo era um mistério mais assustador.

— É — disse Carol, acariciando o braço de Dandara. — Acho que não tem jeito. É aproveitar que o motor ainda tá funcionando e capar o gato. Eu juro que fiquei pra lá e pra cá esses anos todos atrás desse planeta e não encontrei nada, a leitura das sondas volta sempre vazia. Vai ver foi defeito, alguma coisa assim.

— É. Pode ter sido.

Dandara se recostou na cadeira, desolada, fazendo cálculos. Não tinham muito dinheiro. Não sabiam nem quanto tempo tinha se passado para a humanidade com tantos saltos que fizeram, ou seja, não sabiam nem se o dinheiro que tinham ainda existia ou valia de alguma coisa. Silício seria sempre necessário, era uma moeda que não desvalorizava. Quem sabe eles poderiam trocar algumas mudas de planta que tinham, algo assim. Sabe-se lá se ainda valeria de alguma coisa, já que pés de banana, goiaba e manga sempre valiam menos que pés de morango, mirtilo e raspberry. E todo mundo mataria Dandara se ela vendesse os pés de café.

Ser a capitã era noventa por cento apartar brigas bestas, mas os outros dez que não eram… Dandara sentia o peito apertado com o peso das possibilidades futuras e as decisões que deveria tomar em nome das duzentas pessoas da Bom Jardim. Será que, no fim de tudo, voltariam a ser um quilombo no lixão que sobrou da Terra?

Ela balançou a cabeça. Não precisava pensar naquilo ainda. Tinha que focar no mais urgente: parar de correr atrás do próprio rabo no espaço profundo.

— O jeito é fazer o caminho de volta — disse ela. — Mas em saltos curtos. Não acho que o motor aguenta um estirão todo de volta para onde a gente saiu.

— Pode deixar comigo — Carol respondeu, com um sorriso.

Dandara se inclinou para beijar a namorada e alongou o beijo o máximo que pôde. Carol era uma das poucas coisas boas na vida monótona e repetitiva dentro da Bom Jardim.

Carol por fim quebrou o beijo e disse:

— Vou lá na cabine de pilotagem mudar a rota.

— Vá.

— De nada — retrucou Carol, abusada.

— Obrigada, meu amor! — Dandara disse em voz alta, antes de ser deixada sozinha novamente. Ela encarou o espaço vazio por uns momentos, e decidiu colocar a gravação da reunião para tocar de novo.

Carol estava feliz e satisfeita que Dandara finalmente tomou tento, mas não parecia se lembrar da conversa que tiveram um ano e meio atrás, quando, pela primeira vez, Carol mencionou a ideia de que talvez Bom Jardim deveria voltar para espaço colonizado.

— Voltar? — Dandara combateu. — Voltar para onde?

— Pra espaço mapeado. Vai fazer um ano que a gente tá aqui e eu não encontrei o tal planeta que era pra encontrar. E eu não acho que tá aqui. Talvez as sondas tenham errado o sinal, algo do tipo.

— Não — Dandara respondeu, firmemente. — A gente tem que se ater ao plano.

Carol não disse nada quando Fátima veio com a ideia de usar o motor de velocidade acima da luz em pulos longos para que a nave chegasse a espaço não-mapeado antes de se passar muitos anos. O que ela pensou na ocasião era que eles podiam acabar presos, mas supôs que Fátima deveria estar ciente dos riscos.

E ela também pensou que, seis meses depois da morte de Fátima, Dandara estaria disposta a deixar a mãe ir, mesmo que fosse só um pouquinho. Ela não conhecia Fátima muito bem, mas conhecia Dandara. A namorada não pensava nos riscos, nem nos benefícios, ela só não queria desfazer algo feito pela mãe. O luto de Dandara era doloroso de assistir, na verdade, ainda mais porque Carol sabia que ela e a mãe não eram próximas, apesar de Dandara admirar Fátima e achá-la uma excelente capitã. Vai ver era por isso que Dandara jamais abandonaria os planos feitos pela mãe, quando em vida.

Carol não disse nada e continuou procurando o maldito planeta com as malditas minas de silício, mesmo que não tivesse nada próximo da localização deles, nenhum sistema de planetas, nada.

E agora ela estava sentada na cadeira de pilota para planejar a volta a segurança, finalmente. Programou os primeiros pulos, bem curtinhos. Demoraria um pouco para a nave voltar, mas com sorte, eles chegariam no destino sem o motor de velocidade acima da luz bater. Ele tinha aguentado bem mais do que Carol esperava, então… Ela só podia torcer pelo melhor.

Uma voz interrompeu o fluxo de trabalho de Carol.

— Oi.

— E aí, Eduardo? Como vai? — ela disse, se sentando ereta, a voz um pouco animada demais.

Ela tentava o seu melhor para não criar conflito com as pessoas ao redor — considerando que estavam todos presos em uma nave minúscula — mas, de todas as pessoas, o relacionamento com Eduardo era tenso, e não por causa de algo que ela tenha feito. Não era culpa dela que Fátima a escolhera para ser a pilota-chefe, apesar de Eduardo ser mais velho e mais experiente… Ele merecia o trabalho. Claro, Carol nunca iria contra as ordens da capitã, por isso ela aceitou a proposta quando o antigo piloto chefe veio a falecer.

— Eu só passei para checar se tava tudo bem com a nave. O motor da velocidade acima da luz tem dado muita pane, né? — disse Eduardo, se aproximando e olhando por cima do ombro de Carol. — Mas pelo menos a gente tá voltando. Finalmente.

— Eu sempre achei que o plano da Fátima era muito arriscado — Carol confessou, vendo que o colega sentia o mesmo que ela. — Então tô bem feliz que a Dandara deu a ordem de voltar.

— Ela deveria ter dado a ordem dois anos atrás! Não era nem pra gente tá aqui.

— Talvez, mas…

— E eu tenho certeza que ninguém teve a coragem de dizer nada.

E por ninguém, com certeza ele queria dizer Carol. Era ela que deveria saber os limites do motor.

Ela se levantou para encarar Eduardo, embora ele fosse muito mais alto que ela.

— Eu faço o que me mandam fazer.

— E esse é o problema — Eduardo respondeu, exibindo um sorriso. — Se eu fosse o piloto, eu jamais teria deixado a gente chegar até aqui. E a Fátima sabia disso. Por isso te escolheu.

Carol caiu num silêncio, surpresa. Ela não poderia nem dizer que não era algo que Fátima faria… Sinceramente, depois do que a Fátima fez com Dandara, tudo era possível.

O sorriso de Eduardo ficou mais largo.

— Dandara não é que nem a mãe dela. — Foi tudo o que Carol conseguiu dizer. — A gente tá voltando, não tá?

— Estamos. Então eu não deveria reclamar.

Carol suspirou.

— Olha, desculpa. Eu sempre achei que tu merecia ser o piloto chefe, bem mais do que eu. Mas eu não podia dizer “não”.

— Claro que não podia. Tu nunca diz “não”. — Eduardo pausou, e pôs as mãos atrás das costas. — Mas, sendo sincero, tô feliz de não estar envolvido com essa confusão da Fátima, então… acho que eu tenho que te agradecer. Minhas mãos estão limpas.

— Suas mãos estão limpas do quê? Foi só um plano que deu errado. Acontece.

Eduardo só balançou a cabeça em negativa e saiu, deixando Carol sozinha com o pensamento de que talvez ele estivesse certo sobre Fátima. Ela não achava que a finada capitã tivesse uma motivação secreta como Eduardo deixou implícito, mas Fátima deve ter escolhido Carol em vez do Eduardo por alguma razão…

E a razão que ele deu parecia uma razão muito boa.

Dandara por fim bateu na porta de Helenilce. Depois de uns dias sendo puxada em todas as direções possíveis e imagináveis, ela conseguiu um tempinho para resolver o problema de Dona Gertrudes. Já do corredor, ela ouvia muito bem o barulho, e também escutou a confusão lá de dentro depois que bateu na porta.

A porta enfim deslizou para o lado, revelando uma Helenilce enrolada num lençol, que quase foi ao chão quando viu que era a capitã da nave que a esperava do outro lado.

— D-diga.

— Ouvi algumas reclamações acerca da… — Dandara espiou dentro do dormitório e viu um rapaz seminu deitado na rede. — Comoção que seus vizinhos têm ouvido de noite. Será que dá para maneirar um pouco? Tem gente que precisa dormir.

Helenilce se empertigou.

— Pois tu diga a Dona Gertrudes para cuidar da vida dela e parar de ficar querendo escutar o que eu faço de noite.

— Eu que acabei de chegar aqui escutei o barulho quase agora, Raimunda, tu realmente precisa…

Dandara já estava se preparando para um bate-boca muito exaltado, mas a nave deu um tranco tão forte que passou uma rasteira nela e ela foi de cara no chão. A estrutura toda rangeu alto e o lençol de Helenilce escapou das mãos dela. Dandara fechou os olhos e, do chão mesmo, segurou o pedaço de pano para cima até a dona dele recuperá-lo. Depois, a capitã se levantou, e mesmo com o ouvido zunindo da pancada, ela soube: os motores de velocidade acima da luz pararam de novo.

— Que foi isso? — Veio o rapaz de lá de dentro para a porta, enrolado também num lençol.

— Foi só o motor — Dandara respondeu, ajeitando o macacão como se não se importasse, embora o coração estivesse acelerado, martelando contra as costelas. — Vou lá ajeitar esse negócio. E vê se vocês fazem silêncio, por tudo que é mais sagrado.

Ela saiu correndo dali direto para o elevador, os dedos tremendo quando apertou o botão que a levaria para a casa das máquinas. O motor de velocidade acima da luz já havia pifado antes, várias vezes, mas aquela vez parecia diferente. Mesmo dando pane ele tinha um protocolo de desaceleração suave, não era para acontecer um tranco daquele. Até porque desacelerar rápido demais poderia simplesmente partir a nave no meio. Só que, daquela vez, os protocolos não funcionaram tão bem, e por um momento pareceu que os ossos velhos da Bom Jardim iam mesmo se partir.

Ou seja, o buraco era muito mais embaixo.

Dandara soube disso também pelo cheiro esquisito que tomou o elevador quando as portas se abriram na casa das máquinas. Era um cheiro de queimado, e o ar estava meio cinza, como se algo estivesse soltando fumaça. A passos largos, Dandara correu para a plataforma acima do motor e viu o seu maior pesadelo: fumaça cinza escapando lentamente pelas fuselagens da caixa metálica que encerrava o aparato do motor. Nas paredes, luzes laranjas indicavam que a qualidade do ar estava ruim e o barulho dos filtros de ar funcionando a todo vapor se sobressaía ao zumbido que restara nos ouvidos de Dandara.

Com os joelhos fracos, ela tentou acessar o painel do motor: o console estava todo apagado, nenhuma luzinha sequer acesa, a tela do operador toda preta. Dandara se segurou nas beiradas do console para não cair. O motor tinha parado no começo do segundo ou terceiro salto. A Bom Jardim estava basicamente no mesmo lugar de antes, no máximo a alguns meses-luz de distância.

Ela escorregou para o chão devagar, e apoiou as costas contra o console, que apesar de desligado, permanecia quente. Baixou a cabeça e fechou os olhos com força, rezando para que aquilo fosse um pesadelo. Quando ela os abriu novamente, a única diferença é que o motor parou de fumaçar e os filtros de ar tinha feito seu trabalho, levando a fumaça embora. Mas o motor em si ainda estava parado, morto. O console continuava apagado.

Dandara inutilmente tentou apertar o botão de reiniciar, apesar de saber que, mesmo se o motor reiniciasse — o que parecia que não ia acontecer — ia ser perigoso saltar novamente. Estando tão longe de qualquer espaço colonizado, um incêndio na nave seria fatal para todos eles, fora o risco de outra pane nos freios e a nave se partir que nem palito de dente. Não adiantaria fugir nos módulos de emergência nem nos de descida porque eles não teriam para onde ir, nenhum canto aonde poderiam chegar antes de morrer de fome e de sede, só iria atrasar o inevitável.

Em outras palavras, a Bom Jardim estava fodida.

E Dandara, capitã da nave, não podia fazer absolutamente nada quanto a isso.

Não era difícil perceber que tinha algo de muito errado com a nave. Carol estava na academia, correndo na esteira, quando aconteceu: a Bom Jardim estancou, e tudo que não estava pregado no chão, como Carol, saiu voando. Ela se chocou contra o chão com um baque seco, e embora os fones de ouvido estivessem tocando música direto no ouvido dela, Carol conseguiu escutar a estrutura da nave reclamar com um barulho feio que parecia um gemido metálico.

E então, nada.

— O que diabo foi isso? — ela perguntou, para ninguém em particular, já que não tinha mais ninguém na academia.

Ela sabia que o pessoal na Bom Jardim estava ficando deprimido de tanto tempo preso porque a academia costumava ser cheia de gente e agora quase ninguém se importava de se exercitar, o que era um problema porque falta de exercício causava problemas de saúde, e problemas de saúde consumiam medicamentos, e eles não tinham um estoque infinito.

Mas não parecia um problema tão urgente quanto o que acabou de acontecer.

Carol pegou o celular, que estava na cintura da legging dela, e mandou uma mensagem para Dandara, perguntando o que rolou, embora uma rápida olhada para as janelas dissesse a ela tudo que ela precisava saber. O motor de velocidade acima de luz quebrou, de novo.

Ela foi para a cabine de pilotagem imediatamente, apesar de que o caminho para lá demorou: as pessoas pululavam nos corredores, fofocando umas com as outras, tentando entender o que aconteceu. Carol escorregou por entre as pessoas, respondendo “eu não sei”.

Sim, ela sabia que o motor havia parado, mas parecia que a situação não era só isso. E ela confirmou a suspeita quando se sentou na cadeira e percebeu que o motor não aparecia mais no sistema, como se não existisse; como se algo tivesse realmente quebrado dessa vez.

Carol continuou tentando entrar em contato com Dandara, sem sucesso. Ela não atendia as ligações, nem mesmo lia as mensagens… Enquanto o telefone de Carol estava quase explodindo com notificações de todo mundo querendo saber o que aconteceu. Não havia muito o que fazer considerando que o motor sumiu dos sistemas da nave. Carol respondeu às mensagens dizendo que tudo estava sob controle, apesar de não ter certeza disso.

E quando ela terminou, Dandara ainda não tinha respondido.

Era o pior momento para Dandara simplesmente desaparecer… Apesar de Bom Jardim ser pequena, ela sempre soube como desaparecer, quando queria. Quando ainda estava na escola, sempre gazeava aulas e nunca era pega. E aí ela copiava o dever de casa de Carol no dia seguinte. Foi como elas ficaram amigas, em primeiro lugar.

Carol decidiu seguir o próprio conselho e continuou o seu dia como de costume; Dandara ia aparecer, eventualmente, e ela ia descobrir o que estava de fato acontecendo. Carol foi para os chuveiros e colocou o uniforme. E então ela foi para o salão de convivência e percebeu que não teria comida para comer por um tempo: a súbita desaceleração da nave fez com que os potes e panelas voassem na cozinha e o pessoal ainda tentava limpar tudo.

Nenhuma mensagem ou ligação de Dandara.

— Tu devia era parar de olhar esse celular e vir ajudar a gente — disse Dona Gertrudes, cozinheira da nave, em pé na porta da cozinha com as mãos nos quadris. — Alguém com as costas boas tem que esfregar a parede.

Carol pôs o celular no bolso e um sorriso no rosto.

— Claro, ajudo sim.

Ela acabou perdendo noção do tempo enquanto ajudava na cozinha. Todo mundo estava nervoso sobre a nave, e por causa disso falavam sobre qualquer coisa para evitar o silêncio aterrador; era fácil se perder na conversa e não pensar muito. Era esse o ponto. Ninguém queria pensar muito.

Eventualmente, a cozinha ficou limpa, e Carol percebeu que Dandara ainda não apareceu. Ela não quis mencionar o sumiço e fazer todos perceberem que Dandara não olhou o próprio celular pelas últimas horas. As pessoas já estavam preocupadas, e o desaparecimento da capitã tornava tudo pior… Não era possível que demorasse tanto tempo para ir na casa das máquinas e checar as coisas; a tripulação estava preocupada e merecia saber o que rolou com a nave.

Carol jurou pelos Orixás que às vezes Dandara a irritava profundamente.

Dandara não sabia dizer quanto tempo passou na casa das máquinas com um buraco no lugar do estômago. Só soube que, eventualmente, escutou as portas do elevador se abrindo, e antes mesmo dela chegar, sentiu o cheiro suave do creme que Carol usava no cabelo.

— Dandara, o que aconteceu? Faz um tempão que eu tento falar contigo. Vi lá da cabine que o motor pifou, achei que tu vinha resolver, mas é como se o motor nem existisse mais. O programa lá de cima não reconhece mais ele — disse Carol, claramente tentando esconder o medo, mas seus olhos arregalados a traíam.

— É porque ele bateu. Morreu de vez, dessa vez — Dandara respondeu, se levantando apesar de só querer ficar deitada em posição fetal. Ela nem notou as notificações no seu telefone, que esteve intocado o tempo inteiro. — Quando eu cheguei ele tava até soltando fumaça, agora tá assim, morto. Até o console tá desligado, como se tivesse dado uma pane geral.

— Valha, senhor! — Carol exclamou baixinho, ao se aproximar e constatar o que a própria Dandara tinha constatado minutos, talvez horas, atrás. — E nunca tinha feito isso?

— Não. Eu nunca fazia nada demais para consertar ele, eu só reiniciava e dava tudo certo, só que dessa vez nem tem como reiniciar.

— E agora? — Carol perguntou, buscando o olhar de Dandara, que não conseguia olhar no rosto da mulher que, para além de namorada, era o seu braço direito.

— E agora… Eu não sei. Não sei mexer nesse motor, acho que não dá para qualquer um abrir e mexer dentro dele.

Ela nem sabia direito como é que o motor funcionava. O que ela sabia é que ele funcionava a fusão nuclear, e quando ele estava funcionando era como se um sol queimasse dentro dele, por isso a fuselagem tão bem soldada e fechada em si mesma. O outro motor tinha diversas partes que dava para abrir e olhar dentro, o motor de velocidade acima da luz permanecia um grande mistério. Fora instalado numa mecânica clandestina e, na verdade, era um milagre que tivesse funcionado tanto tempo, considerando como foi instalado e o uso intensivo que se fez dele.

Carol, apesar de surpresa, não parecia derrotada. Ela perscrutou a casa das máquinas com um olhar atento, inspirou fundo, e então disse:

— Já pensou em ir no quarto da tua mãe ver se não tem nada lá que possa ajudar?

Dandara cerrou a mandíbula com força.

— Não acho que vá ter nada lá que ajude.

— Claro que vai, Dandara. Ela guardava todos os manuais de tudo que foi comprado pra Bom Jardim, e tem lá todos os livros que tua bisa escreveu sobre como a nave funciona. Não é possível que não tenha nada lá que possa nos dar uma luz e ajudar a consertar esse motor, não é possível!

A verdade era que Dandara nem pensava nessa possibilidade, porque não pôs os pés no quarto da mãe desde a morte dela, dois anos atrás.

— Eu ainda acho que não vai dar em nada.

— Tá, mas tu tem que tentar. Já faz dois anos, Dandara — Carol disse, a voz suave. — Eu sei que tu não quer mexer nas coisas dela, mas isso é literalmente uma emergência. E uma hora tu vai ter que mexer lá, não tem como ficar um quarto parado no dormitório para sempre. Se não tu, alguém vai precisar ocupar…  E se existe algum lugar dentro dessa nave que vai ter a resposta pro nosso problema, é lá.

Dandara odiava que Carol estivesse certa. Ela preferia mesmo pensar que a nave ficaria a deriva no espaço profundo do que cogitar mexer nos pertences da mãe, mas ela era a capitã da nave. Não dava para ter um problema desse no colo e não fazer o possível para resolvê-lo. E estava bem dentro da esfera do possível buscar o manual do motor no quarto da mãe. Simples.

E por que Dandara sentia como se tivesse chumbo nos pés e ela não pudesse se mover?

— Dandara, se tu quiser, eu vou contigo, tá? Posso até ir por ti… Só acho que é algo que tu precisa superar. Faz dois anos, já.

— Tu não entende. Tua mãe tá viva e bem e só vai morrer de velhice — a capitã retrucou, limpando uma lágrima teimosa que escorria pela bochecha. — Minha mãe só… sumiu. Um dia tava aqui, outro não tava mais, e na minha cabeça eu fico achando que um dia vou acordar e ela vai estar de volta e vai querer que as coisas no quarto dela estejam do jeito que ela deixou.

O pior de tudo era o fato de não terem sido tão próximas. Fátima estava sempre ocupada resolvendo os problemas da nave, e Dandara se aproveitava da falta de supervisão para fazer o que bem entendia, sem se importar que mal via a mãe e não procurava se envolver no papel que iria exercer. Achava que tinha tempo para pensar nessas coisas, e, no fim, o tempo esgotou muito mais rápido que ela imaginava.

Carol tocou o braço de Dandara como se ela fosse se despedaçar.

— Amor, ela… Ela não vai voltar.

— Eu sei. Eu sei…

Dandara sentou-se no chão de novo e enterrou o rosto na palma das mãos. Câncer filho da puta. No fundo, ela sabia que a mãe estava morta, que tinha ido embora, e que só foi de repente para ela porque a mãe mentiu sobre estar doente.

Ela não viu que Carol sentou-se ao seu lado, mas sentiu quando a pilota deitou a cabeça no seu ombro.

— Olha, se tu não quiser ir hoje, tudo bem. Tem um tempinho — disse. — Infelizmente, uma hora tu vai ter que ir. Acho que tu sabe disso.

— Sei. Eu vou. Não sei quando, mas vou.

Não dava para condenar uma tripulação inteira a ficar a deriva só porque ela estava em negação sobre um fato da vida. Ela não conseguia entender como que num universo que naves gigantescas viajavam acima da velocidade da luz, a morte ainda era um véu intransponível, um véu que a mãe de Dandara atravessou para nunca mais voltar.

Um véu que todos da Bom Jardim iriam atravessar se ela não tomasse vergonha na cara.

Enfim, Dandara enxugou as lágrimas e levantou a cabeça. Era a capitã da nave. Precisava fazer o que era melhor para a tripulação, mesmo que ela precisasse enfrentar seus próprios demônios para fazê-lo.

— Acho que eu vou agora. O quanto antes a gente puder resolver isso, melhor.

— Pois é. Vamo. Vou contigo para te dar apoio.

— Obrigada — disse Dandara, se pondo de pé. — Vou precisar.

Dandara, no fim, passou o dia tentando reiniciar o motor antes de enfim trilhar o caminho até o quarto da mãe, durante a escala de sono de Carol. Era algo que ela queria enfrentar sozinha; era algo que ela precisava enfrentar sozinha. Por sorte, não topou com ninguém no caminho que fosse colocar algum outro problema nos ombros dela; se isso tivesse acontecido, ela teria perdido a coragem.

Mas, enfim, ela estava de pé na frente da porta. Era uma porta como todas as outras naquele corredor, ordinária, comum. Entretanto, ninguém atravessou aquela soleira em dois anos. Dandara digitou a própria data de nascimento no painel e a porta deslizou para o lado, revelando o caos do quarto de Fátima, antiga capitã do Quilombo Bom Jardim.

Mal tinha espaço para a rede balançar ali. Caixas de livros e cadernos se empilhavam nos cantos, em cima das prateleiras e escrivaninha. Todos os registros, todos os manuais da Bom Jardim estavam ali em algum canto. Dandara entrou pé ante pé, temendo que sua presença fosse de alguma forma macular aquele santuário, e se sentou na rede, observando o ambiente.

Ela não fazia a mínima ideia de que aquele quarto estaria bagunçado assim. Com certeza não era daquele jeito nos anos de infância em que Dandara dormiu no mesmo quarto que a mãe. Quanto caos ela escondia por detrás da fachada de capitã? O que ela estaria pensando ao se isolar ali? Dandara mal pôde vê-la nos últimos meses de vida. Pudera: se ela tivesse visto, saberia que algo estava errado com a saúde da mãe, e não iria arredar o pé até que houvesse uma confissão. Ela perdeu tanto tempo, achando que Fátima estaria sempre ali para quando ela decidisse levar mais à sério seu futuro como capitã.

Se levantando da rede, ela sentou-se na escrivaninha. Ao lado do teclado do computador, havia uma pilha de cadernos e um copo com canetas dentro. Aqueles cadernos e canetas custavam uma fortuna, mas Fátima fazia questão de comprá-los, mesmo que fosse um luxo pago por todos da nave. Dandara, com um nó na garganta, pegou o caderno do topo. Não tinha nada de especial nele, só mesmo o fato de que aquele devia ser um dos últimos objetos que Fátima tocou em vida.

A capitã abriu a capa e encontrou uma folha solta dentro do caderno.

Minha querida,

Se tem uma coisa que você é, Dandara, é corajosa. Sei que quando ler isso eu já terei partido — ou estarei próxima o suficiente disso. Imagino que tenha vindo para o meu quarto limpar os pertences e liberá-lo para outras pessoas. Sei também que, como futura capitã da nave, você precisa dos registros e documentos presentes nessas caixas.

Anotei toda a minha vida nesses cadernos que você vê. Não sei o que me levou a pegar a caneta e escrever toda a minha vida e pensamentos no papel, mas gosto de crer que vai ser útil algum dia.

Dandara, em vida eu tive uma missão. E alguém precisa continuá-la. O Quilombo Bom Jardim não poderá seguir muito mais tempo à deriva no espaço. Nós precisamos encontrar algum lugar, um planeta para chamar de nosso novamente. E meus esforços nos últimos anos tem sido para encontrar esse lugar, nosso próprio planeta quilombo.

Estive buscando a fonte de uma mensagem captada pelas sondas, e trabalhei também em decifrá-la. O Universo é vasto e tenho certeza de que existem outros seres sapientes nele, seres que talvez possam no ajudar. Se eles estavam enviando essas mensagens, é porque queriam que alguém entrasse em contato.

Minha filha, se fiz o que fiz foi por acreditar que merecemos mais do que ficar à mercê de uma humanidade que não nos quer. Preciso que acredite em mim e continue meu trabalho. E quem melhor do que você, meu bem?

Está tudo bem explicadinho nesses cadernos

Com amor,

Fátima

Dandara se recostou na cadeira, lendo e relendo a carta, vagarosamente chegando à conclusão de que a nave estava à deriva no espaço profundo porque Fátima passara os últimos anos buscando a fonte de uma mensagem alienígena. E de que a mãe tinha mentido para todos sobre o planeta com silício, da mesma forma que mentiu para Dandara sobre o câncer.

Um buraco negro se instalou no estômago da capitã. Ela largou a carta da mãe e folheou o caderno, os olhos escaneando rapidamente o que fora escrito ali numa caligrafia apertada e quase ilegível.

hoje a sonda capturou…

… estive trabalhando em decifrar a mensagem…

… acredito que seja um olá…

… triangulei a possível origem…

… estou procurando, e não acho nada…

E, por fim, a última folha.

Espero que Dandara consiga me perdoar algum dia.

Dandara fechou o caderno e saiu do quarto sem olhar para trás.

A divisão de um país em estados é arbitrária. Independentemente de como nós chegamos aqui, nós sempre carregaremos conosco um pedaço dos lugares por onde estivemos. Nós não chegamos no Ceará voluntariamente, mas era o estado que costumávamos chamar de casa. Nós o carregamos para o espaço com a nossa fala, nossa comida, a música que fazemos. Não podemos falar do Quilombo Bom Jardim sem falar do Ceará, embora, no fim das contas, o Ceará tenha nos traído. E, no fim, tivemos que abandonar o planeta Terra.

(Trecho do diário de Fátima)

Apesar do buraco negro que se instalara no estômago de Dandara, só de pensar em dar uma mordida que fosse do café-da-manhã a fazia querer vomitar. Ela mexia para lá e para cá a colher no prato de cuscuz com ovo, e só conseguia dar uma bebericada na xícara de café preto. Não ajudava que as pessoas dos refeitórios estavam observando-a pelo canto do olho.

Depois do tranco no dia anterior, com certeza todo mundo deveria estar se perguntando o que aconteceu e porquê eles ainda estavam parados no mesmo lugar. E, para piorar, Dandara sabia que estava agindo esquisito. Passou o dia na casa das máquinas, e depois que visitou o quarto da mãe, foi direto para o próprio quarto e não saiu mais de lá, pelo menos até a hora do café, que foi quando ela pensou que já estava na hora de ao menos botar alguma coisa na barriga, já que saco vazio não fica de pé.

Saco vazio explicava bem o estado emocional da capitã naquele momento. Ela ainda não podia acreditar… Que Fátima mentiu para a tripulação. Se não tivesse mentido, com certeza a Bom Jardim não estaria em maus lençóis, porque ninguém em sã consciência concordaria em uma missão para o espaço profundo em busca de uma provável fonte de uma provável mensagem alienígena que possivelmente poderia significar que eles iriam conseguir encontrar um planeta para eles.

Talvez tenha sido por isso mesmo que ela mentiu. Porque sabia que era coisa de doido.

O estômago de Dandara se revirou e ela tomou mais um gole do café. Ainda teria que voltar no quarto de Fátima para procurar o manual do motor de velocidade acima da luz, mas não sabia quando teria a capacidade mental para fazer uma coisa dessas. Se antes aquele quarto era um lugar sagrado, naquele momento o local lhe inspirava repulsa.

Dandara tomou um susto quando Carol sentou-se no banco ao lado. Até então, esteve sozinha numa mesa ao canto do refeitório.

— Amor, foi tudo bem? Tu conseguiu achar o manual? — perguntou Carol em voz baixa, apertando o ombro de Dandara.

— Não, ainda não — a capitã disse, com dificuldade, o nó na garganta ficando mais apertado. — Eu… Minha mãe…

Não, ela não iria cair no choro na frente do mundo. Mas ela ia cair no choro, por isso se levantou e deixou o café-da-manhã intocado no refeitório enquanto foi voando baixo para o centro de comando, o lugar mais próximo onde poderia ficar um pouco sozinha. Claro, Carol a seguiu, e logo estavam as duas no centro de comando, com Dandara sentada na mesa, as lágrimas correndo silenciosas pelo rosto.

— Dandara, o que houve?

— Tu sabia que minha mãe mentiu?

— Sobre o câncer? Sabia, mas…

— Não, não foi sobre o câncer. Foi sobre o silício! Não tem silício nenhum aqui! Ela inventou essa história porque as sondas captaram o que ela acha que foi uma mensagem alienígena, e a fonte parecia ser dessa região. É por isso que a gente tá aqui. É por isso que a gente tá preso!

Carol se sentou numa das cadeiras, o rosto vazio não traindo nenhuma emoção.

— Sério que ela fez isso?

— Sério, olha aqui. — Dandara tirou do bolso a carta. — Lê aí o que ela escreveu para mim.

Elas passaram uns instantes em silêncio enquanto Carol escaneava a carta.

— Minha nossa senhora.

— Pois é — a capitã respondeu. — Pois é. Por isso que a gente tá nessa merda.

— Tu ainda não achou o manual do motor. Pode ser que tenha conserto.

— Carol, tu acha realmente que o motor tem conserto? E se tiver, tu acha que a gente, com quase nenhuma ferramenta, vai conseguir consertar aquele bicho? Tu realmente acha?

— O que eu acho é que a gente tem que tentar. O que mais dá para a gente fazer além de tentar?

— Se desesperar, sei lá. Arrancar os cabelos — Dandara retrucou, e passou a mão pela careca. — Não que eu tenha muito cabelo para arrancar.

Elas riram, mas foi um riso triste. Carol quebrou o silêncio que se seguiu:

— Uma hora a gente vai ter que contar pro pessoal né.
Quem sabe alguém não tenha alguma ideia boa pra tirar a gente dessa merda.

— Não sei, não sei. Só acho que vai entrar todo mundo em pânico.

— Talvez, mas a tripulação tem o direito de saber. A tua mãe brincou com a vida deles, e eles tem o direito de saber.

— É — concordou Dandara, a contragosto. — Colocando a coisa desse jeito, acho que eles tem.

— Primeiro vê o manual para ver se não tem conserto mesmo. Aí a gente fala com o pessoal e vê o que faz, isso se não tiver conserto.

— Tá certo, vou procurar o manual.

Dandara se levantou e foi se arrastando de volta para o quarto de Fátima. Olhou as caixas e não encontrou nada, depois pensou que o manual poderia ser um arquivo no computador, portanto se sentou à escrivaninha, ligou a máquina, e inseriu o próprio aniversário quando o aparelho pediu por uma senha.

A área de trabalho só tinha uma pasta, intitulada “A Mensagem”. Fora daquela pasta, os arquivos todos estavam uma bagunça, mas por fim Dandara encontrou o arquivo que seria o manual. Ela o abriu, deu uma lida no índice, e pulou direto para a parte de resolução de problemas.

Se o motor parar de funcionar repentinamente, soltar fumaça ou o painel se apagar, entre em contato com a assistência técnica.

Perfeito. Era exatamente como Dandara esperava. Eles estavam presos em espaço não-mapeado. E para quê?

Ela abriu a pasta de “A Mensagem” e clicou no primeiro arquivo que viu. Era um artigo de uma revista científica.

Eles estão entre nós: Sinais que apontam para a existência de uma raça inteligente que dominou a viagem muito acima da velocidade da luz.

Dandara não teve estômago para aquilo. Fechou o arquivo, desligou o computador e saiu para o corredor, sabendo que, sim, a Bom Jardim estava à deriva e cedo ou tarde seria ela a pessoa que deveria dar aquela notícia para todo mundo.

Dandara sentou-se no lugar mais afastado do refeitório e esperou, pacientemente, as pessoas chegarem. Elas chegavam em grupos, conversando entre si, um pouco alto demais. Todo mundo deveria estar nervoso, imaginando que Dandara daria uma má notícia. O que o resto da tripulação não podia imaginar era o quanto a notícia era ruim.

A capitã engolia em seco, com a garganta travada, tentando ignorar os olhares curiosos que vinham em sua direção. Ela checou o relógio do comunicador e viu que já estava na hora: a maioria das pessoas já estavam ali, incluindo Carol.

— Vou esperar mais uns cinco minutos antes de começar — Dandara anunciou para todos. — Pra dar tempo de todo mundo chegar.

Ela se sentou de novo e os cinco minutos, infelizmente, passaram e chegou a hora de contar para a tripulação o que tinha acontecido: eles estavam presos em espaço profundo, e a culpa era toda da mãe de Dandara. De algum jeito, ela se sentia culpada, como se ela mesmo tivesse mentido para todos.

— E aí? — Eduardo gritou ao fundo. — Vai desembuchar não?

Dandara ficou de pé e, protelando, se dirigiu para o centro do refeitório que deixaram vazio para ela ocupar. Subiu na mesa e encarou todos os rostos preocupados presentes. Todas as pessoas que Fátima condenou com suas ideias malucas.

— O que eu queria dizer hoje… — Dandara começou. — É que estamos com um pequeno problema. Como vocês já devem ter adivinhado, o motor de velocidade acima da luz deu pane, e como vocês já sabem, estamos em espaço profundo, o que significa… A gente tá preso. Por enquanto.

O choque perpassou todo o ambiente. As pessoas olhavam umas para outras em um silêncio surpreso, levavam a mão ao coração. E agora? O que fariam? O peso no peito de Dandara só aumentou. Apesar de não ter terminado de contar a história, não conseguiria dizer mais nenhuma palavra. Não ia conseguir suportar… Com certeza todos a culpariam, mesmo que ela desconhecesse as escolhas que a mãe fizera, como todo mundo da tripulação.

— E o silício que a gente tava procurando? — perguntou o Chico dos filtros.

Dandara hesitou só um momento antes de responder:

— Não encontramos. É um dos nossos problemas. Não sei como a gente pagaria os reparos, isso se tivesse como chamar alguém até aqui para reparar o nosso motor. — Uma pausa. — Eu sei que parece um beco sem saída, mas vou dar meus pulos.

Ninguém parecia muito convencido disso. Muito menos Dandara, só que ela não podia deixar transparecer o próprio desespero. Se a capitã da nave estava desesperada, por que a tripulação não haveria de estar?

— Era isso que eu queria dizer — Dandara disse, por fim, e saiu de cima da mesa. — Não precisa se preocupar, daqui a pouco tá tudo funcionando normal de novo.

Sem aguentar mais, ela saiu do refeitório e foi correndo se trancar no próprio quarto. Cada uma daquelas pessoas que estavam lá, estava fadada a passar o resto da vida numa nave à deriva. E, sim, havia o outro motor, mas demoraria anos, séculos, milênios, até que voltassem para o espaço colonizado.

Dandara se sentou na cadeira da escrivaninha e ficou encarando a paisagem lá de fora. Quando era pequena, passava horas observando as estrelas e nébulas passando pela janela. Era ainda mais divertido durante os saltos de velocidade acima da luz, onde tudo se transformava num borrão psicodélico, a paisagem passando rápido demais para o olho humano compreender.

A paisagem agora estava estática. E permaneceria assim, indefinidamente.

A capitã não se mexeu quando ouviu a porta do quarto se abrindo, e o som de passos. Pelo cheiro bom, já sabia que era Carol, que se acomodou na rede ao lado dela.

— Por que tu não contou a história toda?

— Porque não tive coragem. Não consegui — confessou Dandara. — Todo mundo vai botar a culpa em mim.

— Ninguém vai ficar com raiva de ti, mulher. Tu não é tua mãe. Não precisa cometer os mesmos erros que ela.

Ou seja, ela não precisava mentir para a tripulação como a mãe fez. Tarde demais para isso, ela já tinha feito.

— Eu é que não vou voltar lá — Dandara disse. — Se tu quiser contar, pode contar, mas eu mesmo não vou.

Carol crispou os lábios, claramente infeliz com a resposta. Ainda assim, ela jamais diria que achava que Dandara uma escrota por não ter falado a história toda. Invés disso, ela respondeu:

— Não vou contra as ordens da capitã.

— Eu não sou só tua capitã. Se tu acha que a tripulação precisa saber disso, pode contar, mas eu não acho que vai fazer diferença nenhuma. Só vai fazer todo mundo ficar com raiva e ai de nós para lidar com um monte de gente com raiva trancada dentro de uma nave que tá presa no espaço profundo.

— Tu que sabe. — Era a resposta mais atravessada que Carol era capaz de dar.

— Se tu acha ruim, pode falar, já disse!

— Pois eu não vou.

— Tá bom, então! — Dandara respondeu, irritada com aquela conversa, apesar de saber que estava sendo injusta com Carol. — Ninguém fala nada. Eu que não vou falar.

— Tá bom.

— Tá bom. Era só isso que tu queria dizer?

— Era, era sim. Vou te deixar só. Acho que tu precisa.

— Preciso mesmo — Dandara retrucou, e depois suavizou o tom: — Te amo.

— Também te amo — Carol disse antes de ir embora, mas, pela primeira vez, a declaração não soou de todo verdadeira.

— Dandara não sabe o que tá fazendo, né?

Eduardo esteve sentado, em silêncio, na cadeira do co-piloto fazia um tempo. Carol supôs que seria questão de tempo até ele falar sobre Dandara. Ele não gostava da Fátima, e o desgosto se transferiu da mãe para filha. O pior de tudo é que Carol nem podia dizer que ele estava errado.

— Não é culpa dela a gente estar nessa situação.

— Fátima ajudou, claro, mas assim que a Dandara virou capitã, ela deveria ter te falado para dar meia-volta. Ela demorou demais.

— A gente não estaria de volta em dois anos.

— Mas a gente estaria mais perto.

— Eu sei! Mas o que é que tu quer que eu faça? — Carol perguntou, estapeando o apoio de braço. Defender a Dandara era a última coisa que ela queria fazer naquele momento. — Já foi, não tem mais volta.

Eduardo se surpreendeu com a explosão. Carol não era o tipo de gritar quando estava com raiva, e ele sabia disso.

— Desculpa — ele disse, e foi a coisa mais gentil que ele falou para ela nos últimos anos. — O que eu tô tentando dizer é.. Tu não tem que concordar com tudo que a Dandara diz ou faz. Tu é a pilota. Tu é a namorada dela. Ela te escuta, ou deveria te escutar. Capitãs podem errar.

Carol não conseguiu sustentar o olhar de Eduardo. Era irritante saber que ele estava certo, exceto pela parte de Dandara escutar Carol, porque claramente isso não acontecia.

— Não sei se vai servir de alguma coisa, mas acho que tu tá certo sobre a Fátima. Tu deveria ser o piloto-chefe, não eu. Acho que ela queria mesmo alguém que não fosse dizer não às ideias dela.

— Não foi de todo sem mérito. — Eduardo concedeu. — Tu é uma boa pilota. Mas eu sou melhor, vamos e venhamos.

Carol só pode rir com a honestidade de Eduardo. Ela sentia falta dele. E era bom conversar com alguém quando Dandara estava tão… Distante. Sempre presa no quarto dela, fazendo sabe-se lá o quê, sem olhar o celular…

Algo evidenciado pelo fato de que todo mundo buscava Carol para perguntar sobre a Dandara. A tripulação era como uma grande família de centenas de pessoas, então claro que todo mundo sabia que Dandara esteve mal desde a morte súbita da mãe. Eles sabiam que ela mentira sobre o câncer, porque ela mentiu para todo mundo, com exceção de algumas poucas pessoas. O que eles não sabiam era o que a Fátima fez; e nem sabiam que, dois anos depois, Dandara ainda sofria.

Era por isso que Carol queria que Dandara fosse honesta com a tripulação. Eles sempre apoiavam uns aos outros. Dandara teria muita gente para ajudá-la. Em vez disso, ela escolheu cometer os mesmos erros, se esconder, e não fazer nada.

Carol se viu passando mais tempo na cabine de pilotagem, com Eduardo.

— Se tu fosse a capitã, — perguntou ele, apertando uma bolinha. — O que tu faria?

— Eu? Sei lá. Sentaria e choraria — Carol respondeu, analisando a ponta dos seus dreadlocks.

— Isso já é o que Dandara tá fazendo.

Carol fuzilou o amigo (?) com o olhar.

— Só tô dizendo… — ele disse.

— Enfim… — Carol respondeu. — Acho que mandaria um S.O.S. É a única coisa que a gente pode fazer, né?

— Muito me surpreende que ainda não tenhamos feito.

— Tá, mas a nave é autossuficiente. A gente pode ficar preso aqui por muito tempo. Então não tem pressa, né?

— Sim, até que as coisas que a gente não pode fazer aqui começarem a acabar — Eduardo retrucou. — Meu pai é diabético. O que a gente vai fazer quando a insulina acabar? Dandara deveria estar tentando resolver isso. Bom Jardim precisa sair daqui o quanto antes.

Carol respirou fundo e encarou adiante, mais uma vez desconfortável porque Eduardo estava certo sobre tudo. Ela deveria falar com Dandara para ser enviado um S.O.S. o quanto antes. A Bom Jardim já gastou tempo suficiente procurando pelo diabo do silício.

Mas Carol era covarde, também. Ela não conseguia falar com Dandara e dizer para sair dessa. E os dias, cada vez mais preciosos, passavam…

Quando chegou a escala de sono de Dandara, ela não conseguiu pregar o olho. A única coisa que pensava era: o que levou Fátima a fazer aquela besteira? Por quê? Tudo bem que a mãe não tinha como saber que o motor de velocidade acima da luz ia bater, mas sabia que não dava certo fazer tantos saltos e forçar tanto o motor, ainda mais se fosse para ir para longe de qualquer civilização.

E ainda assim… Ela decidiu mentir para todo mundo.

Se tinha uma coisa que Fátima não era, essa coisa era doida. Dandara não conseguia enxergar a mãe sendo tão inconsequente com todos da nave. Ela era uma ótima capitã, e deveria muito acreditar na história de sinal alienígena se decidiu colocar a Bom Jardim naquela missão suicida.

Contra seu melhor julgamento, Dandara pôs de volta o macacão, calçou as botas, e se viu fazendo o caminho para o quarto da mãe. Ela sabia o quadro geral da coisa, porém ainda não tinha parado para olhar com calma os diários e os arquivos do computador. Ela precisava entender.

Se sentou na mesa do computador e digitou a senha. Ao abrir a pasta sobre a mensagem, assustou-se com a quantidade de informação que tinha lá. Eram muitos artigos, todos sobre esta ou aquela vez que encontraram o sinal misterioso. Outros artigos ainda compilavam todas essas ocasiões e tentavam supor possíveis significados para o sinal.

Dandara clicou no arquivo de áudio da pasta, e escutou uma série de ruídos e cliques impossíveis de compreender. Só escutando por cima, teve a impressão de que com certeza não se tratava de interferência ou algo do tipo. Os ruídos, apesar de incompreensíveis, não pareciam totalmente aleatórios. Ela não sabia se achava isso mesmo ou só interpretou a mensagem daquela forma depois de passar os olhos por mil e quinhentos artigos que juravam que aquela era uma espécie de mensagem.

A capitã fechou a pasta e voltou sua atenção para os diários da mãe. Quando foi a primeira vez que escutou a mensagem? O que ela pensou na época?

Dandara precisou abrir um dos cadernos mais antigos para encontrar. Pelo visto, Fátima estava atenta a isso fazia algum tempo. A entrada no diário era de seis anos antes da sua morte.

As sondas captaram um sinal estranho. Achei que estavam começando a ficar defeituosas e encontrei alguém para consertar, mas a pessoa disse que não tinha nada de errado com as sondas. É realmente um sinal estranho. Depois de tanto tempo a bordo, você vê todo tipo de coisa vinda do espaço, só que não esse tipo de coisa. Vou tentar pesquisar para ver o que é.

Um mês mais tarde, Fátima escreveu:

Descobri que não é a primeira vez que alguém capta um sinal como eu captei. Várias outras pessoas em vários pontos do espaço-tempo captaram algo parecido, e também não souberam explicar o que era. Existem algumas teorias sobre o assunto, e eu não sei o que pensar. Só sei que não é fenômeno isolado, embora até agora pareça aleatório.

E mais um tempo depois:

Estou convencida de que é alguma espécie de mensagem. Não sei nem por onde começar a decifrá-la… Imagino que exista alguma conexão possível com a nossa matemática ou a nossa língua, qualquer coisa que dê para atribuir algum significado. Ou isso ou as outras formas de vida que existem no Universo são tão diferentes de nós que contato nunca será possível.

Dandara folheou os cadernos. Por muito tempo, Fátima não falou mais dessa mensagem. Até que, enfim, Dandara encontrou outra menção:

Estive trabalhando nisso no meu tempo livre, mas acho que consegui dividir o sinal em parte menores, e algumas dessas partes se repete no sinal. Se for uma mensagem escrita, e se a linguagem tiver algo parecido com letras, teoricamente é possível decifrá-la. Acho que é a chave para a Bom Jardim. Se for uma espécie avançada, nós poderíamos pedir ajuda. Ou, quem sabe, podemos trombar com eles por aí. Eu acho que a mensagem deve ser simplesmente um “oi”.

E a partir dali, as menções nos diários ficaram cada vez mais constantes, até o diário ser só sobre isso, até o dia que ela menciona ter encontrado a fonte do sinal que a Bom Jardim captou. Fátima mal chegou a mencionar o dia da reunião que lançou a Bom Jardim na busca pela origem da mensagem, tão absorta que estava com seus próprios planos.

Ok, talvez Fátima estivesse mesmo doida. Ela queria encontrar uma espécie alienígena que poderia muito bem ser hostil e com quem não conseguia se comunicar ainda, apesar de escrever que o programa feito por ela para decifrar a mensagem estava chegando cada vez mais perto. O “perto”, Dandara constatou quando rodou o programa, era um punhado de letras em uma ordem que parecia perfeitamente aleatória e caótica.

Dandara cruzou os braços e se recostou na cadeira, matutando sobre tudo que tinha lido e visto nos diários da mãe e no computador. Apesar de achar que era loucura, ela não podia espantar mais a curiosidade. Afinal, não era possível que os humanos estivessem sozinhos no Universo. Se os humanos conseguiram ir além da velocidade da luz, outros seres também poderiam, não era impossível. E se não fosse impossível, uma hora eles iriam mesmo trombar um com o outro por aí. Estava fadado a acontecer, mesmo que o Universo fosse gigante e as distâncias antes fossem intransponíveis. De certa forma, ainda eram. Um ano-luz ainda era um ano-luz.

O que mais pegou Dandara foi a teoria de que esses alienígenas conseguiam viajar muito além da velocidade da luz. Só assim para explicar os sinais que apareciam em locais muito distantes, mas cronologicamente os sinais estavam próximos um do outro. Os aliens viajavam tão rápido que ninguém conseguia nem vê-los passar. E, de certa forma, eles ficavam na deles. Fora os sinais, ninguém foi abduzido, apesar do espaço cada vez mais populado por humanos. Eles não deveriam ser hostis. Se fossem, algum infeliz já teria descoberto isso, certo?

Ou foi isso que Dandara começou a pensar depois daquela noite que passou com as anotações e os arquivos deixados por Fátima.

Dandara passou os dias seguintes trancada no quarto, saindo só para filar alguma coisa na cozinha quando ela sabia que não tinha muita gente circulando. Ela não suportaria olhar no olho de alguém da nave, e muito menos de Carol, que com certeza estava com raiva dela, a tirar pelo fato de que não apareceu nenhuma vez para checar como Dandara estava.

Ela estava mal. Nas raras vezes que não ficava isolada no quarto, estava na casa das máquinas, tentando de um tudo para trazer o motor de velocidade de luz de volta à vida, pensando que talvez, com um período de descanso, ele voltasse a operar, mesmo que no fundo tivesse a certeza que o problema era maior do que apenas superaquecimento do motor. Não dava para consertar mexendo só no painel, teria que abrir o motor e… Ela nem sabia direito. Não fazia a mínima ideia de como ele funcionava.

Só sabia que parar de tentar mexer nele era aceitar que estavam presos, e isso era algo que ela jamais admitiria para si mesma. Se Dandara fosse uma fase do luto, seria a negação.

Os dias se passaram, indistintos. Ela não podia dizer quantas semanas passou num torpor, até que foi forçada a sair dele. Em algum momento de algum dia, a campainha do seu quarto tocou.

Dandara rolou da rede e foi atender a porta, sem se importar se estava apresentável. Quem esperava do outro lado era o Chico dos Filtros.

— Capitã?

— Oi, pode dizer.

— Tu pode vir aqui comigo um instantinho?

O jeito que ele apertava o boné nas mãos fez Dandara ficar imediatamente preocupada.

— Posso sim. Aconteceu alguma coisa?

— Acontecer não aconteceu ainda não, mas vai acontecer.

O estômago da capitã automaticamente se revirou ao ouvir aquela frase premonitória. Ela seguiu Chico pelos corredores, e por uma rápida corrida do elevador, até chegar na central dos sistemas de manutenção de vida. Se a casa das máquinas era domínio de Dandara, aquela central era o domínio do Chico dos Filtros.

O lugar nada mais era que uma saleta cheia de consoles e teclados, com uma janelona de vidro que dava para os dois principais sistemas que mantinham a nave habitável: o de tratamento de dejetos e o transformador, que pegava o gás carbônico e o transformava em oxigênio. O transformador em si era um tubo bem grosso contendo suas próprias janelas para as placas de microalgas que faziam todo o trabalho. E de imediato Dandara percebeu o problema: as placas, outrora verde-brilhantes, estavam meio amareladas.

— Puta merda — a capitã disse.

— Pois é. Como tu já sabe, com o tempo as microalgas começam a morrer e o transformador precisa de uma carga nova. Não ia precisar uma tão cedo assim, mas a fumaça do motor deve ter danificado as algas — explicou Seu Chico, colocando o boné de volta na cabeça. — Ou seja, precisamos de recarga.

— Quanto tempo tu acha que a gente tem?

— Uns meses, por aí. Um ano. Vou tentar fazer o possível para salvar as microalgas que tão vivas ainda, mas isso dá pra gente no máximo, estourando, um ano.

Um ano antes de todo o ar da nave ficar tomado de gás carbônico e eles morrerem sufocados com o que eles mesmos expeliram. Que estavam fadados a morrer todos, isso já se sabia, mas não tão cedo. Dandara achava que poderiam permanecer à deriva por muitos anos ainda…

O peso que passou a carregar no peito depois que o motor bateu comprimiu a respiração de Dandara, e ela teve que se sentar para não desmaiar. Morrer sufocada dali a um ano, era isso que a vida reservava para ela? Para todos da Bom Jardim? Tudo isso por causa da imprudência de sua mãe? Ela não podia acreditar. Mas estava bem ali, na frente dela. As microalgas desativadas do transformador. Nem tinha cogitado essa possibilidade. Será que Fátima pensou nisso quando convenceu todo mundo a largar a nave no meio do espaço não-mapeado?

— E agora? — Chico dos Filtros perguntou, com um fiapo de voz.

— E agora eu não sei, mas vou dar um jeito — Dandara disse, mentindo como sua mãe fizera tantos anos antes. — Preso aqui a gente não fica. Eu tenho que… Tô indo. A gente se fala.

Ela saiu da central tropeçando nos próprios pés e o desespero venceu o orgulho: Dandara se viu fazendo o caminho para a central de pilotagem, onde Carol deveria estar, embora não houvesse para onde pilotar. Com o motor regular, andariam tão devagar que não faria diferença.

De fato Carol estava lá, olhando as estrelas através dos painéis da cabine. Ela se levantou quando viu Dandara chegando.

— Dandara, o que aconteceu? Tu tá com cara de morte.

— É porque a gente vai morrer. Daqui a um ano no máximo. As microalgas do transformador começaram a morrer. Ele precisa de uma nova carga, mas a gente tá preso aqui e vai todo mundo morrer sufocado.

Dandara sentou na cadeira da pilota e enterrou o rosto na palma das mãos, sentindo o peito apertado, a barriga em um nó, a cabeça latejando, medo misturado com desespero misturado com culpa misturado com desespero de novo.

Mas Carol era mais cabeça fria da duas.

— Sabe, nesses dias eu tava pensando…

Dandara levantou a cabeça.

— Tava pensando o quê?

— Se não valia a pena a gente mandar um pedido de socorro. Estamos longe, mas a mensagem chegaria. Não é possível que ninguém viesse nos ajudar. Vão fazer o quê? Deixar a gente morrer?

Ela também era a mais otimista.

Dandara nem tinha cogitado mandar um pedido de ajuda, porque era exatamente isso que ia acontecer: iam deixá-los morrerem. Eram para ter morrido séculos atrás, nos grilhões, e não ter fugido para formar um quilombo, e depois disso não era para terem fugido do Ceará para o espaço. Eles foram expulsos do espaço colonizado por humanos (brancos), sempre às margens, dependendo de caridade para conseguir os poucos suprimentos que não conseguiam produzir na nave.

E, depois de tudo isso, iam voltar com o rabo entre as pernas?

Não. Isso não.

— Eles não vão responder, tu sabe disso né? Quem em sã consciência vai mandar uma nave para cá para rebocar a gente?

Eles estavam em espaço não-mapeado, bem, bem longe. Uma viagem para onde eles estavam seria longa e custosa, supondo que quem viesse não fosse louco e não usasse salto acima da velocidade da luz direto, como eles fizeram.

— Não sei, mas alguém vai mandar.

— E aí depois a gente faz o quê? Voltar pra Terra? A gente não tem dinheiro. E a Terra, sei lá se ainda existe.

— E aí não sei, mas melhor do que ficar aqui para morrer sufocado.

— Faz o seguinte, eu vou continuar tentando consertar o motor por mais algum tempo. Se não der certo, a gente manda a mensagem — Dandara propôs, não querendo dar o braço a torcer.

— Por mim, tudo bem — Carol respondeu. — Se tu conseguir consertar, ótimo.

— Vou conseguir — Dandara disse, e percebeu que, no fundo, era igual a sua mãe.

Carol se esticou na cadeira de piloto e puxou o celular para começar a ler. Estava com o bucho cheio do almoço e pronta para curtir um livro, cochilar um pouquinho e aproveitar a tarde, mas assim que começou a ler a porta da cabine de pilotagem se abriu. Não era a primeira vez que aquilo acontecia, nem seria a última, a tirar pelo fato de Dandara estar incomunicável e ninguém ter a quem recorrer.

A surpresa mesmo foi um grupinho de adolescentes ter entrado. A maioria deles estava encabulado e ficou para trás, observando a cabine, e a mais velha, uma garota, chamada Rafaela, deu um passo adiante.

— Carol, a gente pode te pedir um favor?

Ela se levantou da cadeira e se endireitou, tentando não dar tanto a entender que estava a trinta segundos de cair no sono.

— Se eu puder resolver…

— Será que dá para tu fechar o refeitório por umas… Três horas? Tipo, amanhã?

— Fechar o refeitório? Por quê?

— É que a gente tá gravando uma série, e tem uma cena que seria legal gravar no refeitório.

Carol ficou impressionada com aquilo, embora ela já deveria imaginar que algo do tipo fosse acontecer na nave. Estar em sistema colonizados era chato, só que tinha uma vantagem: acesso à internet. Eles podiam ter acesso à novas séries, filmes e livros, e agora só tinham acesso às mesmas poucas coisas, que conseguiram baixar antes da Bom Jardim zarpar na sua missão suicida.

— E sobre o que é a série?

— Ah, é sobre uma nave. Que tem uma capitã chamada Francisca, mas ela não é uma capitã muito boa, sabe? As pessoas estão meio putas com ela.

A pilota ergueu ambas as sobrancelhas. Sutileza não era o forte dos adolescentes…

— O que ela fez?

Rafaela ergueu o queixo, sem se importar ou perceber que Carol lia muito facilmente nas entrelinhas.

— Ela escondia o jogo, sabe? Tomava decisões sozinha, omitia informações importantes, esse tipo de coisa. E ela só chegou a ser capitã da nave por causa da família dela. Então a história da série é o povo da nave se juntando para derrotar ela e fazer com que a nova capitã seja escolhida por voto.

A pergunta que não queria calar era: Francisca era Fátima, ou Dandara? De onde tiraram essa ideia? Talvez Carol fosse suspeita para falar, por ser a pilota, mas ela respeitava muito Fátima. Por isso mesmo toda essa história do silício a pegou de surpresa… Quem sabe ela não tivesse se chocado tanto assim se conversasse mais com as outras pessoas da nave.

— E quem escreveu isso?

— Fui eu — Rafaela respondeu, tranquila, embora o resto do grupinho tenha começado a ficar nervoso. Dava para ver pela forma como eles se entreolhavam, cada olhar um aviso silencioso de “ih, deu merda”.

Carol considerou suas opções. Ela jamais tentaria vetar a produção dessa série, pois já foi adolescente um dia e sabia que eles encontrariam um jeito de gravar e distribuir a série na surdina. Fora isso, ela se sentiria péssima. As pessoas tinham o direito de ter suas opiniões sobre Fátima e sobre Dandara e, sim, decidir a próxima capitã por voto era uma ideia excelente. Com certeza era o que iria acontecer após Dandara, a não ser que ela ou Carol dessem um jeito de procriar.

— Tudo bem — Carol disse, por fim. — Eu converso com a Dona Gertrudes e reservo o refeitório para vocês. Se eu puder ajudar também…

Dois dias depois, Carol estava no canto do refeitório, observando enquanto simulavam uma cena de batalha sangrenta por cima das mesas e cadeiras. Para um grupo tão pequeno, e para uma produção gravada apenas no celular, eles eram bem criativos.

— Achei bem criativa a ideia dessa série — disse ela, baixinho, para a mãe de Rafaela, que apenas riu em resposta. Como a batalha acontecia do outro lado do refeitório, uma conversa baixinha entre elas com certeza não seria captada pelos microfones.

— Eu disse pra ela que esse negócio ia dar o que falar.

Carol balançou a cabeça e se recostou contra a parede, cruzando as pernas.

— As pessoas têm direito a ter sua opinião aqui dentro, não importa qual seja.

A mãe de Rafaela pareceu considerar isso.

— Não sei se era bem isso que a finada pensava não, mas…

— Tu gostava da Fátima? — Carol perguntou, de repente.

— Gostar eu gostava, né? Ela era uma boa capitã, só que algumas coisas eu não conseguia engolir. Tipo essa história de ela ficar comprando papel. A gente já não tem dinheiro e toda vez que ela via um caderno, ela comprava. Pra quê? São essas coisas, sabe? E tu me perdoe, mas não sei se Dandara é muito melhor. Onde é que ela tá? Ninguém consegue falar com ela.

Carol apenas assentiu para aquele desabafo. Não estava muito na posição de contestar nada, visto que também não conseguia falar com Dandara e sabia de coisas muito piores sobre Fátima para além do seu hábito de querer caderno em papel. E, claro, ela sabia que na falta de Dandara, as pessoas procuravam por ela.

— Tá difícil pra todo mundo — foi o que Carol disse, por fim.

— Mas tem gente que não foge quando o sapato aperta. Sinceramente, não acho ruim essa ideia da Rafaela de decidir capitão por voto, não. Tu nunca pensou em ser capitã? Já que por esses dias tu tá basicamente fazendo o trabalho…

— Olha, eu…

Carol pausou. Considerar a ideia parecia sacrilégio. Dandara com certeza não ia gostar disso. Era um mistério para Carol se a namorada realmente queria ser a capitã; o que era certeza é que não gostaria de mexer numa tradição da família dela.

A mãe de Rafaela riu de novo.

— Tô só brincando, minha filha. Perdoe minhas brincadeiras.

Carol deixou a conversa morrer, mas não achava que era tão brincadeira assim.

Dandara disse que ia dar um jeito, só não fazia a mínima ideia de como ela pretendia fazer isso. Depois de uns dias, o console do motor de velocidade acima da luz até voltou a acender, só para dizer que o motor estava inoperante e precisando de reparos, ou seja, voltou dos mortos só para dizer o que ela já sabia e terminar de matar a esperança de que o bicho fosse, de alguma forma, reparar a si mesmo sozinho.

Ela se viu voltando para o quarto da mãe e se sentando na cadeira da mesa do computador. Não conseguia parar de pensar sobre o que Fátima estava fazendo antes de morrer. De fato, parecia mais provável conseguir ajuda de alienígenas do que da própria raça humana, a porção branca dela que pagou para fugir da Terra. A capitã ainda não entendia como a mãe teve coragem de arriscar tudo, mas podia entender a vontade de perseguir aquelas mensagens.

Sem ter o que fazer, passou algumas horas mexendo aqui e ali no programa que Fátima tinha começado a “codar” para decifrar a mensagem, e foi acompanhando no diário o progresso, de separar os sons em parte menores que se repetiam, até começar a atribuir letras para alguns. Quando se rodava o programa, o resultado eram letras em uma sequência impossível de compreender, que ainda por cima tinha pedaços faltando. A tirar pelos artigos, era o mais próximo que alguém já chegara de compreender sobre o que é a tal mensagem.

Dandara se pegou voltando dia após dia após dia para o quarto de Fátima e lendo os arquivos, tentando ela mesma mexer um pouco no código, ver se conseguia avançar alguma coisa. Era nova naquilo, mas entendia um pouco de programação porque precisava saber para lidar com o sistema central da nave, que, de certo modo, era inclusive muito mais complexo. Então não era nada impossível para ela aprender. Só precisava se familiarizar com o assunto.

O tempo passou num borrão, pois era tudo que Dandara fazia. Só saía de lá para comer, e olhe lá. Chegou até mesmo a passar a dormir no quarto da mãe; não fazia diferença, se Carol estava com raiva dela e não ia visitá-la mais de noite.

Eventualmente, Carol veio falar com ela, numa das ocasiões que estava comendo no refeitório, sozinha, isolada de todo mundo. O clima na Bom Jardim continuava péssimo, as pessoas desoladas demais até mesmo para as brigas do cotidiano; Dandara não conseguia olhá-las no rosto. Nem a Carol.

— Oi — disse a pilota.

— E aí? — respondeu Dandara, olho no prato de baião de dois e carne de casca de banana.

— Já se passou um mês sabia? E eu vi lá como que tá o motor. Não tem conserto. O seu Chico tá fazendo o que pode, só que não dá pra obrar milagre lá com o transformador. Tu sabe.

— É. Pelo visto não dá mesmo.

— Dandara, acho que é hora de fazer aquilo que a gente combinou. Mandar uma mensagem pedindo ajuda. Não é possível que ninguém venha ajudar. Eles não vão deixar a gente morrer sufocado aqui.

Será?, era o que Dandara pensava consigo mesma. E, sinceramente, preferia arrancar todos os dentes da boca a ter que pedir ajuda com o rabo entre as pernas. Sabe-se lá em que maus lençóis eles estariam, depois.

— Tu tem que pensar no que é melhor para a tripulação — Carol continuou, quebrando o silêncio imposto por Dandara. — E o melhor é que a gente fique vivo, pelo menos.

— É — concordou a capitã. — Tudo bem. Vou mandar a mensagem.

E na hora que ela falou aquilo, era verdade. Ela realmente iria mandar a mensagem, mas, depois que terminou de comer e foi para o centro de comando, ela sentou-se na cadeira sem conseguir mexer os braços para digitar e enviar o S.OS. Não dava para prever o que aconteceria a eles se chegasse a vir ajuda. Talvez eles fossem separados e obrigados a trabalhar sabe-se lá onde para cobrir o valor do resgate. Isso se viesse ajuda.

Dandara estava começando a achar que, talvez, Fátima tivesse um ponto. Se os aliens fossem hostis, eles já teriam deixado isso bem claro. Talvez eles fossem mais prestativos que os humanos que colonizaram o espaço.

Quem sabe tudo aquilo fosse mesmo coisa de doido, mas a mensagem parecia ser a última esperança do Quilombo Bom Jardim.

Ela saiu do controle de comando sem enviar nada para ninguém e voltou para o quarto da mãe para continuar a decifrar a mensagem. Estava tão perto. Com certeza decifraria tudo e entraria em contato com aquelas formas de vida — estava convencida de que eles existiam — antes do tempo acabar e todos sufocarem em gás carbônico.

Milhões de nós chegamos nos portos do Brasil, trazidos por navios negreiros. Mas há algo ser dito sobre o Nordeste, onde uma boa parte de nós chegamos. Quando eu digo que nosso passado e nossa história foram perdidas, talvez o que eu queira dizer é que nós nos integramos, nos misturamos, tanto que ficou difícil nos separar da nossa região. Onde nós terminamos, e onde começa o Nordeste?

De algum jeito, essa terra estrangeira se tornou nossa, também.

(Trecho do diário de Fátima)

Dandara, vc tá acordada?

Dandara, alô!

Dandara, olha o celular.

Não tinha nada que Carol quisesse dizer, mas ela queria saber se Dandara ainda estava viva e se estava tentando resolver as coisas, como ela disse que faria. Carol até tentou ligar, mas ninguém atendeu.

Dandara tinha se feito mais presente quando elas concordaram que ela tentaria consertar o motor. Ela respondia às mensagens e mandava fotos dela na casa das máquinas, mas o contato foi minando até chegar ao silêncio.

— Tu viu Dandara por esses dias? — perguntou Cibele, se inclinando sobre a lupa que permitia que ela visse melhor as entranhas de um celular; ela era uma das pessoas que consertava tudo que fosse eletrônico na nave.

Carol estava na oficina da mãe, sentada numa cadeira, assistindo filmes no próprio celular. Uma das razões pelas quais eles precisavam voltar era para conseguir novos filmes. Carol já assistiu a todos.

Mas, para isso acontecer, Dandara precisava fazer alguma coisa.

— Faz uns dias que eu não vejo ela.

Cibele balançou a cabeça, os olhos fixos no celular que ela consertava.

— Olha, sinceramente… Se tu quiser minha opinião, ela precisa é tomar tento.

O tom da sua mãe surpreendeu Carol.

— Eu pensei que tu gostava dela.

— Eu tentei, né, minha filha? Já que ela é tua namorada… Ela pode até ser legal, mas boa capitã não é.

— Mãe!

— Só tô falando o que todo mundo acha. Nenhum capitão que se preze ia sumir numa hora dessa… Claro, ninguém ia dizer nada para ti. Talvez o Eduardo. Eu sempre achei que ele tivesse uma implicância contra ela, mas vai ver ele tá é certo.

E foi por isso que Carol voltou a evitar a cabine de pilotagem. Ela e Eduardo poderiam até ser amigos, mas ela não estava preparada para lidar com o fato de que Dandara era uma péssima capitã. Passou um mês desde que ela concordou em consertar o motor, nada mudou, e ela ainda não tinha mandado o S.O.S. Fora o desaparecimento…

— Eu não acho que Dandara seja uma péssima capitã… Ela tá só num mau momento.

— Tá todo mundo num mau momento, minha filha. E o pessoal da cozinha parou de cozinhar por que eles tão tristes? Tá todo mundo triste. E tá todo mundo seguindo com a vida. Ela não devia ser exceção.

Carol não respondeu, porque não tinha mais argumentos para defender a namorada. Aquela situação ficava cada vez mais ridícula. Se a ameaça deles sufocarem até a morte não era suficiente para fazer Dandara agir, o que faria? Mandar um S.O.S levava um minuto ou menos.

Esperando que Dandara fosse fazer alguma coisa, Carol foi para a casa das máquinas, e encontrou o lugar vazio. E pelo jeito, fazia tempo que Dandara nem pisava lá embaixo. Carol pegou o elevador de volta para o quarto de Dandara e também estava vazio; o celular de Dandara estava na prateleira ao lado da rede.

Onde estava Dandara?

Carol sabia a resposta. Dandara estava no quarto da mãe, obviamente… Gastando o tempo precioso da Bom Jardim. Como a sua mãe antes dela.

Ela precisava muito tomar juízo antes de acabar com a vida de todo mundo.

Dandara estava cada vez mais perto. As letras antes aleatórias já começavam a se organizar em sílabas, e a maioria dos espaços vazios da mensagem se encontravam preenchidos. Era só questão de tempo até ela descobrir o que o sinal estranho dizia, e não deveria demorar muito mais.

Fora isso, o clima da Bom Jardim melhorou. Claro, isso aconteceu porque ela disse que ia enviar a mensagem pedindo ajuda, e nunca chegou a enviá-la, mas ela não estava nem aí. Não se sentia culpada. Estava fazendo o que era melhor para a Bom Jardim, e todos veriam isso, no seu devido tempo.

E Carol voltou a falar com ela. Isso só era meio que um problema porque Dandara tinha que inventar desculpas para poder voltar ao quarto da mãe, e passava cada vez mais tempo lá, sem dormir e sem comer, fervorosamente testando código atrás de código atrás de código para decifrar o sinal.

Sem perceber, passou um dia inteiro sem dar as caras no resto da nave, e só percebeu quando a porta do quarto se abriu e revelou Carol, cruzando os braços na frente do peito, parada na soleira.

— Dandara, o que é que tu fica fazendo aqui? — ela entrou e observou toda a bagunça, os cadernos e papeis para todo lado. — Achava que tu tava vindo aqui organizar.

— Eu organizei algumas coisas.

— É? Não parece — Carol espiou por cima do ombro de Dandara e viu o que ela fazia na tela, já que Dandara não fechou tudo rápido o suficiente. — Dandara, não me diz que tu comprou a loucura da tua mãe.

— Não comprei — mentiu Dandara. — Eu só… Não tenho com o que passar meu tempo. Não tem como consertar o motor, até o pessoal parou de brigar um pouquinho. E eu preciso fazer alguma coisa se não vou enlouquecer aqui.

Carol manteve a cara amarrada, sem se deixar convencer.

— Dandara. Tu mandou mesmo a mensagem de resgaste, né?

— Eu não disse que ia mandar?

As palavras rolaram pela língua de Dandara sem que ela pensasse duas vezes. Talvez fosse mais parecida com a mãe do que pensava. Talvez estivesse ficando louca que nem ela. Mas achava que não. Achava que estava certa, e que Carol ia perceber quando ela finalmente conseguisse decifrar a mensagem.

— E não veio nenhuma resposta ainda? — Carol interrogou.

— Eu também disse que poderia ser que ninguém respondesse, não disse?

— É, disse.

— Pois é.

— Pois tá bom. Você que sabe.

— Tchau, Carol. Te amo.

Carol não respondeu antes de dar meia volta e sair pela porta.

Carol não suportava o clima de velório da Bom Jardim. Até uma pessoa otimista que nem ela tinha seu limite antes de ser arrastada para o desespero dos que estavam ao redor. Fora que passar o tempo sem fazer nada na cabine de pilotagem lhe dava tempo para pensar demais sobre a situação da nave: perdida, à deriva, prestes a sufocar toda a tripulação.

Ela remexeu o almoço no prato sem conseguir comer. De vez em quando vinha alguém e lhe perguntava se ela sabia de alguma coisa, se alguém tinha respondido o S.O.S, e a pilota da Bom Jardim só podia balançar a cabeça em negativa, com pesar. Não, ninguém respondeu ainda.

E então a porta do refeitório se abriu e Dandara entrou, mal contendo um sorriso no rosto. Carol mal reconhecia a namorada. Como Dandara poderia estar tão feliz e satisfeita considerando que a nave inteira ia morrer sufocada dali a um tempo? Como ela tinha o atrevimento de andar por aí com um meio sorriso de canto, mal conseguindo segurar o sorriso inteiro que sem dúvida queria dar as caras?

Dandara pegou o seu prato, e para a surpresa de Carol, veio se sentar bem do outro lado da mesa.

— Tá feliz hoje, hein? — Carol perguntou.

— Eu? — Dandara respondeu, se fazendo de sonsa. — Tô não, tô normal.

— Trabalhando muito?

— Bastante.

E elas caíram em silêncio. Dandara não pareceu se importar com ele, mas foi como um murro no bucho de Carol. Algumas semanas atrás, elas contavam tudo uma para a outra. Existiam os silêncios, sim, afinal nada de muito diferente acontecia a bordo da Bom Jardim a anos, e ainda assim, na maioria das vezes, elas sempre arranjavam algum assunto sobre o que conversar.

Agora entre elas só restava um abismo. Dandara fazia sabe-se lá o quê no quarto da mãe, e desde então, esteve cheia de segredos. Entre elas não deveriam existir segredos… Não eram apenas namoradas: eram a capitã e a pilota da nave. Deveriam trabalhar juntas. O problema era que, desde a pane do motor, Carol não encontrava em Dandara nem ao menos uma colega, quem dirá uma namorada.

Dandara praticamente engoliu a comida de uma vez só e saiu do refeitório sem dizer mais nada.

Carol percebeu que não ia ter estômago para terminar de comer e deixou três quartos do almoço no refeitório. Depois que saiu de lá, suas pernas a levaram para a central de comando, que era do lado da cabine de pilotagem. E, depois, ela se sentou na cadeira da capitã, na frente do console central. Tocando aqui e ali na tela do console, ela puxou o histórico de mensagens enviadas, que trazia mensagens de anos atrás, na época que a Bom Jardim ainda estava em espaço colonizado e entrava em contato com outras naves e planetas.

E não encontrou nenhuma mensagem recente pedindo socorro.

O pior de tudo era que Carol nem mesmo se sentiu surpresa. Qualquer que tenha sido o bicho que pegou Fátima, parece que pegou Dandara também. A pilota se recostou contra a cadeira, dividida entre não querer acreditar que Dandara não mandou a mensagem de socorro, mesmo que, no fundo, soubesse disso desde o princípio.

Ela se levantou e saiu da central de comando, e já sabia para onde iria. Na porta de Fátima, praticamente esmurrou a senha na porta — o aniversário de Dandara — e pegou a suposta capitã da nave sentada no computador, vidrada na tela, apertando enter. A cada enter que ela apertava, uma combinação aleatória de sílabas aparecia na tela.

— Dandara — disse Carol.

— Que foi?

— Eu sei que tu não mandou a mensagem de socorro que eu disse que era pra tu mandar.

Só então Dandara desgrudou os olhos da tela, assustada. Ela realmente achava que Carol nunca iria desconfiar dela e checar se tinha mesmo mandado a mensagem?

— Carol, eu—

— Tu tá achando que vai fazer contato com os aliens e vai ficar tudo bem, né? — Carol perguntou, triste.

Dandara endireitou a postura.

— Sim, é o que eu tô achando. Aposto que se a gente mandar a mensagem de socorro não vai vir ninguém. Não até aqui. Não pela gente. E, amor—

— Não me chama de amor.

— Carol. Vem ver aqui. Tem muitas evidências de que existe uma civilização—

— Eu não quero saber! A essa altura pode ser tarde demais para pedir ajudar pra Bom Jardim e tu preferiu arriscar a vida de todo mundo de novo que nem tua mãe! — Carol exclamou, fumando numa quenga. — Ninguém aqui se voluntariou para isso. Ninguém aqui pediu pra morrer assim. Se tu quisesse morrer indo atrás desses ETs que morresse só!

— É a nossa única chance — Dandara respondeu, firme.

Carol espalmou a parede, extravasando a raiva acumulada de semanas.

— Não era e tu sabe muito bem disso!

— Agora é tarde demais. E eu tô bem perto de decifrar a mensagem, tu vai ver que vai dar tudo certo — Dandara falou, com a certeza febril de uma louca.

— Dandara.

— O quê?

— Se tu continuar com essa história, juro pelos Orixás que eu vou tomar essa nave de ti — Carol ameaçou, com a voz baixa, e o choque tomou conta do rosto de Dandara. — Tu claramente não tá em condição de ser capitã de porra nenhuma. Vou contar para todo mundo o que tu fez e quero ver se ainda vai sobrar um besta que vai querer alguém como tu sendo capitã.

Dandara se levantou e deu dois passos atrás, os olhos arregalados, a boca aberta. Além de mentirosa, era uma bela de uma covarde. Queria fazer o que desse na telha dela e não tinha coragem de contar para ninguém o que estava, de fato, fazendo.

— Eu vou tomar essa nave de ti — repetiu Carol. — E eu vou mandar a mensagem de socorro. E vou tirar a Bom Jardim dessa enrascada que tu e tua mãe meteram a gente.

Dandara então disse:

— Duas semanas.

— Quê?

— Me dá duas semanas. Juro que termino de decifrar essa mensagem e entro em contato com eles. Se não der certo, tu envia a mensagem de socorro.

Carol pensou sobre a proposta uns instantes. O que era um peido para quem já estava cagado? Ademais, ela realmente preferia não apelar para um motim, a não ser que fosse em último caso. Não contra Dandara.

— Tá bom — ela concedeu. — Duas semanas. E só.

— Ótimo. Obrigada. Vai ser tempo suficiente.

Carol, sem dizer mais nada, saiu da sala.

— Ouvi falar que vocês brigaram — disse Eduardo, entrando na cabine com um andar gaiato. — Algo sobre um motim?

Carol suspirou e se afundou mais na cadeira do piloto. Ela não deveria ter ido para lá; ela sabia que as pessoas ouviram a briga delas e claro que a fofoca ia cruzar a nave num instante.

— Foi só algo que eu disse assim na hora. Só queria que a Dandara acordasse pra vida e talvez perder a nave fosse ser importante o suficiente pra ela. Eu não acho que seria uma capitã melhor.

Eduardo se sentou na cadeira de co-piloto, fingindo interesse.

— E aí?

Carol suspirou. No fim das contas, não deu em nada.

— Eu dei duas semanas para ela enviar o S.O.S. ou então eu ia fazer um motim. Foi isso.

— Eu ouvi algo sobre uma mensagem também — Eduardo arriscou. — Dandara tava envolvida com alguma coisa aí. Foi o que eu ouvi.

Carol encrespou os lábios, sabendo muito bem que Eduardo só queria arrancar mais informações dela. Mas ela estava farta de proteger os segredos de Dandara. Pelo menos não do Eduardo, que esteve certo o tempo inteiro.

— Olha, se eu te contar, precisa ser segredo, tá? É muito sério, e eu não quero lidar com as consequências disso a não ser que seja necessário.

— Tô vendo que tu ainda tá cobrindo pra Dandara.

— Eu amo a Dandara. Fazer o quê?

O silêncio reinou, por um tempo. Apesar de estar com raiva, as palavras de Carol era verdade. Ela amava Dandara. Ela não queria fazer um motim, ou virar a capitã: ela queria que Dandara superasse a morte da mãe e tomasse juízo. Era bem óbvio que Carol não deveria ser a capitã se as emoções levavam a melhor dela o tempo inteiro.

Ela deveria mesmo só ter feito o motim.

— Não precisa me contar — Eduardo disse, por fim. — A verdade vai prevalecer.

— Desculpa, Eduardo. É que eu não quero machucar a Dandara.

Eduardo se levantou e saiu, desistindo dela. Carol teria desistido de si, também. Dandara não merecia tantas chances.

Pelo menos Eduardo não veio mais a cabine de pilotagem depois daquela conversa, então Carol poderia ao menos passar o tempo sem encontrar com ele. Ela pensou se Dandara conseguiu traduzir a mensagem e mandou uma resposta; pegou o celular diversas vezes, mas desistiu antes de falar com Dandara.

Carol esperou o tempo passar. Passou tempo no salão de convivência, na oficina da mãe, e às vezes, na cabine de pilotagem. Ela estava olhando sem ver para o espaço na cabine quando os radares começaram a detectar um objeto supermassivo perto da nave.

Dandara acordou se sentido uma besta quadrada. Era o fim do prazo de duas semanas imposto por Carol e ela tinha conseguido traduzir a mensagem e transmitir uma resposta. O computador de Fátima aquecia e as ventoinhas faziam um barulho alto quando Dandara rodava o programa, cada vez mais pesado, mas eventualmente a máquina cuspiu uma tradução que fazia sentindo.

Alguém à escuta?

Era isso, só isso, a mensagem. A resposta foi igualmente simples:

Estamos aqui. Podem nos ajudar?

No momento que ela enviou a mensagem, sentiu um peso sair dos ombros, como se tudo estivesse resolvido, só que conforme os dias passaram e ela não recebeu a resposta, a capitã percebeu que traduzir e enviar a mensagem era o começo dos problemas. Os aliens poderiam ser hostis. Eles poderiam, assim como a humanidade que colonizou o espaço, não se importar com uma nave à deriva.

E Dandara fez Carol perder um tempo precioso ao não enviar a mensagem para o espaço colonizado. Podia ser a diferença entre o resgate chegar a tempo e eles morrerem sufocados antes. Não que fosse certeza alguém responder também, mas Dandara deveria ao menos ter tentado, como uma boa capitã. Em vez disso, cedeu às ideias da mãe e apostou tudo o que tinha numa espécie de seres desconhecidos. Fora o risco de ter traduzido errado e ter enviado uma mensagem nada a ver para o Universo.

Ela deixara a raiva prejudicar seu julgamento. Nada mais. Nada menos.

Mesmo assim, se levantou, se vestiu e foi para o centro de comando, onde passava seus dias, esperando por uma mensagem que talvez nunca viesse. Ela se sentou na cadeira da capitã e ficou em silêncio, remoendo as mentiras que contou, as atitudes egoístas que tomou. Não poderia nem culpar a mãe por isso.

Decidiu que entregaria a posição de capitã para Carol, que merecia muito mais do que ela. O papel passava de mãe para a filha na Bom Jardim, mas já estava na hora de mudar um pouco as coisas, já que elas não teriam filhos, considerando que não existiam órfãos na Bom Jardim que pudessem adotar.

Dandara estava em tempo de se levantar para comunicar a decisão que tomou para a Carol quando as luzes começaram a piscar em vermelho, banhando o ambiente em sangue, e um alarme soou:

— Objeto em rota de colisão. Objeto em rota de colisão.

A capitã — ela ainda era a capitã — deu um pinote e correu para o centro de pilotagem, onde Carol estava igualmente desesperada, olhando as telas de pilotagem.

— Tem um objeto supermassivo em rota de colisão com a nave — Carol disse. — Vindo em uma velocidade muito superior à da luz. Nem se o pessoal dessa nave começasse a frear agora, eles conseguiriam evitar de trombar com a gente.

E um “trombo” com um objeto supermassivo no espaço profundo significaria que a Bom Jardim seria partida em pedacinhos e todos iriam morrer. Existiam os botes salva-vidas, os módulos de emergência, só que a tirar pela carreira do objeto desconhecido, não daria tempo de evacuar todo mundo. Não daria tempo de evacuar ninguém. Eles estavam fudidos.

— E agora? Não tem alguma manobra que a gente possa fazer?

— Não sem o motor de velocidade acima da luz. A gente vai morrer — Carol disse, aterrorizada. — Não vai dar tempo de fazer nada.

A pilota se levantou e abraçou Dandara.

— Não quero morrer brigada contigo.

A capitã queria poder dizer que elas não iam morrer, mas… Elas iam morrer. Por isso, a abraçou de volta. Era o primeiro abraço que elas se davam em meses. Morreria feliz, se pudesse morrer nos braços da Carol.

E, de repente, uma nave massiva tapou completamente a visão da cabine de pilotagem, Dandara pôde ver por cima do ombro de Carol. As luzes vermelhas cessaram, embora o alarme continuasse:

— Objeto supermassivo próximo. Objeto supermassivo próximo.

Dandara largou Carol e foi para as janelas, com a namorada atrás dela.

— O que diabo é isso?

— Sei não. Acho que deve ser uma nave — a capitã respondeu.

Se fosse, era uma nave bem esquisita. Era toda fechada, sem portas ou janelas aparentes. Pelo pouco dela que Dandara podia ver, achava que a nave tinha o formato de um mamão.

— Tu acha que são eles? — Carol disse. — Os aliens?

No exato momento que ela fechou a boca, o som de cliques e ruídos tomou conta do ambiente, vindo dos alto-falantes espalhados pela cabine. Era diferente, mas Dandara reconheceu o barulho. A nave estava tentando se comunicar com eles.

Numa carreira, Dandara foi até o centro de comando, onde captou a mensagem e rodou-a no programa que fizera. A mensagem dizia o seguinte:

Estamos aqui. Como podemos ajudar?

— A plantação vai vingar, eu acho — disse Dona Gertrudes, analisando o pedaço de terra que, se você olhasse de perto, conseguira ver os brotos rompendo a superfície. — As plantas já foram adaptadas pra consumir menos água. Acho que ajuda.

Dandara concordou com a cabeça, as mãos detrás das costas. As coisas não eram perfeitas, claro. O novo planeta não tinha muita água na superfície e nem chovia muito, também… Então era uma aposta se eles realmente conseguiriam colher alguma coisa em Quilombo. De toda forma, existia um time tentando entender o que crescia naturalmente que poderia ser comestível.

— Certo, obrigada pelo trabalho — Dandara respondeu. — Te vejo depois.

Ela não era mais a capitã. Como ela podia ser capitã de algo que não era mais uma nave? Mas se adaptar à vida num outro planeta era trabalhoso, e alguém tinha que planejar as coisas e garantir que eles teriam o que comer, o que beber, onde dormir… Fora outras coisinhas essenciais.

No caminho para o acampamento principal, Dandara foi interceptada por Carol.

— Eduardo e eu voltamos da missão de reconhecimento — ela disse. — Nós achamos umas minas e um lago. E ampliamos o nosso mapa.

— Tá certo, mas eu posso falar com minha namorada agora? — Dandara brincou, depois do relatório de Carol.

— Eu não tenho nada pra fazer depois do almoço. Posso te levar no lago que a gente viu, se você quiser.

Dandara não tinha, exatamente, tempo livre depois do almoço, mas ela ainda tinha velhos hábitos. De vez em quando, ela fugia de suas obrigações para ficar com Carol, um pequeno segredo que todo mundo do Bom Jardim sabia.

Eles ainda estavam usando os suprimentos da antiga nave, então o almoço foi baião de dois, que todo mundo comeu ao redor da cabana improvisada que servia de cozinha. Dandara foi embora, mandou algumas mensagens dizendo que estaria indisponível, e se encaminhou, junto com Carol, para o lugar onde estavam os módulos de descida, que agora eram utilizados como meio de transporte. Elas estavam com os cintos atados e Carol levou o módulo para acima das copas em instantes.

— Queria que minha mãe estivesse viva para ver isso — Dandara disse.

Quilombo era lindo. De longe, era bem parecido com o planeta Terra, só que com menos água e felizmente sem nenhum microrganismo hostil. De perto, era de tirar o fôlego. As árvores tinham troncos grossos e arredondados como baobás, e as folhas eram cobertas de cera para não perder água, mas flutuavam na baixa gravidade do Quilombo. O solo era marrom, rico, fértil. A luz dos dois pequenos sóis deixava todas as cores mais brilhantes.

Ou talvez tudo na nave era sem cor e Dandara nunca percebeu.

— Eu ainda não gosto da Fátima — Carol respondeu, mesmo sorrindo. — Seria no mínimo chato ter que aceitar que ela apostou com a vida de todo mundo na nave e ganhou.

Dandara teve que rir, porque foi verdade. Fátima ganhou, no fim. Os aliens ajudaram eles a procurar um planeta e foram gentis o suficiente para dar uma carona para o outro lado da galáxia. Os aliens eram tímidos, então ninguém nunca os viu. Mas ainda assim, eles apareciam de tempos em tempos para saber como Bom Jardim estava se adaptando ao Quilombo.

Claro, nem todo mundo perdoou Fátima, ou Dandara, mas… A maioria, sim.

— Olha, lá está aquele lago que eu tava te falando — Carol disse depois de um momento de silêncio, enquanto o módulo sobrevoava uma lagoa cristalina.

Carol eventualmente achou um lugar para pousar o módulo, a uma caminhada de distância, mas isso não incomodou Dandara. Se ela pudesse passar o dia todo andando sem direção, ela o faria. A vida sem estar limitada por paredes e corredores era nova para ela.

Assim que chegou na lagoa, Dandara começou a tirar a roupa.

— Dandara, o que tu tá fazendo?

— Vou nadar, ué!

— E se a lagoa for funda? — Carol perguntou apreensiva.

— Eu aprendi a nadar, eu te salvo.

Depois de uns instantes, Carol decidiu tirar a roupa também, e as duas namoradas correram para a água de mãos dadas. A água era mais fria do que Dandara esperava, e ela se arrepiou enquanto nadava para águas mais profundas e Carol a acompanhava.

Dandara flutuou, sentindo Carol perto dela.

Tudo estava bem no planeta Quilombo.

 

FIM

A foto quadrada mostra uma mulher negra de cabelos morenos e com cachos pequenos, longos até mais ou menos um palmo abaixo dos ombros. Ela está com um sorriso leve, batom vinho e blusa preta, olhando para a câmera com a cabeça ligeiramente tombada para um dos lados. O fundo é branco.

G. G. Diniz é autora de ficção especulativa, cocriadora do movimento sertãopunk, editora na Corvus Editora e na Revista Ignoto.

Dante Luiz é ilustrador, quadrinista e escreve nas horas vagas, além de trabalhar como diretor de arte da revista anglófona Strange Horizons. É o desenhista da graphic novel Crema, que será lançada em 2022 pela Dark Horse, editor da antologia As artes mágicas do Ignoto, e capista de diversas ilustrações nacionais. Mora em uma casa que mais parece um antiquário com sua esposa e pilhas intermináveis de trabalho por fazer.

A ilustração quadrada, desenhada no mesmo estilo da capa, mostra uma homem branco de cabelos castanhos curtos e arrepiados para cima. Ele está olhando para frente, mas com os olhos meio desviados. Ele veste uma camisa de um cor-de-rosa queimado, meio pastel, com um padrão vegetal verde, e óculos de grau com armação clássica estilo Ray Ban. O fundo é de um verde queimado, meio pastel, com um padrão vegetal rosa.
A foto quadrada mostra um homem de pele negra, cabelos morenos em dreads, e cavanhaque também moreno. Ele usa um óculos com armação grossa e uma camisa vinho, e olha ligeiramente para o lado.
Foto de Rafael Ferreira

Sérgio Motta é designer, escritor e amante de café. Nascido e criado na periferia de São Paulo, a cidade, cheia de fantasias, caos, diversões e diversidades é sua musa. Já publicou “Ciberbochicho”, pela Revista Mafagafo, onde hoje também é editor, “Spider”, pela revista estadunidense Strange Horizons e “Aline na Avenida das Paulistas”, uma releitura de “Alice” pela avenida mais famosa de São Paulo. Também é criador do portal Resistência Afroliterária e editor-chefe da Revista Afroliterária. É dono do Machadinho, autor dos maiores clássicos da literatura canina.

Lorrane Fortunato é escritora, revisora e criadora do Resistência Afroliterária, um portal focado em divulgar livros escritos por pessoas negras. É autora de “A rota que me levou a você” e “As promessas que você me fez”. Também participa das coletâneas “Confetes e serpentinas”, com “As fantasias que eu criei de você” e de “Flores ao mar” com “Lírio”, todos publicados na Amazon

A foto quadrada mostra uma mulher de pele negra, sorrindo, com os braços apoiados sobre uma cerca. Ela tem os cabelos morenos trançados, e usa uma bata estampada em tons de laranja e amarelo. Ela também usa um colar com pedras azuis, maquiagem leve, e sorri, olhando para a câmera.
A ilustração quadrada mostra uma pessoa sorrindo, com um cabelo black power, olhando para a câmera. O fundo é um tom de coral, a pele é roxa e o cabelo é azul escuro. Na frente dos olhos da pessoa, há um carimbo verde florescente escrito "Da Penha" com uma estética que sugere que a palavra foi pichada.

DAPENHA é um designer e ilustrador negro baseada no Rio de Janeiro. Depois de não se sentir representada pela arte que consumia, decidiu fazer algo a respeito e começou a focar seu trabalho nas comunidades a que pertente: as comunidades negra e LGBTQ+.