A capa é majoritariamente verde e amarelo em vários tons. Bem no centro, ocupando a metade superior da capa, há uma lua com uma grande rachadura. Embaixo, há um pedaço de solo com quatro catos crescendo nos cantos. Ao pé de um deles há uma caveira humana. No centro embaixo da capa há o título "Serra Minguante" em um amarelo clarinho, e embaixo "Escrito por João Mendes" e "Editado por Sérgio Motta". Acima, há o título da revista, Mafagafo, em um amarelo meio apagado. No canto superior esquerdo, o símbolo da Mafagafo com "Temporada 005, março de 2022". Bem no topo, "Ilustração: Dante Luiz" bem pequenininho.

10.800 palavras | Aproximadamente 50min de leitura

I

Painho está morto, assim como a lua que ele tanto amava. Enquanto meu peito adormece, jogado no barro que se mistura ao sangue, desenho com a mente os passos até aqui. Horas atrás, o fantasma cansado de painho me apareceu como num sonho, contou sobre sua despedida, desenterrou os segredos da terra e me confiou a missão de entregar nossa lua ao sono eterno e solitário da morte.

O desastre aconteceu como um raio que quebra o vento ao meio. Na noite quieta da minha terra, o céu cavou os dentes e fez um barulho como se mastigasse um par de britas. Não chegou a ser um berro, parecia mais um grito contido, abafado. Quando o nosso ídolo de prata decidiu morrer em silêncio, pensei nas lágrimas de painho e soube que havia começado minha caminhada em direção ao fim.

Senti que eu era o único de pé. Enrolava o fumo nos dedos grossos, persistia quieto na porta de casa e esfregava os dedos na terra. Era mania desde bem menino. Costas para o vento, o vento corria a nuca, a nuca eriçava ao toque.

Fraquejei. Posto sob meu cansaço, apoiei as mãos sobre os joelhos, assistia o brilho pálido da lua delineando formas nos mandacarus adormecidos. Se o vento segurasse um pincel entre os dedos finos, daria aquelas cores ao próprio retrato. A região mais parecia uma flor dobrada sobre si mesma, com as pétalas de sono refletindo o tom noturno com o qual se cobriam as estrelas. A casa onde nasci e fui criado fora construída longe do centro. No topo de uma pequena serra achatada. Ali, era sempre calmo. Das poucas memórias da infância, uma das mais preciosas era a em que estava sentado na porta, ao lado de painho, vendo nossa cidade lá embaixo. Admirávamos como todos os corredores se abriam em direção ao pé da serra que a lua tocava.

Era sempre assim. Eu abandonava o sono por gostar daquele lugar onde fiz minha vida e onde sempre pretendi ser enterrado. “Numa cova rasa ao pé da noite!”, como anunciei aos bons amigos.

Serra Minguante recebia visitas durante toda a estação, sempre povoada de viajantes que desejavam conhecer a noite e seus mistérios, de ver os dentes abertos da lua cheia e os olhos de crateras estreitas. Os amantes riscavam os nomes dos casais, os homens de missa encontravam formas de santo e os contadores colhiam os melhores versos.

Mas no dia em que a noite teve seu fim, as esquinas da cidade persistiam na mudez solitária.

E a lua chorou.

Desfez o sorriso, transformou a boca numa lasca de dente, mascou o beiço e o fez sangrar. O choro em corrente aguou o fio de vida, e tudo que era rubro escorreu em quedas d’água. A noite se banhou em sangue e a Serra Minguante conheceu o lamento no lombo daquele sopro agoniado. Uma única lufada derrubou os carcarás dos ninhos e entristeceu os cajueiros murchos.

Deixei cair o fumo ainda aceso. Meus olhos arderam. Tentei correr sem saber para onde, num passo agoniado, quase saltitante. Assisti, com olhos de vidro, à palidez se esmigalhando em choro, ébria e solitária. A lua despencou, virou farelo. O impacto levantou a terra, abriu o chão e arrancou o sono das casas ao redor. Ainda assim, uma queda abafada.

O telefone tocou lá dentro antes mesmo que qualquer boca solta se fizesse dita. O vento calava os dentes curiosos. Não pensei, apenas caminhei trôpego sobre dedos inquietos, levantando-os da terra. Quando arranquei o telefone do gancho, já esperava que a voz de Zélia chamasse meu nome.

Ela o fez.

E o fez sem manha, rodeios ou apelidos. Respondi que precisava apenas de alguns minutos para jogar uma água no rosto e descer para o ponto de encontro. Catei as ferramentas no quarto e enxuguei os olhos porque sabia que não havia tempo para choro.

II

Por medo de olhar o céu, cortei a serra de olhos fechados. Não tinha vento que me guiasse ou luz pálida que indicasse a reta. Usei o rastro que construí nas lembranças ao passar pelas estradas de barro ruivo ao lado de painho. Seguia agora em cima da lambreta dele, herança deixada como sangue, fruto do trabalho que o levou à morte.

A mente sorrateira estirou a perna e eu, inclinado a me perder nos truques dela, capotei de olhos fechados. Meu corpo ainda persistia no controle do guidão, mas a mente desenhava um mundo a ser desbravado com o toque, o vento contra o rosto e a lembrança do dia em que painho me levou para tocar a lua.

Na época, eu não passava do joelho de painho, e me agarrava à perna dele como se pudesse me esconder dos fantasmas doentios da noite. Debaixo da lua, os olhos cansados dele ensaiaram um sorriso amarelo, roubando a força que usaria para erguer os ombros. Foi a primeira vez que pude ver painho sorrir. Foi a primeira vez que painho me contou uma história.

Banhou-me em versos quentes, roubou o sopro da noite e enfeitou a pétala soturna ao me contar sobre o dia em que a lua havia amado a terra ao ponto de entregar uma parte de si para viver entre os homens. O pedaço caíra ali, sobre a Serra Minguante, namorando seus picos mais altos. E certa noite, chegaria tão perto que roçaria os beiços na serra de ponta. Foi a noite em que me carregou sobre os ombros cansados e me fez tocar a padroeira, sentindo o sopro meigo dos dentes entreabertos.

Mas agora não existia noite que se fizesse vista. Era algo vago. A lua de todos os homens estava lá em sua integridade, mas a nossa persistia quieta. Por um momento pensei que, com a queda, abriria-se espaço para um sol qualquer, mas não havia nada. Tão inútil parecia sua ausência que o mundo fora da nossa terra continuaria igual. Poucas estrelas teriam coragem de roubar o posto. Eram nada além de alguns estalos frouxos de luz.

Eu agarrava o guidão como quem pedia uma bênção e cortava a serra desaprendendo o tempo. Aquilo que não se podia chamar de noite era apenas um amontoado triste de pontos em cadência. Por isso, preferi fechar os olhos e sentir que nossa pequena morada de São Jorge ainda persistia no alto do firmamento.

Um ponto vermelho ardeu no escuro. Flutuou como a vista de um bicho de caça. Demorei até reconhecer que se tratava de um pedaço de brasa. Continuei até ver a silhueta de Zélia. Ela, encostada numa rocha, carregava o fumo aceso entre os dentes enquanto cutucava a areia por debaixo das unhas. Pude vê-la porque, com um único trago, as costelas dela ardiam em brasa, iluminando-se de dentro para fora. As entranhas se acenderam em tons avermelhados por debaixo da roupa, que, vez ou outra, também queimavam. Por isso, entre nós, Zélia havia recebido o apelido carinhoso de Zé-costela.

Enquanto encostava minha lambreta no campo aberto, ali, longe das casas quietas, os outros empreiteiros já começavam a chegar. Alguns seguindo o rastro de uma lanterna, como Tião e Iracema, enquanto outros compartilhavam a mesma caminhonete. Godó, Juracir, Galego, Patuín e Cássio se espremiam entre as tralhas que usariam para realizar a tarefa. Como esperado, chegaram carregados de algazarra, quebrando o desconforto. Fizeram piadas afiadas sobre o sono pesado de Godó e as bacias de café de Galego e, por fim, cortejaram os braços fortes de Iracema.

De tanta palavra no dente, preferi o meu luto em silêncio.

A pétala da noite — ou a falta dela — tratou de esconder nossa carne de rosto, tirou numa lapada só qualquer traço de ternura. Decidi, quieto, que sorriria apenas se alguém me apontasse uma lanterna.

— Cheguem cá. — Zé-Costela baforou os dentes roucos num sopro esfumaçado.

Calaram-se as piadas, fez-se o silêncio e os peões se fecharam em poucos passos. Estávamos tensos, inquietos, e as risadas já desmoronavam quando o semblante irritadiço de Zélia anunciou a questão:

— Seu Osório levantou bandeira vermelha e foi bem claro com a língua nos dentes. A lua precisa estar de volta ainda esta noite, se é que dá pra chamar esse diacho de noite… Caso contrário, os homens de caneta vão sacudir a matraca, e ninguém aqui quer um negócio desses, né?

Era assim, coisa de bicho quieto. Quando Zé-costela abria os dentes, a serra ficava muda. Era mulher de fumaça, de poucas palavras, pouquíssimas, via-se os olhos desaparecerem nas rugas e os pequenos filhotes de serpente escaparem em rastros acinzentados dos beiços escurecidos.

Mas eu não esperava menos que uma bandeira vermelha, já que se a noite houvesse de morrer, Serra Minguante não seria mais que um morro alto escondido nas nuvens, longe da rota dos poetas, dos amantes e dos bêbados com suas manias de namorar a lua.

Não se fez dois terços de prosa, nem foi dita meia palavra. Apenas pegamos as ferramentas e voltamos aos carros. Fui o último a sair dali por me perder nos passos e no rosto cavando a terra. Tinha da vista apenas meu bucho, os calos dos pés e a vontade de colo. Queria me deitar sobre a terra como um bicho cansado, esparramar o corpo e ouvir painho me contar uma última história.

III

Chegamos ao túmulo. Esperávamos uma catástrofe, uma imagem triste, mas não encontramos ali nada mais do que uma casca de cebola aberta. A lua escancarada em frangalhos no topo da serra, com o mato fazendo chamego na ferida e os olhos fechados em sinal de descanso.

O cadáver se fazia tão frio, tão alheio. O mundo tão indiferente que o mato parecia o mesmo mato e o vento, mesmo choroso, seguia sendo o mesmo vento.

Até cogitei esmurrar a terra e escarrar aos céus perguntando o motivo de não haver choro. Por que não choram?! Onde estão as lágrimas que não as encontro no colo da noite que acaba de perder um filho?

Olhei para a noite que pertencia ao mundo. Para a lua que não pertencia à Serra Minguante. Veio, ao longe, a ventania rasteira. Não estava sozinha. Em seu lombo, ouvi um choro cansado. Avistei, de pé entre os retalhos, uma sombra curvada sobre si mesma. Parecia consolar a lua, enquanto o choro baixo corria.

A sombra pousou os olhos em mim. Vista cansada, ombros caídos. Reconhecia aquela silhueta do mesmo jeito com que era capaz de conhecer a mim mesmo. Parecendo saber que nos encontraríamos em breve, desapareceu como faziam os fantasmas.

Não pude pensar mais naquilo, não tive tempo de me ater aos detalhes. Zé-costela me esperava, quebrando blocos de terra com os pés e me encarando com seu jeito de ser. A brasa corria do peito à boca e da boca aos olhos. Cintilavam dois pontos acesos.

Perguntou sobre meu estado em palavras turvas que soavam afetuosas, ou que apenas buscavam despertar minha atenção. Respondi enquanto encostava a moto e tirava os equipamentos da mochila. Confirmei estar bem, mas o fiz de maneira tão quieta que Zé-costela não acreditou. Por isso, tratou de apagar o cigarro sob o pé e caminhou em minha direção. Pôs os dedos esguios em meu ombro e sussurrou quase ao pé do ouvido:

— Sei quando não está bem. Sempre sei. É coisa de sono?

— Vai passar.

— Quando foi a última vez?

— Última vez?

— Que dormiu.

— Ah. Não é sono, é coisa besta.

— Pois, diga.

Poucas coisas me soavam ao mesmo tempo inquisitivas e zelosas como Zélia.

— Parece loucura. Tudo isso, assim do nada — confessei sem tirar os olhos da mochila, tentando, sem vontade, desamarrá-la da lambreta.

Queria encerrar o assunto, mas Zélia continuava com os dedos sobre meus ombros, quase como se os tivesse esquecido por ali.

— Não pense que estou lidando bem, não. Uma hora estava tudo ali, escuro, talvez ela toda sorridente, toda se bulindo e do nada… Bac! Um estouro seco!

— Tu estava dormindo?

— E como! Acordo com Osório me ligando com aquela voz rouca, falando sobre a lua, bandeira vermelha. Eu já estava toda arriada, não teria acordado fácil se não fosse aquela sensação de quando Osório liga. Aquele arrepio na costela… Enfim, deve estar sendo difícil pra tu…

Tirei os olhos da mochila, os ouvidos da conversa e encarei aquela pétala murcha espalhada como uma casca de cebola sobre a serra. Jamais saberei quanto tempo perdi, mas Zélia tratou de me puxar de volta:

— Ele era como tu, pança. Também gostava de namorar a noite.

Me perguntei em silêncio por que as pessoas sempre tentaram me contar algo que eu já sabia. Não consegui afastá-la. Quando não havia atenção sobre si, Zélia deixava fugir aquele olhar triste de menina quieta. Os ombros se desenrolavam e a carranca desaparecia. Era o momento em que se desgarrava do título de brasa e se deixava ser a mesma amiga a quem contei meu primeiro descompasso.

No fundo dos olhos veio aquela coceira de choro. Quis, por um momento, abraçá-la e lamentar pela lua, assim como devia ter feito sobre o túmulo de painho. Queria, mas senti arder a boca e disse sem qualquer freio:

— Mania de bêbado.

Zélia arregalou os olhos como se ouvisse uma palavra proibida e virou o pescoço para os lados, envergonhada.

— Não diga isso, era um bom homem!

— Que se defenda sozinho então.

Sussurrou meu nome, desacreditada. Sempre o fazia quando não tinha palavras que tomassem os dentes. Troquei de assunto antes que sentisse o peso da minha revolta, pedi que me mandasse fazer o serviço.

— Ele ia ficar triste se soubesse que o filhote fala essas coisas dele, depois de tudo — insistiu uma última vez, mas era tarde.

Já me desencontrava das lembranças e mergulhava nos botões do colete fluorescente. Não respondi. Nossas conversas sempre beiravam as espirais, rodopiando nos mesmos versos soltos que não chegava a lugar algum. Terminávamos sempre de olhos cavados na terra, com os lábios mudos até que o vento mudasse o assunto.

Zélia atirou fora aquele jeito de passado que usava para me falar do tempo. Voltou a mascar os dentes ardidos e assumir o posto de Zé-Costela. Me apontou a direção onde deveria erguer as hastes. Concordei sem dizer mais nada, balancei a cabeça. Zé-costela voltou andando pelo mesmo caminho, gritando ordens para o resto dos peões.

Ali tive tempo de pensar nas palavras ditas e me arrepender de cada uma delas. Sempre que voltava a falar de painho era assim: mesmo que quisesse dizer as melhores coisas, o peito esquentava e as piores sentenças ganhavam lugar naquele gosto amargo que corria pela língua.

Tentei não pensar nele outra vez. Nosso pedaço de lua ainda estava morto e deveríamos devolvê-lo ao céu.

Por mais que me perdesse em pensamentos, nada traria painho de volta e nada poderia me fazer recolher aquelas palavras. Sei que não se pode engolir o verbo dito, assim como não se pode roubar um filho dos braços da morte… Por ironia, era exatamente o que estávamos prestes a fazer.

IV

Com hastes reforçadas, levantamos o corpo da lua como um saco de farinha, sem carinho ou cuidado. Do alto da serra, presa no topo de seu lamento, crucificamos a carcaça vazia de sentido e abrimos os olhos dela, desenhando-os em falsas lanternas. Quem visse de longe acreditaria se tratar da mesma peça colorindo o céu — talvez um pouco cansada, mas nunca alegariam estar morta.

Seu Osório apareceu no fim do expediente, trazendo a pompa de seus passos e os homens que andavam sempre pelo rastro que fazia com os sapatos de couro. Parecia desfilar como um noivo. Cabelos lançados para trás, gel escorrendo pelo pescoço. Tinha olhos claros e pele alva e se fazia digno do apelido de Galego. Nome que recebera quando ainda não passava de um garoto esmirrado de nariz fino, filho de estrangeiros com manias de grandeza. Carregava um sobrenome impossível de caber na boca. Gostava que fosse dito o primeiro nome sempre seguido pelo acompanhamento, nunca sozinho. Para evitar o erro, o chamávamos apenas de Galego.

Quando Osório desceu do carro, estávamos todos sentados e não tivemos tempo de recuperar a compostura, mas não fazia mal. O Galego esqueceu as queixas ao ver o quão falsa era a morte de seu ídolo. Ao ver que qualquer vestígio do falecimento estava escondido nos retalhos da lua crucificada. Abraçou Zélia sem dizer uma palavra. Abriu os dentes, envolveu-a nos braços finos e beijou-lhe a bochecha.

— Homens de deus! Homens de deus! Calaram-se as matracas! — repetia naquele passo animado.

Agradecia com o mesmo fervor com o qual caminhava, arrastando os homens de pompa. Só quando o vi gritar, retomei a imagem daquele menino coberto de lama. Um lampejo, uma marca solta da minha infância.

Osório seguiu pelo caminho das ferramentas, chegou debaixo da lua sem perceber as hastes escondidas no manto da noite. Levou a ponta dos dedos para tocar o cadáver e, mesmo em contato com a morte, animou-se pela textura do ídolo, saudando a parca vida das lanternas. Depois tratou de voltar, em passos bambos e murchos de alegria, como se o alívio tivesse lhe arrancado os ossos. Poderia enfim respirar sabendo que Serra Minguante não perderia seu único bem precioso.

Não nos disse outra boa palavra. Sequer nos agradeceu pelo serviço bem prestado ou se mostrou triste pela padroeira crucificada. Assumiu outra vez a postura rígida que tentava roubar do próprio pai e perguntou em alto e bom som:

— Como que suspenderam ela?

— Hastes… Cordas… Igual um ioiô. Uma haste lá na outra serra, outra nesta, e esse cabo grande no meio — respondeu Patuín, com seu jeito manso de sempre, sem tirar os olhos do chão.

— E como ela vai cruzar o céu todos os dias?

Ficamos em silêncio outra vez. Achei que não havíamos pensado na simples questão dos passos da lua, mas Zélia não hesitou. Estreitou os olhos e explicou que já havia encomendado a última das peças responsável pela engrenagem automatizada. Não se ateve às explicações sobre as ciências dos feirantes que cercavam Serra Minguante. Apenas confirmou que a peça estaria entre eles dentro de uma única semana, em total sigilo. Sabia que não havia tempo para queimar, por isso, antes que Osório levantasse a voz, se ofereceu para controlar as hastes e as cordas manualmente, tal qual um sineiro que marca as horas da missa. Todas as noites, trataria de mover a lua como uma cortina, cruzando-a por cima da cidade.

— Hum… Interessante, mas não posso permitir que perca seu tempo com os braços. — Osório caminhou os olhos por cima dos nossos ombros cansados, até que os parou sobre mim e sorriu. — Se me permite ser um pouco enxerido, acho que o filho de Durval devia assumir o posto.

— Pança? — Zélia não quis me encarar, apenas gaguejou algumas vezes antes de retomar o pensamento: — Temos tantos outros, mais fortes até. Veja Iracema!

— Valha, mulher. Deixe disso! Pra mim já está mais do que decidido. Sei que o Pancinha não costuma dormir mesmo, trocar o dia pela noite não faz mal. E poder ficar aqui, olha só! Poder ficar a noite toda admirando a lua tão de perto… Se Durval gostava, não duvido que o filho…

O jeito como disse o nome de painho, provando cada curva com a ponta do dente, me fez voltar ao tempo de menino, na varanda da casa de Osório, brincando como seu vassalo. Encontrei ali aquele mesmo sorriso arqueado e a mania de grandeza. Retomei, junto ao medo, meu pensamento de esganar a criança que brincava à minha frente, esbanjando a realidade que eu jamais viveria. Não passava de um corpo fino cercado de poderes impossíveis. Como poderia uma criatura tão pequena decidir a vida dos homens? Governar a lua e roubá-la de nossos braços?

O que me fez torcer os dedos contra a palma da própria mão não foram suas palavras, mas a maneira como as entonou. Não o fez com ódio ou provocação. Sorriu com o peito aberto, como se acreditasse estar me fazendo um favor.

Poderia arrancar a vida dos olhos dele, desdentar o sorriso arqueado e cuspir sobre seu corpo como um amontoado de lama. Poderia. Mas persisti na lição que painho havia deixado em mim. Abaixei a cabeça e reconheci o miúdo poder dos pobres de ganhar a vida permanecendo quietos.

V

Eu não tinha muitos desejos na vida além de ser enterrado numa cova rasa debaixo das estrelas. Talvez abandonar a vida debaixo da lua, tocando-a no festival por uma última vez e ali cair como um bicho cansado, morrer quieto como painho me ensinara a chorar… de lábios mudos.

Por imposição de Osório, voltei no dia seguinte para erguer o ídolo pelas hastes, suspendê-lo como um saco de batatas enquanto os amantes gozavam seus poemas doentios, namorando a beleza de um cadáver. Não era difícil, bastava controlar uma única corda reforçada e então amarrá-la de volta ao lugar. Nascia ao longe, carregada pelos trilhos do holofote, e vinha se arrastando conforme eu a puxava durante toda a noite. Quando já era vez do dia, a doce matriarca repousava por cima da minha cabeça e eu, solitário em meus devaneios, me tornava unicamente uma penumbra angustiada.

Tê-la perto me arrancou os olhos, que escorreram sobre as bochechas, desceram numa só lapada e me desenharam num menino com medo de mundo. Eu era pequeno. Meu choro não se fazia mais quieto que a morte seca daquele ídolo crucificado. Ao fim do expediente, pensei em trazê-la para mais perto, como haveria de fazer quando o festival chegasse, mas me contive. Não queria tocar o corpo remendado, não queria ser aquele que lhe invadiria com os dedos sujos, nem com o mesmo toque que a tirara dos braços da morte.

Arrastava a corda sem qualquer atenção, e por volta da meia-noite já havia me perdido em pensamentos. Meus pés descalços enfiados na terra voltavam a me lembrar da passagem do tempo. Desse mesmo rastro, me apareceu a visita do primeiro fantasma.

Ao longe, na forma de um garoto rechonchudo correndo atrás das formigas, criando pequenas monstruosidades com a terra molhada, sorrindo como quem desaprende o tempo, correndo como quem não ouve o chiado dos ponteiros do relógio. Logo atrás vinha o Galego, passo lento, pompa de rei, carregando nos dentes aquele gosto impossível das boas frutas que o outro menino jamais provaria. Aos poucos, no fim da serra, outros fantasmas também começavam a surgir — alguns vultos em pé, outros apenas se mostrando pelos timbres.

A casa dos patrões também se apresentou. Estava ali, majestosa como lembrava nos meus piores anseios. Corria meu reflexo e o corpo enxuto de Osório, brincando na lama até que nossas peles ficassem da mesma textura enrugada. Foi a última vez que aquele eu-menino sorriu para o reizinho nos trajes de pompa. Pouco tempo depois veio um dos outros empregados chamá-lo, abrindo caminho entre as portas da mansão na qual ele nunca pudera cravar os pés.

O pequeno-eu aceitou o convite como quem ansiava desbravar um novo mundo, mas encontrou lá dentro apenas um corpo febril, já sem vida, largado sobre a mesa e com a boca escorrendo um suco esverdeado. Ali estavam os olhos abertos de painho, escancarados como no tempo que namorava a lua. O corpo seco me dizia um adeus solitário.

Já o espectro do pai de Galego não manifestava tristeza, nem se figurava mais ou menos irritadiço. Parecia unicamente nervoso, repetindo incontáveis vezes para que todos ouvissem:

— O homem bebeu veneno de rato! Bebeu veneno de rato!

Meu corpo saltou, despertei do transe e abandonei as histórias dos fantasmas. Abanei a mão diante do rosto e desmanchei os rastros nebulosos do tempo. Estava ofegante, e já era hora de recolher a lua. Completei o resto do serviço sem tirar os olhos do chão e deixei que a padroeira se tornasse apenas um borrão nos canteiros da vista. Desliguei-a, apaguei sua falsa vitalidade e deixei que voltasse a ser apenas um corpo morto suportado por uma haste frouxa. Segurei a angústia, guardei-a entre os dentes e a levei para devorar em casa. Em algumas horas teria de voltar para fazer tudo outra vez.

VI

Passaram-se dias, e a espera se tornou eterna. Eu carregava a lua pelas noites, fingindo sonhar a realidade e buscando esquecê-la ao fim do expediente.

Certa vez, deitado na esteira de sono curto, onde um dia painho havia descansado de olhos abertos, me peguei pensando sobre a figura que tinha encontrado no caminho de casa. Meus ombros estavam pesados o bastante para levar os olhos ao chão. Talvez por isso, não pude ver a pessoa parada no meio da estrada de barro. Me tombei contra aquele corpo frágil. O homem no meio do caminho não soltou qualquer palavra suja, apenas caiu sentado com as mãos na terra.

Pude ver os olhos dele, dois miúdos caroços de cupuaçu. Ainda parado, não fugiu a atenção do céu, carregando na vista esbranquiçada um olhar verdadeiro de tristeza. Cochichava palavras indecifráveis. Das poucas que consegui entender, percebi que estava repetindo a mesma pergunta: se um dia seu corpo velho também não teria descanso, se seria arrastado pelo céu, defuntado.

Estremeci com a ideia e voltei para casa apressado, com medo de olhar para trás. Tentei esquecer do encontro e arriscar o sono, mesmo sabendo do poder que o passado possuía sobre os homens de olhos fechados. Meus ombros pesavam, doloridos pelo esforço de carregar as hastes e arrastar a lua. Já passava das dez da manhã, mas a noite parecia incrustada por cima das minhas telhas. Não deixei que o sol entrasse.

Fechei os olhos

O cansaço vencendo o medo

E os fantasmas rastejando pelo quintal

Na beira do caminho, um menino

Na ponta da serpente, a lua

Entre o corpo rechonchudo da criança e o ídolo de prata, um defunto.

Ainda não conhecia aquele sonho. Era a primeira vez que estava no alto do festival da Serra Minguante desde que painho me levara para escrever meu nome nos rastros pálidos da padroeira. Queria persistir quieto, mas andei. Não havia controle no meu corpo que se perdera no tempo.

Quando a lua tocava o chão, tudo se cobria de sombras. Avistei uma figura cansada ao longe, dobrando o corpo como se buscasse não ser visto. Porém, mesmo que o pobre defunto tentasse se esconder na penumbra, eu conhecia a forma dele, o choro e as lágrimas daquela silhueta.

Painho…

Pensei que se esconderia, que usaria os passos tortos para fugir. No entanto, ao me ver, o fantasma dele estirou o corpo e cravou os olhos em mim. Era a primeira vez que aparecia assim, de pé, encostado num pedregulho, com os olhos saltados mirando meu corpo. Me aproximei só para conseguir ver um pouco mais de sua forma. Estava magro como me lembrava, com a camisa encardida de terra, os pés descalços e a calça de pano rasgada no joelho. Não precisaria ir tão fundo, reconheceria aquele homem apenas pelas mãos calejadas e os buracos improvisados no cinto de couro.

Quis perguntar o motivo de só ter coragem de aparecer para mim agora, mas as palavras saíram da minha boca num sopro entupido, engasgado. Só então lembrei das histórias dos verbos que não tomam a boca dos fantasmas, que tudo que é morto fala pelos olhos e pelo vento, em um sopro abafado ao pé do ouvido. Por isso, apenas o fiz com os lábios quietos.

Painho desviou os olhos para a lua, namorou-a com sua mania de embriaguez e depois voltou a me encarar. Beiços mascados inchados, pálidos como eu só vira uma vez em toda vida, desmanchando a pele, desfazendo a cor, lhe entregando os tons da morte seca, estrebuchada.

O homem bebeu veneno de rato!, cantou um fantasma ao longe, soprando a sentença com os dentes fechados. A voz rouca do tempo me lembrou da dor que sentia todas as noites. Filho do empregado suicida que abandonou o pouco que ainda tinha por um único beijo. Um estalar de língua no frasco de veneno e pronto.

Estava agora de pé frente ao covarde e à noite suicida. Os dois se tornando um fardo sobre meus ombros. Teria de carregar o legado de painho, assim como faria todas as noites com aquele pedaço de retalho luminoso.

Amaldiçoei os dois, mandei que fossem ao inferno! Que recolhessem as carcaças e que morressem em paz, sem ter de pôr sobre mim o peso das carnes podres. Chorei de tanto jeito que já não sabia mais o que era raiva, tristeza ou solidão. Como não tinha palavras naquele mundo, o fiz com os olhos. Me sentia sozinho sem painho e agora sem as noites para lembrar do passado, estava solto no mundo, parente das coisas sem futuro.

Painho, com a carne pálida, não fez meia intenção de palavras, não enxugou os olhos marejados, apenas me estendeu a mão desgraçada pelo tempo de serviço. Aceitei-a para ver minguar o choro, mas quando pude tocar a carne dele, a lua cresceu, engoliu a noite e transformou tudo em um lampejo assombrado.

Quando voltei a enxergar estávamos de volta ao inferno. O casarão da fazenda, a casa de Galego com paredes largas e os empregados silenciosos. Estávamos ali, os dois, de pé na entrada enquanto no quintal brincavam três crianças. Dois meninos e uma menina. Zélia, Galego e eu. Já sabia cada passo daquela cena: brincaríamos na terra; voltaríamos cheios de lama; eu pensaria em afogar o corpo mirrado daquele menino com fome de mundo; então, seríamos chamados para ver o corpo de painho, estrebuchado numa mesa.

Algo diferente, o fantasma de painho me puxou pelo braço, fazendo com que eu entrasse na casa antes mesmo da lembrança. Estava tudo quieto. Me levou para a cozinha onde eu sabia estar seu corpo estirado. Estava preparado para reviver a mesma cena outra vez, ver o semblante envergonhado das pessoas ao redor e o desespero do patrão.

Nada.

A cozinha estava vazia, quieta, persistia na forma silenciosa dos cômodos solitários. Então, ouvi o som distante dos passos apressados. Romperam a grande porta que separava a casa da roça, vieram carregando o corpo do infeliz, espumando pela boca. Reconheci a imagem de dona Cocota, mãe de Zélia, carregando os pés enquanto o pai de Galego sustentava o moribundo pelos braços.

Logo depois surgiram outros empregados, atônitos. Jorge, o tio mais velho da família, doutor, que estava de visita fazia pouco mais de dois meses, apareceu com seus trambolhos medicinais. Não precisou sequer examinar, sabia reconhecer de vista a dor dos pobres estrebuchados.

— É um surto!

Do mesmo jeito que gritou, seguiu sem sair do lugar, como se soubesse que já não havia remédio para a vida do infeliz. Apenas tocou o ombro do sobrinho e deixou que painho parasse de convulsionar. Depois dos espasmos, adormeceu quieto, de olhos abertos e boca inchada. O patrão enxugou a testa e caminhou em direção ao médico.

— Que desgraça é essa? — O patrão agarrou o próprio tio pela gola, mais por desespero do que por qualquer outro ato de cólera.

— Eu te avisei, Brito. Avisei que era questão de tempo, o lazarento já não se aguentava mais de pé…

— Sim, eu sei! Você disse, sei o que disse, mas queria que eu fizesse o que também? O que eu ia fazer?! Caralho, o que as pessoas vão dizer agora?

O patrão arregalou os olhos enquanto andava de um lado para o outro, murmurando. Depois tornou a gritar que a oposição estaria em seu encalço.

— Oposição? Do que está falando, homem de Deus?

— A oposição, vagabundos! Vão cantar a matraca sem pensar duas vezes, vão estampar minha cara na rua, me chamar de assassino! Não, isso vai fazer o povo me chamar de, de… Vão colocar o Onofre no meu lugar, estarei acabado, inferno! Lazarento!

O patrão se perdeu em si mesmo. Inflamou o rosto avermelhado e golpeou o corpo de painho com a sola enlameada das botas. Os outros empregados desviaram os olhos enquanto o homem descontava o infortúnio no defunto. Jorge teve de intervir, segurar o pai de Galego pelos ombros e sacudir o corpo como se tentasse desprendê-lo de um transe.

— Se recomponha, homem. Há um jeito! Sempre há um jeito!

— Que jeito?!

— Veja… — disse quase sussurrando enquanto pegava algo atrás de si. Revelou, escondido, uma pequena lata entreaberta. — Você não pode fazer nada, o homem estava louco. Tinha uma criança para criar, a mulher desapareceu com outro… Estava deprimido, entendeu? Você não teve culpa…

Não precisei de mais. Mesmo sem uma carne que pudesse chamar de minha, meu estômago se revirou ao ponto de sentir as tripas tocando a língua. Olhei para o lado, encarando pela última vez os olhos fúnebres do fantasma de painho. Chorava. Assim como os do espirito ao meu lado, os olhos do defunto sobre a mesa também marejaram.

Depois vieram as hastes serpenteando pelas paredes. Amarraram o corpo do infeliz estrebuchado e o levantaram até o céu. Era noite outra vez no topo da serra minguante, e o corpo de painho agora levitava de braços abertos, como um ídolo, um cordeiro crucificado, um mártir. A imagem se desenhou no topo do firmamento, o corpo moribundo dependurado fazendo companhia ao brilho parco da noite suicida.

Ele me encarou do alto de sua cruz com os olhos marejados e guardou em mim uma mensagem. Assim que eu houvesse de abrir os olhos, que tratasse de salvar a lua do seu lamento, disse. Nem veneno de rato, nem álcool, nem qualquer outra moléstia, painho estrebuchara do mais puro cansaço, quando o corpo já não conseguia carregar mais as vontades da terra.

VII

Um ímpeto incontrolável me arrancou da cama e tomei o caminho de barro. Não pensei por onde meus pés me guiavam ou sequer pude esquecer as histórias dos fantasmas. Sonhava de corpo alerta, revivia as lágrimas de painho e a cena do patrão golpeando sua carcaça.

Ainda era de tarde, mas meu corpo tremia.

Não guiei a lambreta. Desejava enfiar meus passos fundos no barro e castigar a terra por suas injustiças. Ainda terminava de acordar quando reconheci o caminho por onde a cólera me guiava. Cheguei ao portão verde musgo, com o cadeado preto e o focinho do cachorro tentando reconhecer a visita.

Talvez buscasse uma resposta ou apenas a calmaria daquela voz rouca da minha infância. De todo jeito, bati à porta como quem tem pressa de sufoco. Gritei o nome Zélia com a garganta quente e esperei que os passos aparecessem no corredor.

Ela estava em casa.

Me atendeu ainda de camisola, com o corpo marcado e as costelas cintilantes por debaixo do tecido. Carregava o companheiro aceso entre os dedos. Eu conhecia Zélia e seu jeito arredio, poderia simplesmente me mandar ir à merda com um abano de mão. Só que Zélia também me conhecia e sabia que poucas vezes a cor dos meus olhos mudavam. Naquela tarde, eles ardiam.

Por encontrar em mim todo aquele desespero, Zélia apenas segurou o cachorro pela coleira e me pediu que entrasse. Tudo sem escolher uma palavra. E não precisava. As coisas andavam verdadeiramente estranhas na Serra Minguante, e um olhar como aquele não precisava de explicação.

Sua casa ainda era a mesma que tinha conhecido menino, com o carinho de dona Cocota talhado em cada azulejo floral, assim como os santos bem polidos e o altar compartilhado por entidades católicas e uma estátua grandiosa de Iemanjá. Quase pude ver, sentada em sua cadeira de balanço, a imagem daquela mulher de braços largos, cruzando a agulha de costura com serenidade. Lembrei da minha infância dentro daquelas paredes, do dia em que dona Cocota resgatou meu choro. Revivi aquele momento com carinho até que outra memória dela, no exato instante da morte de painho, tomasse minha mente sem dizer nada.

Meu estômago se revirou. Se aquela história fosse verdade, então a mulher que havia salvado minha infância também manchara as mãos de sangue. Recuperei o fôlego enquanto Zélia voltava da cozinha com uma garrafa de licor.

— Água seria melhor…

— Desse jeito que cê tá? Água não resolve. Vai, bebe.

As mãos dela eram rápidas. Eu não conseguia sequer ver o movimento da garrafa. Quando dei por mim, já estava com o pequeno copo em mãos, emborcando o licor de jenipapo para dentro. Desceu ardendo, mas não me arrancou mais do que uma fungada despreocupada. Respirei fundo e me estirei um pouco mais no sofá. Não queria ir direto ao que me incomodava, busquei em mim qualquer pergunta que me entregasse algum tempo.

— Está de folga hoje? — Me encontrava encarando o copo já vazio entre os dedos.

— Quem me dera…

— Osório?

— Ô, já não sabe? Pior que carrapicho… Pança, olha, sei que não veio aqui perguntar minha agenda. Ainda mais desse jeito, parecendo que viu malassombro.

— Talvez.

Zélia suspirou como se não houvesse ar suficiente para nós dois, tirou outro cigarro do bolso e o acendeu. Olhos ainda mais acesos por dentro da fumaça me encaravam. Depois assoprou, sem pressa. Deu dois toques para cair o terço queimado, beliscou os beiços com os dentes e balançou a cabeça em desagrado.

— Durval?

— Dessa vez foi diferente.

— Como?

— Era ele. Não uma imagem ou lembrança. Ele mesmo.

Zélia congelou; não o fez por medo dos mortos ou por desacreditar na minha história. Zélia deixou o cigarro fumar sozinho por saber o peso das histórias que os fantasmas carregam. Volta e meia também recebia o presságio de dona Cocota e já era habituada desde bem menina aos assuntos do outro lado. Quando ficou séria, espantada, lembrei do olhar assustado de sua mãe dentro daquela memória póstuma.

 Ela me indagou sobre o teor da mensagem. Era a primeira vez que percebia a voz trêmula de Zé-costela, e eu parecia não saber onde descansar os dedos.

— Me contou a história… Depois de tanto tempo. Me falou sobre a morte dele. A gente só teve essa conversa uma vez, eu e você. Não queria tocar nisso, sabe muito bem. Por mim deixava que painho se acabasse com tudo que falam sobre ele, mas… depois disso eu não sei mais de nada. Zélia. Preciso que me diga, me diga o que sabe, de verdade…

— Outra vez? Me lembro daquele dia, Pança. Me lembro de cada coisinha assim, ó. Sei tanto quanto, estava até com vocês dois do lado de fora, lembra? Brincando.

— E dona Cocota?

— O que tem mainha?

— Ela estava lá. Ela viu tudo, não foi?

Quando o vento assobiou pela janela aberta, o cigarro já havia chegado ao fim, e a ponta da unha de Zélia ardia. Ela deixou o rastro do fumo cair no tapete e vi seus olhos se afundarem no tempo. Depois retomou o semblante rígido de Zé-Costela e a voz rouca que já era conhecida.

— Pança, menino. Num sei de onde tira essas coisas, já te disse uma vez, mas vou te dizer de novo. Que seja a última! Porque num sou mulher de ficar metida em mentira, entendeu? Naquele dia, estávamos nós três do lado de fora, vocês dois se engalfinhando que nem porco e eu no meu canto. Como sempre. Mainha tava lá no fundo catando caju, num viu nada. Chegou depois pra acudir seu choro, não lembra?

Me lembrava da briga na lama e de dona Cocota me carregando nos braços grossos, mas teria o sussurro de painho mentido pra mim? Era palavra de gente viva contra lágrima de morto.

Bebemos por algumas horas e parecemos não ter forças para disputar com o silêncio. Houve um momento em que pensei em responder com a cabeça baixa, mas a campainha da casa dela deu um berro, cortando a quietude, anunciando outra visita.

Zé-Costela engoliu seco, levantou-se sem meia palavra e caminhou em direção à porta. Pouco tempo depois, voltou fazendo do corpo um troço de vara-verde, chacoalhando. Vinha atrás de si a imagem de Osório, pomposo, com o cabelo estirado para trás e o sorriso aberto em pétalas.

— Pança, você por aqui…

Me cumprimentou cheio de dente, com ares de arrogância e falsa surpresa. Sempre que tentava mentir, contar uma história que não existia em nossa terra, o rosto de Galego mudava a cor, tornando-se vermelho; depois a vermelhidão caminhava num passo de serpente, passando pelas bochechas, testa, nariz, queixo… Tinha boa memória para as miudezas das pessoas, por isso soube ver a mentira correr crua. Osório havia me seguido.

Balancei a cabeça, abrindo espaço no sofá para que ele se sentasse. O cheiro dele, aquele toque doce que não se desmanchava no sol, cheiro de quem nunca teve de pôr os pés fora da sombra. Continuou com o sorriso aberto, encarando nós dois como se esperasse retomarmos o assunto.

— Não precisam ficar tímidos com minha presença… Do que estavam falando?

Cansou de insistir em silêncio e decidiu abrir os dentes, apertando meu ombro com os dedos lisos.

— Estávamos conversando sobre o incidente — Zélia respondeu enquanto ainda contava os círculos do tapete.

— Ah! Sobre a lua. Sim. Um incidente terrível, quem poderia esperar uma coisa dessas, não é mesmo? Mas o importante é que agora está tudo bem. Por falar nisso, Pança, como foi lá? Pude ver a lua lá de casa, estava linda!

— Durval — rasguei a bajulação com o nome de painho nos dentes.

— Que Deus o tenha, mas o que tem ele? — Osório me encarou, estranhando a mudança repentina.

— Estávamos falando sobre Durval. Estávamos falando sobre a morte dele.

— Nossos pais eram bons amigos, Pança. Lembro que lá em casa não se dormiu durante dias. Pude ouvir meu pai chorando pela primeira vez…

— E do que você se lembra?

— O mesmo que você, acredito. Estávamos juntos, não se lembra disso? Mas não se preocupe, foi um trauma, não julgo que não se lembre de tudo com detalhes. Até queria poder contar outra versão, mas as únicas três pessoas que estiveram lá o tempo todo já não estão mais aqui.

Dessa vez consegui tirar os olhos do chão, apenas para direcioná-los ao semblante pavoroso de Zélia.

— Três?

Minha pergunta foi o bastante para tirar de Zélia qualquer sobriedade; Osório parecia não entender as nuances do próprio discurso, por isso avançou sem calcular o passo das palavras.

— Sim. Meu pai, meu tio e dona Cocota… Que Deus os tenha também.

Zélia perdeu a cor, me olhou como se implorasse aos pés dos santos. Senti o embrulho do estômago, entendi o que tinha para ser entendido, colhendo a verdade solta pelo cômodo. Depois disso, aleguei não estar me sentindo bem, neguei qualquer ajuda e saí da casa de Zélia com as palavras remoendo meu escalpo.

Na porta, olhei uma última vez para o rosto dos meus amigos de infância, sem saber que, na próxima vez que nos encontrássemos, haveria sangue e um de nós teria de dar o último disparo.

VIII

Meus pés eram assim, rápidos. Conseguiam tomar decisões antes mesmo que eu pudesse carregar um pensamento. Saí da casa de Zélia com má-digestão, o corpo se revirando com cada palavra não dita, com cada agouro e com a verdade marcada nos olhos fundos de painho.

Queria vomitar, mas sabia que o meu mal não era da carne. Osório e Zélia haviam me atingido com um golpe no passado que só pude sentir no presente. E sangrava como uma ferida que esquecera de chorar e agora minava sangue por todas minhas esquinas. Me enfiei cambaleando pela estrada de barro ruivo.

Reconhecia o caminho, as cercas farpadas se cobrindo em ferrugem, o mato seco que crescia morto e a placa velha que indicava a entrada do antigo casarão. Mesmo entregue ao tempo, abandonado, sentia que cada metro daquele quintal ainda era melhor que eu.

Passei pela poça eterna de lama, entrando pela porta da frente. Forcei a passagem com um rangido e a casa chiou em desgosto. Exceto pelas trepadeiras que tomavam as paredes, tudo se encontrava no devido lugar. As imagens de santo, os azulejos de terras distantes e as paredes altas. Aproveitei a solidão das coisas mortas para desviar do cômodo e conhecer outras beiradas. Passei pela cozinha, ouvi o som dos passos daqueles que ainda se prendiam nos afazeres mesmo após a morte. Depois subi a escada para o quarto.

Encontrei uma cama larga vazia, como havia imaginado que seria o lugar onde dormia o menino Galego. Deitei nela, esparramei o corpo sem sentir falta da velha esteira de palha. Corri os olhos pela estante de livros, reconheci cada lombada. Toda vez que vinha a professora da cidade ensinar palavras bonitas a Osório, eu me sentava perto e aprendia sobre as terras distantes, monstros e heróis. Depois me encolhia debaixo de uma árvore e imaginava como seriam os heróis se eles se parecessem comigo e não apenas com Galego. Painho agradeceu ao patrão por me deixar ouvir as palavras bonitas, mas me disse em segredo que nunca falasse mais do que Galego, nunca o vencesse em uma briga e sempre concordasse com as afirmações dele. Quando brincávamos na lama, revivíamos as histórias, as palavras bonitas, mas eu fazia sempre o papel do monstro… E o monstro nunca poderia vencer.

No caminho para fora do casarão, me enveredei pelos quartos até encontrar o menor deles, onde estavam as ferramentas de trabalho. Havia tantas, das que faziam nascer o fruto da terra às que poderiam tirar o ouro dum riacho. Haviam também retratos que se perdiam no tempo. Zombei de mim. Queria ter a história do meu sangue em retratos, mas tudo que havia sobrado era o silêncio dos fantasmas.

Me despedi da velha lembrança, encarei o casarão torcido enquanto me perguntava: por que mesmo entregue ao tempo, o mundo continuava o mesmo o mundo? Segui a estrada que se arrastava em torno do casarão e pude ver o cemitério. Não era mais utilizado pelos mortos fazia pouco mais de cinco anos. Ali, resistiam apenas as ossadas do velho governo, enterrados ali antes de inaugurarem novas lápides no centro de Serra Minguante.

Caminhei até lá porque sabia a direção em que o vento fazia a curva. Visitei aquele lugar em sonho, buscando qualquer explicação ou sendo puxado pelo medo infantil que me tomava de assalto. De toda forma, estava agora de pé em frente ao Jardim Da Saudade, com toda a solidão berrando nas madeiras retorcidas.

Ainda era de tarde, mas por ali sempre jazia a noite amargurada. Entrei sem que me fizessem o convite e encontrei no caminho os olhos perdidos de um penado cabisbaixo, murmurando palavras em sua lápide. Quando a pequena criatura encurvada me viu, arregalou o vazio dos olhos e me abriu um sorriso desdentado. Chiou como faziam os mortos e chamou tantos outros para comemorar minha chegada.

Pareciam cansados, todos. E do pouco que ainda lhes sobrava de humanidade, persistia o semblante marcado, os olhos fundos, as mãos feridas de terra e o lombo encurvado de quem tinha de carregar o mundo pelos homens de poder. As feições deles não eram tão diferentes da minha.

De pés descalços, se amontoaram ao meu redor para me indicar o caminho da noite daqueles infelizes. Me observavam como se já esperassem minha chegada. Não era a primeira vez que os via, mas era a primeira que tinha coragem de encarar os mortos e saber que fazíamos parte da mesma sina, obrigados a carregar o mesmo fardo.

No fim do caminho havia uma lápide rachada, tomada pelo tempo. Sentado sobre o monumento destruído, persistia uma alma já conhecida por mim. Semblante cansado, olhos tristes e lábios grossos. Não lembrava do sorriso de painho, mas ver a feição falecida um tanto contente foi o mais perto que pude chegar.

Um passo meu, em vida.

Outro passo dele, em morte.

Nos encontramos no meio, entre a lápide e o caminho de volta. Sua carne transparente enxugou meus olhos quando eu nem sequer sabia que chorava. Fazia parte da minha ferida escorrer sem alarde, quieta. Não abri os dentes porque com os fantasmas não era preciso. Sabia minhas dores, meus anseios. Sabia que aquilo que corria dentro de mim era carregado por aquele sopro rasteiro. Assim como pude enxergar naqueles olhos toda a história de Serra Minguante. Eram frutos do tempo, da ganância, pedaços da construção da nossa cidade, que tinham estrebuchado em mortes lamurientas e agora não tinham de serventia mais que o esquecimento.

A lua nunca havia sido nossa. Aquele pedaço flutuante havia sido roubado, mantido refém em nossa terra enquanto crescíamos em torno da exploração dela. O mesmo sangue que tirava o ouro da terra lavavam com sangue. A mesma família que tomara para si o plantio seguia administrando a lua para si. O novo governo, as velhas regras.

Pude ouvir dos olhos dele a dor de construir uma cidade para homens de poder e desaparecer em seguida como um simples degrau sem nome. No fim de Serra Minguante, naquele cemitério, me vi refletido em entranhas podres. Quando houvesse de morrer, me enterrariam como um indigente ou me pendurariam no alto do céu para continuar o serviço.

Quando me recostei numa das lápides, vi nascer ao longe a imagem turva de uma mulher. Forte, braços largos, passos lentos e os olhos entregues em choro. Reconheci aquela figura que me carregou no colo. Reconheci o semblante de dona Cocota.

Parecia envergonhada, mas se aproximava pedindo perdão. Lembrei das memórias de painho, de como ela havia estado lá. Dona Cocota, mãe de Zélia, a mulher que me protegera após o desastre, guardara para si a verdade até o leito de sua morte.

Quis jogar a culpa do mundo sobre os ombros daquele espectro miserável, mas o fantasma de painho intercedeu. Com os olhos vazios de qualquer cólera, me disse para não guardar rancor daquela pobre mulher — se fez o que fez, havia sido apenas para garantir alguns dias sobre a terra, para abençoar o caminho de Zélia.

Quando o nome da filha soou pelo cemitério, dona Cocota se desmanchou em lágrimas. Pude ver o corpo dela escorrendo pelo chão, ficando cada vez menor. Então, levantou o rosto em minha direção e vi como sofria. Me pediu para perdoar Zélia, para saber que ali ainda existia uma menina perdida entre mundos sombrios. Como todos nós, ela também havia herdado o peso daquele agouro que cruzava nossas gerações.

Quando a noite já começava a dar os sinais, todos os degenerados em suas lápides se ergueram das covas de olho para o céu, apontando o nariz em direção ao topo da serra, onde a lua haveria de surgir em breve. Foi então, em silêncio, que entendi meu papel naquela engrenagem.

O agouro do nosso ídolo despertava a dor daqueles fantasmas. Olhavam para o céu buscando alguma justiça. A lua não era nossa, não estava abaixo de nós, mas entre nós. Optou pela morte no último anseio de adeus. Enquanto a lua não pudesse repousar em seu lamento, aquelas pobres almas também não poderiam, porque no fim, não éramos tão diferentes.

Quando há esperança, os fantasmas cantam. Uma canção que se ouve pelas ruas, no topo da serra, na beira de um cais. Uma canção que que atravessa as missas, que dança nos terreiros. Nenhum de nós tinha um quadro na parede, um passado escrito, mas naquela noite cantamos. Uma voz rouca, grave, de fazer chacoalhar um velho saveiro.

Serra Minguante havia crescido no silêncio daqueles explorados. Ainda crescia, mas ninguém jamais levantara a voz contra os homens de poder. Me senti parte entre os mortos, mais do que jamais havia sentido frente aos vivos. Talvez por entender que meu próprio tempo também estava acabando. Abracei cada fantasma como um irmão e saí de lá decidido. Eu mataria a lua pela segunda vez, entregando-lhe a morte como deveria ser.

IX

Já era noite. A lua deveria estar em seu posto, mas eu ainda estava na metade do caminho. Subindo a serra com o coração entre os dedos e a coragem querendo escapar da carne. Sabia o que precisava ser feito, e faria mesmo que isso nos condenasse à escuridão e à falência de Serra Minguante.

Não poderia deixar que a cidade se sustentasse sobre o lombo dos miseráveis. A lua agora não era mais do que um de nós, o símbolo do nosso cansaço. Como um grito de revolta, ela cairia e revelaria as frágeis estruturas dos homens de poder.

Se o ídolo de prata havia abandonado a vida ou apenas chegado em seu tempo de cansaço, que merecesse ao menos o descanso. Seria por minhas mãos: eu trataria de desarmar as hastes, fazer com que ela despencasse e voltasse a ser apenas uma casca aberta. O tempo corria contra mim e, mesmo acelerando a lambreta, algo me fazia deslizar contra a vontade dos mais fortes.

No meio do caminho encontrei um telefone público. Liguei para Zélia, que me atendeu em desespero. Parecia ter ensaiado cada palavra, e me disse com a voz inquieta:

— Pança, não mexa nessa terra, não desenterre essas coi…

— Ei, Zé. É a nossa chance, nossa única chance de sair daquela poça…

— Não sei de que poça está falando, mas, pelo amor de Deus, não faça nenhuma besteira.

— Lama, Zélia, lama. Shhh, não fala, não precisa falar nada, só queria que estivesse do meu lado para fazer o que é certo, dar um basta.

— Não…

— Ela precisa disso, é direito dela, é nosso direito. Nós não somos eles, nem se tentássemos a vida inteira…

— Depois de anos, por que só agora se importar com tudo isso? Num me diga que tava dormindo e acordou, assim do nada.

— Não, não vou dizer. Acho que já estava acordado antes, só quieto.

— Pança…

— Falei com dona Cocota, ela mandou um beijo.

Desliguei o telefone e segurei as lágrimas com os dentes. Cheguei ao topo da serra já sem cor, percebi do alto que algumas vozes começavam a questionar o atraso da lua. Era noite, e nem sinal das cores prateadas da matriarca.

Hesitei.

Era certo? Não seria o destino continuarem as coisas daquele jeito? Deixar que as engrenagens mantivessem nossa pequena cidade funcionando? Me perguntei se era melhor lançar a voz ou morrer quieto como um animal cansado. Se não seria mais confortável suportar o peso sobre o lombo…

Mas os mortos voltaram à minha cabeça, olhos vazios de sentido, a exaustão marcada na pele e a herança amarga. O peso daqueles que se vão, mas deixam as lágrimas sobre a terra.

Sem qualquer desvio, retornei à base onde manusearia as hastes, com as quais controlaria a lua para cruzar o céu até o ponto de se esconder outra vez entre as serras. Não obedeci ao tempo. Era um homem a puxar a lua, eram os meus braços a sustentar a beleza daquela noite suicida, assim como seriam minhas mãos a dar um fim ao rastro desumano de sua labuta.

Ao longe, ouvi a queixa dos moradores, que se perguntavam sobre a velocidade com que a lua cruzava o céu; outros até se mostravam pavorosos. Trouxe-a para perto, no topo da serra onde podia namorá-la. Não era dia de festival, não haveriam expectadores para ver o fim da noite.

Movido pela saudade ou talvez pela simples melancolia da despedida, caminhei até o ponto mais próximo da padroeira. Ali, no topo da serra, me lembrei do dia em que painho havia me levado para tocar a lua com a ponta dos dedos, para me sentir menos eu, menos desgraçado, e cada vez mais perto do céu.

Algo já me dizia que eu não estava sozinho. Soprou ao meu ouvido o som das quatro rodas e, em pouco tempo, pude ver o carro de Osório se aproximando. Não tive medo e nem me arrependi da demora, porque algo dentro de mim dizia que o confronto era inevitável.

A freada brusca, as portas se abrindo e o sorriso ácido daquele rosto de infância.

— Pança! — Tentou outra vez fingir cortesia, mas não havia espaço em mim para seguir o teatro.

— Guarde os dentes. Sei por que você está aqui, e você também sabe por que eu estou aqui.

— Deu pra doido agora, foi?

Os dentes dele se fecharam e o som saiu abafado. Tentava manter a farsa, mas sabia que era tarde. O sorriso diminuía.

Quando tive coragem de olhar para trás, não entreguei meus olhos ao chão. O encarava como sempre tivera vontade, de queixo erguido. E pela maneira assustada com que me devolveu o olhar, sabia que via em mim uma ameaça, uma criatura do mato capaz de cavar os dentes no pescoço dele.

— Ele não bebeu veneno de rato.

Osório não teve qualquer reação. Não disse nada. Não vacilou um único movimento. Persistiu quieto na seriedade rara de seu semblante. Envelheceu alguns vinte anos ou mais.

— Do que isso importa agora? Do que vale desenterrar um segredo que nem nos diz respeito? Isso é sobre os nossos pais, não sobre a gente.

— Do que vale? Você herda a porra de uma cidade, um sono tranquilo. E eu? Herdo a falsa história dum velho suicida, herdo sua miséria. Do que vale essa herança, Osório? Isso não é só sobre nossos pais, e você sabe muito bem disso. Naquele dia, não, não tem mais volta.

— Mas não fui eu quem matou o seu pai.

— Mas ainda vive da morte deles…

— Deles?

— Deles! Quem você acha que morreu por sua bela casa? Por sua cama? Quem você acha que morreu pra que você possa ver a noite do alto do seu castelo…? Quem? Diga! Eles, todos eles! Por todos os cantos, nós! Nós que estamos aqui pra servir enquanto somos enterrados em covas rasas ou então estirados no alto do céu! É sempre assim, sempre! Vocês só vivem porque se alimentam da nossa morte… São como um bando de urubus. Só vão parar de chutar a carniça quando ela parar de cuspir dinheiro.

— Pança, eu não entendo uma palavra do que diz. E se você enlouqueceu não é da minha conta. Se tenho o que tenho, não foi por matar ninguém, foi por mérito, unicamente o meu mérito. E se você não está ao meu lado hoje, não é nada mais do que por suas escolhas, não as minhas. Então, que tal deixar de rancor, de remorso e voltar a trabalhar?

— De fato, nunca fui de fazer muitas escolhas, não é? Não é?! Mas hoje eu fiz uma escolha. Sim, acabou, já chega. Está vendo aquela lua ali, a nossa lua? Está vendo aquela noite suicida ali? Aquela miserável? Veja, toda cidade está se alimentando dela. É linda, não é? Mas hoje ela vai cair do alto dessa serra, e todos saberão que é o fim.

Osório não me entregou mais qualquer sentença. Apenas persistiu quieto, me olhando de cima como quem sabia que minhas palavras não valiam mais que alguns berros de um cachorro ensanguentado prestes a devorar a si mesmo. Sem qualquer cerimônia, deslizou o revólver para fora do coldre e apontou o cano em minha direção.

— Eu não posso deixar que faça isso.

— Não esperava que fosse diferente.

Nunca fui de temer a morte, nem os fantasmas que me visitavam toda noite. Caminhei em direção a Osório. Queria ver se carregava no sangue a frieza com que se matavam os animais humanos. Se puxasse o gatilho, estaria dando vida à sua herança, ao lugar dos mais fortes.

Não havia medo nos meus olhos, assim como não havia hesitação nos dele.

Éramos dois meninos brigando na lama, mas, como sempre, eu enfrentava uma luta que não poderia ganhar. Os dedos dele sambaram no gatilho e pude ver quando a bala me tirou sangue e fez aquela parte minha lamber a terra.

Escorria pelos meus braços, minha carne chorava, mas eu não sentia dor. Com as mãos ensopadas, me aproximei de Osório apenas para esfregar meus dedos no cabelo dele, tingindo-o. Ele arregalou a cara e se desfez em semblantes de repulsa. Com sua mania, tentou se desvencilhar das minhas mãos pesadas, mas era tarde — empurrei o rosto dele contra a terra e o fiz comer lama.

Tinha agora o reizinho debaixo dos pés.

Todas as brincadeiras em que tive de apanhar em silêncio descontei enquanto sufocava-o no barro. Poderia ficar ali, ouvindo o choro do reizinho, vendo-o se engasgar com a terra e saber a humilhação de estar debaixo dos pés de um outro alguém. Mas eu não tinha mania de grandeza, assim como não queria carregar a morte nas costas.

Quando enfraqueci as mãos, deixei Osório respirar. Seu sopro era agudo. Seu imploro vergonhoso. Seu desespero me fazia cócegas. Deixei que se desprendesse, sabendo que o homem estava quebrado, que a mania dele fora enterrada com a dignidade. Se encolheu no canto e olhou para mim como faria com um santo de missa, pedindo misericórdia.

Não queria o poder de me sentir dono de coisa alguma. Por isso, poupei-me de me alimentar daquele sentimento e voltei a caminhar em direção às hastes. Por precaução, havia arrancado o revólver das mãos dele e agora o trazia rente ao corpo.

Um disparo.

Não veio de mim.

Cruzou minha carne.

Serrou o peito ao meio.

Senti arder, menos pelo golpe e mais pelas mãos que puxaram o gatilho.

Olhei para trás, no rastro onde se encontrava Zélia, saindo do carro, com lágrimas nos olhos e arma em punho. Aqueles olhos que pude reconhecer no escuro, a sombra da menina tocada pela noite, a angústia de quem sempre assistira à valentia sem poder escolher um lado.

Filha de dona Cocota. Zélia. Minha amiga. A sombra que me enfiou uma bala no peito.

Não sei se foi por estar morto, mas quando a encarei, pude ouvir palavras na respiração dela que não diria com a língua nos dentes. Para que continuar o passado, podendo seguir em frente, reescrevendo nossa história? Antes de desabar o corpo, inútil, respondi apenas com um sorriso ensanguentado. O destino talvez fosse inevitável. Era a história se repetindo.

Nossos antepassados estavam ao meu redor quando desabei o corpo. Mantive meus dentes abertos e os olhos marejados. No meu último suspiro, cercado por todos os outros que carregavam o mesmo sobrenome.

X

Quando há esperança, os fantasmas cantam.

O que sou agora além de um corpo morto?

Não sei se ainda tenho carne ou se meu peito ainda sobe e desce. Estou me espalhando pelo chão e sinto que as lágrimas das minhas veias fogem como serpentes afugentadas pela terra, se embrenham no mato.

Zélia ainda chora. Treme com a arma em punho. Não a vejo, mas ouço os pensamentos soltos dela flutuando. Se não preciso de palavras para ouvir o peito dos homens, então agora sou qualquer coisa menos um corpo vivo.

Ela foge, corre para longe, a passos largos, ofegam os pulmões carbonizados. Somos três. Três crianças jogadas na lama. Cruzadas numa história que não começou a ser contada por nós.

Não estou só. Além do corpo frágil de Osório, sei que os mortos seguram minhas mãos, sei que cantam comigo. Que a imagem de painho abençoa minha testa com um beijo de lábio seco. E agora ouço como a lua canta também, como o choro singelo dói o ouvido daqueles que também compartilham da mesma dor.

Vivo minhas lembranças em espirais. A infância, Osório, Zélia, a morte da lua e meu desejo de ser enterrado em uma cova rasa debaixo das estrelas. Os mortos continuam a prece, a lua chora, e minha vida se despede com o vento. Mas antes que eu possa fechar os olhos, vejo como o ídolo de prata cresce e se expande como se estivesse prestes a me abraçar.

Não. Não está crescendo. Está caindo.

Antes que o estrondo desmanche a serra e levante poeira por toda a cidade, ouço o choro de Zélia, a menina frente à lama, vendo como os homens flertam com a morte e como as histórias sempre se repetem.

Ela. A filha de dona Cocota. Minha amiga. A sombra que me pôs uma bala no peito e por toda vida guardou entre os dentes a verdade sobre painho, agora grita. Implora pelo perdão da mãe, afrouxa as cordas e despenca a lua.

O estrondo engole a serra e os gritos dos curiosos em suas casas; ouço a voz desembestada dos fantasmas crescendo. Antes de morrer, vejo aqueles olhos em brasa uma última vez e sorrio, porque sei que comecei a escrever uma história que só ela poderia terminar. Enquanto fecho os olhos, finalmente como um animal cansado, Zélia revela ao nosso mundo a voz de todos que foram enterrados debaixo das noites suicidas.

Talvez Serra Minguante afunde na lama, talvez simbolize um novo tempo de mudança. Uma criança que esteja vendo a lua cair agora, o que vai pensar? Nos tornaremos monstros desta terra? Seremos violentos, abomináveis ou revolucionários?

Zélia, consegue me ouvir? Galego?

Esta é a morte?

O estrondo da lua corre pela cidade como uma grande serpente. Nossas vozes estão invadindo as casas, contando histórias, revelando toda a sujeira debaixo do tapete, cada ossada pobre. Os fantasmas estão gritando, ganhando voz no choro da lua.

Painho, plantamos uma semente que não veremos nascer. Estamos por toda parte, e não há como cobrir os ouvidos para essa voz. Talvez agora eles nos ouçam.

 

FIM

A foto quadrada mostra um homem de pele branca e cabelos morenos encaracolados e cortados curtos. Ele também usa ósculos, está sorrindo e com uma camiseta preta, sentando numa mesa com as mãos apoiadas sobre o tampo.. Ao fundo, é possível ver uma grade redonda diante de uma folhagem.

Estudante de cinema, roteirista, escritor e produtor cultural, busco contar histórias sobre a realidade na boca quente dos fantasmas e em tudo que há de mágico e surreal dentro do nosso cotidiano fantástico. Organizador da Antologia Farras Fantásticas e outros projetos.

Sérgio Motta é designer, escritor e amante de café. Nascido e criado na periferia de São Paulo, a cidade, cheia de fantasias, caos, diversões e diversidades é sua musa. Já publicou “Ciberbochicho”, pela Revista Mafagafo, onde hoje também é editor, “Spider”, pela revista estadunidense Strange Horizons e “Aline na Avenida das Paulistas”, uma releitura de “Alice” pela avenida mais famosa de São Paulo. Também é criador do portal Resistência Afroliterária e editor-chefe da Revista Afroliterária. É dono do Machadinho, autor dos maiores clássicos da literatura canina.

A foto quadrada mostra um homem de pele negra, cabelos morenos em dreads, e cavanhaque também moreno. Ele usa um óculos com armação grossa e uma camisa vinho, e olha ligeiramente para o lado.
Foto de Rafael Ferreira
A foto quadrada mostra uma mulher branca, de cabelos morenos e cortados na altura do ombro, meio bagunçados. Ela está sorrindo levemente e tem a mão estendida na direção da câmera, com os olhos fechados. Ao fundo, que é bem desfocado, é possível ver as luzes urbanas de uma avenida.

Jana Bianchi é escritora, tradutora, editora na revista Mafagafo e cohostess do Curta Ficção. Em português, além de Lobo de rua (2016), publicou diversos contos em revistas e coletâneas. Em  inglês, tem ou terá textos publicados nas revistas Strange Horizons, Clarkesworld e Fireside. É aluna da turma de 2021 do workshop de escrita Clarion West. Jana mora no interior de São Paulo com os pais, duas cachorras e suas várias tatuagens animadas.

Lorrane Fortunato é escritora, revisora e criadora do Resistência Afroliterária, um portal focado em divulgar livros escritos por pessoas negras. É autora de “A rota que me levou a você” e “As promessas que você me fez”. Também participa das coletâneas “Confetes e serpentinas”, com “As fantasias que eu criei de você” e de “Flores ao mar” com “Lírio”, todos publicados na Amazon

A foto quadrada mostra uma mulher de pele negra, sorrindo, com os braços apoiados sobre uma cerca. Ela tem os cabelos morenos trançados, e usa uma bata estampada em tons de laranja e amarelo. Ela também usa um colar com pedras azuis, maquiagem leve, e sorri, olhando para a câmera.
A ilustração quadrada, desenhada no mesmo estilo da capa, mostra uma homem branco de cabelos castanhos curtos e arrepiados para cima. Ele está olhando para frente, mas com os olhos meio desviados. Ele veste uma camisa de um cor-de-rosa queimado, meio pastel, com um padrão vegetal verde, e óculos de grau com armação clássica estilo Ray Ban. O fundo é de um verde queimado, meio pastel, com um padrão vegetal rosa.

Dante Luiz é ilustrador, quadrinista e escreve nas horas vagas, além de trabalhar como diretor de arte da revista anglófona Strange Horizons. É o desenhista da graphic novel Crema, que será lançada em 2022 pela Dark Horse, editor da antologia As artes mágicas do Ignoto, e capista de diversas ilustrações nacionais. Mora em uma casa que mais parece um antiquário com sua esposa e pilhas intermináveis de trabalho por fazer.