A capa, em tons de verde e laranja/coral, mostra várias capivaras andando em meio a um alagamento. Há bandeirinhas vermelhas indicando uma festa popular e, flutuando na água, detritos e folhagens. O título da revista, Mafagafo, está no alto da capa, em verde claro. Logo acima, o crédito da ilustração: Daniela Viçosa. Ao lado esquerdo, o selinho com o logo da Mafagafo e a informação de que essa é a edição de novembro de 2022, temporada 5. O título da história, Dia de Santo Reis, vai logo abaixo do nome da revista, também em verde claro. Na parte debaixo da capa, as informações de que a noveleta foi escrita por Morana Violeta e editada por Fernanda Castro.

17.000 palavras | Aproximadamente 1h20min de leitura

Capítulo 1

Cai a noite

Quando se pensa num evento desses, o que vem à mente é que aparece muito gringo, muita gente de fora, mas não é nada disso, não. O dinheiro vem todo daqui. Seu avô reclama, ano após ano, que muita gente poderia pagar o que deve a ele se os caloteiros não apostassem nas rinhas.

Ao lado do carro, estacionado diante da loja de chocolate, você e sua avó olham para o céu. Você acompanha o olhar dela buscando nuvens, procurando vento. Ao ajeitar a manga da blusa, você tenta esconder uma careta de dor, depois suspira de alívio e se volta para o céu ao constatar que ninguém percebeu. Sua avó não se convence, mas o céu está limpo e parado. Ela não notou seus movimentos, ou fingiu não ter notado. Continua buscando nuvens de chuva que possam chegar a vocês e, só então, verificando que o céu está completamente limpo, se dá por satisfeita. Ela aproveita para olhar o relógio de pulso: deve estar calculando por quantas horas vocês três vão precisar ficar fora de casa.

— Não vai chover mais — determina seu avô. — E passou no jornal que amanhã faz sol.

Você volta até o carro para pegar um livro largado no banco do carona. Boceja, resmunga porque bocejou.

— Tente ir embora com a gente. Você nem aguenta de sono depois de virar a noite na rua… — sua avó insiste. A voz dela não é gentil, é quase uma ordem, mas você e ela sabem que isso é inútil.

Seu medo é do final da frase. Medo de ela continuar o que iria dizer, um medo que te faz apertar o livro e sair do carro devagar. O final da frase não vem, e você se sente mal pela sensação de alívio que dura até a culpa chegar. Mal sabe ela da missa a metade.

Você não dormiu porque passou a noite em vigília buscando capivara, e, chovendo o dia inteiro, sua avó não podia te deixar dormir depois do amanhecer. Precisa respeitar a chuva, tomar cuidado com relâmpago, inundação e aquele barranco atrás da casa. Ela não teria paz se você fizesse diferente. E você não dormiria bem com o barulho da água na janela, o vento fazendo os vidros tremerem, a única luz vindo dos relâmpagos.

Olhar para as barraquinhas e a igreja faz seu estômago dar um nó. É para lá que você vai voltar e fingir que nada aconteceu? Que não tem medo? E a vontade de fugir? Você morde o lábio para se forçar a engolir o choro, mas logo para, ou vai chamar atenção. Com o dorso da mão, coça os olhos para afastar o sono ainda à espreita. É mais fácil olhar para o chão. O machucado que você ganhou na noite anterior incomoda, ainda mal começou a cicatrizar, mas pelo menos é fácil de esconder. Você evita olhar as plaquinhas coladas na rua falando de missa de finados.

— Ligue quando for embora, vamos pegar umas coisas de comer e ir pra casa, mas a gente te espera se você quiser.

— Qualquer coisa eu ligo.

Um último beijo na sua vó, no qual ela não repara porque está resmungando sobre a roupa que você está usando. Talvez amassada, talvez chamativa ou completamente inapropriada para ir a uma festa religiosa. Sempre tem um motivo. Você dá um sorriso cansado e segue em direção à igreja.

Nada parece diferente nesta ladeira. E, não fossem as barraquinhas, você e o corte no braço, não daria para perceber que hoje é um dia diferente de qualquer outro. É fácil se perder no tempo num lugar como este.

Ontem mesmo você se sentou com o pessoal de sempre na praça de sempre, uma das que formam o centro da cidade. E agora está voltando para fazer praticamente a mesma coisa. Tem aquela praça onde fica o coreto, os brinquedos de criança, os vendedores de churros e algodão-doce, mais todos aqueles barzinhos e restaurantes com mesas no meio da rua atrapalhando o trânsito. Você está na outra praça (porque sempre há duas, sempre), aquela aos pés da Igreja Matriz de N. Sra. da Glória — mas podia ser de N. Sra. Santana, N. Sra. da Conceição ou qualquer outro santo. São duas praças e a cidade existindo ali no meio, não tem erro.

Ninguém que estava sentado com você nos degraus da igreja matriz tinha ido rezar; aquele espaço é onde o pessoal se reúne. E você só pode imaginar quantas pessoas já compraram garrafões de vinho no supermercado no final da rua ou na padaria aos pés da ladeira e pararam para beber sob o beiral da igreja. O horário, entretanto, diz diferente. Às seis horas de um sábado, o movimento subindo a praça é uma procissão de rostos conhecidos entrando na igreja matriz. Ou de pessoas carregando caixas enquanto reclamam de ter esquecido algo importante na base da ladeira.

As barraquinhas da festa de Entregue de Reis foram todas acesas ontem, apertadas umas contra as outras, com latas penduradas na frente e faixas de plástico de propaganda de cerveja as enrolando de cima a baixo. Nenhuma marca ou rasgado da confusão do ano anterior nas estruturas de metal. A chuva pode lavar a lama e o sangue, mas as estruturas precisam de reparos de verdade, ou ninguém poderá fingir normalidade no dia seguinte. E, mesmo fingindo, você se lembra de cada segundo.

Vai chover. Seu grupo segue espremido no canto da escadaria para não atrapalhar o caminho. É capaz de ficar bem cheio, mas é impossível prever nessa época do ano. Você até pegaria alguma coisa nas barraquinhas, mas algumas estão esperando a missa acabar antes de abrir. Você está com preguiça de descer a ladeira e arranjar algo na padaria, então melhor esperar. Os vendedores carregando isopor morro acima olham para o céu quando param para descansar, assim como espiam por cima das chapas enquanto adiantam os espetinhos.

Está quente. O suor já gruda na sua nuca, e você levanta a mão para coçar o pescoço onde as pontas do cabelo arranham sua pele.

— Vai chover — alguém comenta o óbvio.

Todo mundo sabe disso, mas falar que vai chover é sempre obrigatório numa roda de pessoas. E é naquela praça que você se reúne com todas as figurinhas carimbadas que se conhece numa cidade normal. Tem uma Amanda e uma Carol — mas nunca é só uma Carol, então tem uma Lina também. Uma Nanda que pode ser Fernanda ou Ananda ou Maria, mas todo mundo chama de Nanda. Tem Ju e a incógnita é a mesma, ela sempre foi Ju, exceto quando vocês eram crianças, aí era Juju. Thiago e Cris, que é Cristóvão, nome do pai, não Christiano ou Cristopher. Marina e Ana já entraram para a Missa de Santo Reis.

Cada um, pelo menos uma vez, olhou para o céu e confirmou a chegada iminente da chuva, completando a dança que outras pessoas também reconhecem e cujos passos também obedecem. Um ciclo de pessoas parando no caminho e girando à procura de nuvens, reconhecendo os feixes acinzentados e o azul opaco no céu.

Vocês chegaram cedo para matar o tempo com Marina e Ana até a missa começar, e teriam ficado até depois que acabasse o serviço conversando, não fosse a promessa de que o mundo logo cairia. Ao mesmo tempo, você espera a chuva, não por desejo, mas porque precisa dar fim a coisas inacabadas. Você e Cris estão de plantão esta noite.

— Tu e teu pai vão ficar hoje e amanhã pra festa do entregue, Thiago? — você pergunta, e as árvores fazem coro ao fundo.

— Ele quer, né? — Thiago suspira, os braços cruzados sobre a camiseta colorida de gola esgarçada. — Mandou meu irmão pra festa de Vassouras e vai me fazer ficar aqui.

— Tu vai trabalhar, Thiago, não é passeio, não — corrige Nanda.

— É — continua Lina. — Vai estar um movimento enorme, e tu vai ficar em pé até virar o dia vendendo cerveja pra voltar virado de carro com a estrada cheia de barranco caído. E nem sabe se o padre vai deixar vender bebida esse ano, sabe?

— O alvará da prefeitura tá pago. — Ele balança os ombros, uma aceitação tácita. — As barracas vão ficar na rua este ano. No pátio da igreja não vai poder.

O som de estalidos faz você procurar por marcas escuras no chão, mas é só Ju. O movimento de trocar o peso do corpo de um pé para o outro e o cadarço gigante do All Star tamborilando no asfalto. O guarda-chuva xadrez na mão dela combina com a camisa de flanela roubada da irmã.

— Mas fecham a rua em volta, não fecham? Não faz diferença se as barracas ficam dentro da igreja se a rua tá fechada. Eu também não ia querer ficar aqui. Lembra de quando aquelas capivaras arrebentaram o cercado e fugiram? Teve que amputar a perna do cara, a mordida não cicatrizava de jeito nenhum — ela diz. E sim, você lembra. — Vassouras não tem essas bizarrices de festa da capivara.

— Só chove. — Thiago olha para o céu pela segunda vez.

As nuvens pesadas, baixas, deixam o céu todo cinzento e manchado. O certo para um dia de verão seria o céu colorido se esparramando por mais de hora, quase dando tempo para quem saísse da missa encontrar o sol das almas.

As luzes penduradas em volta da igreja e nas barracas parecem mais amareladas com a escuridão, fracas em comparação aos relâmpagos. Você ouve pessoas brigando, querendo levar as mercadorias de volta para o carro.

— Alguém tem crédito no telefone? — Nanda quer saber.

— O meu tá só recebendo — você se desculpa.

A resposta é repetida mais algumas vezes, até que Carol estende um aparelho flip, daqueles de abrir.

— Meu pai deixou o dele comigo quando entrou na missa.

— Você vai pra casa agora? — alguém te pergunta.

— Ainda não. Tô de plantão.

A umidade é pesada e sufocante, o que ajuda a disfarçar o clima ruim que a menção ao seu trabalho provoca nos seus amigos. Falar do seu trabalho é receber em resposta os olhares enviesados que eles tentam disfarçar. Você se vira para Cris e imagina há quanto tempo ele aguenta aquilo. Ele está nessa há bem mais tempo que você.

Mas Cris não se importa, então você vai fazer o melhor para ignorar também. Podia ser pior: você não teria como se defender caso comentassem que a rinha é errada, ou que o motivo de você trabalhar no sítio e estar agora esperando a chuva é pura teimosia. Você nunca admitiria a verdade.

Amanda se afasta, vira o rosto e olha para o céu. Por hora, desistiu do assunto. Nanda está discando com pressa no celular que Carol emprestou, provavelmente errando um monte de números enquanto procura os botões certos. A luz que sai do celular é mais um clarão entre aqueles que se aproximam.

— Talvez os bichos nem subam o rio. — Cris dá risada do desespero de Nanda. Mas ela não acredita nele, porque essa é uma história que Nanda já conhece faz muito tempo.

A verdade é que você queria poder ir embora. Caso jogasse a moeda para cima, torceria para o resultado ser ir embora. Em momentos como este, a vontade é de nunca mais voltar. Assim como fez sua mãe — jogar o que tem numa mochila e cair no mundo, mesmo que o destino seja a cidade vizinha. Sem capivaras e igualmente chuvosa.

É o ciclo de cada ano — ter seca e ter chuva, olhar a beirada do rio esperando se vai alagar ou não. Um ciclo que piora do Dia de Reis até o de São Sebastião. Ninguém faz questão de descobrir o motivo dessa transformação; só se sabe que, com as chuvas fortes, aparecem umas capivaras diferentes pela várzea, mais fortes e ariscas. Mais propensas a avançar em pessoas perdidas na água, ajudando o rio a levar o que encontra pelo caminho. Só a lama fica para trás, pois o resto a correnteza leva, como se espera de qualquer enxurrada. Por isso, a chuva deve ser respeitada.

Mas, não querendo respeitar, a cidade tem esse costume que ninguém sabe quando começou. Provavelmente alguma festa colonizadora que passou dos limites em algum ponto e ficou assim. Quem teria tido, há muito tempo, a ideia de enfrentar uma capivara-demônio — e, pior, colocar duas delas para se enfrentar por diversão?

Quem vê as capivaras tomando sol não acredita que animais tão adoráveis e gorduchos possam ficar tão agressivos quando chove, imitando a precipitação e tentando tomar de volta o espaço que talvez fosse das capivaras muito tempo atrás.

— Tem capivara em morro? — pergunta Thiago. Nanda olha de cara feia para ele, como se aquela pergunta fosse uma indireta para a pressa dela. Ele levanta as mãos, rendido. — É uma dúvida de verdade.

— Só vi em beira de rio. Mas é aquilo, onde não é rio quando chove nessa cidade? — A resposta que você dá parece suficiente para Thiago, porque não há maior verdade que essa.

Os pingos, que caem discretos e escurecem o asfalto da rua, logo vão formar uma torrente capaz de prender vocês e as senhorinhas da missa. Por horas ilhados nesta praça.

— Eu que não fico aqui com aqueles bichos. — Carol se levanta, batendo a poeira grudada na camisa de flanela amarrada na cintura. — Ju, você vem?

Carol não espera a confirmação da irmã. As duas já estão prontas para ir embora. Num gesto repentino, Ju vira para você e coloca o celular na sua mão.

— Entrega pro meu pai quando ele sair?

Você disse a eles que estaria de plantão, não pode ir embora. Parece menos assustador ficar para entregar o celular do que para enfrentar capivaras. Você só não tem certeza se o celular vai se manter seco no saco plástico onde guarda o seu.

Nesse momento, o grupo se separa. Quem vai embora atravessa a rua e se abriga debaixo de uma marquise de loja. Thiago segue rumo à barraca. Você, Cris e Lina correm da escada onde estavam sentados até o beiral da igreja. Ficar na porta para fugir da chuva pega mal, pelo menos enquanto ela ainda está fraca. Não entrou para a missa, mas entrou para fugir da chuva? Não parece legal para você, entende?

As portas das lojas em volta da praça começam a baixar, adiantando o horário de fechamento para as sete. Até a padaria ficou com uma única porta aberta e uma tábua para conter a água.

Uma pena não terem se despedido, você e todo mundo. Mas, na correria, você sempre só percebe isso muito depois. Te falta esse costume de dizer adeus. É o tipo de coisa que pessoas que têm trabalhos perigosos fazem, não é? Tipo uma última oração. E você, com a cabeça toda errada, não vai nem na igreja, nem se despede dos outros. É pedir para morrer na solidão.

Não tem ninguém te esperando, e seus avós logo vão dormir, se já não estiverem dormindo. Vão estar quentinhos, em casa, esperando você chegar com algum doce da época, um espetinho de queijo e um saco grande de batata chips. Seu avô, com olhos inchados de tanto dormir no sofá, vai jurar que te esperou acordado, não importa a hora em que você chegue.

Mas hoje você mentiu, então não tem ninguém te esperando. Você pediu permissão para dormir na casa da Carol e da Ju, disse que os pais delas te levariam da igreja para casa. Fez até uma mochila com roupas, chinelo e escova de dentes. Some isso à omissão de não ter contado sobre capturar capivaras. Além de todos os problemas que a noite pode trazer, você sente uma sensação de culpa esmagadora. Mentir do jeito que tem feito é tão distante da pessoa correta que tenta ser, do que seus avós ensinaram… E, enquanto os borrifos da chuva chegam até você com o vento gelado, bate o arrependimento e a vontade de estar quente e com roupas secas, em casa, com uma cumbuca de vaca atolada nas mãos.

Já chove o suficiente para ver a água descendo com força pela praça. Os bueiros não vão demorar a entupir de folhas. É inevitável. O carro do irmão de Nanda termina de subir o morro já patinando quando chega até os seus amigos do outro lado da rua. Dá para ver os pneus fazendo força para vencer a correnteza, as calotas visíveis só pela metade imersas na água que sobe cada vez mais. O carro evita as barraquinhas montadas enquanto faz o contorno e desaparece ladeira abaixo.

— A missa tá acabando, né? Aí a gente entra na igreja. — Lina precisa forçar a voz acima do estouro dos trovões.

— Como você vai embora, Lina?

— Eu ia ficar com vocês, na verdade.

— Pra pegar capivara? — Sim, você está ciente de que falar isso parece ridículo, mas o perigo está aqui. E você não quer Lina sendo rebelde e se arriscando por nada. Você insiste para que ela vá embora. — Os pais de Carol e Ju podem te levar depois da missa.

— E como é que vocês vão pegar uma capivara só em duas pessoas? — ela insiste. — Melhor ter mais gente, pelo menos pra ficar de olho nos bueiros.

Lina já está quase gritando para se fazer ouvir sob o aguaceiro. Você olha por cima do ombro, tentando entender em que parte da missa o padre está, mas a voz rítmica e abafada lá de dentro não te alcança. Que diferença faz? Não dá para entender como alguém escolheria ficar ali podendo ficar em casa. Nem você sabe por que está ali, e olha que está recebendo dinheiro por isso.

Quando um grupo passa por você, caminhando tranquilamente na tempestade, você tem certeza de que ali não é o seu lugar. Não precisa de muito esforço para notar quem está entre eles.

— Com medo da chuva, é?

Poderia ser uma brincadeira, mas você lê como deboche. De quem vem, só pode ser deboche. Lina e Cris se viram para você, esperando sua reação, imaginando se vão precisar intervir caso você arranje confusão. Seus amigos já viram essa cena antes. Ah, já.

— Esse pessoal de fora vem pra cá achando que é Barretos. Faz rinha de bicho de rio e fica se achando campeão de rodeio — você fala.

Seus amigos têm de concordar com o seu resmungo. Aquele Jonas apareceu para ser uma pedra no seu sapato. Seu patrão ainda não esqueceu dos filhotes mortos que estavam sob seu cuidado. Seu João jura que foi veneno — e, se foi veneno, alguém colocou. Não adiantou explicar, mostrar que foi só aquela vez, pedir intercessão dos outros, apelar a qualquer lógica.

A mãe dos bichinhos também morreu logo depois, de infecção, mas o seu patrão não aceita que foi a infecção da mãe que passou para os filhotes. Jura que foi veneno, e que foi culpa sua. O que ele esperava que você fizesse? Nem se provasse a ração dos bichos você poderia ter prevenido qualquer coisa. A capivarinha doente, amuada e cheia de filhotes continuou aleitando e a ninhada inteira morreu. O que se podia fazer? Seu trabalho era tratar os bichos, avisar se algo estranho acontecesse, limpar curral, trocar água, serviço bruto. Seu João que pagasse um veterinário. Você disse isso para ele, Cris disse e mais gente também, porque as capivaras mortas não tinham nada a ver com você.

Não foi culpa sua, nem de Jonas. Mas, já que se Seu João pode te culpar por animais mortos que foram culpa dele, você bem que podia culpar o responsável original de toda aquela confusão.

A culpa de Jonas é não ter pagado o seu avô, ter dado um calote grande de um motor feito praticamente do zero, com muito tempo de serviço e zero dinheiro entrando, o que te obrigou a tomar algumas providências para não deixar dois idosos passarem necessidade. Mas isso não significa que você não tenha feito por onde…

Não com essa teimosia de pegar o primeiro emprego que apareceu, mesmo sendo perigoso. E, quando podia ter se demitido e acabado logo com isso para nunca mais ver uma capivara de perto na vida, você se deixou se responsabilizar por algo fora do seu controle — mas você nunca vai admitir o erro ou seus motivos tortos. Você diz para si que é questão de princípios, de limpar seu nome, mas quem sabe da história toda acha que foi pura burrice sua.

Tanta burrice que, na hora de pensar em quem merecia sua raiva, errou o alvo. Você já não gostava desse Jonas antes, quando era só o santo não batendo, mas não precisou de muito para desgostar de verdade. No fundo, não é difícil associar o sorriso fácil de Jonas à confusão em que você se encontra. Assumir que é culpa dele você estar aqui, no escuro e na chuva, para repor a capivara perdida ou ficar sem o salário para pagar o prejuízo.

O corpo sente a queda da temperatura, mesmo de calça. Você cruza os braços para não tremer. Tem que respeitar a chuva. O certo era estar dentro de casa, com as luzes apagadas, longe de tomada, torneira, celular e qualquer coisa metálica, mas esse não é o tipo de coisa que se explica para gente que acha que veio da cidade grande. Cresce com a gente, entende? Você sabe disso; Cris sabe, seus amigos sabem. É errado estar aqui neste aguaceiro. Nada na sua mochila te impediria de ficar igual a um bicho ensopado.

— Seu João vai te ligar quando chegar?

Você responde Cris com um sacudir dos ombros. Ele não parece nervoso, e você não sabe se isso é bom ou ruim. A caminhonete branca vai passar na rua lá embaixo e vocês dois, três com Lina, sairão correndo ladeira abaixo para pegar os materiais de caça. É isso. Ligar seria uma gentileza que seu João não faria, não quando espera os dois de prontidão a hora que ele quiser. Pelo menos não enquanto uma nova capivara não for capturada e levada para o cercado. Entrar na igreja foi uma mentira que você contou para se enganar, para sonhar com um lugar seco e menos gelado que esse beiral.

A rua já está alagada o suficiente, e só passou uma hora de chuva. A esperança é que as barraquinhas para a festa de Entrega de Reis fiquem no lugar e não tombem com o peso da água. Alguma coisa precisa sobreviver, se manter firme.

— Quanto vai chover esta noite? — Cris puxa assunto.

— Não quis nem olhar.

Não é um fora, mas saber quantos milímetros de água vão cair não torna o trabalho mais fácil, certo? Cris estava tentando te distrair e você de grosseria, mas é impossível não se sentir no limite. Dá uma certa inveja ver como ele fica tranquilo sabendo que vai lidar com aqueles monstros em breve. Você não sabe como ele consegue. Imagina que seja o costume, por isso não adianta pensar muito… Jonas já está lá embaixo, na rua, e a água já bate nas canelas dele. Foi fácil notá-lo mesmo na chuva cada vez mais e mais forte. A forma que ele age, displicente, divertida, parece pedir um acidente. Mas que diferença faz? Se a tampa do bueiro subir, você cai. Se tiver ressalto, você cai. O risco independe da quantidade de chuva. Os monstros vão chegar e correr em disparada sem destino, destruindo o que estiver pela frente.

Cris te cutuca, e Lina te olha ansiosamente. A caminhonete está terminando de passar lá embaixo, e vocês terão de correr enquanto o carro vai até o final da rua mais próxima e volta pela de cima. Seu João vai estar cheio de ordens. Você coça a testa e esparrama a franja só de pensar. Lina conta até três, e vocês correm chuva abaixo.

Que seus pés sejam firmes esta noite.

Não demora para seu cabelo grudar e colar no rosto. Mexer os braços é estranho, a água pesa as roupas e atrapalha os movimentos. Não há um pedaço seco em vocês três. Uma pena as meias molhadas. Nada é mais terrível num dia de chuva. É como se você nunca fosse se secar de novo na vida.

Saindo da ladeira da Igreja, vocês prestam atenção em qualquer movimento estranho na água, qualquer ondulação alta demais. E, mesmo que não estivessem no meio de uma chuva torrencial, rua é rua, e vocês três olham para os dois lados antes de atravessar. Os postes são inúteis, proporcionando apenas uma claridade borrada.

A pergunta de quanto tempo leva para as capivaras chegarem ali, se a água estiver alta o bastante, martela na sua cabeça. O rio é longe do centro, você acha. As ruas estreitas e de mão única fazem parecer um percurso bem maior do que a distância real. Só carro respeita a mão. A sua pergunta segue sem resposta, como se não bastasse toda a água caindo. Era melhor ter perguntado antes. A distância de quatro quilômetros do rio para o centro vai ser percorrida em minutos pelas capivaras, e você ainda não sente o corpo pronto.

Ai, as capivaras. Tão fofas e dóceis deitadas ao sol, com passarinhos lhes comendo os carrapatos… mas não na chuva e nas rinhas. Tem umas que são diferentes e aparecem aos montes na época de temporal, vindo junto com a cheia do rio e invadindo o que quer que a enchente alcance. Passeiam com a correnteza, e não sobra nenhuma depois que a água vai embora. Você dificilmente vai ver uma dessas nas margens ou junto das suas versões fofas e roliças num dia de sol.

Essas a gente chama de capivaras-demônio, possivelmente porque vêm à noite para causar destruição. Tempestuosas como a água, avançando no que vier pela frente.

E, apesar do perigo, você e tantas outras pessoas aproveitam o período das festas de Santo Reis para capturar esses monstros, colocá-los em cercados fortes, alimentá-los e deixá-los prontos para serem instigados uns contra os outros em rinhas.

Você só imagina o estrago, só imagina como ficou a perna que precisou ser amputada e a sensação dos dentes fincando na carne e estraçalhado tudo.

Você até treinou fechar o punho de forma satisfatória, e repassou na mente onde podia atacar o bicho para doer. Sempre tentar ferir o focinho primeiro, você recita. Para os outros que estão correndo com você, isso pode soar como uma oração. Mais tarde, é capaz de você ficar triste por não ter rezado um Pai-nosso, só por lembrança dos seus avós.

Seu João nem do carro saiu, apenas entregou as chaves da caçamba para Cris após desligar o motor. Ele ignora Lina e resmunga para o chão:

— É só pegar um bicho e acabar logo com isso. — Levanta o rosto e grita para você: — A caçamba vai ficar encostada. Joga o bicho lá quando acabar.

É hora de seguir Cris, porque, apesar das aparências, você ainda não se sente confiante no que precisa fazer. Você continua imóvel com Lina do lado enquanto Cris pega as armadilhas e a rede na caminhonete. Sua sorte é que ele está acostumado com o trabalho. Você deseja poder ouvi-lo ou conseguir ver a expressão no rosto dele para se tranquilizar, mas a chuva não deixa. Até olhar para frente é difícil, e você o segue com o olhar antes de abaixar o rosto para se proteger da água. Não era para você estar aqui.

Aquela capivara morta e os filhotes ficaram na sua conta, e assim vão ficar. Seu João já tinha esperado e feito sua cabeça desde meados do ano passado. Sua responsabilidade, sua culpa, seu salário.

— Sabe quanto custa uma dessas, criatura? E os filhotes junto?

Mais do que você pode pagar, é o que se repete na sua cabeça, mais do que você pode pagar.

Te disseram que capturar capivara não tem muito segredo: é se amarrar no poste e esperar que a bicha entre na armadilha. Depois de presa, deve ser imobilizada com cuidado e levada embora. A capivara precisa estar inteira, ou não serve. Não é incomum que na época de chuva capturem animais jovens e soltem os mais velhos e machucados.

Não há muita conversa e nenhum aviso de seu João quando Cris lhe devolve as chaves. A partida da caminhonete provoca uma onda que ensopa seus joelhos. Mais essa agora. Você ouve alguém soltar um palavrão. Cris te entrega a rede e te dá um tapinha motivador no ombro antes de amarrar sua cintura com a corda, depois a dele e a de Lina por último. Ele vai na frente. Quer manter vocês por perto, então puxa a corda para mostrar que devem chamá-lo caso vejam alguma coisa.

Não há sinal dos monstros sob a chuva torrencial. Não tem som de nada, só o abafado. Fosse um pouco mais cedo, algum carro de som estaria passando anunciando as promoções do supermercado e idosos estariam rodeados de pombos. Os cachorros também sumiram todos e, mesmo se latissem, seria impossível ouvir.

Cris ergueu três dedos e apontou cada um dos lugares. Vão ser três armadilhas entre a rua e a loja de roupas da transversal. Não parece tão difícil como parecia há pouco. As armadilhas vão ficar perto, e você conhece a rua até de olhos fechados. Vai dar certo. Você acredita.

Essa parte é mecânica, rotineira: você já fez isso antes, mas não com um animal durante a chuva. As armadilhas vão ficar montadas no chão, um laço aberto e feito para ficar preso entre as folhagens, mas estas são adaptadas com uma armação que suporta a chuva, feitas para serem amarradas nos postes. Seu papel vai ser jogar a rede sobre a capivara presa e ajudar a imobilizar o bicho.

Talvez demore, talvez não, mas o frio que entrou sob a pele te faz tiritar até perder a força. Você junta o cabelo e tenta amarrá-lo para tirar todos os fios que estão agarrados no pescoço e na testa. Lina também desistiu de manter a faixa de cabelo no lugar e amarrou o cabelo pesado de água.

Você odeia esperar. Quem não odeia?

Precisavam ficar os três de pé, perto dos postes, amarrados uns aos outros sem nem poder se sentar? Os olhos de Lina passeiam pela rua, Cris estala os dedos para passar o tempo e você remói o porquê de estar ali, morrendo de frio, mentindo para seus avós e sem opção. Que Jonas esteja bem feliz e cheio de capivaras na rua que escolheu. Para alguma coisa o seu sofrimento deve valer, então que o nojento aproveite.

Não é fácil perdoar pequenas coisas que se acumulam: elas crescem dentro de você. São necessários motivos para lutar contra essas coisas, e você não tem nenhum. Pensa em quanto tempo demorou até perder o medo das capivaras. Em como seu desespero te colocou numa posição na qual você precisou escolher entre a penúria e os monstros de pesadelo. Você se acalmou, amainou o ânimo, disse para si que ficaria em segurança, que não era para fazer tempestade em copo d’água.

Sua rotina no sítio do seu João é cheia de cuidados. Mesmo depois de quase um ano de serviço, você mantém o passo a passo cheio de cautela: só entrar no cercado com as capivaras bem presas na baia, checar tudo duas vezes, nunca chegar muito perto. E ninguém te estranha por isso: no fundo, o seu medo é igual ao de todo mundo que trabalha lá.

É difícil enxergar as horas na torre da igreja. Seria necessária uma visão de X-Mem. A rua não tem nenhum relógio; tirar seu celular enrolado em plástico de dentro da calça não é uma opção, porque você nem terminou de pagar as prestações.

No escuro, com as águas deslizando na direção dos bueiros, enxergar mais que um palmo à frente também é difícil. Você não quer surpresas quando as capivaras chegarem.

— Elas criam uma ondulação na água quando andam. Dá pra notar a diferença. Sabe carro? É igual. É o mesmo movimento, vários carros pequenos empurrando água. — Cris te disse outro dia, tentando tranquilizar você.

A vontade é de se abaixar e ficar imóvel, mas não é o ideal. Firme os pés ou elas vão atacar. O perigo é inevitável, e Cris te disse que é melhor se defender estando de pé.

Quando as marolas começam, Cris puxa a corda que te prende para que você note o movimento. Enquanto a chuva cai, ondas cortam a superfície e vêm descendo a rua. Ficam mais nítidas quando mais de uma se aproxima, os desenhos das marolas visíveis sob a luz embaçada do poste.

É rápido quando o grupo de capivaras passa da luz para a penumbra entre os postes. Num piscar de olhos, estarão do seu lado. Você tenta imaginar o que te ensinaram a fazer, repete que precisa acertar em algum lugar sensível. Tenta abrir e fechar o punho até que vire um reflexo.

Graças a Deus! Nenhuma vai na sua direção, mas estão ali do seu lado e são muitas, mais do que você imaginou a princípio. A água, que antes estava na altura das canelas, sobe até acima dos joelhos. Ondas alcançam você e fazem o carro estacionado que te separa das capivaras parecer uma folha de papel, algo que pode ser facilmente ignorado.

Dá vontade de ter uma câmera para tirar foto do contraste entre a luz do relâmpago, o escuro da água corrente e o movimento dos animais. Seria bom se você estivesse em outra situação e não sentisse que precisa rezar.

Seu coração está disparado, esperando que Cris dê o sinal e a caçada termine. Suas mãos estão trêmulas, e não dá para saber se é de frio ou de medo. Cris se abraça ao poste para ter firmeza, como se também estivesse assustado. Era de se esperar que alguém tivesse certeza do que está fazendo…

— Eu vou te amarrar no poste sozinha e tu espera a gente! — Você tem medo de que seu grito tenha se perdido na chuva, mas Lina confirma com a cabeça. Você espera que ela fique ali em segurança.

Não dá mais para correr com a água alta assim. É ir patinando até as armadilhas para jogar a rede. A mais próxima do poste onde Lina ficou amarrada está vazia. Quer dizer, parece vazia olhando à distância, sem movimento da água indicando alguma coisa presa, mas você ainda tem dúvida se está vendo certo. Você não tem experiência; vai que pegou uma filhote ali? Filhotes são caros, amansáveis… Ao mesmo tempo, você não quer insistir, preferia ir embora. Aguentar o temporal tem limite. Se as armadilhas continuarem vazias, vai ser um dia de trabalho perdido e a chance de uma semana de febre. Mas a ideia de não precisar enfrentar nada te causa alívio mesmo assim.

Cris está mais à frente. Ele se adiantou, já jogando outra rede na segunda armadilha. Essa não afunda como a anterior. Vocês conseguiram alguma coisa. Parece maior que um filhote, mas jovem o suficiente para valer bastante. Você já pode ir embora. Cris parece sorrir, deve pensar igual. Vocês vão pendurar o bichinho no seco e esperar o carro voltar.

O animal só quer voltar para casa, assim como você. Mas, diferente de você, a rua inundada pertence a ele — primeiro ao rio e depois às capivaras. Suas expectativas para a noite são problema seu. E nem capivara, nem chuva existem para satisfazer seu desejo. São bem mais ferozes do que você consegue imaginar, e Cris poderia dar conta sozinho.

É então que tudo dá errado, mas você só percebe depois. A rede não é forte o suficiente para imobilizar um animal desse tamanho, você não é forte o suficiente para mantê-lo preso ou mesmo servir de ajuda. Você tem medo de se aproximar, seus movimentos são contidos, já prevendo a fúria do animal. É o tempo de você ajoelhar e tentar desequilibrar a capivara que ela se solta e finca os dentes em você, uma e outra vez. Só um aviso de que você está no lugar errado.

— Eu falei pra não se abaixar — ralha Cris.

Não dá para sentir o sangue descendo pelo braço, a água não deixa. Na sua memória, não houve tempo para que ela rasgasse mais que um arranhão no braço, mas arde como um corte feio. Você nunca quis tanto um teto sobre a cabeça e um lugar seco, meias secas. O sangue escorrendo do seu braço é um sinal para ir embora. Depois de solta, a capivara-demônio some, descendo a rua. Os olhos de Lina ficam arregalados, gigantes em sua direção, e você já ultrapassou seu limite.

Mas desde quando se respeita limite?

Você já ultrapassou seu limite quando você começou a trabalhar tratando das capivaras, mesmo seus avós sendo contra. É um emprego perigoso, cansativo, e você se pergunta todos os dias se o dinheiro vale a pena. Agora essa preocupação parece besteira, porque seu braço dilacerado é mais do que você pode aguentar.

Você tenta ser razoável e pensa que poderia ter sido pior, e vai ser pior caso você não tome cuidado. E vai infeccionar se você não arranjar alguém que dê pontos bem depressa. Ou você vai ter coragem de aparecer no único pronto-socorro da cidade? Sua cabeça está confusa. A tentação de ir atrás da capivara é grande. Por que não acabar logo com isso?

Seus passos ficam lentos depois de horas na chuva. Você não sabia que era possível tanto cansaço.

— A gente devia ir atrás dela — você sugere.

— E deixar Lina pra trás? Não. Logo outro bicho aparece. Não precisa ser aquele. — Cris te impede de continuar, e você só para porque ele te puxa pelo braço ruim.

— E se não vier? Aquela ainda devia ser quase filhote, ia ser aquela e pronto.

— Não ia, não.

Segure a vontade de chorar. Segure até chegar em casa, ou pode ser perigoso. Respire fundo, uma e outra vez.

— Se a gente não pegar uma hoje, vamos ter que voltar depois. E eu não quero nunca mais voltar pra chuva.

Capítulo 2

Por enquanto

A chuva te deu um corte no ombro e um dia virado, mas, olhando a ladeira iluminada agora, você consegue se enganar e dizer que há algo de bom naquela festa. Pelo menos pode se distrair com cerveja em promoção. Desejos simples, vivendo um dia de cada vez, aproveitando o que dá.

Sua avó se aproxima para te dar um beijo de despedida e você leva um susto — é medo porque fez coisa errada. Você estava pensando nos próprios erros, e sua avó te despertou da lembrança deles. Ela envolve sua cintura com o braço e põe dinheiro no seu bolso. Você já sabe que é dinheiro antes de apalpar os vinte reais.

— Pra você voltar pra casa de táxi se não nos encontrar. Teimosia de não querer voltar com a gente, viu?

— Posso gastar com cerveja?

— Não pode — intervém seu avô.

— E se gastar, vai embora com a gente. Perigoso ir pra casa trocando as pernas. Se eu não vou beber, você também não bebe. Celular carregado?

— Ligo quando estiver indo pra casa. Tá todo mundo me esperando. — Eles só se dão por satisfeitos com beijos de despedida e promessas que você vai ligar às nove em ponto, uma afirmação que você repete pela última vez já atravessando a rua: — Nove horas! Não atraso, não!

O morro que você subiu debaixo de chuva ontem já está completamente seco. Te faz pensar que tudo o que foi quebrado está escondido, igual seu corte com os pontos frescos que o enfermeiro precisou costurar no hospital sem ninguém saber. Os montes de folhas molhadas junto à calçada são pequenas armadilhas escorregadias, praticamente os únicos resquícios da noite passada.

As barraquinhas estão cheias. Hoje não tem espaço para se sentar na escada da igreja como tinha ontem. A sensação de estar debaixo da chuva morrendo de medo surge do nada. Você sabe que a claridade é falsa, pois não resiste à tempestade. Seus olhos procuram a padaria ainda aberta, já calculando o tempo de correr até lá caso necessário.

Voltar para casa cedo pode não ser tão mau. A apresentação das folias não demora a começar, e seus avós devem ir embora logo depois. Dá para ficar no canto, procurar a barraca de Thiago, comprar uma cerveja e buscar um lugar para ver o movimento. Se não fosse Ana te chamando, você ainda estaria rodando pela praça.

— A próxima você paga — é o que ela diz quando coloca o latão na sua mão, mal te cumprimentando. — Viu quem tá aí?

— Fer não chegou? — você desconversa. — O livro dela tá comigo. E o celular do pai de Ju.

— É o livro das fadas? Pode me dar. Eu sou a próxima — diz Marina. — Gostou dele?

— Só posso falar desse livro com Fer do lado ou acabo contando tudo.

— Então deixa. Melhor não saber. Falo contigo só depois de terminar.

Marina desiste de guardar o livro na bolsa pequena e chama Ana para dar uma volta. Você vai junto, com Ana te puxando pelo braço, a lata quase escapando da mão, mas você não quer ir.

— É sério, não sei por que você não dá uma chance pro pobre. Tão bonito — Ana insiste, mas não é do feitio dela tentar convencer ninguém. Ela só não entende tudo o que se passa na sua cabeça e todos os motivos pelos quais você acredita que Jonas seja um entojo.

Sorte que Ana também é um doce e vai acreditar que, por ter se intrometido onde não devia, você vai querer um tempo. Você precisa de um pouco de solidão para esfriar a cabeça, ainda que por outros motivos. Prefere ficar na parte clara e movimentada das barracas. Queria entregar o celular de uma vez, mas isso vai acabar delatando seus planos de se esconder num canto. Você quer confirmar onde estão as rinhas — sempre na rua atrás da igreja — para manter distância. Melhor, para fingir que não existem. É por isso que você para na barraquinha de Thiago, compra uma promoção de três por dez e entrega a cerveja a Ana.

— Vou fazer companhia pra Thiago. Podem ir.

— E não vai nem aproveitar a festa? — Marina parece surpresa.

— Eu quero comer antes.

Elas não precisam saber que você está fugindo; seu sono é desculpa suficiente. Deixe que elas acreditem ser por outro motivo, deixe que Ana conte para Marina que chateou você falando de Jonas. As latas de cerveja ajudam a distrair, e ao mesmo tempo beber já valida sua socialização. Ninguém vai estranhar você sozinha ao lado da barraca de bebidas, tomando um latão e conversando ocasionalmente com o atendente. E, pelo visto, mais pessoas pensam como você e desejam escapar das rinhas, ficando na proteção das luzes e da sombra alta da igreja.

Que graça tem os animais em cercados sendo instigados a se machucar até os donos decidirem separar? Pessoas em volta gritando e fazendo apostas, excitadas com o drama e o perigo de uma delas escapar e avançar em todo mundo?

Lógico, você também faz parte disso, mas não diretamente — não de uma forma que te faça sentir remorso, ainda que tenha pesadelos às vezes. Você está longe, e seu envolvimento é o inevitável para alguém que mora em cidade pequena que faz dinheiro com a desgraça. Nas barraquinhas, por exemplo, você mal se lembra das capivaras, apesar dos guinchos que se misturam à música das caixas de som.

Você lembra de entregar o celular por acaso.

— Joga pra cá pelo balcão — responde Thiago.

— Não vai quebrar?

Ele faz que não com a cabeça. É um daqueles tijorolas, por isso você sente confiança em fazer o celular escorregar pelo apoio, o balcão de baixo que só Thiago alcança. Ele estica o braço para pegar o celular e o põe numa bolsa daquelas de tactel. Vocês dois riem da bagunça.

Para sua surpresa, alguém não chama Thiago, como o esperado, e sim você.

— Tu não trabalha hoje, trabalha? Agora de noite.

Você não reconhece a voz e se vira para responder meio a contragosto, meio forçando simpatia.

— Já tô de folga e só volto terça à tarde. Tô livre e não aguento mais ouvir falar de capivaras. Você não?

— Falar de trabalho o tempo todo enche o saco mesmo. Hoje, pelo menos, tá tranquilo. — Ele sai da marquise da barraquinha e olha para o céu. — Nem vai chover. Você não sente que a noite promete?

Você o encara, tentando entender o que ele vê, tentando não fazer uma expressão rude, tentando espantá-lo da barraca de Thiago, que lhe pertence, mas Jonas continua sorrindo.

— A gente faz o que dá — você diz. Uma afirmação que sai com incerteza e um balançar de ombros.

— É tomar cuidado e esperar pelo melhor. Eu gosto daqui, mesmo com a chuva e as capivaras. Não sei morar em cidade grande.

— Traz um espetinho pra mim — Thiago interrompe vocês. Interrompe Jonas, na verdade.

Você está bebericando da sua lata tranquilamente, esperando que ele desista de ficar perto pelo cansaço. Você deixa de se apoiar na barraca e sai buscando os espetinhos. E não é que Jonas vai atrás de você?

— Veio com a família? Com seus avós?

E ainda fica tentando puxar assunto!

— Eles estão assistindo o entregue. Tô com fome.

— O que você quer comer?

— Thiago quer pastel.

Ele precisa te seguir, mas não há dificuldade nenhuma nisso. O lugar está cheio o suficiente para seus passos serem lentos e Jonas não te perder de vista. E é claro que ele ainda precisa se aproximar do seu rosto quando vai dizer alguma coisa ou ouvir sua resposta. É muita atenção sobre você, que só queria se distrair e tomar latões de cerveja. O esforço em aparentar simpatia te incomoda tanto quanto a má companhia.

— Ele falou espetinho agora mesmo — diz Jonas, estranhando vocês pararem na fila da barraca de pastel.

— Thiago não come espetinho, só de queijo. Vai ser pastel, que não demora uma vida pra fritar e não tem uma fila gigante. Tá lotado pra lá. Vamos ficar nessa fila mesmo.

— A gente espera. Leva dois de volta. Tem coisa que vale a pena esperar, tipo comida de festa. Você vai beber mais?

— Por que quer saber?

— Pra eu pagar a comida do Thiago e ele me estornar em cerveja. — Foi um comentário estúpido, e você não esconde isso quando para seu gole na metade para franzir a testa. — Achei que seria mais fácil. Te disse, né? Hoje tô liberado das rinhas também.

— E seu pai não veio? — Rá! Olha você conversando. Você vira o rosto para frente e dá um passo, seguindo a fila.

— Seu João, seu chefe, ligou pra eu olhar as capivaras dele na rinha hoje, mas dei uma volta nele e mandei meu pai no lugar. Já não gosto de trabalhar pro meu pai, imagine pros outros. E não acho certo o que ele fez contigo, botar o preço da capivara nas suas costas sem motivo… — Jonas está admitindo algo, olhando para o chão. Todo mundo sabe e você fingia não notar. Jonas gostar de você é um segredo que ele não te contou, mas que todo mundo já percebeu.

— É uma droga. — O resmungo lhe escapa.

— Fico curioso pensando por que continuar trabalhando num lugar desses. Ninguém ia estranhar se você simplesmente tivesse caído fora. — Ninguém mesmo, então o que diabo você faz no sítio do seu João mesmo? Que sentimento idiota lhe cria a obrigação?

— Burrice — você responde a Jonas e aos próprios pensamentos, mas ele não te escuta, pede para repetir. Melhor assim. — Eu meto o pé quando arranjar outra coisa.

— O dinheiro é bom, apesar de tudo. E eu gosto da cidade. Talvez ano que vem eu consiga passar pra outra coisa e nunca mais veja uma capivara na vida, mas vou levando como dá. Gosto demais daqui. As pessoas são diferentes — diz ele. Você não está prestando atenção, mas percebe o pulso dele deslizando pelos seus ombros, a mão passando por você para entregar o dinheiro à atendente e depois pegar o troco. — Dois de carne com queijo, dois de queijo, um de pizza. O seu é qual? Eu pago dessa vez.

— Frango com queijo e um de queijo — você fala à atendente antes de se virar para Jonas, buscando uma privacidade impossível no espaço lotado. — Você tá fazendo isso tudo por que quer me beijar? Não o pastel, não, mas isso. Tá chegando perto demais pra quem não quer me beijar.

— Eu sou sutil igual granizo. — Ele não parece desconcertado. — Se você quiser…

— A gente só precisa fazer uma entrega. — Suas palavras são umedecidas com mais um gole de cerveja. — Depois é tranquilo.

Seus amigos, para quem você jura detestar Jonas, podem achar estranho que vocês fiquem, mas só a princípio. Eles só estranham porque você bateu o pé por tempo demais dizendo que ele não fazia o seu tipo. Quem poderia imaginar que você mudaria de ideia? Pecinhas poderão, ou não, se encaixar na sua cabeça e dar sentido a esta noite algum dia no futuro. Em sua defesa, quem recusaria beijar um homem bonito desses em dia de festa?

Talvez Jonas não acredite que você está falando a verdade, mesmo dizendo por aí que não escuta os boatos, e te dá um beijo de leve — só encosta os lábios no seu, garantindo o combinado. Da sua parte, você o puxa para perto com a mão livre — porque não, você não vai mudar de ideia sobre ele.

— Tô com fome — você sussurra contra os lábios dele. Prioridades.

— Bom que parece que não vai chover. Não tem nuvem nenhuma no céu. Se chovesse ia estragar tudo, igual ontem. Você estava aqui ontem? — Você entende o que ele quer dizer e assente. — Então você viu, foi uma tempestade de relâmpago assustadora. Eu até procurei notícia se teve tromba d’água na região. Aqui, não, mas teve no entorno, e o restante da chuva veio para cá. É muito coragem sua ter ficado na chuva que teve.

— Gostaria de esquecer esse tipo de coisa pelo máximo de tempo possível. — E então é você que o cala por um instante, unindo os lábios dos dois, mas não dá para ficar assim para sempre.

Ele te dá um último beijo de leve, sem julgar os seus motivos e aproveitando o seu desejo antes de voltar à conversa.

— Não dá muito pra fugir. Parece diferente aqui, domina a vida da gente. Acho que nunca tinha notado antes beira de rio ou altura da margem em toda minha vida. Nem se tinha capivaras por perto, ainda mais capivaras agressivas igual aqui — ele diz, e você ri, porque nada daquilo faz sentido.

— Fala sério que não tem enchente na cidade grande? — É deboche na sua voz, sem erro.

— Eu só nunca tinha medido o rio de olho antes e sabido se ele ia encher ou não, nunca me importei.

— Impossível! É o tipo de coisa que todo mundo sabe… Pra falar a verdade, é um superpoder que eu não tenho, mas consigo me manter a salvo. É tão difícil olhar a previsão do tempo, assim?

— É diferente! Eu nunca iria imaginar que teria ficado do jeito que ficou. Jurei que tinha sido uma tromba d’água. — Jonas começa a rir de si mesmo, porque é uma insistência ridícula. — Eu achei! A chuva e as capivaras arrastaram uns três carros mais pra cima da rua.

— Foi uma chuva normal. Choveu bastante, mas não vi bueiro entupido ou boca de lobo solta. Pra quem tá acostumado com temporal, você tá bem medroso. Fiquei aqui umas boas horas até quase arranjar uma capivara de uns trinta quilos pra levar. O bicho me abriu um corte no braço e fiquei com medo de ser sério, mas só. A capivara fugiu.

Os olhos dele crescem de espanto conforme a história se desenrola, como se ele estivesse revoltado com a situação. A forma como Jonas se preocupa é meio fofa, e você responde mais cordial, mais gentil:

— Foi só um arranhão.

— Você parece o tipo de pessoa que diria que é só um arranhão mesmo se o braço tivesse quebrado.

— Eu não estaria bebendo cerveja, estaria? Não com anti-inflamatório junto. Tu precisa confiar mais no meu julgamento.

— Gosto de gente decidida, assim, que sabe o que quer.

— A comida tá demorando, né?

— A fila tá enorme, mas a do espetinho também não tá andando. Muito inteligente, você. Eu teria seguido a fome e me dado mal. Sorte que te segui.

Não dá para se concentrar em Jonas flertando quando sua atenção está dividida entre ele e Marina e Gabi, que passam por trás dele e parecem muito surpresas pelo desenrolar da noite. Ele nota o movimento de seus ombros querendo dizer “depois explico” ou “é complicado”.

— Elas não vão gostar de te ver comigo?

Como explicar?

— Eu disse que só vinha dar uma volta, comer e ficar na barraca do pai de Thiago olhando a noite.

— Entendi. Fiz um certo esforço pra ser notado, foi minha culpa.

Você bebe mais, sem saber o que responder. Jonas se distrai olhando para a frente e você se pergunta se tem algum pelo na sua camiseta preta customizada. Foi Carol quem fez os bordados e costurou os decalques para salvar sua camiseta preta favorita — e novinha — de um ataque de ciúme do cachorro do sítio. Agora é uma camiseta preta de banda com uma fênix supercolorida no ombro, bordada a mão, e asas de paetês. Você morreria de vergonha se algum pelo tivesse ficado preso na blusa. Pessoas de quem você não gosta, mesmo as que você beija casualmente, não deveriam perceber seus deslizes. Você ajeita disfarçadamente a manga da camiseta.

— Frio? — Não era para Jonas ter reparado, mas já foi.

— Só um arrepio. — Ele não cai. — Tô com medo do bordado da manga arranhar meu machucado.

É o seu sorriso amarelo que faz dar certo dessa vez. Jonas nem repara que você olhou as duas mangas, não apenas a bordada, ou que seu machucado está mais próximo do cotovelo. Desde que ele não peça para ver o corte, sua mentira está a salvo. Mais uma na sua conta de maior trambique da cidade.

Ele te dá um beijo — e agora é você quem se distrai.

— Ficou pronto.

Você ouve a atendente gritando “oitenta e seis!”. Ela pega as duas sacolas grandes com pastel, o óleo já escorrendo no fundo da embalagem. Ele te beija de novo. Talvez Jonas saiba que você o detesta e quer mudar sua opinião beijando bem. Muito bem.

Vocês dois procuram um lugar tranquilo, e você tenta marcar as barraquinhas que pretende visitar com a sua avó no dia seguinte para comprar lembrancinhas, compotas caseiras e roupa barata. Você puxa o braço de Jonas quando ele está indo em direção às capivaras.

— Os brinquedos ficam pra lá — ele explica

— Não estamos meio velhos pra eles? — você insiste.

— Mas eu nunca fui com você.

— Que tal só se beijar igual pessoas normais e me deixar comer?

— Vou falar com seus avós sobre eles te deixarem passando fome.

— Parece que se eu durmo mal, como duas vezes mais. É assustador. Eu virei a noite na rua, ainda tô meio fora de mim. Só preciso descansar.

Você sente que Jonas gostaria de dizer alguma coisa, porque ele abre a boca para falar e muda de ideia. Se vocês pudessem só terminar os pastéis enquanto andam pelas barracas e procurar um lugar mais quieto…

É isso, não tem outro nome, é um momento de saciar fomes. De comer pastéis para a fome de comida, beijar para a fome de desejo, beber álcool e admirar as luzes para a de diversão. Rir um pouco enquanto se está entre o corpo quente e a parede fria de pedras por algo idiota e dar um beijo bom, daqueles que amolece o corpo. Podia ser Jonas, podia ser o irmão do Thiago. Não faz diferença, faz? Se há atração suficiente…

É ele quem lembra que vocês não entregaram o pastel de Thiago, ainda na sacola com o fundo cheio de gordura pendurada no seu braço.

— Espero que Thiago não se importe que atrasou.

A mão de Jonas sai do seu quadril e ajeita sua franja. A camisa dele está amassada igual antes, e o cabelo é curto demais para demonstrar qualquer sinal de que seus dedos passaram por ali.

— Ele vai xingar tanto a gente… — você continua.

— A gente podia fazer isso de novo. Repetir qualquer dia desses.

— A gente marca.

Mentira! Marcar como? Se você está fugindo das capivaras, se sair à noite parece assustador, se a cada gota te faz lembrar de garras e dentes rasgando o seu braço e te esperando na sombra? Você e Jonas juntos hoje é apenas um lapso de julgamento e uma distração bem-vinda.

A promessa de “a gente marca” fica no ar quando você explica que seu avô deve estar esperando na rua principal. Seus amigos e Jonas ficam para trás no badalar da meia-noite. O eco do sino marcando as horas se mistura ao toque esquisito do seu celular.

— Se divertiu bastante? — seu avô pergunta.

Os dois vieram te buscar; nenhum deles dorme sem te esperar ou segurar o sono o máximo possível. Você só acena com a cabeça. A mensagem de Marina diz “Vi você e Jonas”.

— E a comida? — É a vez da sua avó.

— Dois pastéis.

A segunda mensagem que você lê é de Gabi: “E eu achando que você tinha jurado odiar esse cara por toda eternidade, hein?”.

Capítulo 3

Primeiros erros

São Sebastião é o último dia da festa; o último dia em que as capivaras são legalmente capturadas, e seu último dia antes da falsa liberdade de esperar até o próximo ano. Você quase foi para a chuva outra vez, mas cada vez que olha a marca no seu braço que ainda não sarou de todo, você sente um certo calafrio. Mas essa é sua última chance, e você vai fazer um esforço.

Você trabalhou nos dias depois do incidente com uma distância zelosa das pessoas e dos animais do sítio, exceto do poodle grudento te servindo de talismã. O poodle, diferente das capivaras, não tem lado ruim, nem te dá o medo que você sente da chuva. Aquelas crias da tempestade são inigualáveis.

— Ainda fujo de vocês, desse buraco, dessa merda toda aqui. — Foi seu resmungo de final de expediente, olhando de canto para a capivara no último cercado. Você só não sabe muito bem para onde ir ou o que fazer no lugar.

Tirando essa nuvem cinza sobre a sua cabeça, os dias transcorreram com a fluidez de sempre. Não há nenhum interesse da sua parte em reparar que o céu está um azul enganoso, mesmo tendo que esperar no ponto de ônibus por bem mais de hora. Você não quer aproveitar o restinho de sol do dia colocando o rosto no vidro do ônibus.

Se chover, choveu. Você vai dizer que era para ser e aceitar. Não que você pense, em algum momento, em pedir ajuda. Desistir você também não vai. Quando conversou com seus avós sobre ir dormir nos seus amigos hoje, disse para si que estava finalmente arrancando um bandeide nojento e molhado de um machucado que precisava de ar. Talvez sua avó sinta que você precisa finalizar alguma coisa e, no fundo, esteja te desculpando pelas suas mentiras. Porque ela sabe, ela deve saber, ela sente essas coisas.

Você disse que dormiria na Lina porque parecia mais errado ainda envolver outros amigos na mentira. E porque acha que Lina não vai te dedurar para os seus avós, pelo seu próprio bem. Pelo menos é a última vez, você diz para si. As ruas escuras não te causam desconforto, nem a escuridão que vem com a chuva. Isso, não. Você conhece cada rua dessas até de olhos fechados, as duas principais e as paralelas que conectam as duas praças. Tanto que chega sem demorar até Cris, sem nem perceber já ter percorrido do ponto de ônibus até a Matriz.

Você já chega pegando as armadilhas, porque parece a parte mais fácil da caçada. Engole a tosse que apareceu de última hora e calcula quanto tempo tem enquanto os trovões se aproximam e as nuvens baixam. Cris está um pouco à frente, e você promete que não vai furar com ele de novo. Se fizerem uma captura, os dois ficam a salvo.

Um relâmpago explode às suas costas. Parece perto demais. A sensação de medo logo vai te cansar. Você mantém os olhos no chão, tentando fazer com que ninguém te perceba, apesar do moletom no calor de janeiro. Ainda dá tempo de tirar as folhas de alguns bueiros antes de a água cair de verdade. Qualquer coisa que passe segurança.

O badalar das sete horas, perdido nas primeiras gotas de chuva, faz você lembrar de rezar. Cris nota sua concentração e seus lábios se movendo. Ele te chacoalha.

— Tô bem — você consegue responder.

— Quer sentar pra esperar a rua ficar vazia?

Você assente, mas faz silêncio, quando o que queria era perguntar coisas. Alguma coisa. A loja de chocolates ainda está ali e vocês se sentam no banco em frente. A rua demora a esvaziar até sobrar vocês dois no escuro, com dois rolos de corda.

— Quando o pagamento cair, vou comprar uma daquelas trufas diamante. Acho que duas, uma pra mim e outra pro meu avô.

Cris começa a rir.

— Vai faltar pra conta de luz. Essas caixas são os olhos da cara.

O certo seria responder “é que talvez eu não coma nada gostoso assim por um bom tempo”, mas você se esquiva e dá de ombros.

Os roncos de trovão ficam mais esparsos. E é um bocado decepcionante que tudo acabe assim. Você ajeita o capuz na cabeça por medo de mostrar alguma fraqueza, as mãos dentro dos bolsos. O moletom molha e não te deixa sentir a chuva, mas logo o asfalto escurece e o moletom não é mais suficiente para te proteger. Involuntariamente, você começa a rir. A risada tem um motivo idiota, é parte desespero e parte felicidade. Uma centelhazinha de esperança te dizendo que vai acabar hoje e você nunca mais vai precisar ver uma capivara de perto.

Cris te dá um tapa na cabeça, uma última brincadeira antes de ficar sério.

— Vai ficar escuro bem rápido agora. A gente vai se amarrar separado e tentar ficar no alto. Tenta ficar longe. Te chamo quando precisar.

— Quero acabar logo com isso.

— Só segue o que eu digo e fica em segurança.

— É bancando o herói que alguém acaba mal…

Ele te xinga pelas costas. Vocês arrumam as armadilhas, mas você muda de ideia de última hora e desamarra uma delas, levando-a para cima do morro, achando mais fácil prender um animal no meio do impulso da descida ou fazendo força contracorrente para subir. A mochila nas suas costas, sem motivo além de apoiar sua mentir, vai ficar guardada no mesmo lugar onde você a esqueceu quinze dias atrás, entre o biombo e a porta da igreja. Só o celular fica contigo, enrolado em plástico. Seus olhos precisam de tempo para se acostumar à nave reluzente e ao altar. Está mais escuro lá dentro do que você imaginava. Você faz o sinal da cruz.

— Só precisa de uma — você murmura para a santa brilhando dourada no meio da escuridão.

Você ajeita o capuz na cabeça, como se ele te desse alguma proteção real. Fecha os olhos e dá o primeiro passo para fora, depois desce as escadarias sem pressa. Cris é quase um borrão debaixo do poste. E isso te faz rir.

Você vai comprar uma caixa gigante de chocolate quando o mês virar.

Seus passos podiam ser mais cuidadosos já que você não está descendo pela ladeira, e sim pela praça, apoiando em bancos e canteiros. A água não parece tanta enquanto escorre. Você escala os canteiros das árvores para alcançar um poste de luz elétrica na calçada, um feito de cimento. Um que não pareça prestes a cair.

Você amarra uma ponta da corda na cintura e a outra no poste. Os nós são bem qualquer coisa, mas a corda esticada é suficiente para você conseguir esperar embaixo de uma árvore enquanto mantém a ancoragem num poste firme. Parece uma ideia genial.

Desta vez, você jura que consegue ver o movimento das capivaras quando as primeiras aparecem, ou é a água que não está tão alta como naquela noite. Ela precisa subir, ou os bichos vão desviar dos aros. Um carro é empurrado, e, atrás do pneu, você vê uma delas dando um último impulso para amassar a lataria. Suas mãos verificam o nó da corda. Você procura por Cris, confere se os carros estacionados na direção dele foram empurrados. É fácil imaginar um acidente.

Você fica imóvel, esperando a última capivara passar, sem chamar atenção. As mãos apoiadas na terra, sujas de barro. Espera até ter certeza de que só existe a chuva antes de se mexer.

Escorregando até a beirada do canteiro, você firma os pés no chão e começa a andar. A correnteza não parecia tão alta. Óbvio que seu tênis está encharcado. Imagine nunca precisar comprar botas de plástico! Você enrola a corda atada à sua cintura no nó do poste e começa a patinar por entre os carros ao lado da calçada.

Olha para os dois lados da rua antes de atravessar.

A curiosidade faz você prestar atenção num dos carros empurrados. O amassado pegou a porta toda do carona, parando só no pneu. Você passa pelo veículo, e Cris está agachado ao lado dele, apoiado na roda. Cris sorri quando te vê. Você chuta água para cima dele.

— Agarrei no pneu quando a carroceria se mexeu. Foi ridículo, só consegui tirar as mãos dali agora.

Você ri junto e aproveita para se abrigar junto ao veículo. Não tem mais o que fazer. Cris passa a mão pelas rodas uma e outra vez, pensando, mas não demora muito e ele já se deu por vencido. Cris não consegue segurar a notícia ruim.

— Preciso te contar uma coisa… perdi a rede na água. — ele diz, os olhos arregalados cheios de explicações. — Quando segurei no carro, a correnteza puxou, foi embora. Foi mal. Ou eu segurava a rede ou me prendia no carro, não era pra ter sido tão rápido. Era pra ter ficado presa no pneu. Pode estar presa mais pra frente, mas não vou deixar você pra trás. A gente pode tentar capturar a capivara com as cordas ou procurar a rede.

— Será que arrebentou? — Você logo pensa o pior.

— Não, nem, não deu tempo.

— Só mais uma coisa dando errado.

— Pelo menos clareou.

Você não consegue concordar. Parece escuro como sempre. Quais opções vocês têm? Só encontrar a rede.

Não parece tão mal. Vocês saem rente aos carros estacionados, arrastando os pés. Você até atravessa a rua, sem ideia de para onde a rede pode ter ido. Dependendo da distância dos bueiros e da direção da água, pode estar em qualquer lugar. Vocês descem até o final da rua procurando, até o posto de gasolina e o restaurante da esquina.

— Desisto! — grita Cris, os braços abertos e o rosto virado para a chuva.

— Vou passar pelas correntes e olhar dentro do posto. Só pode estar ali, é a parte mais baixa da rua. Eu dou a volta pela calçada e vou pelo canto da parede. Faz sentido, não faz? — Você não espera Cris contra-argumentar. — Eu vou de qualquer jeito. Logo acaba São Sebastião, não tenho muito tempo.

Você estica a mão na direção da grade do jardim. A ferragem te passa segurança.

— Um, dois, três — você conta. Mas agora tem outra voz junto da sua. É Cris indo atrás de você e fazendo barulho.

Não dá para reparar no movimento da água em sua direção, nas capivaras que ficaram para trás atravessando a correnteza junto com vocês. Um raio de luz te paralisa, mais claro que a do poste. O reflexo te faz parar e cogitar se o relâmpago te atingiu. É aquele medo que te ensinaram a ter, o de que estar na água durante tempestade é certeza de morte em pouco tempo.

Seu corpo de repente está embaixo d’água, não dá para entender por quê. Um trovão não é capaz de fazer isso. O ar escapa dos pulmões com a força do impacto. Sua cabeça bate no chão. Respirar arde, e você promete que vai respeitar a chuva, que não vai sair mais na tempestade. Promete se demitir no dia seguinte. Não dá para sentir as lágrimas no seu rosto debaixo d’água.

Pelo menos não há som de chuva ou relâmpago, nem faz frio. Não fosse o peso sobre o seu peito, seria um bom lugar para estar. Você tenta puxar o ar mais uma vez, sem sucesso. Algo prende na sua mão — pode ser a maldita rede ou alguma corrente solta do posto de gasolina. Mas o objeto serve, pelo menos, para empurrar a mancha escura cujo peso te prende na correnteza.

Você tenta tirar a capivara de cima do seu corpo na base do desespero. Não dá para suportar muito tempo aquele peso sobre o peito, a água tentando invadir seus pulmões e a dor que o esforço produz no braço ferido.

A teimosia te recompensa, porque o peso some de cima de você e depois uma mão te puxa. Sua voz é um grito de dor que a água tinha impedido até agora. Por reflexo, você abraça quem te puxou. Respirar arde, todo o seu corpo dói. Aquele abraço, ter alguém te segurando, era tudo o que você precisava para não desabar. Você se agarra àquele abraço com todas as forças.

 Quando o vazio começa a ser preenchido, você se lembra de inspirar e expirar devagar até sentir o cheiro metálico de sangue e a murrinha de pelo molhado. O silêncio dá espaço ao barulho da chuva e à cacofonia de pessoas gritando uma por cima das outras. Tem o seu nome misturado a xingamentos e, por último, reclamações. Você não consegue se separar da pessoa que te salvou, mesmo quando outras pessoas se aproximam, tentando te confirmar que você está segurança.

— Garoto burro! Não acredito que desperdiçou a capivara! — uma terceira voz grita, desconhecida e revoltada — E agora?! O que a gente faz?

— Faz o que devia fazer, ajuda outra pessoa. Era pra deixar morrer? A gente arranja outra capivara amanhã. Já abati o bicho — a pessoa que te abraça responde, o hálito na sua orelha. — Agora já foi.

As mãos que te envolvem não te soltam e alisam suas costas, te acalentando. Mãos das quais você lembra, assim como lembra do murmúrio daquela voz junto ao pescoço.

É a voz do Jonas te mantendo firme. Aquele Jonas de quem você não gosta. Ele não parece tão mal assim enquanto te embala cheio de carinho. E agora? Dá pra querer brigar e beijar ao mesmo tempo?

— Tá tudo bem? — Cris te pergunta.

É difícil ouvir com o barulho, mas dá para entender. Você se desvencilha de Jonas, meio agradecendo a desculpa, meio querendo ficar ali, e deixa que Cris analise seus ferimentos.

Seu braço está muito pior do que antes, com a ferida bem maior. Seu ombro dói, provavelmente amassado pelo peso do animal. Seu peito dói. Você toma um segundo para correr os olhos pelo próprio corpo, procurar algum pedaço faltando. Cai a ficha de que seu pescoço ainda está inteiro e de que poderia ter sido muito pior. Você funga uma e outra vez, respira fundo — queria poder colocar o capuz por cima da cabeça e chorar. Jonas pede alguma coisa para o pai e te faz trocar o casaco molhado. O moletom que Jonas tira de você está em farrapos.

— Quero ir embora. — E não faz diferença quem escuta, desde que te levem para casa.

Você andaria sem destino buscando algum lugar para descansar e esfriar a cabeça não fosse a mão de Jonas na sua.

— O carro do meu pai tá ali na frente — ele grita para Cris — Vocês vão com a gente!

A chuva ainda faz muito barulho, e você não consegue entender como ele consegue te ouvir. Se fossem amigos, você faria piada sobre algum superpoder. Um superpoder que te salvou de uma capivara-demônio debaixo da chuva. Você tosse em seguida. O coração ainda bate acelerado, expelindo o que ficou dentro do peito.

 — A gente precisa ir embora — você repete.

Endireitar o corpo depois de tossir te faz perceber que Jonas está te abraçando de novo, que o espaço que ele te deu foi só o do movimento de tossir, que o braço dele ainda te segura pela cintura para você não cair.

Não é o momento para grandes análises do que está acontecendo. Como todos sabem, as análises serão feitas antes de dormir ou quando é hora de contar a história para os amigos e deixar que eles criem suas próprias teorias. Talvez as suas pernas ainda estejam fracas, porque você fica no abraço e não reage.

— Olha, tem umas armadilhas lá pra cima da rua. Se a gente pegar o carro, alguma deve ter ficado presa — sugere Cris. — Faz mal deixar a bicha presa até amanhã. O senhor pega, o senhor leva e fica tudo bem.

— Aí não vale. A armadilha é de vocês, o bicho é de vocês. Não vou roubar capivara de ninguém, nem perder o dia de serviço. Como é que eu vou embora sem nada depois de trabalhar a noite toda? — resmunga o pai de Jonas.

Ainda que seja a intenção tentar seguir em frente fingindo que nada aconteceu, não é algo fácil. Sem a capivara, você precisará voltar um dia — mas, desde que o dia não seja hoje, Cris tem razão. Não faz mal Jonas e o pai ficarem com a presa. Você está tão frágil que suas mãos firmam na cintura de Jonas, buscando apoio.

A mancha escura que escorre com a água entra no seu campo de visão — o sangue da capivarinha abatida. Ela foi carregada pela correnteza até uma das bombas de gasolina e criou uma mancha amarronzada e esquisita sob a luz do poste.

— Pai, a gente pode só ir embora.

— Por mim, também, a gente dá a noite por encerrada — Cris concorda. — A gente já passou tempo demais na chuva, isso faz mais mal do que bem. Pode ficar com a captura, pra gente não faz diferença nenhuma de quem é a armadilha. Se vocês levarem, é de vocês.

— Ninguém vai se machucar hoje, nada vai ser perdido. Eu não quero nada que não seja meu — insiste o pai de Jonas.

— Eu pegaria o carro e me mandaria pra casa, mas não tem como te deixar sozinho pra trás, pai. Pra que ir atrás de capivara agora? Fica logo com a que te ofereceram.

Percebendo que pareceu bruto e mercenário poucos minutos antes, o pai de Jonas fica meio sem-graça.

— Tá. Deem uma olhada nas armadilhas e vamos embora.

O pai de Jonas sai de perto de vocês. Sua reação é segui-lo, mesmo tropeçando nos próprios pés. É Jonas quem te chama a atenção e segura seu braço para que você escute o que ele diz.

— Meu pai foi buscar o carro.

É o tipo de situação que deixa a pessoa tremendo de medo e ódio, sabe? Você não queria ter de passar por nada disso. Os faróis altos do carro do pai de Jonas, uma Santana com porta-malas grande que um dia já foi um carro novo e chique, mas que não é cuidado há anos, alcança vocês três. Cris vai no banco da frente, e talvez seja por isso que o pai de Jonas resmunga tão alto sobre terem perdido uma capivara perfeitamente boa.

— Elas não precisam ser amansadas, precisam fazer estrago. Aquela tinha quase oitenta quilos. Teria derrubado qualquer um. Maldade ter matado um bicho daqueles… — diz o pai de Jonas, olhando o filho pelo retrovisor enquanto defende a capivarinha.

Jonas não responde, coça a nuca. Parece cansado do dia. Cris continua olhando para frente. Não dá para ver o rosto dele, nem ouvir se sussurra alguma coisa tentando amenizar a situação. Você não tem nada para dizer, e nem a rádio de música romântica consegue melhorar o seu humor. Não fosse por Jonas, você estaria se perguntando se a morte da capivara era mesmo necessária. O pai de Jonas não desiste de defender o ponto de vista dele.

— Ah, mas ela valia uma aposta. Não deixar ninguém morrer, mas salvar todo mundo, até a capivara. A capivara também merecia estar viva. Trabalho arriscado é assim, mas vale a pena, vale o risco. Né? Salvar todo mundo… — ele tenta, mas ninguém consegue concordar. Ninguém responde. E, para ter certeza de que Jonas não se arrepende, você o espia de canto de olho. Nota o franzir do rosto.

O ar quente está ligado, e você relaxa com o choque térmico. Ter alguém te defendendo faz você se sentir bem melhor, ao ponto de sua percepção mudar um pouco. Você passa a achar engraçado Jonas com raiva e o pai dele tentando amenizar a situação. Não funcionou, mas foi uma tentativa. É suficiente para te fazer se sentir menos pior.

Não que seja uma defesa a você, à sua pessoa, mas, na situação de perigo, abater a capivara era mesmo a melhor opção. Considerando o que você pensa de Jonas, nem foi uma questão de senso comum; você imagina que foi um lapso de bondade mesmo, porque ninguém é ruim de tudo, por isso ele te salvou. Foi reflexo, nada pessoal.

Tanto o pai de Jonas não desistiu que para o carro poucos metros à frente, logo depois de dobrar a esquina. Ele vira o corpo para o banco de trás, instigando Jonas a descer com ele. E depois chama Cris. Nenhum dos dois se negam, o que te parece impensável, porque você sente o coração acelerar e os dedos se agarrando ao banco sujo de migalhas.

— A gente já volta — Jonas te promete antes de descer do carro.

Você fica esperando, olhando pelas janelas completamente embaçadas enquanto a locutora da rádio de música romântica anuncia “Você ouviu David Bowie ‘As the world falls down’, Roxette ‘It must have been love’ e Madonna com “Take a bow” na Califórnia FM”. Não fosse a locutora, você não teria reparado quais foram as músicas.

O carro não demora a balançar, e suas costas se chocam contra o encosto do banco. O impacto dói. As portas são abertas em seguida, e três homens ensopados entram no carro.

— Tinha mesmo uma presa na armadilha — anuncia o pai de Jonas.

— Não se preocupa, deu tudo certo. — Jonas se aproxima do seu rosto para sussurrar: — Acaba amanhã.

Você concorda com a cabeça, sem entender direito o que ele está dizendo. A chuva ainda cai, você não gosta dele e seu corpo dói. E pensar que poderia acabar hoje, mas você fez uma escolha. E, do jeito que você parece ter azar, quem sabe a próxima vez em que você tenta voltar com uma capivara para o sítio também não é também?

É necessário aceitar que, sem a cessão da capivara, você e Cris só iriam embora quando seu João aparecesse; talvez ficassem na chuva até ele chegar, como da outra vez. Foi a responsabilidade por você e a oferta da capivara que fizeram o pai de Jonas ceder um pouquinho e te deixar ali.

Apesar de não dizer isso em voz alta por nada no mundo, você só tem a agradecer por Jonas ter aparecido, te salvado e ficado contigo esse tempo todo. Você se vira para a janela, para poder vê-lo pelo reflexo. Ele te dá um sorriso cansado antes de voltar o rosto para frente. Você está feliz por ele estar ali.

— Vocês podem ir lá pra casa, se quiserem — Jonas sugere a você e Cris. Dá para ouvir o pai dele bufando ao fundo, como se fosse contra a oferta do filho. — A gente cuida desse braço e amanhã vê o que faz. Pensa numa história pros seus avós e espera as roupas secarem. Eles vão levar um baita susto se você aparecer assim. Eu levaria.

— Não tem problema eu ir para casa. Capaz deles já saberem de tudo. Quero acabar logo com isso. — Você cruza os braços de birra, e dói. Dói esbarrar, dói o arranhado, dói encostar no peito. — E não vou voltar pro sítio do seu João. Amanhã eu peço as contas. Nunca mais chego perto de uma capivara na vida.

— Você pode ficar lá em casa enquanto estiver chovendo. — diz Jonas.

— Isso se você conseguir colocar o braço no lugar. Vamos pra sua casa, sim — intervém Cris. — Hospital agora vai ser péssimo, e seus avós vão infartar se souberem que você se machucou. Pensa neles.

— Eu só quero ir embora. Não aguento mais parecer um bicho escaldado — você resmunga.

— Prometo que tenho roupas secas. Você vai se sentir melhor num moletom limpo.

Por que pensar em preocupações hoje quando você pode se preocupar amanhã? Sem fome e frio, sem febre, com o braço menos machucado e a cabeça no lugar.

— Cris, o que você acha?

— Se o Jonas e o pai dele estão oferecendo… O senhor não vê problema, vê?

— Onde comem dois, comem três, comem quatro. Só não precisava ter matado a capivara. Só o dinheiro da aposta já seria uma bolada. E, pra pobre, todo dinheiro faz diferença, não é não?

O braço do pai de Jonas sai do volante e o cotovelo vai cutucar Cris, como se fossem amigos. Cris desvia por reflexo. Sem saber o que fazer, concorda com a cabeça. Você também não saberia o que fazer com essa pessoa que parece preferir a capivara a você.

A rádio toca pelo caminho todo, e o ar quente do carro faz bastante diferença.

Não demora para vocês chegarem ao bairro de Jonas. Fica alguns morros depois da igreja, quase na estrada na direção de um dos distritos. Jonas precisa sair na chuva para abrir o portão e depois esperar os cachorros voltarem da rua, mas, tirando isso, nenhuma gota de chuva alcança vocês quatro. A escada que sobe da garagem é uma benção coberta de telhas.

O banheiro é o primeiro lugar ao qual você vai. Jonas aponta a porta — uma meio escondida ao lado da entrada do quarto — assim que vocês chegam. Você não faz cerimônia. Cris fica para trás, esperando do lado de fora. Dá para ouvir o barulho de móveis sendo arrastados, bagunças sendo escondidas e um copo se quebrando. Pelo menos o banheiro está limpo, tem até um tapetinho felpudo que você joga para o lado para evitar molhar. Sua barriga ronca, o gatilho que te faz sentar no chão e desabar de chorar, sem tomar banho, sem se secar, só o corpo soluçando contra a parede de azulejos que te arrepiam de frio. Você quase não escuta as batidas tímidas na porta. Deve ser Cris. Ele não devia se sentir culpado por sua causa, o que te faz se sentir mais como um lixo de pessoa. Você usa a camisa suja ainda no corpo para esfregar o rosto e tirar o ranho de choro.

É mesmo Cris vindo te entregar a roupa emprestada.

— E pra enfaixar o braço? — você pergunta.

— Vou pedir outra camisa.

— Pede uma de malha velha que serve.

Você fecha a porta e foca em parecer gente de novo. Em tomar banho, lavar o cabelo, se arrumar. O braço dói em tudo que encosta, e pra ajudar você ainda enfia o cotovelo na quina do box, espalhando uma dor aguda pelo corpo inteiro.

É agora que você chora mais ainda, querendo agradecer a todo mundo por ser tão legal. Você nunca vai conseguir retribuir o que eles estão fazendo — até Jonas, o traste, está sendo prestativo.

Seu braço está tão molhado que, mesmo passado algum tempo, o sangue do machucado corre livremente e respinga no chão, sujando sua blusa. Você joga as roupas usadas no piso do box.

Você liga o chuveiro e coloca a cabeça debaixo dele — primeiro o lado bom e depois o machucado, com bastante cuidado. Enfia o rosto na água corrente, fecha os olhos e sente os últimos resquícios de medo, um resto de adrenalina que lembra o que é estar sob a chuva e com a cabeça submersa. É assim que você desiste de tomar um bom banho relaxante e apenas apressa o passo. É isso ou continuar chorando sem motivo. Presumindo que chorar por ter quase morrido enquanto estava sob uma chuva torrencial e ter se machucado não seja considerado um motivo.

Já com as roupas secas e de banho tomado, você coloca os pés no tapete felpudo e tenta esquentar os dedinhos congelados. Seus machucados não parecem tão ruins, exceto o braço que está sem força e dolorido. Tem uma tesoura — ainda bem — largada pelas gavetas, álcool e esparadrapo. Serve para você tapar o buraco esquisito que a capivara deixou perto do seu ombro. Aquela droga de chuva fria ainda não saiu do seu organismo, e um último acesso de tosse te acomete. A dor de tossir suprime a dor do movimento brusco nos machucados. Tomara que não seja gripe. Seria a cereja do bolo que você não quer comer.

Um colchão quase te acerta o rosto quando você sai do banheiro. Um gemido de dor é inevitável por causa do impacto no braço. Cris se desculpa entre palavrões. A sala está com dois colchonetes e um colchão de casal no chão, te esperando.

— Arrumo o sofá se você quiser, mas no chão é melhor. E seu braço? — Jonas pergunta.

— Eu dei um jeito.

— Deixa eu ver. — Ele puxa a bandagem. Isso dói. É impossível xingar e gemer ao mesmo tempo, então você faz o segundo. — Fica aqui. Seu braço tá quebrado.

Como se não tivesse doído da primeira vez, Jonas tenta refazer o trabalho que você já fez. E ainda tenta colocar o osso no lugar, pelo menos para você dormir com menos dor. É uma ideia péssima, e se alguém disser que a tentativa foi de bom coração, você cortará laços de amizade. Mas a faixa fica mesmo mais firme, então deve fazer alguma diferença. Jonas nem se importa com o fato de que você o detesta e coloca a tipoia improvisada no seu pescoço sem achar nem um pouco estranho essa atenção toda, essa paparicagem.

— Não precisa fazer mais nada, já dei um jeito no resto. Era só o braço.

— Mas a capivara estava em cima de você.

— Se machucou, agora só no hospital. Juro que tô bem. — Você se afasta. — E não dá pra consertar uma costela quebrada com Super Bonder. Tem que esperar até amanhã de qualquer jeito.

— Foi no mesmo braço, não foi? Eu lembro do dia da festa.

— Antes foi mais perto do cotovelo. Dessa vez ela estava vindo para cima da minha saboneteira. Deve ter quebrado bem aqui pra cima. — Você aponta os lugares com a mão direita enquanto conta. — Não dói tanto, só tá sem força, acho. Machuquei logo o braço que eu uso para escrever.

— Aqui não dói? — Ele está próximo o suficiente, com a mão quase sobre sua clavícula.

— Só o braço mesmo.

A proximidade com que Jonas te trata incomoda porque você não faria o mesmo por ele, não, senhor. Seus limites e princípios são muito firmes, coisa de gente criada por gente antiga, que sabe das coisas e só se deixa enganar uma vez. Aquelas gentilezas todas não pagam a dívida dele com o seu avô, por exemplo.

Escalonando em causa e consequência, aquele motor, dois anos atrás, foi o que te trouxe a esse momento — braço quebrado, pegando gripe e dormindo no colchão na sala de um estranho. Era o dinheiro de um motor refeito que teria deixado sua família bem menos apertada de dinheiro. Imagine poder se demitir quando seu João te mandasse capturar capivaras. Jonas se senta do seu lado, mas, ainda bem, não puxa assunto. Ele não precisa saber o que você está pensando.

Tem o som de um tambor batendo ao fundo. É um alívio. O conforto de ouvir outra coisa que não chuva caindo, o mundo voltando ao normal depois do temporal. É a Folia batendo para São Sebastião. Já é dia vinte. Para você, sem dormir, ainda é dia dezenove.

— Já passou de meia-noite. Acho que os dois estão comendo lá dentro — Jonas te diz.

— Vou ligar pra minha avó — você responde.

Agora isso é possível, ligar para sua avó, só um toque para saber se ela está acordada e mandar ela escutar as batidas pelo telefone. Perguntar se a chuva parou por lá também. Sua avó te ligou seis vezes desde que você saiu, e só agora você consegue responder. Só agora você pode ligar para ela e dizer que está tudo bem sem ser mentira, e ela não vai saber que é mentira só pela sua voz.

— Tá tudo bem na casa da Lina, vó. A gente ficou na rua até chover e depois foi embora. Ainda vamos comer, não deu pra pedir entrega e agora tudo já fechou, né? A gente fez qualquer coisa de lanche aqui e vamos dormir.

— Mas isso é hora de chegar na casa dos outros? Tem que respeitar a casa dos outros. Tem hora pra fazer as coisas — ela diz pelo telefone.

— Choveu cedo, vó. Chegamos tarde, não. Só acabou a luz, aí tô ligando agora. Ficou sem sinal. Choveu muito aí?

— O importante é que você ficou bem e fugiu da chuva. Aqui caiu um pedaço de barranco, mas foi tudo pro quintal.

— É… Vó, dá pra ouvir? Escuta aqui. — Você estica o braço bom pela janela por alguns segundos. — Ouviu?

— É Folia, é? Dá pra ouvir.

— Sabia que você ia gostar.

— Dorme e vem pra casa cedo.

Você ri ao telefone, ri de nervoso. E pede benção antes de desligar. Jonas está prestando atenção na conversa, mas você não reage, ele que olhe se quiser e pense o que quiser. Sua avó no telefone era o que você precisava para ter um pouco de paz. Você se ajeita no colchão de casal focando nisso, pensando que tudo de ruim já passou.

E não é que você dorme? Dorme com a batida dos tambores e a conversa vinda da cozinha, o chiado de um exaustor e a promessa de alguma coisa fritando. Para sua informação, era só mandioca e batata frita com queijo e maionese caseira de alho. E tudo muito bom, por sinal. Você teria elogiado.

Você só acorda quando alguém balança sua mão, rindo do seu sono. Seus olhos estão pesados. Jonas coloca uma caneca quentinha de leite com Nescau na sua mão. Você está com sono demais para destrinchar os detalhes do momento. A caneca quentinha é tão confortável…

— Ainda tem comida na cozinha, se você quiser. Cris desceu pra ver a Folia de Reis no vizinho. Não caiu mais uma gota.

— Eu sei. Ficou por quê?

— Fiquei com medo de alguma coisa dar errado, de você ter febre e passar mal sem ninguém por perto. Meu pai se vira sozinho quando sai, mas você, vocês… — ele se corrige, desviando do que estava falando. — Não gosto de ser pego de surpresa. É um saco quando as coisas dão errado, né.

Você não responde e mata o tempo com um gole de Nescau, deixando ele continuar a história, se enrolar dizendo o que não deve, contando o que parecia ser segredo.

— Acho a gente bem parecido nisso. Quando minha mãe foi embora, as coisas ficaram confusas e meu pai ficou destruído. Eu não era mais criança e podia me virar, mas ele… largou emprego, deixou casa pra trás, minha irmã casou e a gente veio pra cá. Aí começou a dar certo de novo. Esse mês de capivaras rende bem, né?

— Eu só cuido dos bichos. Não participo das rinhas — você responde.

— É diferente quando você precisa fazer elas lutarem mesmo. A gente tentou treinar elas feito cachorro ano passado e não deu muito certo. O dinheiro do ano foi tudo nisso aí. O que vem fácil, vai fácil… Bom, vou te deixar em paz.

— Onde você vai dormir?

— Por aqui mesmo. Só vou esperar meu pai voltar. Ele nunca leva chave. Ele deve ter saído, sabe? Pra esfriar a cabeça. Foi muito assustador quando a capivara te puxou pra água. Foi uma sorte a gente estar atrás daquele bicho. Ela era tão grande que achei que não ia conseguir te trazer de volta. Meu pai vai ter uma boa história pra contar no bar. E não tem que se preocupar com nada, não vou pedir nenhum favor de volta, não. Você já nem pensa bem de mim.

— Não seria assim se o seu pai tivesse pagado o motor. Meu avô teria dado um jeito de fazer o serviço pra não deixar vocês na mão, o que quer que precisassem. A gente é assim lá em casa.

— Não foi bem assim a história…

— Seu pai tá devendo, não tá? — Você espera até ele confirmar. — Então não tem discussão.

— Você é muito cabeça dura.

— E algumas coisas você precisa ser firme, senão os outros te levam na conversa. Tipo a lenda de que caçar capivara pras rinhas dá dinheiro. Como se não fosse tudo embora em aposta e bebida depois. Tô mentindo?

— Não deixa de ter sua razão. A festa é para movimentar dinheiro. Aqui em casa, a gente ficou tranquilo quase três meses só com dinheiro de aposta assim que veio pra cá. Um dinheiro aqui, outro ali e o retorno é bastante, vale a pena.

Você resmunga um “Se você diz…”, mas sua voz não parece tão raivosa quanto você pretendia, apesar da certeza absoluta que tem do próprio julgamento.

— Espero que a capivara também esteja bem, a que vocês capturaram — você continua depois, se enrolando no cobertor com cheiro de guardado e de amaciante.

— Tá com as outras. Tem mais duas no quintal dos fundos, mas essa é sua pra fazer o que quiser com ela. Meu pai vai entender se você a quiser. A gente se vira, mas vocês estavam a serviço. É ruim voltar sem nada.

— Pior que não faço ideia do que fazer com uma capivara, pra falar a verdade. Talvez o certo seja soltar de volta e fingir que nada disso aconteceu. Eu tenho uma advertência por falta de cuidado, mas não tenho uma promessa de pagamento.

— Essa noite me fez pensar se dinheiro fácil vale a pena. Acho que é pior pra você, que trabalha pra alguém, não vê o dinheiro e vê as capivarinhas durante o estio.

— Elas são fofas no sol. E não fazem pior do que a chuva, no fim das contas — você diz. — E você? Tá bem?

— Tô. Por que não estaria? Tá tudo bem, sim. Se você ficar com a capivarinha, não faz mal pra gente não, é sério.

Jonas não entendeu a pergunta, e você não quer tocar na ferida. Apesar de te salvar, parece que foi ele quem abateu o animal mais cedo. Você não conseguiria fazer igual. É melhor dormir, antes que a imagem do corpo do animal morto no posto de gasolina te dê pesadelos. Você larga a caneca ao lado do colchão e volta a se aconchegar.

— Amanhã eu penso nisso — são suas últimas palavras antes de dormir.

Se no dia seguinte vocês acordam de mãos dadas, porque Jonas estava preocupado demais e não saiu do seu lado… Bem, você sabe que podia ser pior. E sabe que não chamaria o que ele fez de preocupação. Há outras palavras que cabem bem melhor no lugar. Alguma que demonstre obrigação.

Melhor ele não descobrir que você passou do seu lado do colchão para o colchonete dele no meio da noite. Você nota em seguida onde tinha apoiado o rosto para dormir. O ombro dele está babado por sua causa. Essa é a parte realmente vergonhosa. Se desvencilhar é difícil, pois ainda tem o cobertor dividido entre os dois. As mãos dele estão onde deviam estar; as suas, não.

Cris não acorda fácil, mas é uma missão que você cumpre com certo esforço. Pela hora, talvez — só talvez — seus avós não estejam acordados o bastante para reparar nos seus ferimentos. É uma ilusão sua, mas, depois de ir ao hospital, da tala bem pregada e do braço com pontos como se deve, você volta a ter controle da história. Vai contar que teve um acidente bobo que terminou desse jeito, veja só! Uma besteira. Caiu de bicicleta buscando pão?

— Que bom que ele não era tão mau assim. — É o que sua avó tem a dizer sobre os acontecimentos da noite de ontem, todos filtrados.

Seu avô não quer te deixar sair de noite, mas também não quer te deixar em casa enquanto eles saem, então você vai junto, apesar de não saber se devia.

E se Jonas te chamar à noite para perguntar do braço, se ele te ligar, você talvez tenha uma resposta cordial. Marina ou Gabi vão ficar cheias de “eu sabia”, mesmo que você não saiba direito. Hoje você não sabe, mas seus amigos vão te alugar para entender cada detalhe assim que você der espaço. Os amigos dele te olham com respeito quando passam por você, e sua fama provavelmente vai virar lenda local, mesmo jurando que foram só quinze pontos e o braço quebrado.

— Eles são bobos assim mesmo — diz Jonas quando vocês se reencontram. — Seus avós brigaram com você?

Você espera o intervalo na música para responder, um tempinho só para seu peito parar de fazer eco junto ao som estourado do carro de alguém competindo com a música de Folia. Você mal consegue entender a letra, algo sobre Nossa Senhora e pedidos de bênçãos, rivalizando com o sertanejo do carro.

— Só contei que quebrei o braço.

— Que bom que deu tudo certo. Vou manter minha parte no acordo e ficar quieto. E a demissão? — ele puxa assunto, intrometido que é.

— Amanhã vai ser oficial, mandei uma mensagem depois do hospital falando que queria sair. Só volto naquele sítio pra receber. Não vou deixar um centavo da rescisão pra trás. E a capivarinha?

— Lá em casa, esperando você decidir o que fazer com ela.

— Vamos soltar. A gente marca de eu ir na sua casa e a gente solta. Não deve ter problema pra a bichinha. Você também podia parar.

— Podia mesmo, mas não enquanto meu pai ainda tiver dívida na praça. Você sabe, a gente já tem fama de caloteiro… Quem sabe até o ano que vem.

— Antes do ano que vem a gente resolve isso. — Depois, você desconversa: — Será que vai chover?

Se não chover, você vai poder comer aquele espetinho frito que só vende em festa, resmungar que não pode beber aqueles drinques alcoólicos com nomes esquisitos e comprar algum brinquedo colorido e brilhante que vai servir de piada até ser jogado no lixo. E você se pergunta — porque é o que você mais quer, e sabe que é — se o Jonas vai continuar de joguinho ou vai te beijar até a noite acabar, para marcar essa nova fase em que vocês se tornaram amigos. Até agora.

Você espera que não chova. Hoje, não.

Epílogo

— Ela tá bem dopada. Você consegue fazer isso. Estamos seguros.

Falar é fácil, Jonas. Falar é fácil.

— Vai ser legal — ele continua, o braço apoiado no volante. — Tipo um aniversário do dia em que você se livrou oficialmente das capivaras. A gente pode comemorar com bolo e cerveja depois. E todo ano a gente pode fazer uma festa e ninguém vai entender o porquê.

— Dá pra fazer uma festa sem que me arrastem até a beira do rio. Eu já me demiti, não precisa disso. É exagero.

— Achei que você queria cumprir sua promessa.

Você abre a boca para falar, mas Jonas tira o cinto e salta do carro. Te deixa sem a oportunidade de arranjar uma desculpa e fugir da situação. Você não se levanta para ajudá-lo com a caixa de transporte, e não sabe como ele faz para colocar a capivara na grama e do outro lado da mureta.

Não fosse o cinto, você teria se estabacado no chão quando Jonas abre a porta.

— Tudo pronto! — ele diz.

Você o segue a contragosto. Senta na mureta. Está fresco, e você torce para que a capivarinha siga o caminho dela na paz. Pelo menos até o ano seguinte.

A permissão de captura de capivaras acabou com a chegada do dia de São Sebastião. As chuvas estão perto de terminar e, com a estiagem, mal se vê capivarinhas pelo rio raso. As demônio, como a desmaiada na caixa de transporte, chegam a desaparecer como se nunca houvessem existido. Até o ano que vem.

Demora um pouco até a capivara sair do transporte. Ela anda meio bêbada e cai, se esborracha e se arrasta de pernas bambas até a margem. A proximidade com a água a deixa um pouco mais desperta. Talvez seja um bom sinal, de verdade. Uma promessa oficialmente cumprida depois de tantas quebradas. A capivarinha se arrasta mais que tudo, cheia de vontade de voltar para a água. Isso te anima, mas ainda falta. Falta ver a bichinha perto das outras, se vão recebê-la bem. Isso, talvez, seja um bom sinal de verdade.

— Viu? Vai dar tudo certo com a nossa filha capivara.

— Nossa filha capivara?

— Nossa filha. Adotamos temporariamente e vimos que não somos pais adequados. Melhor adotar alguns cachorros. Sua avó vai adorar.

— Ela vai me matar.

— Seu avô te defende.

Não parece mais deboche, parece? Parece que Jonas está tentando te animar de uma forma torta que agora faz seus lábios se curvarem involuntariamente.

— Vai chover — você tenta mudar de assunto.

— Só à noite, capaz de só amanhã. Dá pra comemorar bastante. Um dia seco assim é perfeito para o feriado do Dia do Estio. Confia.

Você tem vontade de dizer sim de novo, aceitar o feriado inventado e ver o que vai dar. Talvez Jonas tenha razão.

FIM

A foto quadrada mostra uma mulher branca com cabelo azul na altura do peito e um batom azulado. Está com uma camisa branca de botões com uma estampa preta de gatinhos, e no colo segura um gato tricolor. Está sorrindo para a câmera, com a cabeça levemente tombada para o lado

Morana Violeta é a humana de sete gatos, Quitéria, na foto, Gideon, Harrowhark, Zhu ZhuQing, QingMing, Nami e Spider-Gwen. Quando não está correndo atrás dos felpudos ou apertando-os para ronronarem é social media na Eita! Magazine, estagiária de CRM, fã de wuxia e xianxia e tutora de mais três cachorros. Mora com a família no interior do Rio de Janeiro, lugar que chama carinhosamente de roça. Já publicou antes na Faísca e tem uma newsletter quinzenal chamada Sua namorada gótica, pois não basta ser roceira, tem que ser trevosa na roça.

Fernanda Castro é autora dos livros Lágrimas de carne (Dame Blanche, 2020) e O fantasma de Cora (Gutenberg, 2022), além de tradutora, preparadora e revisora de textos. Faz parte da equipe da Revista Mafagafo e tem diversas narrativas curtas publicadas, incluindo um miniconto em formato de quadrinho na Strange Horizons. Mora em Recife com o marido, uma calopsita e montes de plantas.

A foto quadrada mostra uma mulher branca, de cabelos morenos e encaracolados cortados na altura do ombro, meio bagunçados. Ela está sorrindo levemente e olhando para o lado direito. Usa óculos de armação escura e um pouco mais grossa e está com uma camiseta vermelha, sentada em um sofá.
A foto quadrada mostra uma mulher branca, de cabelos morenos e cortados na altura do ombro, meio bagunçados. Ela está sorrindo levemente e tem a mão estendida na direção da câmera, com os olhos fechados. Ao fundo, que é bem desfocado, é possível ver as luzes urbanas de uma avenida.

Jana Bianchi é escritora, tradutora, editora na revista Mafagafo e cohostess do Curta Ficção. Em português, além de Lobo de rua (2016), publicou diversos contos em revistas e coletâneas. Em  inglês, tem ou terá textos publicados nas revistas Strange Horizons, Clarkesworld e Fireside. É aluna da turma de 2021 do workshop de escrita Clarion West. Jana mora no interior de São Paulo com os pais, duas cachorras e suas várias tatuagens animadas.

Sérgio Motta é designer, escritor e amante de café. Nascido e criado na periferia de São Paulo, a cidade, cheia de fantasias, caos, diversões e diversidades é sua musa. Já publicou “Ciberbochicho”, pela Revista Mafagafo, onde hoje também é editor, “Spider”, pela revista estadunidense Strange Horizons e “Aline na Avenida das Paulistas”, uma releitura de “Alice” pela avenida mais famosa de São Paulo. Também é criador do portal Resistência Afroliterária e editor-chefe da Revista Afroliterária. É dono do Machadinho, autor dos maiores clássicos da literatura canina.

A foto quadrada mostra um homem de pele negra, cabelos morenos em dreads, e cavanhaque também moreno. Ele usa um óculos com armação grossa e uma camisa vinho, e olha ligeiramente para o lado.
A ilustração tem um fundo branco com sete desenhos pictográficos simples em tons de vermelho e preto. A cabeça de um burro vermelho, uma menina com uma touquinha vermelha, um cavalo branco com pintas vermelhas, um cachorro vermelho, uma fruta, uma flor e um touro preto.

Daniela Viçoso (n. Faro, Portugal), é artista visual e de histórias em quadrinhos. Poucas coisas a afetaram mais do que encontrar o seu primeiro mangá numa FNAC. Trabalha frequentemente temas ligados ao imaginário popular.