A capa tem tons predominantemente verdes e azuis escuros. Mostra uma vegetação em primeiro plano, moitas e laranjeiras ao fundo, e no meio das árvores há uma mulher que parece uma silhueta transparente dormindo em paz. Acima da capa há a logo da Mafagafo em verde, o título logo abaixo em dourado ("Sonharão no jardim"), em cima do título há a informação de que a direção de arte e ilustração foi de Dante Luiz. Abaixo do título você também lê que o conto é escrito pela Gabriela Damián Miravete e traduzido por Ana Rüsche.

Olá, pessoa querida!

O selo Aves Migratórias surgiu em junho de 2020 com o intuito de disponibilizar ao público brasileiro a história “Cozinhando pra caramba“, a tradução de “So Much Cooking”, de Naomi Kritz — um conto originalmente publicado em inglês na revista Clarkesworld (em 2015!) que traz uma visão esperançosa, ainda que direta e verossímil, sobre relacionamentos humanos em meio a uma crise muito similar à que estamos vivendo.

A princípio, não tínhamos a intenção de publicar outras histórias traduzidas tão cedo. Com a pandemia, porém, vieram também eventos virtuais internacionais como o Relampeio e a FutureCon — e, com eles, a oportunidade de conhecer pessoas incríveis e ficção curta de ótima qualidade publicada fora do mundo anglófono, em outros idiomas além do inglês.

Uma das pessoas de quem me aproximei nesse período foi a Gabriela Damián Miravete, autora mexicana maravilhosa e pessoa querida e carinhosa. Logo tive a oportunidade de ler seu “Soñarán en el jardín” — conto premiado pelo Otherwise Award (antes prêmio James Tiptree, Jr.) que fala sobre um México do futuro em que o feminicídio não existe mais, que já foi traduzido para o inglês, o italiano e o francês e que em breve será publicado também em chinês (aliás, você pode lê-lo em espanhol, idioma em que foi originalmente escrito, AQUI). Assim que terminei a leitura, às lágrimas, pensei que seria uma pena não aproveitar a iniciativa do Aves Migratórias pra continuar disponibilizando em português histórias sensacionais e importantes que, de outra forma, talvez jamais chegassem ao público brasileiro.

Todo esse processo foi mediado pela igualmente maravilhosa Ana Rüsche, responsável não só pela manutenção do contato de autoras latino-americanas como também pela ótima tradução do texto. Aproveitando o ensejo, Ana, agradeço de coração sua participação nesta publicação, mas também sua força, sua energia e todo o movimento que você causa no nosso mercado com esse seu jeitinho incrível de ir lá e botar a mão na massa.

Bom, espero que você, pessoa que lê a Mafagafo, goste de “Sonharão no jardim” tanto quanto eu e nossa equipe. E que a história também plante em você a semente do sonho de viver pra presenciar um país como o que é representado na obra que você está prestes a ler: seguro pra todas as pessoas, e do tipo que não se esquece do seu passado.

Um abraço, e se cuide.

Jana Bianchi

 

Paulínia, 21 de abril de 2021

4.400 palavras | Aproximadamente  20min de leitura

Metas de curto e longo prazo:

          • Entrar na natação

          • Trabalhar duro para pagar a matrícula da escola

          • Juntar o dinheiro para ir ao festival Cervantino em Guanajuato

          • Montar o guarda-roupa

          • Pintar a casa em setembro

          • Comprar as cadeiras da sala de jantar

          • Comprar uns sapatos para mim

          • Ler Platão

          • Bater papo e ser legal com as pessoas.

Notas escritas à mão por Erika Nohemí Carrillo (numa fotografia de Mayra Martell).

 

As laranjeiras estarão carregadas de frutas, e suas flores vão preencher o ar úmido do jardim oeste. Uma névoa sedosa refrescará as extremidades da grama, do capim alto daquele prado. O sol sairá sempre detrás da amendoeira, e os ramos da árvore mais antiga, uma corpulenta ahuehuete, vão se estender em direção aos raios, esticando-se como uma menina a se espreguiçar. Por volta das nove horas, o jardim começará a ser povoado por silhuetas. Algumas vão se cumprimentar. Outras vão se assustar com alguma laranja caindo e se afastarão dando risada, procurando a sombra de outras folhas. Algumas ainda vão contemplar o mar que, aos pés da encosta entre a praia e o jardim oeste, rugirá e se estenderá até escalar o azul cinzento do céu.

Os auxiliares vão se certificar de que tudo esteja em boas condições para receber visitantes, pois diversas turmas do primeiro ano chegarão no meio da manhã acompanhadas dos professores, alguns ainda assistentes. Descerão dos veículos entre gritinhos de emoção e tropeços. O Professor assistente vai advertir: “Sem correr!”, carregando nos braços uma menina que adormeceu durante a viagem, com a boca entreaberta e as bochechas vermelhas.

A Guardiã do jardim, uma anciã sorridente e de passo firme apesar da bengala, dará aos auxiliares recomendações rigorosas: ofereçam ajuda aos professores o tempo todo, acompanhem as crianças em suas emoções, não esqueçam do lanche das duas da tarde e da água a cada hora. Depois acelerará o passo e se colocará diante de uma longa fila de alunos que cantarão de forma estrondosa e desafinada numa alegre procissão ao longo da trilha de seixos até chegarem ao jardim oeste. Diversas crianças vão perder o ritmo, uma garota vai se distrair com uma lagartixa escondida debaixo de uma pedra, e o Professor assistente terá de guiá-las de novo até a trilha ditando o ritmo dos passos, das palmas. Os passinhos soarão em uníssono no cascalho. As risadas infantis flutuarão no ar, misturadas com o cheiro de mel e com o sabor de sal na brisa. A temperatura será muito agradável, de uma tepidez reconfortante.

A comitiva vai se deter diante das altas barras metálicas que protegem o jardim. Uma dupla de professoras continuará a entreter as crianças, e o resto atenderá ao chamado para prestar atenção nas recomendações dos auxiliares do jardim.

— Como já sabem, a intenção é deixar que as crianças interajam com elas e intervir só quando necessário. Não tenham medo das reações da molecada nem tentem restringir nada, tudo é parte do processo educativo. Se precisarem de algo, vamos estar prontas e por perto o tempo todo.

As portas metálicas vão se abrir devagar com a chave magnética que a Guardiã carrega como um colar. A barulheira pueril vai se espalhar pelo jardim oeste até que a criançada se aperceba da presença delas.

As silhuetas cintilarão com um brilho nacarado que vai maravilhar os visitantes. Como em um velho truque qualquer, serão fruto de luzes e espelhos, um mecanismo complexo e escondido dos visitantes. Por estarem ao ar livre, possuirão uma transparência sutil que permitirá que de vez em quando seja possível observar a paisagem através delas — mas, olhando de mais de perto, será possível apreciar seus traços bem definidos, e elas parecerão sólidas e vivas. Sob uma árvore, estarão as que estudam; as que brincam estarão se movimentando de um lado para outro; as que conversam umas com as outras estarão sentadas na grama. Quando se moverem muito rapidamente, emitirão um leve brilho, deixando um breve rastro de luz por onde passarem.

A Guardiã caminhará até o Professor assistente, que continuará fazendo malabarismos ainda com a menina adormecida nos braços e agora com um menino agarrado na perna como um cachorrinho carente.

— Quer ajuda? Você pode dividir um pouco desse amor todo — dirá a Guardiã, oferecendo os braços para receber a menina.

— Muito obrigado. Será que algum dos auxiliares pode ver se tenho alguma coisa na perna direita? Ai, como ela está pesada! O que será que aconteceu? Acho que um Tomasito subiu na minha perna!

O menino em questão gostará tanto da piadinha que vai insistir ainda mais na brincadeira, mas uma das auxiliares enfim vai conseguir levar o garoto consigo. A Guardiã e o Professor assistente vão observar os dois até sumirem de vista entre as pessoas e as silhuetas.

— Obrigado, a senhora é muito gentil. Gostaria de aproveitar a oportunidade para dizer que é uma verdadeira honra te conhecer. Seu trabalho em…

A Guardiã do jardim pedirá para que se detenha com um gesto dos lábios e das mãos: para ela, o reconhecimento será desconfortável além da mera modéstia. Entretanto, como não vai querer que o garoto se sinta menosprezado, oferecerá o braço para que caminhem juntos.

Marisela, mais conhecida como a Guardiã, nasceu em setembro de 1985 em Veracruz. Era a caçula de três irmãos. Sua lembrança predileta da época é a de estender a roupa no varal com a mãe: o cheiro do sabão, o som do tecido se enfurnando como as asas de um pássaro, as brincadeiras da mãe, que se disfarçava de fantasma, vestindo um dos lençóis para a assustar. Assim, esqueciam-se da rotina, bastante dura. Todos os dias, Marisela e a mãe serviam a comida e passavam as camisas dos irmãos da garota; eles as levavam ao cinema quando tinham um tempo, em datas especiais. Certa noite, na casa de parentes, um dos irmãos da mãe entrou no quarto onde ela estava dormindo. Não soube muito bem o que o homem estava fazendo ali de pé, ao lado dela, no escuro, pois era muito pequena para entender. A impressão era de que o tio espremia algo que tinha entre as pernas como se fosse um pano molhado. Ela teve medo, mas nunca contou nada para ninguém. E se sentia culpada por guardar um segredo. Quando tinha quinze anos, a mãe e ela se mudaram sozinhas para a Cidade do México. Marisela precisou conseguir um trabalho que as sustentasse, primeiro numa sapataria. Seu chefe logo quis outra coisa com ela, algo que lhe cuspiu ao pé do ouvido, em meio aos produtos empilhados no armazém cheirando a couro novo. Ela pediu demissão. No ônibus para casa, estava tão preocupada com o que seria das duas que já era tarde demais quando se deu conta de que um homem havia colocado a mão entre suas pernas. Graças ao tio (o que havia feito aquilo no quarto), começou a trabalhar em uma Grande Empresa de Telecomunicações. No início era fácil atender telefonemas e apertar botões, mas depois os avanços tecnológicos complicaram tudo. Demitiram as meninas que não sabiam usar as máquinas novas (entre elas Paquita, uma amiga também de Veracruz). Decidiu então que se matricularia em todos os cursos disponíveis. À noite, passou a estudar o funcionamento de cabos e computadores, de espelhos e lasers. Queria entender como funcionavam os hologramas, que a empresa chamava de “a imagem do futuro”. Tirou as notas as mais altas nos treinamentos. Foi promovida. Casou-se. Teve filhas. Seu marido era um “homem bom” (o que significava que lavava as próprias cuecas, cuidava das filhas e dela caso adoecessem, cozinhava algo de vez em quando e quase nunca a criticava quando ela passava muito tempo longe de casa).

A Guardiã e o Professor assistente vão assistir a uma cena típica: o menino vai correr, tocar a silhueta de brincadeira e depois afastar a mão.

— Ei, não faz isso, Tomás! Você ainda nem sabe quem ela é direito. Vai lá dizer oi, fala primeiro como você se chama… — O tom de voz da auxiliar não será de reprovação, e ela tentará ignorar o bico da criança causado pelo choque elétrico.

O Professor assistente vai querer se aproximar de Tomás, mas a Guardiã o deterá.

— Com certeza isso dos toques não é da sua época. Em geral, a primeira coisa que as crianças fazem é atravessar as silhuetas com a mão. Mas, ao cruzar o campo, o sistema emite uma corrente. As picadas não são muito agradáveis, mas são toleráveis. Aí as crianças sempre vão pensar duas vezes antes de meter a mãozinha de novo. A recomendação é que sempre as tratem como pessoas de carne e osso.

— Certo. — Em seguida, o Professor assistente vai franzir o cenho, como se diante de um novo problema. — Mas… e se as crianças quisessem fazer carinho nelas?

A Guardiã vai abrir um sorriso melancólico.

— Não é possível. Faz parte do aprendizado.

O Professor assistente vai demorar um pouco para entender o motivo. Depois, porém, conseguirá admitir a lógica: os mortos nunca mais poderão receber carícias. Nem mesmo elas, por mais que estejam “de volta”.

Certa manhã, Marisela chegou ao trabalho e descobriu que Paquita havia sido assassinada no Estado do México, no centro do país. Encontraram o corpo recém-puxado para o acostamento, como as pessoas fazem com animais atropelados. Tinham feito com ela coisas horríveis, horríveis.

Paquita estava com a mão apertada ao redor das chaves de casa, o lugar para onde esperava voltar. Ela as tinha usado para se defender. Estava no mau caminho, disseram, o que andava fazendo ali sozinha àquela hora? “Mas ela estava indo trabalhar!”, disse a Professora. E mesmo que ela estivesse no “mau caminho” (e a culpa seria de vocês, porque teriam sido vocês os responsáveis por fazê-la recorrer a ele — mas isso ela não disse), o quê, ela merecia? O resto do povo encolheu os ombros. Voltaram logo a seus afazeres. Mas ela não podia mais ignorar a falta de Paquita, nem os cadáveres de uma mulher aqui e outra ali. Eram muitas. E todas, aos olhos daquelas pessoas de bem, pareciam ser culpadas pelo que lhes havia acontecido. Nem mesmo os nomes delas eram mencionados nas notas dos jornais: “Filho drogado assassina a própria mãe”, “Matou a ex-namorada para lavar a honra”, “Denunciante de estupro morre por ser muito fofoqueira e se meter na vida dos outros”.

O segredo vai ser combinar a dinâmica das brincadeiras e das conversas para manter a atenção das crianças. Os professores mostrarão afeto para transmitir segurança. E manterão distância, mas estarão por perto o tempo todo.

— Oi, qual é o seu nome?

— Tomás, mas meu apelido é Tomasito. Como você se chama?

— Meu nome é Rubí Marisol, mas pode me chamar de Rubí. Que olhos bonitos você tem, Tomás.

— Minha mãe colocou biscoito na minha lancheira, você quer um?

— Eu até gostaria, mas não posso comer.

— Por que você não pode comer?

— Porque não tenho um corpo como você. — Ela uniu as duas mãos com as palmas para cima na frente do corpo e depois fez uma atravessar a outra. — Viu? Mas a gente pode conversar.

O menino ficará intrigado. Vai tentar fazer o mesmo, depois vai querer tocar a silhueta da Rubí, mas se lembrará de que a sensação não é nada agradável.

O Professor assistente ficará incomodado com a situação. A Guardiã vai tentar aliviar a tensão:

— Você se lembra da sua primeira vez aqui?

— Claro, nunca esqueci. Eu tinha dez anos. Mas trazer as crianças aqui nesta idade me parece um pouco perigoso. Elas ainda não têm todas as ferramentas cognitivas pra compreender o significado deste lugar, muito menos o significado da morte. Ainda mais a morte de todas elas.

A Guardiã ouvirá com atenção. Enquanto isso, vai observar as numerosas borboletinhas brancas voando ao redor das silhuetas, das crianças, das flores. Elas parecerão bem bonitas, mas ela ainda se perguntará se não são uma praga.

Um dia, encontraram o corpo de Dulce, que trabalhava de segunda a sexta faxinando escritórios — incluindo o de Marisela — para pagar o curso de informática nos fins de semana. As amigas de Dulce (a maioria eram quase crianças, não tinham mais que quinze) começaram a se encontrar às terças-feiras para prestar homenagens e também para treinar socos, chutes, tapas, qualquer tipo de defesa pessoal que as protegesse. Nos primeiros dias, terminavam as sessões com a cara vermelha, descabeladas e suadas, chorando juntas de puro medo ou de pura coragem. Depois de alguns meses, riam um pouco mais, batiam mais forte e terminavam o treino comendo algum doce para repor energias. Pensaram num nome. Escolheram Las Argüenderas — as lavadeiras, as fofoqueiras, as linguarudas — pois argüendera era uma palavra que as pessoas usavam para julgá-las, para as obrigarem a se conformar e a ficarem quietas e caladas. Certa tarde, Marisela bateu à porta e pediu para se juntar ao grupo. As garotas a ensinaram a chutar direito, com meias, uniforme e tudo o mais, a dar cotoveladas, a ser corajosa e a chorar acompanhada.

— Por que você não tem um corpo?

— Porque me privaram dele. Estou morta. — Ao detectar o silêncio do menino, a silhueta de Rubí fornecerá respostas mais concretas. — Isso significa que não posso nem comer, nem brincar, nem dar um beijo na minha mãe.

A criança vai olhar ao redor, como se estivesse procurando uma pista. Olhará em direção ao mar e depois vai encarar a aparência de sua interlocutora.

— Você é um fantasma?

— Não sou. Eu sou uma memória. Tipo uma fotografia.

— Como um vídeo daqueles antigos?

— Isso, exatamente! Tomás, você tem avós?

O menino vai ignorar a pergunta.

— Por que te mataram?

— Não sei. Por que você acha que isso aconteceu?

Tomás vai pensar na resposta apertando os lábios e franzindo as sobrancelhas.

— Porque você fez alguma coisa ruim. Você talvez tenha deixado alguém muito, muito bravo.

A silhueta da Rubí considerará as opções.

— Eu não tive culpa. Foram eles que fizeram coisas muito ruins comigo.

— Doeu?

— Doeu muito.

— E sua mãe fez sarar?

— Quando matam você, ninguém pode fazer sarar.

Las Argüenderas fizeram um pacto: elas iriam cuidar umas das outras. Namorados ou pais agressores, chefes abusivos? Que tentassem lidar com todas elas ao mesmo tempo. Quando uma pedia ajuda, as outras se juntavam em bando para deixar claro aos agressores que nenhuma ficaria sozinha. Cresceram até formar um exército de mulheres de todas as idades que ia até onde sua presença era necessária. Começaram a aparecer no noticiário, a ser levadas em conta, a dar conselhos.

Os anos se passaram, e as amigas de Dulce, as garotas secundaristas, tornaram-se mulheres maduras que se fizeram ouvir, que exigiram justiça. As pessoas aprenderam a olhar para elas com respeito e, aos poucos, tal respeito se espalhou para o resto das mulheres como a umidade das ondas do oceano chega à areia distante e quente.

Marisela também envelheceu. Continuou trabalhando na Grande Empresa de Telecomunicações, em seu laboratório de espelhos e lasers. Viu as filhas crescerem, viu a mãe falecer, sempre acompanhada pelas amigas. Nela, surgiu um anseio. Bolou um plano.

O Professor assistente também vai notar as borboletas brancas, a dança imprevisível de seu voo, o cheiro de flores e de sal que se espalha pelo jardim oeste. Ele e a Guardiã desfrutarão de tudo isso durante uma atividade na qual os auxiliares colocarão as crianças para cantar uma canção muito antiga, uma música que falará de plantar uma semente, e deixá-la crescer em paz, e esperar para descobrir o que ela se tornará.

— Você provavelmente tem razão — observa a Guardiã sobre a preocupação do Professor com a idade das crianças. — E os que advogam por trazê-las quando são mais novinhas provavelmente têm razão também. Leva tempo aprender que existem diferentes formas de se viver, que existem alternativas à violência. É melhor começar logo cedo, eu acho. — A Guardiã encolherá os ombros.

— A senhora não está muito confiante…

— Estou sim. Mas, antes, o objetivo deste lugar era diferente.

O plano de Marisela era obter recursos para construir o memorial holográfico que ela havia projetado com Las Argüenderas e outras organizações que tinham registros confiáveis das vítimas. Cada uma das mulheres assassinadas, com seus corpos e seus nomes, seria replicada em um holograma tridimensional, tendo como base testemunhos e materiais fornecidos por familiares e amigos e, sobretudo, as informações recuperadas de suas contas pessoais de e-mails e de redes sociais: fotografias, vídeos, cartas, conversas… Tudo seria útil para recriar, da maneira mais precisa possível, suas vozes, seus movimentos, suas reações; assim, de alguma forma, elas poderiam ser trazidas de volta à vida. Se conseguissem dinheiro suficiente, poderiam usar a tecnologia mais avançada disponível para montar o sistema ao ar livre, na natureza. Talvez em um jardim à beira-mar. Em um lugar lindo, a versão mais concebível de um paraíso, oferecido a elas e a suas famílias para que fossem lembradas vivas e felizes.

O Professor assistente imaginará o calmo memorial que este jardim já foi. Apreciará o cenário idílico com suas árvores, sua praia e o vaguear pacífico das silhuetas.

— Este lugar é tão lindo quanto nas minhas memórias. Tem mais árvores agora, é claro. As que nós plantamos já cresceram. Está tudo muito bem preservado.

— Isso é verdade — responde a Guardiã, orgulhosa. — Mas não sei bem o que me surpreende mais: se é que o jardim ainda esteja tão bonito ou que ainda esteja tão bonito mesmo estando no México.

O Professor assistente vai achar graça, mais pelo jeito dela contar a piada: ele não achará difícil acreditar que as coisas podem ser bem conservadas no México. Entre a geração da Guardiã e a do Professor assistente haverá um abismo.

— Deve ser muito surpreendente ver como o país mudou. A senhora já viu tanta coisa…

— Bom, eu tenho noventa e quatro anos. Eu ia é pedir um reembolso na minha passagem de ida se eu não tivesse visto de tudo.

— Imagino como sua época era terrível.

— Era sim.

Houve um tempo em que ninguém as chamava de silhuetas. As famílias iam visitá-las e ficavam quase felizes. A professora podia ver o desejo de Las Argüenderas se realizando quando mães, pais, irmãs, irmãos e pessoas queridas as viam no jardim, vivas e sorridentes. Sentiam aquele júbilo que a justiça não tinha sido capaz de conceder. Seguindo o curso natural, muitas famílias desapareceram ao longo dos anos, arrastadas pelo rio da vida, das tarefas, dos afetos. Mas algumas não retornariam porque o jardim não as satisfazia de jeito nenhum. “Não são elas”, afirmavam.

O problema era que Marisela havia se iludido: não era possível recuperar tudo. De algumas, tinham apenas o nome, uma fotografia embaçada. De outras, só os ossos. Das que tinham deixado um amplo testemunho sobre sua passagem por este mundo, foi possível obter réplicas holográficas quase perfeitas, precisas, mas ainda assim: a vida é uma trama única, um fio dentro da grande tapeçaria — quando se rompe, o que o substitui não é o mesmo. Não é possível remendar a carne, o sangue, a respiração, o aprendizado, os desejos. O futuro.

Como havia poucas famílias restantes, o Estado decidiu que o memorial deveria ter uma função adicional para ganhar o direito de permanecer em funcionamento. Serviria como um espaço educativo contra a violência. A população mais jovem deveria obrigatoriamente aprender a história das mulheres assassinadas no México para que nunca se repetisse. A professora compreendia a motivação da mudança — como integrante de Las Argüenderas, acreditava inclusive que era necessária. Mas abominava a sensação de serem usadas. Ela se recusou a reprogramar as silhuetas, a reduzi-las a um capítulo nos livros didáticos. Chorou e lutou para mantê-las intactas.

No final, teve de ceder para que a memória não desaparecesse. A partir de então, as silhuetas teriam que repetir às crianças, várias e várias vezes, que estavam mortas.

— O país seguiu em frente graças a pessoas como a senhora, pessoas que nunca se cansaram de exigir justiça.

A Guardiã fará outro gesto incrédulo.

— Não há mérito nenhum nisso. Era a única coisa que nos restava. Era tanto horror que ficamos sem rumo, sem sentido. A única saída foi preservar a memória.

— Pelo menos, a morte de todas essas mulheres teve um propósito.

Aferrada à bengala, a Guardiã vai se virar bruscamente para contestar.

— Teve um propósito? Oi? Para ensinar que a gente é um horror? Isso nós já sabíamos. Uma coisa é você oferecer sua vida voluntariamente por uma causa, outra coisa é te matarem. O que você iria escolher? Ia preferir que sua vida servisse “para algo” ou continuar a viver? Mordendo maçãs, sentindo o cheiro da chuva sobre a terra, conhecer o mar? Juro que não sei. Conforme vou ficando velha, acho que a transcendência é superestimada. É um consolo bobo; um consolo para os vivos, mas não para os mortos. Se elas (elas mesmas, não suas silhuetas) pudessem realmente falar, o que iriam dizer? “Olha, que ótimo que minha morte serviu para um propósito, mas eu não queria morrer”. Isto — disse ela, esticando os braços e a bengala, como se tentasse abranger todo o jardim — não é suficiente. Como reparar os danos? Consegue imaginar que já foram amontoadas numa torre de corpos anônimos? Que foram culpadas pela própria morte? Ninguém pode imaginar a dor que sentiram em seus últimos momentos. E vocês, jovens, não conhecem o horror que é saber que aqueles que faziam isso não eram monstros; não eram como um Jack, o Estripador: eram seus colegas de escola, seus namorados, seus familiares, o motorista de táxi simpático que passou aquela conversa fiada no dia anterior, o guarda da esquina. Era o mundo, um ambiente que nos transformava em rainhas da beleza enquanto nos dava chutes nas costelas e nos chamava de louca se abríssemos a boca. Era nesse nível de horrível.

O Professor assistente escutará a bronca sem levantar os olhos. Vai olhar para as crianças, que continuarão cavando buracos no chão, cantando a velha canção da semeadura.

— Me desculpa, é verdade. É claro que elas não morreram em vão. — A Guardiã deu um longo suspiro antes de continuar: — A indignação de perdê-las começou tudo isso. A gente se indignou, gritou o nome delas pelas ruas, conseguiu mudar o rumo das coisas. Elas foram o vento que enfurnou a vela deste navio, do nosso futuro. Eu só queria que tivéssemos aprendido a lição mais cedo, assim todas elas estariam vivas agora. Queria que elas pelo menos tivessem tido a chance de fazer o que sonhavam.

O Professor assistente vai olhar a Guardiã nos olhos e assentirá com a cabeça respeitosamente. Notará que várias silhuetas escutam as crianças cantando e até mesmo as aplaudem; outras continuam a cuidar de suas tarefas de forma mecânica, um pouco alheias ao tempo presente, presas na programação de coisas que elas mesmas decidiram fazer há muito tempo, quando estavam vivas e confessavam, nos muitos espaços da vida on-line, do que gostavam, o que faziam, ou o que desejavam para o futuro. Vasculhará a memória.

— Você sabe o que eu queria fazer? Estudar para ser engenheira — Mariana Elizabeth tinha lhe dito quando ele era um moleque de dez anos (ele nunca esqueceu o nome dela).

— Não sei muito bem o que é isso.

— Uma pessoa que constrói coisas, tipo pontes ou máquinas.

— Minha mãe diz que, se você estudar, pode ser o que quiser quando crescer.

— Eu não vou crescer porque já estou morta. Mas como eu queria…

A canção das sementes vai terminar. As crianças terão de recolher tudo e se despedir. Vão reagir de maneiras diferentes: algumas começarão a chorar, outras vão simplesmente dar tchau. Algumas meninas vão entregar desenhos para as silhuetas guardarem.

O Professor assistente terá de chegar perto de Tomás, pois notará a confusão do garoto: ele estará ali, o olhar perdido no nada. Antes de dar um passo, o menino envolverá a silhueta com os braços e, sem tocar em nada, estará abraçando a si mesmo dentro da silhueta luminosa de Rubí.

— Eu quero te abraçar porque é muito feio terem te matado. Quero te abraçar porque isso te machucou e eles te deixaram sozinha.

Tomasito vai sentir os choques elétricos por todo o corpo e resistirá até que o Professor assistente o pegue pela mão e o separe de Rubi.

Às seis da tarde, o sol vai começar a se pôr no jardim oeste. Os visitantes vão ter de sair pouco antes de escurecer, o que deixará as silhuetas ainda mais belas. Suas cores luminosas se destacarão, refinadas e claras, contra o céu noturno. As crianças e silhuetas vão se despedir e, para a Guardiã, tudo vai parecer um filme dos velhos tempos, quando tudo era feliz e as pessoas no cais diziam adeus ao navio que zarpava, e havia música e serpentinas.

Os auxiliares se certificarão de que tudo esteja limpo e arrumado antes de partirem. Marisela, que insistirá até o final de seus dias para ser a última a sair (afinal de contas, o apelido de a Guardiã tem um motivo), permanecerá vagando no jardim como de costume, fazendo estalar a bengala nos caminhos de pedra, apoiando-se de vez em quando em uma árvore.

Com a chave magnética que carrega no peito, fechará as portas metálicas que separam a sala de controle do jardim. As silhuetas dormirão de frente para o mar, deitadas de lado, com a boca entreaberta, as mãos debaixo do queixo ou sobre o colo, uma ideia bonita que a Guardiã teve em uma das atualizações do sistema — uma imagem que lhe ajuda, todos os dias, a desligar os motores sem sentir que as está tirando da tomada, que as está apagando, que o mundo está sem elas mais uma vez. Dessa forma, será como se ela apagasse a luz para elas dormirem depois de ter lhes contado uma história — ah, se ela tivesse tempo suficiente na vida para terminar o programa que as faria sonhar! Mas Marisela e Las Argüenderas já são muito velhas, e ainda há muitas coisas a serem feitas. Outras vão ter que terminar isso e assumir o risco de colocar o programa no ar. Durante o dia, serão influentes, silhuetas, memórias, dirão que estão mortas — mas as noites serão todas delas. Construirão tudo o que lhes foi tirado. Sonharão no jardim com seu futuro.

Marisela irá vê-las dormindo. Em seguida, apertará o botão. As silhuetas vão se encolher até se tornarem pequenos pontos de luz misturados às estrelas que flutuam sobre o mar. Depois de um tempo sem elas, tudo ficará escuro.

— Descansem, minhas queridas — murmurará a Guardiã. — Descansem.

Escrevi “Sonharão no jardim” como uma espécie de encantamento, com o desejo — talvez ingênuo — de que a prosa escrita no tempo narrativo do futuro pudesse ser capaz de abrir uma possibilidade para a realidade representada no texto. Parece esquisito, mas foi assim. Abordar os feminicídios foi uma tarefa complicada para mim: quando falamos de violência contra a mulher, os fatos, os números e a impunidade são esmagadores. Não parece haver saída, e nos sentimos impotentes.

Assim sendo, me interessava narrar como nós, mulheres, temos resistido a essas circunstâncias, e como conseguimos viver dentro de contextos tão adversos; quis narrar a forma com que somos companheiras de amigas e desconhecidas, velhas e jovens, mães e filhas, e os modos que encontramos de cuidar umas das outras em nossas caminhadas pelo mundo, criando espaços para a alegria, a confiança, a empatia e o crescimento. Isso não é uma utopia. Já tornamos isso viável, aqui e agora. E é com base em tal construção coletiva, forte, afetuosa e criativa que estamos cultivando nosso futuro. Assim, foi muito mais fácil para mim pensar em como tal contexto poderia evoluir de forma favorável em algumas décadas, imaginar como eu gostaria que o mundo fosse cem anos depois da época do meu nascimento.

Quis também honrar a memória das mulheres que foram assassinadas e das que morreram exigindo justiça, como Marisela Escobedo Ortiz e  sua filha, Rubí Marisol Frayre Escobedo, mas não quis transformá-las em personagens. Por isso, as experiências e os nomes presentes no conto não são diretamente relacionados. São experiências minhas, de mulheres que amo e de vítimas de assassinato, as de gente que nunca conheci misturadas aleatoriamente a nossas identidades, uma maneira de colocar no papel as palavras de ordem políticas que pintamos em muros ou cartazes: Mexeu com uma, mexeu com todas.

E quis, acima de tudo, fazer companhia a outras mulheres em sua dor, dar a elas consolo e ânimo para seguir adiante com a certeza de que não estamos sozinhas — pois a ficção também é boa para isso.

A melhor coisa de ter traduzido “Sonharão no jardim”, segundo a Ana: “O texto da Gabriela carrega uma boa dose de lirismo, então, precisava soar bonito, mas natural. Ao mesmo tempo, trata de um tema pesado, o feminicídio, mas numa chave de um futurismo utópico. Então, o mais difícil foi não chorar (muito) ao traduzir. É um texto que emociona, e espero que chegue assim aos corações no Brasil.

A foto quadrada mostra uma mulher branca, de cabelos escuros, lisos e compridos, com uma franja curta. Ela está sorrindo ligeiramente. Uma réstia de sol ilumina parte do rosto dela.

Gabriela Damián Miravete nasceu na Cidade do México. É cofundadora do coletivo de arte e ciência Cúmulo de Tesla, do Encuentro de Escritoras y Cuidados e da Mexicona, festival de literatura especulativa. Suas histórias foram publicadas em antologias finalistas do World Fantasy Award e do prêmio Hugo. É parte do programa internacional de escrita Under the Volcano e da FutureCon. Foi ganhadora do prêmio James Tiptree, Jr. (atualmente, prêmio Otherswise) por “Sonharão no jadim”. Gabriela crê que as palavras e as histórias têm um efeito palpável nas consciências — e, como consequência, na realidade que habitamos.

Doutora em estudos linguísticos e literários pela Universidade de São Paulo (2015) com tese sobre ficção científica e utopia. Seus últimos livros de ficção são Do amor – o dia em que Rimbaud decidiu vender armas (Quelônio, 2018), cuja primeira versão foi finalista do Prêmio Nascente USP 2007; e A telepatia são os outros (Monomito, 2019), vencedor do Prêmio Odisseia de Literatura Fantástica, finalista do Prêmio Argos e finalista do Jabuti.

A foto quadrada mostra uma mulher branca, de cabelos loiros escuros, lisos e compridos. Ela está sorrindo, usando batom vermelho e uma blusa preta. Ao fundo, é possível ver uma parede de tijolinhos. Uma réstia de sol ilumina parte do rosto dela.
A ilustração quadrada, desenhada no mesmo estilo da capa, mostra uma homem branco de cabelos castanhos curtos e arrepiados para cima. Ele está olhando para frente, mas com os olhos meio desviados. Ele veste uma camisa de um cor-de-rosa queimado, meio pastel, com um padrão vegetal verde, e óculos de grau com armação clássica estilo Ray Ban. O fundo é de um verde queimado, meio pastel, com um padrão vegetal rosa.

Dante Luiz é ilustrador, quadrinista e escreve nas horas vagas, além de trabalhar como diretor de arte da revista anglófona Strange Horizons. É o desenhista da graphic novel Crema, que será lançada em 2022 pela Dark Horse, editor da antologia As artes mágicas do Ignoto, e capista de diversas ilustrações nacionais. Mora em uma casa que mais parece um antiquário com sua esposa e pilhas intermináveis de trabalho por fazer.

Jana Bianchi é escritora, tradutora, editora na revista Mafagafo e cohostess do Curta Ficção. Em português, além de Lobo de rua (2016), publicou diversos contos em revistas e coletâneas. Em  inglês, tem ou terá textos publicados nas revistas Strange Horizons,
Clarkesworld e Fireside. É aluna da turma de 2021 do workshop de escrita Clarion West. Jana mora no interior de São Paulo com os pais, duas cachorras e suas várias tatuagens animadas.

A foto quadrada mostra uma mulher branca, de cabelos morenos e cortados na altura do ombro, meio bagunçados. Ela está sorrindo levemente e tem a mão estendida na direção da câmera, com os olhos fechados. Ao fundo, que é bem desfocado, é possível ver as luzes urbanas de uma avenida.